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Anabela Mota Ribeiro

António Simões

31.07.15

António Simões é o CEO no Reino Unido do HSBC. Foi o melhor aluno do seu curso da Universidade Nova, fez um MBA na Columbia University, trabalhou na McKinsey e na Goldman Sachs em Londres. Londres continua a ser a sua base, apesar dos dois anos que passou no Oriente.

Normalmente, quando se fala dele, diz-se que é gay assumido. Como se se revelasse uma característica exótica. António explica, na entrevista, que é mais improvável ter 39 anos e liderar 43 mil pessoas do que ser gay e liderar 43 mil pessoas. E explica também porque é que a diversidade (onde se inclui a homossexualidade) é boa para o negócio.

A entrevista aconteceu num hotel charmoso da baixa de Lisboa, no fim de Verão. Ele estava de férias e chegou ligeiramente atrasado. Vinha de um notário. Fez uma cara feia quando falou da burocracia portuguesa. A seguir ia almoçar com a mãe e o Tomás, o marido. Imaginam um percurso assim em Portugal?

 

Onde é que aprendeu o significado da palavra meritocracia?

A meritocracia está associada a uma ideia de justiça. Percebi no início da minha carreira que através da educação, do trabalho árduo, e tendo alguma convicção, conseguiria progredir na vida. Todas as instituições onde estudei, onde trabalhei, valorizam a meritocracia.

 

Começo por aqui porque apontou esse conceito como sendo fundamental para si. Também porque frequentemente se diz que a sociedade portuguesa não é meritocrática.

Não sei se estou de acordo. Claro que devíamos ser mais empreendedores, que é uma palavra que vem associada à meritocracia. Mas criticamos Portugal demasiado. Temos um sistema que é meritocrático ao nível da educação; o problema é que isso não se transmite para o mercado de trabalho.

Quando comecei a trabalhar na McKinsey, fui escolhido porque era o melhor aluno de Economia da Universidade Nova, porque passei nas entrevistas. E isso foi uma questão meritocrática. A empresa estava a contratar-me pelas minhas capacidades. Não pelo meu background, não pelo meu sotaque ou porque era do Porto ou de Lisboa.

 

Ou por ser filho de.

Isso seria pior ainda.

 

Pior mas constante em Portugal. É essa muitas vezes a queixa, o sistema de castas.

Claro.

 

Retomando o tema da meritocracia...

Parte da razão pela qual saí de Portugal tem que ver com a progressão de carreira. Aí a meritocracia não existe porque valorizamos mais o número de anos de trabalho…

 

A idade?

A idade pode ser uma questão. Nunca poderia, aos 39 anos, ser presidente de um banco em Portugal. Estou a gerir um banco com 43 mil pessoas que é maior do que qualquer banco em Portugal. Essa oportunidade nunca me teria sido dada.

 

Porque é que acha que é assim?

Há uma questão de escala, mas também há a de não se apostar em pessoas que tenham um perfil diferente. Um presidente de um banco deve ser uma pessoa de 55 anos, homem, straight, com três filhos. (Temos pessoas fantásticas em Portugal e temos outras que não são muito boas, não é um comentário acerca dos presidentes que temos...) Os CEO das grande empresas portuguesas são todos iguais.

 

Nesse sentido somos ainda uma sociedade conservadora? Temos esses estereótipos e depois procuramos pessoas que encaixem nessa formatação.

Exacto. Há uma discriminação implícita. Numa sociedade como a portuguesa ainda existem muitos estereótipos e homogeneidade.

 

Dois momentos de contacto com meios diversos e heterogéneos: a Goldman-Sachs em Londres (Londres é uma babel) e depois Hong Kong.

O primeiro [momento] foi quando cheguei a Nova Iorque com duas malas, the small boy in the big town. Mas a minha chegada a Londres foi mais impactante. Nova Iorque é mais cosmopolita que o Connecticut, que Los Angeles, mas não é cosmopolita no sentido inglês. Londres tem uma diversidade de culturas em que todas as pessoas continuam a ter a sua identidade. Em Nova Iorque toda a gente está a tentar ser um new yorker.

 

Comecemos então por falar de Londres.

No escritório da Mckinsey, em Londres – depois de sair da Goldman-Sachs entrei para a Mckinsey –, tínhamos 40 nacionalidades. Trabalhar nesse ambiente em que ser português – creio que éramos três – era exótico mas irrelevante, foi muito importante.

 

Seria irrelevante ser americano ou mesmo inglês?

Seria um pouco mais relevante. A sociedade inglesa também é muito estratificada.

 

Não andou em Eton ou em colégios onde se educa a aristocracia.

Estive na Faculdade Nova e estudei em Columbia, em Nova Iorque. Para eles sou exótico, não me conseguem colocar no seu sistema.

Chegar a Hong Kong foi uma experiência óptima. Vivi um bocadinho em Itália, em França, Inglaterra. São culturas parecidas com Portugal, com Espanha. Mesmo nos Estados Unidos, apesar de tudo, há uma grande ligação à Europa, Na Ásia é tudo diferente.

 

E acabou-se o eurocentrismo.

Sim. Tive o grande privilégio de trabalhar para o HSBC, que é uma instituição enorme em Hong Kong. Consegui integrar-me rapidamente. Apesar de Hong Kong ser muito cosmopolita e muito diversa, é uma cidade pequena. Parece Nova Iorque e Londres mas na verdade é como Aljezur. Tem sete milhões de habitantes, meio milhão são expatriados. Toda a gente se conhece. Sinto-me menos anónimo em Hong Kong do que em Lisboa.

 

Não interagem com a população local?

Muitos expatriados estão lá dois anos, como eu estive, e não há incentivo para interagir. Foi uma experiência fascinante em termos pessoais e profissionais, mas prefiro viver em Londres.

 

Em algum desses momentos, em algum desses países sentiu aquele dedo que se agita sobre nós e diz “you are nobody”?

Esse dedo virtual vem mais de dentro do que da sociedade. Passa muito por inseguranças pessoais. Passei a minha vida, especialmente a parte da educação formal e do início da minha carreira, a tentar provar qualquer coisa. A tentar impressionar outras pessoas, agradar.

Tive essa sensação quando fui para a Mckinsey em Londres. De repente é-se só mais um associado que acabou de entrar no escritório.

 

Já tinha passado pela McKinsey em Portugal.

Fiz o MBA em Nova Iorque, depois fui trabalhar para a Goldman em Londres. Podia ter voltado para a Mckinsey em Lisboa. Tinha feito um bom trabalho durante dois anos como analista, é a minha cultura, consigo perceber melhor as nuances culturais e de empatia em Portugal. E foi-me dito nessa altura, não que era um nobody, mas que this is a big risk. Foi isso que me atraiu em Londres. Tentar provar que if I can make it here [riso]... Em Portugal tive consciência de que tive muitas vantagens. Tive uma óptima educação, sou homem, o que ajuda.

 

Curioso, notar isso.

Mas é verdade. Foi o Warren Buffett quem disse que teve uma grande vantagem: estava a competir só com 50% da população.

Quando comecei como CEO do Reino Unido na HSBC, tínhamos uma mulher, head of communications. Agora mais de 30% da minha comissão executiva são mulheres.

 

Promovidas por si?

Sim. De forma conscious mas também unconscious. Temos 250 mil empregados, escolhi a melhor pessoa na área de retalho, a nossa head of retail no Médio Oriente. A head of global banking, a parte toda de mercados de empresas, também é uma mulher. Nomeei 15 pessoas das quais cinco são mulheres. É normal que tivesse acontecido isso, o que é anormal é que anteriormente não tivéssemos ninguém.

 

Não pode ser coincidência que seja a primeira mulher a ocupar esse cargo. Mesmo que de uma razão inconsciente, há preconceitos instalados.

E 55% das 43 mil pessoas que estou a gerir são mulheres. Não é um problema de entrada no mercado de trabalho, não é um problema, sequer, de entrada na banca, é um problema de progressão de carreira.

 

Disse que durante um período da sua carreira queria provar, agradar. Era uma coisa persecutória dentro de si?

Tive uma infância óptima, uma adolescência muito normal e feliz. Até aos 19 anos sabia que era homossexual mas não tive abertura para falar com a minha família, com os meus amigos. Havia o sentimento de I’m not good enough. Havia um tentar compensar qualquer coisa. E quis provar que era good enough, que era suficientemente bom.

 

Os seus pais educaram-no para ser o melhor?

Sou filho único. Os meus pais são divorciados e o meu pai voltou a casar; tenho uma irmã à qual chamo irmã porque crescemos juntos. Os meus pais deram-me todo o apoio, quiseram que tivesse a melhor educação possível. Sempre esperaram, de alguma forma, que eu fosse excelente. Não que fosse o melhor, isso é um conceito muito restrito.

A questão da insegurança vem mais de mim. Tenho 39 anos, passei os primeiros 30 anos nesta corrida.

 

Os seus pais são pessoas ligadas à banca?

Sim, os dois estão em banca, em seguros.

 

Em Portugal confunde-se a educação para a excelência e o desejo de ser o melhor com ambição desmedida. Onde é que aprendeu que ambição pode ser uma coisa diferente daquela que ensinam em Portugal?

Há três ou quatro ditados populares que falam dessa ambição desmedida. “O passo maior que a perna”... Os Estados Unidos ajudaram bastante. Estão no oposto. Toda a gente é above average, o que matematicamente é impossível. Mas esta ideia de que tem que se ser melhor, progredir, e de que a ambição é uma coisa boa, libertou-me. Sempre associei a ambição à oportunidade de fazer coisas diferentes, de ter mais estímulo e de não depender de ninguém. A muitas pessoas, em Portugal, não lhes falta ambição, mas têm vergonha de a assumir.

 

Têm vergonha porque receiam que os apontem como crápulas, que é o que se diz dos ambiciosos.

É importante ter um certo equilíbrio. Para mim ambição é uma palavra 100% positiva.

 

O que é que levou de Portugal? Tudo somado está há 20 anos fora. Em que momento é que pensa: “Isto é a minha formação de base”? Quer familiar, quer pessoal, académica.

Há várias dimensões. Uma educação extraordinária. Às vezes temos um complexo de inferioridade como portugueses. Fui assistente de dois professores em Columbia, quando fiz o mestrado, porque a base académica que tinha de Portugal, numa licenciatura em Economia, era superior a todos os meus colegas.

 

Foi daqui com média de 19? Foi o melhor aluno do curso.

[risos] Sim, fui o melhor aluno do curso, com média de 18. Foi a Mckinsey que patrocinou o meu mestrado nos Estados Unidos. Comecei a perceber que gostava de trabalhar fora. Nos primeiros anos de trabalho aprende-se o básico de como trabalhar. Não é só uma questão intelectual.

 

Não se ensina a trabalhar nas universidades. Pode dizer algumas coisas que ache importantes?

A disciplina de trabalho. A disciplina de chegar a horas a reuniões, de cumprir deadlines, não é valorizado em Portugal.

 

No fundo, é cumprir, é ser fiável.

Sim. No nosso sistema de educação temos um enfoque muito maior na parte intelectual e não tanto na disciplina de trabalho. A minha experiência é muito datada, suponho que o sistema tenha evoluído e melhorado. A terceira dimensão, que é uma questão mais psicológica, e que levei de Portugal, é um sentimento de humildade. A minha personalidade é mais understatement, menos show off. E também mais neutral. Portugal, apesar de em termos internacionais não ter uma grande marca, também não tem muitos inimigos. Levei comigo essa neutralidade.

 

Isso conta, de uma maneira inconsciente?

Uma coisa que recebo das pessoas com quem trabalhei ao longo dos anos é que tenho uma grande empatia pessoal. Essa empatia passa por ser português. Não é que todos os portugueses tenham empatia, mas a inteligência emocional é muito importante. Em termos de liderança, neste momento da minha carreira, isso conta mais do que o que já fiz no meu percurso.

 

Conta mesmo, não é bullshit?

É difícil articular isto de forma concreta... Lidero 43 mil pessoas, não consigo falar nem com 1000 das pessoas com quem trabalho. Um líder passa muito por ser um líder autêntico. Não há um líder que possa liderar um país ou uma grande empresa de forma sustentável sem ter uma inteligência emocional desenvolvida. Isso vem muito da minha família, do meu país. Não se ensina.

 

Além da inteligência emocional, a cultura geral importa efectivamente para a qualidade da liderança? Estou a pensar naquelas pessoas que são os melhores alunos de Harvard, de Oxford, mas que só sabem ler relatórios. Não sabem História, Política, não têm sensibilidade para ir a um museu. Não sabem ler as pessoas.

Importa. Se é só um Harvard MBA e a única coisa que sabe fazer é olhar para excel spreadsheets, a única coisa que vai fazer na vida é ser analista de uma empresa. Não consegue liderar grandes equipas. Qualquer pessoa tem que ter um lado pessoal, de formação geral, para liderar. A isso, quando trabalhei na Mckinsey, chamavam “externalidades positivas”.

 

Externalidades positivas?

Imagine um grupo de pessoas muito inteligentes, com bastante ambição; tocam instrumentos incríveis, viveram em dez países, falam cinco línguas, têm interesses culturais fantásticos, são pessoas complexas.

A cultura geral: muito do que faço e muito do que fiz – nas minhas funções anteriores no HSBC, quando era chefe de estratégia do banco –, passa por entender o mundo. Por perceber o que é apropriado no Médio Oriente, como é que o Brasil se relacionou com os Estados Unidos, perceber geopolítica.

 

E neste mosaico tão completo e diversificado, qual é o papel e a importância do erro e do fracasso? Esses perfis que descreve parecem sem mácula, e ninguém está isento de mácula. Às vezes é importante cair.

Não só é importante cair, é importante ser vulnerável e mostrar um pouco dessa fraqueza. Ninguém quer seguir líderes sem mácula porque não são reais. São uma imagem construída por eles próprios ou à volta deles. A fraqueza, o erro, recuperar – esse lado humano é importante. O fracasso e o erro são importantes para aprender. É impossível fazer coisas novas, desenvolver novas ideias, sem cometer erros. Tento fazer isso de uma forma controlada, para que os erros e os fracassos não sejam tão estrondosos que destruam tudo o que já fiz. É preciso ter um sistema de gratificação positivo e ao mesmo tempo desmistificar a ideia de que com um erro a pessoa tem a carreira destruída.

 

Há exemplos de grandes líderes cuja carreira foi destruída num instante.

O Lord Browne, da British Petroleum, uma pessoa que conheço bem, escreveu um livro que se chama The Glass Closet. Foi CEO de uma das maiores empresas do mundo, perfeito, até aos seus 50 e tal anos. O facto de omitir a sua sexualidade tornou-se um problema e teve que se demitir da BP. Parecia ser o fim, o tal fracasso. E para ele foi, nesse momento. Escreveu este livro porque reconstruiu completamente a carreira; trabalha com o governo inglês, lidera uma empresa de private equity. Escreveu este livro sobre why coming out is good for business. Ajudei-o a escrever um dos capítulos. Sou o exemplo da diversidade [na liderança].

 

Explique-me porque é importante assumir a sua orientação sexual para o negócio. Em Portugal continuamos a dizer que o que se passa dentro de portas fica dentro de portas.

Isso não é verdade para ninguém. Qualquer pessoa, qualquer CEO de uma empresa em Portugal, tem uma fotografia da mulher e dos filhos no gabinete. As pessoas sabem quem é a mulher e os filhos. Essas coisas passam-se dentro de portas mas ninguém consegue ocultar todos os dias, em todas as situações da sua vida profissional, a sua vida pessoal. Eu não tinha opção. Mas o que acaba por acontecer [normalmente] é o não mentir mas também não falar sobre isso.

 

Don’t ask, don’t tell – como se dizia no exército americano.

Mas torna-se estranho, incomportável, a certa altura. É impossível estar num palco em frente a três mil pessoas, e não dizer nada sobre a minha vida pessoal. Qualquer pessoa quer saber quem somos como indivíduos, o que é que nos motiva, como é que pensamos.

 

O que é que o faz feliz.

Claro. Este é um aspecto como outros. Falo do Tomás [marido], dos meus dois labradores, das férias. Falo muito pouco sobre homossexualidade como tema, mas falo muito sobre o Tomás. Falo como qualquer outra pessoa fala. Estou a tentar desdramatizar. Isto é bom para o negócio porque precisamos de líderes autênticos que liderem de forma autêntica, com pessoas que os queiram seguir. Isso é uma grande parte da minha marca de autenticidade. Toda a gente já se sentiu em algum momento um outsider. Não é uma questão de maiorias ou de minorias.

 

Fez um vídeo com Martina Navratilova, que está no youtube, no qual fala de diversidade (a partir da homossexualidade da tenista e da sua). Mas o sentimento de pertencer a uma minoria pode ser por ser de cor, por ser pobre, por vir do fim do mundo.

A maior parte das pessoas, a certa altura, sentiu-se insegura por qualquer dimensão da sua personalidade, e sente que não pode falar sobre isso. Gastar energia a esconder essa questão é mau para o negócio. É bom para o negócio ter equipas produtivas, com pessoas que se sintam bem com elas próprias, e ter perspectivas diferentes sobre os problemas.

Tenho uma equipa, agora, com um terço de mulheres e com uma diversidade, não só nos aspectos mais óbvios de raça, religião, sexualidade, mas também de pensamento. Em meios conservadores como a banca, se tivermos equipas diversas, vamos chegar a conclusões mais acertadas. Se formos só dois e se tivermos um contexto igual, vamos ter opiniões muito parecidas. Isso é perigoso no contexto de uma grande empresa.

 

Quando chegou, a administração era constituída maioritariamente por homens straight, brancos, com uma determinada idade, ingleses. É o valor dessa diversidade étnica, etária, cultural que traz uma marca positiva ao negócio? A orientação sexual é só um item deste cardápio.

Obviamente. Tenho tornado esta discussão muito mais abrangente, e liguei-a muito à meritocracia. Valorizar a diversidade faz com que todas as pessoas na empresa sintam que também podem lá chegar. Com ambição, com trabalho. O que importa é só o que eles fazem. If you’re good, you play.

 

E para ser good, tem que estar bem consigo próprio.

Tem.

 

E agora a pergunta que uma boa parte da sociedade conservadora, que persiste em Portugal, faz: na prática nunca foi discriminado?

Todos já fomos, em alguma altura. É uma pergunta difícil. Sou positivo e tento ser o meu cheerleader, motivar-me. Detesto a ideia de vítima, de pessoas que se vitimizam. Sou tão diferente em tantas dimensões... É muito mais raro ter 39 anos e liderar o HSBC do que ser gay e liderar o HSBC. É muito mais raro ser português e liderar o HSBC no Reino Unido... Será que o facto de ser português limitou a minha carreira até agora? Provavelmente. Seria mais eficaz, quando estou em Sheffield ou em Glasgow, [se fosse inglês]? Ou seria um melhor CEO? Tento não pensar muito nisso. Acho que nunca fui discriminado por nenhuma das minhas dimensões, mas se calhar estou a ser demasiado optimista. Tenho a grande vantagem de, especialmente em Londres, mas em Nova Iorque, em Hong Kong e Lisboa, ser tão politicamente incorrecto discriminar de uma forma aberta, [que isso me coloca] numa redoma. Obviamente [isto] não seria verdade se vivesse no meio dos Estados Unidos ou na Arábia Saudita, no Uganda.

 

Entrou para o HSBC em 2007. Em 2008 aconteceu o impensável, a queda do Lehman Brothers. Os bancos e os mercados, a palavra financeiro adquiriu, de um modo geral, uma conotação negativa. As coisas mudaram muito ou foi só na aparência? E passados estes anos sobre 2008, está tudo a voltar a velhos carris?

As coisas mudaram imenso. Primeiro de uma forma objectiva, se pensarmos nos bancos, na quantidade de capital, de liquidez, de regulação. Temos regras muito mais restritas.

 

(Por falar em regulação: o que se passa em Portugal, o terramoto deste Verão com o BES, podia passar-se noutro país da Europa?

No comment.) Há duas questões importantes, há a regulação e a supervisão. Há as regras em si, muitas delas são globais. O que muda de país para país é a supervisão, a qualidade da supervisão, o modo como essa supervisão é feita. É cada vez mais difícil que o que aconteceu em 2008 aconteça. Os bancos têm mais regras, são melhor supervisionados e geridos. O grande problema, se pensar em Inglaterra, que é um mercado que conheço muito bem, é que continuamos todas as semanas a ter um novo escândalo. Enquanto o comportamento dentro da banca não mudar, e temos que pensar que as pessoas que estão dentro da banca hoje são as mesmas que estavam em 2008, [os escândalos vão continuar a acontecer]. Muito do que tenho feito no banco é um programa de mudança cultural super complicado.

 

É um processo em curso, que está longe de estar concluído?

Este programa de transformação, do meu ponto de vista, vai demorar mais alguns anos. Quero pensar que tudo o que está a ser feito hoje, pelo menos no meu banco, é consistente, não só com as regras mas com os valores que definimos. Temos uma série de problemas que foram criados nas últimas décadas e que ainda não estão resolvidos. E esse é um problema em termos de confiança.

 

A perda de confiança é o grande problema entre todos os grandes problemas?

A confiança no sistema financeiro, na banca só vai voltar quando estes escândalos acabarem e quando nós, como banqueiros, conseguirmos provar à sociedade que o sistema mudou e para melhor. Não ajuda que tanto em Inglaterra como em Portugal (e outros países) os bancos sejam bailed out e tenham que ser salvos pelo dinheiro dos Estados. Isto tem que acabar. O Royal Bank of Scotland, no Lloyds ou no Espírito Santo, em Portugal: temos que devolver esses bancos à propriedade privada para que o cidadão sinta que não está a apoiar uma instituição falhada e que o seu dinheiro, o dos seus impostos, não está a ser usado para isso. Falta muito tempo ainda. We’re not there yet. Não estamos a voltar às mesmas práticas de 2008, a indústria mudou, mas tem que mudar muito mais.

 

Formou-se na Nova, com a qual vai colaborar, nomeadamente apoiando o programa de licenciatura. O que é que diria a um jovem estudante de Economia ou Gestão, finalista? O que é que devem incrementar no seu currículo?

Diria a um jovem para não pensar só no lado académico. Estudantes, hoje, numa universidade, têm que ter ambição e vontade. Quando entrevisto alguém tento perceber não só a questão académica mas quem é que são como pessoas, o que fizeram para além da faculdade. Os americanos são muito bons nestas extracurricular activities. [Aconselho a] que como estudantes sejam mais do que só um currículo. Os currículos são todos iguais. Têm uma média, que é um número.

 

Que é importante mas não é fundamental.

Não é fundamental. Segundo: têm que ser mais proactivos a perceber o mercado de trabalho, a perceber onde é que gostariam de trabalhar, o que é que gostariam de fazer. Eu não tinha noção nenhuma. Uma coisa que fiz mais tarde, no MBA, mas que não fiz na licenciatura, foi trabalhar durante o Verão em diferentes empresas.

 

Porquê?

Experiência profissional. Conta imenso quando se tem o primeiro emprego.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014

 

 

Havana

20.07.15

Pôr do sol no Hotel Sevilla

“Vou deixar a chave do meu quarto no lavatório. Quinto andar no Seville-Biltmore. Vá lá directamente às dez da noite. Assuntos a discutir: dinheiro, etc. Que mau cheiro! Não pergunte por mim na portaria”. Em “O Nosso Agente em Havana”, o livro de Graham Greene publicado em 1958, a relação entre um agente dos serviços secretos britânicos e um comerciante que vendia aspiradores começou assim. Passados 50 anos, o Sevilla mantém a aura misteriosa e a beleza de inspiração arabesca. Paredes revestidas a azulejos, pequenas pedras incrustadas, colunas de cores intensas, tectos trabalhados, plantas bojudas entre os sofás e as mesas. Retratos de famosos que por ali passaram: Josefine Baker, Al Capone, Gloria Swanson, Enrico Caruso.

O último andar está transformado em sala de refeições. É um espaço amplo, com janelas que atiram para o Malécon (a avenida marginal), o Capitólio (do outro lado), as casas assombradas do Vedado (antigo bairro opulento, hoje em estado de degradação), a academia de ginástica, que agora acolhe a escola de dança; foi lá que se filmou uma das mais belas cenas do filme “Buena Vista Social Club”, de Wim Wenders. Um pianista toca Michel Legrand, Cole Porter, clássicos da música americana.

O pôr do sol contrasta com a cor esmaecida da cidade. É uma assombrosa bola de fogo, quase tangível, que se recolhe, primeiro delicadamente, depois aceleradamente, antes os nossos olhos. Imperdível.

www.hotelsevillacuba.com

 

O Quarto de Hemingway

Ernest Hemingway viveu intermitentemente sete anos na habitación 511 do hotel Ambos Mundos. Foi entre os anos 1932 e 1939. O quarto está intacto, como se o escritor (que se suicidou em 1961) pudesse assomar-se à janela, entrar de rompante pela porta, sentar-se à secretária. É um espaço pequeno, de configuração irregular, com um pé direito altíssimo. Coincide com uma das extremidades do edifício, na bifurcação das ruas Obispo e Mercadores.

A vista que hoje existe não difere muito daquela de que Hemingway usufruía. Não há novas construções, a música ouve-se do bar de esquina e da varanda do vizinho, o Atlântico chega com mansidão ao porto de Havana. Mais perto, fica a praça onde agora se vendem livros usados e vasta iconografia da revolução que Che Guevara e Fidel fizeram há 50 anos.

As paredes do quarto são pálidas, quase brancas, o chão de mosaico tem cores harmoniosas. As cortinas são transparentes e deixam passar uma luminosidade intensa; as gelosias estão semi-serradas e desse modo criam a ilusão de se estar num mundo à parte.

Sobre a cama está aberta uma velha edição da Cosmopolitan onde o escritor publicou “Across the River and into the trees”. Na secretária, disposta em frente a uma das três janelas, está a máquina de escrever Royal, com as letras do teclado comidas pelo uso; há também um envelope, um telegrama, um lápis.

Na estante há agora livros como “Por quem os sinos dobram” ou “O Velho e o Mar” em diferentes línguas e traduções. E por cima, uma réplica do barco onde ia à pesca, o Pilar. À entrada do quarto, numa reentrância protegida por um vidro, encontra-se uma mala Louis Vuitton com vestígios de autocolantes, uns sapatos de homem de pele castanha, uma jaqueta e uns mocassins da sua última mulher.

Havana Vieja.

 

Yoani Sánchez

Há quem pense que é agente da CIA. Há quem olhe para ela como uma Joana D’Arc dos tempos modernos. A revista Time considerou Yoani Sánchez uma das 100 personalidades mais influentes do planeta. O canal que esta filóloga usa é o blogue Generación Y. Foi criado em Abril de 2006 como forma de exorcismo pessoal, para reflectir uma realidade que Yoani não encontra nos jornais (dominados pelo aparelho) que se publicam em Cuba.

Escreve sobre a opção de casar ou não casar com o companheiro com quem vive, sobre a euforia de haver uvas frescas, sobre os humildes para os quais se fez a revolução socialista, sobre “a pobreza ser um caminho que leva à obediência”, sobre o primeiro sol de 2009.

Generación Y é um fenómeno global. Estima-se que cinco milhões de pessoas acedam todos os meses e tem tradução em japonês, finlandês ou búlgaro (são treze línguas no total). Em 2008 foi-lhe atribuído o Prémio Ortega Y Gasset para Jornalismo Virtual. O regime cubano não consentiu que Yoani se ausentasse do país para o receber.

Tem 33 anos, um filho de 13, ganha a vida como guia turística. É contactável (para quem quiser conhecer a Havana dos cubanos e a cidade nostálgica que parou no tempo…) no seu blogue.

www.desdecuba.com/generaciony/

 

Habana 1791

Há frascos old fashion, de vidro transparente, grandes como frascos de laboratório. Há vitrais lindíssimos que nos devolvem a impressão de estar sob um céu de pétalas; tom dominante: o amarelo. A madeira confere um ambiente antigo e acolhedor.

Nada nesta loja tem a sofisticação dos perfumeiros franceses ou italianos. Tem, ao contrário, uma aparência tosca e artesanal. Numa sala das traseiras pode ver-se o borbulhar de um líquido cor de violeta, como se in loco assistíssemos à manufactura destas fragrâncias. 

Sobre o balcão estão sucessivos tubos de ensaio. Há um verde forte que cheira a vetiver, um amarelo limão que cheira a limão, um rosa claro que cheira a rosas. As fragrâncias são puras e podem ser combinadas. Limão com vetiver – sugere a empregada – produz uma sensação de frescura; a flor de jasmim deve ser aspergida com parcimónia, porque persiste horas sem fim. Uma vez escolhida a essência ou a combinação de essências, um pequeno frasco é posto na boca de uma torneira e enchido em segundos. Por fim, se a rolha é de cortiça, vai ao lacre para ter a certeza de que fica estanque.

Habana 1791 conheceu clientes famosos, como Bonaparte, e o perfume composto para si vende-se à parte. Há também à venda sacos para pôr entre a roupa, com cheiro a lavanda, outros com aparas de madeira, outros com pétalas de rosa. Leve esponjas de banho, óptimas para fazer esfoliação. Os preços são irrisórios. www.habana1791.com

 

Habana Vieja

É o coração da cidade, com ruas pedonais onde tudo pode acontecer: uma velha espírita lê as cartas do tarot, velhas negras fumam puros de manhã à noite, uma criança toca percussão à entrada de casa, um homem pobre e insano dança ao som de maracas… Há ruas de nomes poéticos como Amargura ou Amistad. Há lojas e feiras de artesanato. Há jovens que se tocam com lascívia em plena rua. Há roupa dependurada nas janelas. Músicos tocam no rádio do primeiro andar, músicos cantam ao vivo nas esplanadas. Faz-se fila para o pão. Duas escolas primárias dividem as paredes com estabelecimentos comerciais. Uma família de pai, mãe e dois filhos equilibra-se sobre uma moto. Vizinhos espiam das janelas e varandas. Frases revolucionárias continuam escritas nas paredes: Patria o muerte! Na catedral, pede-se à senhora do Loreto uma casa digna. Há muitas casas recuperadas, de traçado hispânico, com pátios interiores e escadas íngremes. As paredes são brancas e de um azul que só existe em Cuba. Vive-se sobretudo da contribuição do turista e do que ele possa aportar. Gente calorosa.

 

Daiquiris ou Mojitos?

A dois passos da catedral, fica a Bodeguita del Medio, onde todo o mundo vai e rabisca o nome na parede (de Errol Flynn a Pablo Neruda). É como uma tasca, de salas que se metem umas dentro das outras, sempre cheias de turistas. A cinco minutos a pé, fica a Floridita, onde Hemingway tomava daiquiris pela manhã; para os mojitos preferia a Bodeguita. A Floridita serve também mojitos, cuba libre e sandwiches duvidosas; tem uns belos cortinados de veludo vermelho e uma formação jazzística latina.  

A base de uma e outra é o rum, bebida cubana por excelência. Mistura com soda, hortelã e lima, no caso do mojito, com sumo de limão e muito gelo, no caso do daiquiri. E açúcar, em ambos. Uma bomba, uma delícia!

 

Onde comer?

Houve um tempo em que era normal ir comer a casa de uma família. Essa forma improvisada de restaurante deu lugar aos paladares: mantêm a informalidade no trato, e podem muito bem funcionar no pátio lá de casa, entre paredes de alumínio. Há restaurantes que o são desde sempre – o que não quer forçosamente dizer que se coma melhor; são apenas mais caros e sofisticados.

Não há prato mais cubano do que arroz com feijão. Pode funcionar como acompanhamento para carne ou peixe. Não é raro haver lagosta, pescada nas costas da ilha, bem como espadarte ou atum.

El Templete, junto ao Malécon, é um restaurante de mariscos e peixes famoso.

Prepare-se para ter música non stop. O que não é mau: a qualidade média dos músicos de jazz latino é francamente boa. Não esquecer que alguns músicos do mítico “Buena Vista Social Club” levaram a vida engraxando sapatos e cantando em restaurantes. Há outros como eles…

 

Como circular?

Olha um Chevrolet, olha um Plymouth, um Ford, um Buick…  A todo o instante passam carros de cores inverosímeis, se pensarmos nos dias de hoje – como laranja, amarelo, azul-bebé, lilás… O parque automóvel cubano instala-nos num fotograma de um filme dos anos 50. São, na verdade, carros dos anos 50, anteriores à Revolução Cubana e ao embargo americano.

Há-os descapotáveis, há-os com duas filas de bancos, com bancos corridos, com a tinta a descascar, com o farol preso com fita-cola, com o motor a roncar, com a carroçaria de uma marca e o motor de outra…

Circular é um problema central na vida dos cubanos. Os autocarros são escassos, e os carros, mesmo decrépitos, não estão ao alcance de todos. Vê-se imensa gente à boleia. Vê-se imensa gente a pé.

Para os turistas não resta outra hipótese senão apanhar um táxi. São também dos anos 50 e representam a possibilidade de alugar uma fantasia: viajar no tempo!

 

Onde ficar?

O hotel Inglaterra e o Telégrafo ficam lado a lado, na praça central de Havana; estão recuperados. O clássico Hotel Nacional acolheu Nat King Cole ou Kate Moss, reuniões de mafiosos, uma cena d’”O Padrinho”, e estrelas do cinema americano; tem um jardim soberbo virado para o oceano. No meio de Havana Vieja, não perca os vitrais do Hotel Raquel: são estonteantes.

 

O que comprar?

Compre artesanato local: pintura, roupa de algodão, instrumentos musicais. Tudo é muito pobre e rudimentar. Havana é um daqueles sítios onde, mais do que comprar, apetece dar. Leve consigo sabonetes, gilettes, pasta dos dentes, champô, pensos rápidos, aspirinas, todo o tipo de bens de primeira necessidade. São raríssimos ou inexistentes nas “lojas para cubanos” (sujeitas a caderneta de racionamento) e nas “lojas para turistas” têm um preço exorbitante.

 

Publicado originalmente na revista Máxima  

 

 

 

 

                                                       

Mário Cláudio

15.07.15

Na sala sente-se a fragrância que é própria dos dias de festa, ou dos dias subsequentes. Há um quadro de Silva Porto, um piano imponente, livros de pintura, outros livros. É de manhã cedo. Mário Cláudio soubera três dias antes que havia sido galardoado com o Prémio Pessoa, (o mais importante em Portugal no campo da criação artística e da investigação científica). E a notícia causara-lhe surpresa, suscitara-lhe estímulo. A sua produção recente é abundante: «Gémeos», onde reinventa a vida do escritor espanhol Goya, saiu há meses; «O Triunfo do Amor Português», onde revisita mitos como o de Pedro e Inês, tem semanas; e para breve anuncia-se um regresso à poesia.

Eis a biografia sumária de um escritor que existe escrevendo, e que a escrever se perde. E justifica. 

 

O júri que lhe atribuiu o Prémio Pessoa destacou, entre outras coisas, “a tentação biográfica”. Tenho a tentação de o biografar sucintamente, começando, por este seu fascínio.

Quando vejo uma figura biografável, sinto que, de alguma forma, essa figura me chamou. É mais uma possessão de uma figura que exige que eu a biografe do que propriamente uma busca minha. São figuras que têm alguma coisa a ver comigo, mesmo que a afinidade se manifeste por um lado mais negativo. A única coisa que depois respeito é a cronologia. Faço uma psicobiografia, uma incursão pela personalidade da pessoa, pelas atmosferas a que esteve ligada, muito mais que pelos factos verificáveis.

 

O que há de trágico, eloquente, palpitante em Guilhermina Suggia ou Goya, ou até nas pessoas da rua, para que se transformem em figuras biografáveis?

No caso da Guilhermina Suggia, foi a circunstância de ela ser, como eu, uma natureza extraordinariamente turbulenta em termos de afectos. Conheci a Guilhermina Suggia quando tinha seis anos, mas não me lembro de nada. Escrever sobre uma pessoa que conheci, mas esqueci, era desafiante.

 

Esquiva-se à sua própria biografia?

Não. Em todas essas histórias, projecto muito do que sou. Aliás, o desafio maior a que gostaria de responder, seria escrever uma autobiografia inventada. Escrever na primeira pessoa sobre uma pessoa que não existe, que não sou eu. Outro desafio seria escrever uma biografia científica com citações, referências mentais, bibliografia, de uma figura inexistente.

 

No fundo, está sempre a inventar e a descobrir outros que também estão contidos em si.

Claro. Só até certo ponto é que são outros. Um escritor nunca inventa outros. Reinventa-se nos outros.

 

Mário Cláudio é um pseudónimo. Por que é que recorre a um pseudónimo?

O pseudónimo nasceu por razões muito pragmáticas. Tinha acabado de me licenciar em Direito e comecei a advogar. Nessa fase parecia-me incompatível a actividade de advogado com a actividade de poeta – que era sobretudo o que fazia. De maneira que acobertei-me num nome falso. Não queria que houvesse uma conflitualidade nas duas figuras e optei por me esconder através de um pseudónimo.

 

Há um momento em que se pensa que todas as vidas são ainda possíveis. Ou, para si, todas as vidas são sempre possíveis?

Claro que sim, todas as vidas são possíveis até ao último minuto.

 

Podemos sempre escolher outros caminhos? Existe sempre essa liberdade suprema de se escolher a vida que se tem?

Todas as actividades de criação, quer seja através da literatura, quer seja através do teatro ou da pintura, têm de mais motivador e extasiante essa capacidade de inventar vidas constantemente novas, constantemente outras. Acho que todos os autores fazem biografias.

 

Nem que seja uma falsa autobiografia.

Podem ser biografias minúsculas, podem durar minutos ou horas. Por outro lado, também acho que a história é muito mais biografia do que história. A história é muito mais mito do que história. O mito está mais ligado às pessoas.

 

E sendo mito, permite uma revisitação contínua, é inesgotável.

Exactamente. A ficção é muito mais verdadeira do que a história, porque a ficção está próxima do mito, está sempre a formar-se. A história está junto ao facto, e o facto está sempre a deformar-se.

 

Vê os factos como sequências cronológicas? São o quê?

Os factos são convenções, que compendiamos, arquivamos. Não sabemos nada sobre a batalha de Austerlitz; sabemos apenas a data em que se deu, quais foram as tropas; mas não sabemos do que se passou pela cabeça do Napoleão e outros chefes militares, do que se passou pela cabeça de um único soldado. Isso é que foi a verdadeira batalha de Austerlitz, essas mentes todas a trabalhar em função de pulsões, objectivos, frustrações, aspirações.

 

Não podemos resgatar isso senão através da ficção?

Só podemos descobrir isso auscultando-nos, sentindo essas vidas em nós, deixando-nos possuir por essas vidas. Essa é a grande função da literatura. Por isso é que a literatura não tem a ver com factos, tem a ver com mitos.

 

Deixe-me voltar à casa da partida, a essa altura em que tirou o curso de Direito e chegou a advogar.

Advoguei durante um período muito curto, na Guiné, com o Joaquim [Gomes] Canotilho. Fomos colegas de curso, estávamos os dois no serviço militar, e montámos um escritório de advogados.

 

Quando é que percebeu que a sua vida não era essa e que aquilo que queria era escrever?

Percebi desde sempre. O curso de Direito não foi uma imposição, mas uma satisfação que dei à minha família. Nunca passou pela cabeça do meu pai que eu pudesse vir a ser escritor.

 

Porquê?

Nunca passa isso pela cabeça de um pai normal!

 

É a precariedade do destino?

É uma actividade aleatória. Pode funcionar ou pode não funcionar. A história está cheia de exemplos de meninos que quiseram ser artistas e cujos percursos foram cerceados pelos pais. Eu sabia que queria escrever, e foi justamente por isso que houve uma inflexão do meu percurso por essas áreas que eram incompatíveis – a escrita e o Direito. 

 

O Direito, para quem prefere o mito e a reinvenção, parece árido e factual.

Não só. Absorve tempo, se for levado a sério. Fui procurando inserções profissionais que me deixassem o tempo livre e acabei por desaguar na escrita naturalmente. Às vezes, alunos meus apresentam-me textos que escreveram e pedem-me opiniões, (se eu acho que eles são escritores). Digo-lhes sempre a mesma coisa: «Se você não puder passar sem escrever, é. Se puder, se é uma actividade que pode largar e retomar, então não é de certeza absoluta». Eu não podia largar.

 

A memória de si a escrever é antiga?

Tenho memória de mim a escrever desde que sei escrever. A escrever com grande envolvimento, a fazer redacções que deixavam os professores com alguma admiração por mim – procurava essa admiração nas redacções que fazia. A partir dos 14 anos, tenho a ideia de uma actividade que já não era escolar, mas continuada, de haver uma rotina de escrita.

 

Outra das razões apontadas pelo júri do Prémio Pessoa foi a mestria da língua. Quem são as pessoas determinantes na sua relação com a língua?

São os escritores portugueses que mantêm uma tradição de vernaculismo. Frei Luís de Sousa, Padre António Vieira e Camilo Castelo Branco.

 

Mas leu o Camilo com que idade?

O «Amor de Perdição», que era um romance de que se falava muito na minha família, li com 12, 13 anos. Lembro-me de se contar que a minha avó materna, na sua juventude, leu o «Amor de Perdição» e teve uma depressão! Vivi numa casa onde havia muitos livros e isso ajudou. 

 

Havia um lado melómano na família? Estou a pensar na convivência com a violoncelista Guilhermina Suggia.

A minha mãe foi professora de música toda a vida. Contei a história dela num livro chamado «Tocata para dois clarins».

 

A presença musical deixou marcas na cadência da sua narrativa?

Foi determinante. Apoio absolutamente aquele conselho dado pelo Ezrda Pound a quem escreve: «A primeira coisa a fazer é ouvir». Há um elemento da escrita que se tem ou não se tem, e que quando se tem é muito musical: a capacidade de concatenar as palavras. O Eugénio de Andrade tem isso, mas há outros poetas enormes, como o Jorge de Sena, que não têm. Quando se tem isso, é talento inato, e é preciso alimentar com música. Eu acho que tenho isso, posso não ter outras qualidades.

 

É como se ouvisse uma harmonia intimamente.

É como se o texto que se escreve já estivesse escrito e a função do autor fosse apenas transcrevê-lo. Tenho muito essa sensação: não sei o que está no texto, mas tenho o ritmo, aquilo a que se pode chamar a musicalidade do texto. Isso está dentro e é preexistente ao texto. Parece um conceito muito platónico, mas tenho essa noção. Vejo a escrita como uma espécie de palimpsesto, um texto escrito sobre outro texto que já existe, mas que não é imediatamente visível.

 

É o que acontece com as suas biografias. A uma biografia factual e pré-existente, junta-se a sua reinvenção, que vai ao encontro desse existente. A sedimentação progressiva confirma isso mesmo.

Muito bem observado. É isso mesmo.

 

 

Eu situo-o sempre num tempo que é pretérito, e menos apontado para o futuro.

 Por uma razão muito simples: vou à procura de mitos. E não há mitos no futuro. Os mitos estão todos ligados ao passado. Na contemporaneidade haverá mitos, mas estão ainda em formação, não os encontro. [O meu tempo é] o presente e o passado. O passado lido à luz do presente. 

 

Quando avança para uma situação, o que tenta perscrutar são as tensões mais íntimas e o carácter trágico. Há uma atracção pelo limite, um centímetro a mais e seria a queda...

É aquilo a que se chama genericamente «pathos».

 

Os factos da sua biografia são: nasceu no Porto, cursou Direito, fez um mestrado em Londres como bibliotecário. Quanto ao mito, interessa-me saber da sua propensão para o abismo, da atracção pelo «pathos». Onde é que isto radica?

-A minha preocupação como escritor foi sempre estabelecer um equilíbrio entre aquilo que é uma expressão turbulenta, descoordenada e extremamente emotiva, e uma forma de viver que fosse o contrário disso tudo. A escrita que desejo produzir é a que vive da tensão entre essa contemplação do abismo de que falou há pouco e a linha do horizonte que é a linearidade absoluta, o plano mais apaziguado. Para traduzir isto em linguagem de estética, o que quero, no fundo, é fazer o cruzamento do barroco com o clássico.

 

Mas isso é o Mário Cláudio escritor. E a sua vida?

A minha vida não se distingue disso. A minha vida é isso mesmo. Não posso dividir a minha vida em partes. Também nunca consegui distinguir a minha actividade de professor e a minha actividade de escritor. Dar aulas é escrever, embora não com papel e tinta, através do relacionamento com os outros, é uma forma de criar novos mundos, novas pistas, novos propósitos.

 

Quando a Tereza Coelho foi entrevistar o pai do seu amigo António Lobo Antunes, dizendo que queria fazer uma biografia do escritor, ele fez o seguinte comentário: «Mas por que é que vai fazer uma biografia? A vida dele não tem interesse nenhum, resume-se aos livros». A sua vida «não tem interesse nenhum»? Tudo o que podemos saber encontra-se nos livros, cifrado?

Não, não sou esse tipo de escritor. O [Miguel] Torga, o Lobo Antunes reduziram a vida à escrita. Eles estão no gabinete e a vida deles é o gabinete. Eu não. A minha vida é sempre escrita, quer viaje, quer dê aulas, mas saio do gabinete. Tenho um contacto com o mundo muito mais aberto do que qualquer um deles. Tenho um universo de sensualidade muito vasto, gosto muito de estar com pessoas. Tudo isso faz parte da escrita, mas não me remete permanentemente para o gabinete.

 

É comovente assistir à expressão da admiração do Lobo Antunes por si, que é pública e constante.

Ele é muito fiel nisso. Eu também tenho uma grande admiração, considero-o um escritor enorme. O universo literário dele é de tal forma gigantesco que me intimida.

 

Mas qual é o seu tamanho enquanto escritor? Tem também a fama, que cultiva, de ser um autor exigente e não acessível a todos.

Sim, mas o meu universo literário tem uma vertente de afabilidade. Ele não tem contemplações. O Lobo Antunes acorda às quatro da manhã, à hora em que as pessoas são acolhidas pelos pensamentos mais terríveis, à hora em que se pensa na finitude, na morte, na angústia. Qualquer pessoa normal, acordando a essa hora e sentindo isso, vira-se para o outro lado. Ele fica a contemplar isso. (Nunca falámos sobre isto, mas inventei-o como forma de o explicar). A diferença entre nós é essa.

 

E a trivialidade e a sociabilidade são coisas que ainda têm espaço na sua vida.

A propósito do abismo e da linha do horizonte, ele não consegue contemplar a linha do horizonte. Eu procuro distrair-se, assobiar para o lado, e assobiar para o lado é olhar para o horizonte.

 

É isso que lhe possibilita ser um homem mais apaziguado e mais feliz?

Acho que sim. Gosto de dizer que o pequeno milagre que consegui foi transformar aquilo a que se chama genericamente sofrimento em várias oportunidades de sorriso. No meu caso resulta num posicionamento de carácter religioso. Uma fé que é bastante vital em mim, estruturante. O Vergílio Ferreira disse-me que eu era um homem extraordinariamente feliz porque tinha uma fé inabalável. É verdade.

 

A vivência da fé é acompanhada de uma vivência religiosa plena, ritualística?

Eu sou um católico herético. Os católicos que não são heréticos dizem: «Então não és católico», mas não me preocupo com isso. Sou um católico de formação, vocação, etc., mas com umas pinceladas de heresia. O que significa que não cumpro obrigações de catecismo, cumpro ditames interiores. Se me apetecer ir a uma missa, se me apetecer aproximar de uma mesa de comunhão depois de me ter confessado, faço-o. Se não me apetecer, não faço.

 

Leu os evangelhos como quem lê um romance?

A Bíblia, leio-a como o livro da vida. A minha tradição é judaico-cristã. O que não significa que não leia o Corão e outros livros religiosos. Todo o fenómeno religioso me interessa muitíssimo.

 

É a atracção pelo mistério, pelo indecifrável?

Claro. Suponho que os traços de heresia que existem em mim resultam da aproximação que faço a outras experiências religiosas. E também daquilo que são as minhas tendências místicas_ o caminho da mística é sempre um caminho perigosíssimo, é, justamente, o caminho que conduz às heresias.

 

Pode ser mais preciso quanto ao lugar da fé na sua vida?

Não posso conceber o meu relacionamento com os outros sem uma dimensão verticalista, sem uma relação com aquilo a que chamamos simplificadamente Deus. Não posso, são entidades inseparáveis, uma conduz à outra. É por isso que não acredito nas pessoas que começam pelo horizontalismo e dizem que assim é que se chega a Deus. A experiência da pura dádiva ao outro conduz muitas vezes à secularização e ao ateísmo. A outra não conduz a isso, nunca conduz ao voltar as costas a outro, conduz sempre à aproximação do outro, se for vivida autenticamente.

 

Gostava de saber em que é que pensou quando soube que tinha ganho o prémio. Quem é a pessoa que gostaria que o admirasse mais profundamente?

Pensei obviamente no meu pai, que já morreu.


Ele tinha orgulho em si?

 O meu pai tinha grandes reticências quanto à minha capacidade de ser um autor com alguma qualidade.

 

Ele escrevia bem?

Lia muito, gostava de escrever, mas nunca foi por aí. O meu pai morreu a ler um livro do José Gomes Ferreira, que por acaso tinha um título de alguma forma metafórico: «As aventuras de João Sem Medo». A reler. Pensei no meu pai que já morreu, acho que teria um grande orgulho nisto.

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2004

 

Ler Orpheu

07.07.15

"Era arte que nos juntava? Era. Arte era a solução. A nossa solução comum.»

José de Almada Negreiros in Orpheu Almada e os companheiros da Orpheu vão ser discutidos no próximo Ler no Chiado.

Dia 9 de Julho às 18.30, na Bertrand do Chiado.

Com Fernando Cabral Martins, Sílvia Laureano Costa e Steffen Dix.

Vamos ter sobre a mesa, além do mais, a edição fac-similada e inédita da maquete manuscrita de Almada Negreiros.

Moderação de Anabela Mota Ribeiro.

Ler no Chiado é uma iniciativa da revista Ler e da Bertrand.

Apareçam.

Viriato Soromenho Marques

05.07.15

É um filósofo que considera Portugal um país excepcional. “No campeonato dos países com dez milhões de habitantes, não estamos atrás de ninguém.” É um estudioso da Filosofia Política que analisa o país numa Europa em perigo de implosão. Que diz que Sarkozy é dez por cento de De Gaulle. Ou que seria bom que Merkel ocupasse parte da energia que usa para defender o interesse alemão na defesa de uma Europa depauperada. Acusa o governo de Passos Coelho de não ter um plano B e de apostar num plano A altamente irrealista. O plano A corresponde a uma austeridade cega. A estratégia não é o nosso forte – não é novidade para ninguém. Os temas estratégicos, filosóficos e ambientais são aqueles de que se ocupa. Viriato Soromenho Marques é professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tem editada uma obra vasta. Nasceu em 1957. Foi na sede do Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, de que é membro, um magnífico palácio na Lapa, que nos encontrámos.  

  

Somos um povo que gosta de obedecer ou de mandar?

Nós, portugueses, temos sobretudo uma grande dificuldade em construir um projecto colectivo. Para obedecer ou para mandar é preciso existir um plano intermédio – o plano do poder. O plano do poder não tem a ver com o exercício de funções governativas, tem a ver com o contrato social que transforma um grupo de pessoas num povo organizado. A questão de mandar ou de obedecer depende da questão prévia do poder. Tem sido o nosso grande problema permanentemente adiado.

 

Funcionamos com o estereótipo de que os alemães são um povo que manda; nós somos um país que, pelo menos durante 48 anos, uma ditadura longa, obedeceu. Estas coisas entranham-se.

O contraste com a Alemanha não se pode aplicar nessa perspectiva. Não esqueçamos esse milagre europeu que é a nossa existência como Estado há quase 900 anos, com as fronteiras mais consolidadas, mais estáveis, com características de grande homogeneidade. Não que seja contra a pluralidade, mas a homogeneidade, politicamente, é um factor importante. E um país que, ao contrário da Alemanha, foi capaz de construir três impérios. A Alemanha não conseguiu construir nenhum que não tivesse terminado numa rápida tragédia para si e para o resto do mundo.

 

Essa nossa excepcionalidade tem que ver com o exercício do poder?

A razão pela qual somos um Estado muito antigo, nascido na Idade Média, consolidado a partir de D. João II na Idade Moderna, é porque houve gente que soube exercer o poder. A Segunda Dinastia, a mais gloriosa que Portugal teve, começa com uma revolução popular mas com uma liderança firme do Mestre de Avis, com um projecto nacional extraordinário. Portugal começou a globalização. A partida de Vasco da Gama para a Índia marca uma separação da história – “antes de Gama e depois de Gama”, Voltaire dixit.

 

Para esse desígnio, o do Mestre de Aviz ou de qualquer outro, são precisas duas coisas: a primeira é um projecto e a segunda é a capacidade de o implementar.

Exactamente. O facto de a Alemanha só ter conseguido unificar-se em 1871, quando é declarado o Segundo Reich na Sala dos Espelhos do Palácio de Versailles, em território francês (uma atitude bastante agressiva, declarar a fundação do império alemão em território ocupado); o facto de a unificação alemã ter sido a solução da kleine Deutschland, da pequena Alemanha, e não da grande Alemanha, que envolveria também a Áustria e os outros territórios de língua alemã, mostra que os alemães, embora tenham de si próprios a imagem de uma nação organizada, disciplinada, têm todavia uma pulsão interna descentralizada e centrífuga. Tiveram um império em África e um império no Pacífico e não ficou nada. Não ficou língua, não ficou memória.

 

A organização ficou como traço dominante do ser alemão. E isso é inegável.

Mas uma coisa é ter organização, outra coisa é ter capacidade de mandar e de exercer o poder. No que diz respeito ao exercício do poder, num quadro que não seja o doméstico, não temos nada a aprender com os alemães. Tivemos três impérios; um que terminou quando eu tinha 16 anos, em 1974, e construímos administrações, faculdades, fábricas, estradas, na Ásia, em África, no Brasil. Estivemos lá durante séculos de forma constante. Nessa capacidade de incluir os outros, diferentes de nós, não há qualquer comparação entre a capacidade portuguesa e a alemã. Esta crise europeia só está a ser agravada porque a Alemanha não tem um projecto para a Europa.

 

A culpa, mais que tudo, é de Angela Merkel?

É uma culpa partilhada. Todos somos responsáveis, inclusivamente os europeístas e os federalistas, nos quais me situo. Somos responsáveis porque deixámos um projecto amadurecer ao ponto do apodrecimento. As tendências patológicas da União Europeia já eram visíveis há dez anos, quando entrámos na moeda comum.

 

Avançou-se com a moeda antes das outras coisas que podiam solidificar esse projecto?

O chanceler Kohl, enquanto se estava a discutir Maastricht, que é o embrião de tudo isto, fez uma intervenção no Bundestag em que dizia: “É perigoso avançarmos para uma união económica e monetária sem termos uma união política garantida”. Ele próprio acabou por rever a sua posição e aceitar o que veio a seguir. Hoje queixamo-nos da falta de liderança, mas foi um compromisso entre Mitterrand e Kohl que nos levou a entrar nesta aventura da união económica e monetária (UEM) sem termos as condições básicas para isso. Há desculpas, há atenuantes? Há. A perspectiva é a mesma que encontramos nos pais fundadores da nossa união logo a seguir à Segunda Guerra, no Robert Schuman, no Jean Monnet. É a ideia de que podemos criar uma dinâmica funcional que acabe por alargar e aprofundar um projecto de natureza federal a médio, longo prazo.

 

A expressão que usou foi “deixámos amadurecer o fruto até ele apodrecer”. À medida que tudo se alicerçou na moeda, e ficaram para trás aspectos importantes, nomeadamente o político, a crise passou a ser inevitável? Deixou de ser surpresa para si?

Talvez valha a pena sintetizar o que falhou. Uma das coisas de que mais sofremos (não só em Portugal, na Europa) é a crença de que só hiper-especialistas são capazes de perceber estes assuntos europeus. Sofremos de um mal de que não sabemos sequer o nome.

 

Esse nome e esse mal, até há relativamente pouco tempo, em Portugal, era o de Sócrates. Funcionava como bode expiatório da crise.

Também tem as suas responsabilidades, mas não são as principais.

 

Neste momento, um pouco desse ódio, que estava fulanizado em Sócrates, está a ser transferido para Cavaco. A expressão que Marcelo Rebelo de Sousa usou – o tiro ao Cavaco – sintetiza isso. É como se o comum dos mortais achasse que não é capaz de compreender as grandes crises e então….

… domesticamente encontra o bode expiatório. Inteiramente de acordo. Claro que podemos e devemos, também, pedir responsabilidades aos nossos governantes, e a nós próprios como cidadãos, que também fomos coniventes. A nossa dívida pública é importante, mas a nossa dívida privada ainda é maior. Fomos irresponsáveis quando fomos no canto da sereia das entidades bancárias, que agora nos vêm pedir disciplina. Basta fazer um estudo sobre os anúncios publicitários no início da década de 2000: foram um convite à mais cega das irresponsabilidades por parte do consumidor.

 

Quem é que viu os perigos do euro? Quem é que percebeu que uma moeda comum não era suficiente?

Temos uma série de economistas que viram isto com bastante nitidez. O Krugman, o Stieglitz. Mas quem viu melhor foi Martin Feldstein, um economista conservador norte-americano, que escreveu um artigo na Foreign Affairs, em 1997, notável e premonitório. Fala de uma linha de clivagem entre países credores e países devedores – como agora. Não sendo uma união económica perfeita, com países que têm níveis de competitividade diferentes, mais tarde ou mais cedo o que iria acontecer era uma situação destas. Temos que fazer o diagnóstico do que falhou para tentar corrigir, se queremos continuar juntos, se não queremos que a Europa se torne apenas num sítio geográfico onde as pessoas sofrem.

 

O que é que falhou, o que é que correu mal?

Faltaram três coisas fundamentais. Temos uma união no que diz respeito à emissão da moeda e à desvalorização da moeda, mas não temos uma união fiscal, não temos políticas fiscais coordenadas.

 

Por isso há empresas, como há pouco aconteceu com a Jerónimo Martins, que deslocam as suas sedes para a Holanda, nomeadamente.

Uma união fiscal funciona de uma forma simples: temos que ter um acordo mínimo em relação aos grandes impostos, o IRS e o IRC. Nos Estados Unidos existem um IRS e um IRC federais que são progressivos, variam entre dez e os 35 por cento, dependendo do rendimento das empresas e dos particulares; e depois os estados acrescentam uma taxa estadual onde existe margem para competição fiscal. O que está a acontecer na Europa é que existe uma total autonomia. A política fiscal é uma competência totalmente soberana.

 

Vamos voltar às coisas que falharam.

Falhou um verdadeiro orçamento. Como é possível, com um por cento do PIB da União, financiar políticas comuns? Financiar uma política de energia europeia, de segurança alimentar, uma rede de transportes que permita o equilíbrio. Se em vez de uma Comissão Europeia tivéssemos um governo europeu, um presidente eleito por sufrágio universal (não há outra maneira de termos a quem chamar nomes senão elegê-lo), com um orçamento de cinco ou seis por cento do PIB, faria toda a diferença. Um governo europeu que não hostiliza os governos estaduais, que vão continuar a ter o quinhão principal das responsabilidades.

 

Outro aspecto importante: o comprometimento e o empenhamento dos países membros com o projecto europeu. A resposta foi desigual.  

O pacto de estabilidade e crescimento, que foi o dispositivo que a Alemanha impôs para se avançar com a moeda comum, tem critérios (a dívida pública não pode ser superior a 60 por cento do PIB, ou o défice orçamental que não deve ser superior a três por cento) que os franceses e alemães violaram logo em 2003, logo após a entrada em vigor da moeda comum.

 

Ou seja, foram criados mecanismos que nem os países de moeda mais forte respeitaram.

No Tratado de Lisboa (TFUE), nos artigos 121, 126 e 136, está inscrito o pacto de estabilidade e crescimento, e estão os limites do BCE, nos artigos 123 e 127. O 125, que já foi mais que violado, é o artigo que diz que não há resgate para os países que não cumpram o pacto de estabilidade e crescimento. Então por que é que os mercados emprestaram a Portugal e à Grécia com uma taxa de juro semelhante à alemã durante estes anos todos? Porque os mercados também acreditaram que se houvesse uma crise haveria uma resposta solidária da Europa.

 

O que falhou foi a solidariedade e a coesão europeia?

Foi um propósito. Para mandar é preciso uma máquina, um músculo, mas é preciso ter um projecto.

 

É a falência do federalismo que, no fundo, acaba por conduzir a esta falência do projecto europeu?

Não quero ir tão longe. Estamos numa situação em que existem mais probabilidades de isto terminar muito mal do que de terminar bem. Mas não estamos ainda numa situação em que se possa dizer que estamos condenados. Estamos na luta, há pessoas que se estão a mexer. O Mario Monti, na Itália, só tem feito coisas positivas. Não é um tecnocrata fechado, é um homem que tem uma cultura política baseada no rigor. E é uma pessoa com coragem, que diz à senhora Merkel que quer Eurobonds, que faz um discurso no Parlamento Europeu que deixa toda a gente encantada porque tem um projecto europeu, que assinou a carta com Cameron e mais dez países para o crescimento económico.

 

Apesar de Monti, de Cameron, destas movimentações alternativas, coisas como o encontro do ministro Vítor Gaspar com Schäuble fazem-nos perceber que na prática quem manda é a Alemanha.

O projecto europeu, até à moeda única, tinha uma dinâmica federal dominante, com componentes inter-governamentais. O que é que era a Europa para o general De Gaulle? Eram os chefes de Estado e do governo reunidos à mesa. O que é hoje o conselho europeu [reproduz] esta ideia. Sarkozy, que vale dez por cento do De Gaulle, em relação a isso tem a mesma ideia. Nesse aspecto os alemães são muito mais institucionais, têm um sistema federal. O problema dos alemães é que querem o federalismo só para eles.

 

Querem mandar eles… Voltamos ao estereótipo.

Não são os alemães, é este governo. Os Verdes e o SPD têm defendido publicamente a mutualização da dívida, os Eurobonds. A questão é que não temos tempo para esperar até 2013, e vai ser penoso esperar tanto tempo.

Temos uma dinâmica dupla. Temos uma componente federal que aponta no sentido de aprofundar o processo da união e fazer da Europa um lugar político onde há poder, há instituições, um estado de direito, uma democracia federal à escala europeia. E temos uma dinâmica que contraria esta, dos velhos poderes estaduais, da prudência. Neste momento temos uma Europa espectral, um holograma da Europa, um Tratado de Lisboa que já ninguém cumpre. E temos uma Europa real, de relações de forças, em que quem manda é a Alemanha.

 

Face a esta Europa em desagregação, os mais fracos estão naturalmente mais vulneráveis. Se pensarmos nas pessoas individualmente, e não em frases de tratados ou em números, são vidas que estão a ser coarctadas quotidianamente nos seus aspectos essenciais.

Neelie Kroes, uma vice-presidente da comissão do Durão Barroso, disse que se a Grécia sair do Euro ninguém morre. É falso! Estão a morrer pessoas por causa desta crise. E não é só na Grécia. Estão a morrer pessoas em Portugal. A taxa de suicídio está a aumentar. Só quem não percebe o impacto psicológico de uma crise económica, de perder o emprego, [pode dizer uma frase daquelas]. Já temos seis mil casais em Portugal em que ninguém trabalha naquela casa.

 

Temos pobres cada vez mais pobres, e uma classe média que empobrece a olhos vistos.

O aspecto patológico principal da sociedade portuguesa é o facto de termos uma grande desigualdade social. A diferença entre o rendimento dos mais ricos e dos mais pobres é das maiores da OCDE, não é só da UE. Na austeridade todas as camadas sociais estão a perder rendimento, mas quem está a perder mais são aqueles que já têm pouco. Estamos a aumentar as assimetrias sociais numa política que nos é imposta; o que significa que temos de negociar a forma como ela é aplicada.

 

Isso tem sido feito?

Não. O discurso oficial é o de ir mais longe do que o programa da Troika. É um discurso que tem uma dinâmica que pode ser suportada durante alguns meses, mas quando for confrontado com os resultados desastrosos vai voltar-se contra quem o profere; e vai prejudicar o país porque vai criar tensão social. Numa altura de dificuldade o pior que pode acontecer a um país é ele fragmentar-se socialmente.

 

Encontramo-nos na segunda-feira de manhã, a Troika está cá. Podemos dizer que “passámos” no exame trimestral, antes mesmo de ouvir a conferência de imprensa do ministro das Finanças.

A verdade é que o actual Governo só realizou metade das tarefas que deveria realizar a partir do momento em que entrámos no programa de austeridade da Troika. Temos uma margem de manobra altamente limitada, temos inspecções, temos pessoas da Troika a viver cá, há um fel que é preciso engolir.

 

Qual é a outra metade?

Negociar. Em vez de ir para além da Troika, há uma margem de manobra que tem a ver com aquilo que só nós portugueses conhecemos sobre Portugal, e que poderia ser negociada com a Troika e com os outros países da União Europeia. É inadmissível que o governo português não tenha assinado aquela cartinha do Cameron. É uma cartinha que não é inocente, mas que não tem nenhuma palavra mágica, daquelas subversivas – não tem Eurobonds.  

 

Essa carta desafia o poder da Alemanha e não estamos em situação de afrontar aquele a quem devemos, e de quem estamos mais dependentes.

É um erro político e estratégico perigosíssimo.

 

Estratégia é outra coisa de que somos altamente deficitários.

Sem dúvida. A estratégia está associada à questão do poder. O contrato social implica uma visão de futuro. Um contrato implica um projecto, o projecto implica tempo, implica uma promessa. Um dos estados básicos da política é a imprevisibilidade. As coisas nunca acontecem como são planeadas, por isso é que temos que prever.

 

Ter um plano B?

Neste momento apenas temos um plano A altamente irrealista, que é o plano de que isto vai resultar quando tudo indica que não vai resultar. A austeridade não vai resultar. Quando temos um ciclo de regressão e de depressão económica, temos que ter políticas que promovam o crescimento, mais emprego, mais riqueza. Só uma visão intelectualmente medíocre pode pensar que um país que tem que estabilizar as suas contas públicas, que tem que pagar a credores, pode fazê-lo não produzindo riqueza mas destruindo o seu tecido económico. Isto é elementar, os técnicos da Troika sabem isto. Se estivessem a cumprir outra coisa que não um programa de credores, e se fosse um programa no interesse da Europa e no interesse nacional...

 

A Troika poderia argumentar dizendo que não tem mandato político para fazer isso, mas apenas para obrigar à implementação de políticas que garantam o cumprimento do contrato de que são parte. Na sua opinião, podia ir mais longe?

Nós é que temos que ir mais longe. É muito fácil co-responsabilizar os outros. Por isso é que disse que este Governo é hemiplégico, só funciona metade do cérebro. Uma coisa é ter uma atitude de cumprimento em relação a metas (há um conjunto de coisas que lá estão previstas que são sensatas: as reformas da justiça, mais eficiência nos serviços, racionalização da administração pública); mas temos a obrigação, na margem de manobra que de que dispomos – talvez de cinco por cento – de avançar para o plano B a dois níveis. Chamar à atenção para o facto de que o grande problema que nos levou até aqui, independentemente de muitas culpas do Sócrates e do Guterres, é uma situação de défice crónico da nossa balança comercial. O último ano em que tivemos um saldo positivo foi em 1953. Somos um país que exporta menos do que importa.

 

Como resolver essa equação?

Fortalecendo o nosso mercado interno, aumentando a capacidade de produção de bens para o mercado interno, e aumentando a produtividade das nossas empresas no exterior. Há um economista da Universidade da Madeira, o Ricardo Cabral, um jovem que aprecio muito, que fez um estudo [que identifica este como] o calcanhar de Aquiles da nossa economia.

Tendo nós um aparelho que tem dificuldade de produzir bens e serviços para o mercado interno e para o mercado externo, esse aparelho produtivo não pode sofrer o que está a acontecer neste momento: um défice de financiamento. Temos empresas viáveis, com empregados, que estão a ir à falência porque não têm recursos.

 

A Alemanha é um dos vértices principais do seu discurso. O futuro da Europa depende essencialmente dela?

O que digo é que temos que ter um plano B para o caso de haver uma ruptura com a União Europeia – que não desejo. Quero uma Europa federal, com a Alemanha bem dentro da Europa. Os alemães estão a meter-se num buraco absoluto. Daqui a cinco anos, se a Europa rebentar, é mais seguro estar em Portugal do que na Alemanha. Vão ficar entre uma Rússia com armas nucleares, e uma França que não lhes vai perdoar o facto de eles já se estarem a demarcar. E militarmente são um zero, não têm nada. Se voltarmos a uma lógica de política de força, a Alemanha não tem trunfos.

 

Está a falar de um cenário belicista.

Um cenário de regresso ao equilíbrio do poder. Se saímos de uma Europa protofederal, multilateral, baseada no império das leis, para uma Europa estado-nação, de equilíbrio do poder baseado na força, aí a força nua é que manda. Uma das coisas que estão a acontecer na nossa democracia é que estamos a ser governados por pessoas muito levianas, muito superficiais, com pouco conhecimento da história.

 

Não deixa de ser irónico que Merkel venha de Leste.

Merkel tinha 35 anos quando caiu o muro. Na sua biografia não se conhece nenhum gesto de oposição. Fez a carreira normal de uma cidadã obediente a duas disciplinas, a luterana (é de uma família de pastores luteranos) e à disciplina do Estado da RDA. A grande diferença entre a RDA e a RFA é que na RFA havia uma coisa chamada “culpa alemã”. Os miúdos nasciam e eram educados na ideia de que a Alemanha tinha sido responsável pela Segunda Guerra Mundial, como foi, e pelo Holocausto, e que a democracia alemã tinha que ser capaz de compensar esse prejuízo à boa imagem da Alemanha, como país importantíssimo. Na RDA mergulhavam numa pia baptismal onde eram absolvidos de todos os crimes. Os alemães maus tinham sido ou mortos ou expurgados. Não há em Merkel uma dimensão de responsabilidade alemã que encontramos noutros líderes. É uma espécie de novo começo, como se o que aconteceu tivesse sido rasurado. Mas isso tem limites. A Europa tem que escolher entre ser os Estados Unidos da Europa ou ser uma hiper-Jugoslávia. Se entramos numa fragmentação, quais são as regras do jogo?

 

É a lei do mais forte? Na fragmentação é o salve-se quem puder.

É. E quem é que paga a dívida? Ninguém paga a ninguém. O principal economista alemão já disse que é preciso pagar à Grécia para sair do Euro.

 

O problema é a Grécia? O problema são os países que incumprem?

É um bocadinho a ideia de que o problema é da Grécia… Como não conseguem ver a dimensão sistémica da crise, como não conseguem ver que esta crise tem a ver com o mau desenho da UEM, com o péssimo software da sua construção, e como não querem consertar o software, o que fazem é ir retirando os abcessos. Há quem diga que somos a seguir.

 

Se o abcesso Grécia sair, inevitavelmente vão querer retirar o abcesso Portugal? Ou aí terá feito sentido a estratégia do bom aluno que se demarcou da Grécia?

É um jogo diabólico. Deixar a Grécia entregue a si própria significa que vamos ter um default de 100 por cento. Os privados e as instituições públicas, o BCE, o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira vão ficar com zero. Significa que a Grécia vai passar muitos anos antes de ter recurso aos mercados, e vai orientalizar-se, vai agarrar-se aos vizinhos que estão ali ao lado. A Turquia, que é o inimigo figadal, vai ajudar a Grécia.

 

E a Grécia aceita porque está dependente.

Não tem outra hipótese. O que é que vai acontecer à NATO no meio disto tudo? Qual é o interesse da Grécia em ficar na NATO depois de ter sido tão maltratada pelos seus parceiros europeus? Como estamos a falar de meninos a dirigir países, estas consequências complexas não são medidas. O que é que os mercados, que em grande parte não são europeus, mas que têm investimento na Europa, vão pensar?

 

Mas existe ou não uma ligação entre os dois países? Se um cair, o outro cai? E quando?

Se a Grécia cair, Portugal cai logo. Não cai naquele dia, mas tudo o que é activo de dívida pública portuguesa fica infectado. Ficamos em coma assistido. A única coisa de que tenho quase certeza é de que a Grécia não vai cair antes de 20 de Março, que é quando têm que pagar 14,4 mil milhões de euros aos credores. A Alemanha tem que garantir que as eleições francesas se fazem em ordem, e as eleições são em Maio. Até aí a Grécia vai flutuar. O nosso plano B, verdadeiramente, é saber a que jangada de pedra vamos pertencer. É tolo pensar que podemos fazer uma jangada de pedra com os alemães. Temos que a fazer com aqueles que estão perto de nós.

 

Além da geografia, há questões de identidade. Com quem poderíamos ficar?

A haver uma ruptura, temos que ficar com o maior número possível de países europeus. Com a Espanha, com a França (quando a França tiver um estadista, alguém que pense), com a Itália.

 

Esperava mais do Governo Passos Coelho?

É uma política de sobrevivência, de decisões muito difíceis. O que vejo é um Governo que em relação aos ministérios fundamentais, que são o das Finanças e o dos Negócios Estrangeiros, juntamente com a coordenação do primeiro-ministro, não tem sido capaz de fazer os tais 50 por cento que faltam.

 

Que se traduz em quê?

Garantir a protecção do tecido económico e garantir que o empréstimo da Troika vai financiar o tecido económico onde é preciso (para criação de emprego). É extraordinário que Paulo Portas, que tinha a ideia que seria a pessoa mais capacitada deste Governo, em termos intelectuais e de experiência, se tenha tornado numa espécie de ministro da Economia para os assuntos externos. Que tenha feito viagens para promoção da indústria portuguesa numa altura em que o fundamental era alicerçar as nossas alianças no quadro de uma possível recomposição da União Europeia (após fractura).

 

Se olharmos para o equilíbrio de forças no Governo, não por acaso, esse dois ministérios são ocupados por pessoas de diferentes partidos. Paulo Portas, mesmo sendo o mais experiente membro do Governo, representa a parte minoritária da coligação.

Na análise em que me situo, o que está aqui em causa é a sobrevivência de um projecto estratégico nacional. É preciso não esquecer que a Europa é o nosso desígnio estratégico. E não podemos ter uma visão partidária das coisas. Cada membro do Governo, cada partido da oposição deve dar ao país o contributo que é necessário. O que está em causa é também a nossa terceira república. Se o projecto europeu falhar, e se não encontrarmos uma resposta doméstica para permitir a viabilidade do país, para permitir que os portugueses tenham com que se alimentar, e que tenham um tecido económico que permita a sua subsistência, a terceira república cai.

 

E então, que aconteceria? Que perigos?

Nada garante que caia para o lado correcto, que caia para uma quarta república democrática. O que está em cima da mesa é de tal maneira momentoso que não podemos ter uma visão paroquial. Não estou a olhar para os ministros como sendo do partido B ou C, estou a olhar para os ministros como pessoas que têm competências específicas.

 

Que apreciação faz de Vítor Gaspar?

Conhece a situação europeia, os meios financeiros. É uma pessoa muito competente e está a fazer um trabalho muito difícil. Não foi a primeira escolha. As primeiras escolhas não tiveram a coragem de assumir o desafio – é um homem corajoso. E não pode fazer tudo. Há uma falta de visão estratégica. Um Governo tem um primeiro-ministro para alguma coisa. Há um défice estratégico ao nível do plano B, e isso é uma coisa que tem que ser feita em colaboração com a oposição. Este governo não pode ser de trincheira, do PSD e do CDS. Tem que ser um governo nacional.

 

Tem recebido apoio do PS? A oposição não tem sido musculada. É como que uma participação tácita?

O PS tem uma situação ambígua. Para todos os efeitos foram os seis anos de governação PS que conduziram o país a esta situação. Não quer dizer que não tenha havido também uma participação, na parte final, do Presidente da República e do PSD, que precipitaram a queda do Governo. O Governo anterior estava esgotado. Há limites para a falta de credibilidade de um dirigente.

 

Esse era o principal problema de Sócrates, a falta de credibilidade?

Era. Não é possível ter uma liderança sem confiança. Um dos défices principais que temos hoje em Portugal e na União Europeia é a desconfiança. No final do anterior Governo essa desconfiança estava a atingir valores insuportáveis. A política é sempre baseada na confiança, numa promessa que se faz ao outro.

 

Gostava de voltar ao início da conversa, ao mandar e ao obedecer. Imediatamente na sua resposta derivou para a existência (ou não) de um pensamento estratégico. Por que é que somos assim? Como é que damos a volta a isto?

Há uma longuíssima tradição de reflexão nacional sobre a nossa crise. Eu seria o primeiro a apoiar a senhora Merkel se ela se quisesse candidatar a presidente de uma Comissão Europeia fortalecida. Se usasse 70 por cento da energia que usa para defender aquilo que considera ser o interesse alemão para defender o interesse europeu, saíamos da crise. Não há qualquer sombra de ressentimento ou de hostilidade contra o povo alemão; é um povo que estimo, uma história que conheço, uma língua que acarinho. O Antero de Quental, em 1871, quando fez a sua reflexão sobre a nossa decadência…

 

Num célebre texto sobre as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares…

… que é um documento muito interessante. Antero era um general, sem exército, mas um general. Chamava à atenção para aspectos que permitiriam uma renovação do projecto nacional numa perspectiva crítica. Tínhamos uma elite intelectual que tinha a noção de que o projecto nacional tinha que ser baseado, não em forças ambíguas da raça, do sangue, da comunidade, mas em projectos racionais. Oliveira Martins defende a tese de que o nosso império foi importante porque foi baseado em ideias – como o império romano. Faz uma comparação. O atractivo de Roma era um ideal abstracto de igualdade perante a lei. É o que nos falta hoje. Os portugueses, quando entram em sociedades em que a questão do poder está resolvida, onde há um pacto social, onde há uma constituição…

 

São trabalhadores exemplares. E individualmente somos extraordinários, todos o dizem.

Exactamente. Os portugueses são muito individualistas. O nosso analfabetismo é também a resistência à escola, a nossa fuga ao fisco é a resistência aos impostos. São aspectos perversos do individualismo. Esta crise, se não trouxer mais nada, vai certamente trazer a questão do poder. Temos que encontrar uma medida para o nosso contrato que permita que os portugueses façam em Portugal aquilo que são capazes de fazer no exterior. Que sejam capazes de entender quando é tempo de mandar e quando é tempo de obedecer. Quem é que manda, como é que manda, quem é que obedece, como é que obedece, e por que é que obedece. Estas questões continuam confusas na realidade nacional. Vão ter que ser clarificadas.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012

 

 

 

 

 

Vasco Vieira de Almeida (2012)

05.07.15

É um socialista que se preocupa ante o desmoronamento de uma Europa solidária. Que considera que não pode cair ninguém, sob pena de cairmos todos. Que recupera a História e nos mostra os alicerces mais fundo da crise em que estamos submergidos. Porque “o conhecimento da História permite ter uma visão mais segura da realidade e das alternativas de que dispomos”. Vasco Vieira de Almeida sustenta as razões – não-líricas – porque é um velhote marxista. Afirma com segurança que o povo foi sempre melhor do que as elites. Ele que é elite e que sempre esteve do lado do povo. Que gosta de tudo em Portugal. Tem um dos maiores e mais importes escritórios de advogados do país. Uma entrevista com ele é um acontecimento raro.  

  

Tenho ideia que o melhor de si emergiu em tempos de luta e de instabilidade. Estamos novamente num momento da história do país, e não só, em que tudo parece prestes a desmoronar. Queria ouvi-lo sobre este período, e perceber onde procurar o melhor de nós, e como lidar com situações de instabilidade como esta que vivemos.

As crises têm um lado positivo. Em História geram sempre um caminho em frente. O meu Pai costumava dizer que viver e morrer não faz grande diferença, o pior é a transição [riso]. Estamos nessa transição. Importante para percebermos o que se passa hoje é compreender como chegámos aqui. Fala-se na crise do Euro como se fosse puramente financeira e orçamental e na crise da União Europeia como transitória e não estrutural. É um processo muito mais complicado.

 

O que é que nos trouxe a esta crise?

Três causas. A primeira tem que ver com o carácter ideológico do projecto neo-liberal. A Sra. Thatcher dizia nos anos 80 que não há uma coisa chamada sociedade, só há homens e mulheres individualmente. “There is no such thing as society, there are only individual men and women”. E acrescentava que “a economia é o método, mas o objectivo é mudar a alma”.

 

É uma surpresa que comece por citar Thatcher.

São frases reveladoras de uma concepção da sociedade e de um plano político. Friedrich Hayek afirmava que a ideia de justiça social é uma ameaça para a eficiência dos mercados e para o individualismo liberal, porque justifica a imposição de um sistema de redistribuição de rendimentos.

Na base deste sistema ideológico está o Consenso de Washington, onde se estabeleceu o que seria o modelo da estrutura da sociedade global futura, e definiu o método da defesa dos interesses das potências hegemónicas do Ocidente.

 

Que consequências é que deixou esse plano?

Entre outras a mundialização do investimento, a financiarização da economia, a ortodoxia orçamental e o ataque ao Estado social. Politicamente pretendeu-se a privatização de serviços públicos, como forma de enfraquecimento do Estado. O Estado passa a instituições não-democráticas muitas das suas próprias funções. E uma das consequências mais graves foi a completa desregulação dos mercados financeiros.

 

Reagan e Thatcher podiam prever, há 30 anos, os efeitos a longo prazo dessas opções?

Eles obtiveram o que queriam, mas já havia todas as razões para desconfiar nessa altura. Entre os anos 1980 e 2000 o plano Brady estabeleceu o perdão de dívidas a Estados que não as podiam pagar. Pelo menos dezoito Estados foram abrangidos, e a própria Inglaterra teve de recorrer ao FMI em 1976. O projecto político neo-liberal teve o objectivo de criar uma classe dirigente adaptada ao novo ideário. No caso inglês, Thatcher destruiu os sindicatos, desestruturou a sociedade e desindustrializou o país.

 

De qualquer modo, as praças mais poderosas estavam nos EUA e em Inglaterra.

Sim. Levar a bom porto este projecto só foi possível porque os dois centros financeiros fundamentais eram em Nova York e Londres. E os Estados Unidos tinham a única moeda de reserva que havia na altura. A isto juntava-se o controlo do desenvolvimento tecnológico, a supremacia no comércio mundial, a força militar, e o poder geoestratégico. Esse plano não constitui a origem imediata do que se está a passar mas é um quadro sem o qual é impossível uma interpretação clara dos acontecimentos actuais.

A segunda causa da actual crise é a da construção antidemocrática da estrutura da União Europeia.

 

Anti-democrática? Como assim?

Na origem da União esteve não só um projecto de integração através da criação de instituições de natureza técnica, como na sua estrutura constitucional prevaleceu o poder intergovernamental. A Europa hoje não constitui um projecto de sociedade comum, pela inexistência dos factores de solidariedade social e cultural que permitem espaços de identificação alargados.

A zona Euro surge num quadro de enormes diferenças de competitividade entre o Norte e o Sul e a promoção da convergência está a fazer-se apenas à custa de uma austeridade iníqua, ineficaz e destrutiva, que recai sobre os mais fracos.

 

A Alemanha é um caso particular quando olhamos para a União. Para entender esta Europa, é preciso atender à culpa da Alemanha, resultado ainda da Segunda Guerra Mundial? Subliminarmente isso está lá?

Só subliminarmente. Há uma constante na política alemã que resulta da fragilidade da sua situação geográfica e vem desde o século XIX. A Alemanha, com a doutrina da mittel Europa, necessitava de liberdade de acção, pelo que sempre se opôs à política inglesa de equilíbrio de poderes no continente, que resultava do congresso de Viena de 1815. Daí a união aduaneira, imposta por Bismarck em 1870, que criou o Império unindo os estados germânicos. Em 1914, o primeiro-ministro Bethmann-Hollweg defende a necessidade de criar um grande espaço económico alemão. Depois da Primeira Guerra Mundial, em 1919, o chanceler austríaco Coudenhouve-Kalergi lança a ideia de uma União Pan-Europeia, apoiado pelo plano de Heidelberg do SPD. E já nessa altura se viu que isso só era possível com um elo de ligação à França. É assim que alemães e franceses propõem à Sociedade das Nações, em 1929, a União Federal Europeia. Com o nazismo, Karl Haushofer, doutrinário da posição geoestratégica da Alemanha, escreve que o país tem de constituir um grande espaço económico, com exclusão das “nações periféricas”. Sabe quais eram?

 

Quais?

A Inglaterra, a Holanda, Portugal e Espanha, países que se tinham projectado para fora do continente. A política alemã foi sempre a de que os interesses da Europa devem coincidir com os seus. É o presidente do Bundesbank, no mandato de Helmut Kohl, que estabelece a doutrina da construção europeia de geometria variável e de círculos concêntricos. Era já a ideia de uma hegemonia alemã. Aquilo que faz hoje a Alemanha…

 

... É pôr em prática um plano que foi sendo delineado, de diferentes maneiras, ao longo de século e meio.

É. Mas foi a conjugação das três causas de que falei que levou à situação actual. E que é necessário alterar radicalmente.

 

Alteração política?

Não apenas política. Criar um federalismo institucional e formal não resolve o problema. É necessário aplicar políticas de convergência fiscal, regulação bancária e de coesão que não resultem da imposição autoritária de qualquer directório e possam ser absorvidas pelos Estados em condições diferentes. Ou há uma Europa solidária, com uma visão estratégica assente na justiça social ou teremos a prazo o desaparecimento gradual do Estado de Direito e poremos em risco o sistema democrático. Mas para já tem de resolver-se esta crise, sem destruir o tecido interno da sociedade e sem comprometer soluções futuras assentes na livre escolha democrática.

 

No imediato, a expressão mais clara da crise é a saída eventual da Grécia, é a explosão do Euro.

Estou convencido de que a Grécia não sairá e o Euro não implodirá. Mas a contradição é que com a actual política nenhum poderá ficar ou subsistir. É a política que terá, quanto a mim inevitavelmente, de mudar.

 

Porque os danos são imprevisíveis?

Quando se desregulou o mercado internacional de capitais criou-se uma enorme massa monetária que foi aplicada em financiamentos a Estados, empresas e famílias a juros muito baixos durante muito tempo. Houve países que não tinham condições para contrair esses empréstimos e geriram irresponsavelmente a sua dívida. Mas o facto é que lhes foram criadas condições nesse sentido.

 

Não só criadas como incentivadas.

Por isso a ideia de que somos os únicos ou mesmo principais culpados é inaceitável.

 

Os Eurobonds são inevitáveis na solução deste problema?

Creio que serão inevitáveis. Mas há várias hipóteses. Existe uma proposta interessante segundo a qual só se aplicariam à dívida actual acima de 60 por cento do PIB e até que ela regressasse a esse nível, com um prazo de pagamento de 25 anos.

Fazer um ajustamento meramente orçamental, em dois anos, com sacrifícios incomportáveis dos mais fracos, e que implica aumentar impostos, baixar ordenados, reduzir despesas sociais, reduzir o consumo, com um sistema bancário paralisado, e querer a partir daí “adicionar” medidas de crescimento, é simplesmente inviável.

 

É preciso tempo?

O problema da dívida exige um período muito mais longo. Estes tratados e pactos, ou são renegociados, ou levam à necessidade de perdoar dívidas, ou desaba todo o edifício. Já agora, é mau que se fale de crescimento e não de desenvolvimento, que é uma coisa totalmente diferente.

Temos de perceber que Europa é que queremos. As crises não duram eternamente. O que me preocupa ainda mais é o mundo que pode seguir-se. Se é aquele em que, como diz Hayek, a ideia básica de justiça social é uma ameaça. Para já sucedem-se ataques ao Estado de Direito. Algumas das medidas que estão a ser tomadas em Portugal são anti-constitucionais.

 

Porquê?

Os ataques aos direitos laborais, por exemplo. A forma como foi feito o corte dos subsídios e pensões. Uma das propostas do Tratado de 30 de Janeiro é a inclusão de um limite constitucional para o deficit e para o prazo de pagamento da dívida superior a 60% do PIB. Ora, justamente do ponto de vista neo-liberal o funcionamento do sistema capitalista implica a existência de condicionantes endógenas e exógenas não domináveis pelos governos. Ou seja, quem propõe a necessidade dessa constitucionalização, cria por outro lado as condições para a violação dos princípios constitucionais. Além disso, aquela disposição significa a imposição permanente do mesmo sistema. Seria instaurar sem hipótese de escolha um neo-liberalismo constitucional e portanto destruir a essência das instituições democráticas.

O risco que corremos, e já o vimos na Grécia, é o do condicionamento do sistema democrático e da promoção de forças que querem o seu desmoronamento.

 

Significa o regresso a sistemas totalitários, tantas vezes prenúncio de guerras? Voltámos àquele momento entre as duas Guerras e ao crescendo de crise, agitação social, emergência de partidos totalitários?

Uma guerra europeia, não acredito. Mas há um perigo crescente de sistemas autoritários. Em Portugal receio isso porque temos uma sociedade civil muito fraca. O facto é que as pessoas por enquanto não têm reagido de forma enérgica.

 

Visto de fora, e olhando para a Grécia, o que parece é que os portugueses são um povo brando e de espinha curvada, que não se manifesta com a violência com que os gregos dizem: “Isto, não aceitamos”.

Não podemos fazer uma ligação directa, mas 48 anos de ditadura e a actual descredibilização da classe política levam muita gente à ideia de que não temos força, a pensar que é inútil reagir.

 

É uma grande diferença, essa. Acreditar no sistema, ou não. Acreditar que reagir leva a algum lado, ou não.

O desemprego e a crise fragilizaram o movimento sindical e por isso os sindicatos também têm de perceber que a sua acção não pode ser apenas corporativa. Temos hoje direitos, mas sentimos menos obrigações do que devíamos para justificar os direitos que temos. A nossa concepção de democracia é mais a do exercício de direitos do que a do cumprimento de deveres.

 

No fundo está a dizer que os sindicatos não podem viver à margem do seu tempo e do país.

Estou.

 

A Alemanha é a grande potência europeia. No quadro mundial, a China será a primeira potência? E daqui a quanto tempo?

Provavelmente daqui a 20 anos. Uma das razões porque a Alemanha vai ter de ceder é porque 40 por cento do que exporta é para a Europa. E aquilo que exporta para a China, estarão os chineses a produzir dentro de 10 a 15 anos. Essa fonte vai reduzir-se. E se secar a Europa, a indústria de exportação alemã será a primeira a sofrer.

 

Vou usar uma metáfora: têm de proteger o seu rebanho, mesmo contando com as ovelhas tresmalhadas.

Claro. Se Portugal, Grécia, Espanha e Itália não puderem pagar as suas dívidas, uma boa parte das quais está em bancos alemães e franceses, tal significa uma perda impossível para o sistema bancário dos países credores que tiveram liquidez para emprestar. Como esses prejuízos têm um seguro, os Credit Default Swaps, o efeito multiplicador para o sistema financeiro é incomportável.

 

É uma coisa tentacular. Muitas vezes os bancos têm uma grande participação nas companhias de seguros. Tudo acaba por ser uma espécie de património comum.

Ninguém pode deixar cair ninguém. É por isso que a criação de um novo modelo, de uma Europa de solidariedade, não é uma questão moral ou uma forma de ajuda, mas uma inevitabilidade a prazo para a sobrevivência da União. É preciso não esquecer que a concepção dos direitos humanos constou inicialmente de uma declaração universal abstracta, mas entrou na consciência colectiva, e está ligada à própria dignidade individual. Esses direitos concretizaram-se. Hoje há os direitos da criança, na Convenção de Viena, os direitos da mulher, na Declaração de Pequim, o direito de lutar contra a prepotência económica, o direito à autodeterminação.

 

É uma narrativa que está enraizada na mentalidade destes dias.

Sim. E esse caminho, com derrotas e vitórias é imparável.

 

Bill Rhodes disse em Portugal a semana passada que a austeridade só pode conduzir ao desânimo e à falência se não for acompanhada de medidas de crescimento.

Estou de acordo quanto ao desânimo e à falência. Mas juntar crescimento (repito, desenvolvimento) a esta austeridade é uma falácia. Como é que pode haver medidas de desenvolvimento com um sistema fiscal que aumenta os impostos de forma incomportável, com reduções de salários, com miséria que começa a alargar, com um sistema bancário que não pode financiar a economia real?

 

Os bancos estão descapitalizados. E agora é o Estado que vai lá meter o dinheiro.

É necessário renegociar a forma de restabelecer um equilíbrio financeiro, mas que não pode ser considerado um dogma estático. O prazo tem de ser prolongado para que quaisquer medidas que venham a impor-se sejam eficazes.

 

Enquanto isso, a taxa de desemprego dispara...

É inaceitável, sob o ponto de vista económico e social e ético, termos o nível de desemprego actual. As consequências não são só não poder ganhar a vida. Constituem um ataque à dignidade e levam à perda do respeito por si próprio.

 

A crise está a penalizar os do costume? Não só os pobres, mas também a classe média. Também são os do costume os que estão a ser poupados?

As consequências são diferentes para uns e para outros. Para as empresas, que podem ir (e muitas estão a ir) para a falência e gerar o desemprego dos seus trabalhadores. Para as pessoas que não ganham a sua vida, que não podem mandar um filho para a escola ou pagar as despesas de saúde. Sofre neste momento a classe média e sofrem aqueles que já sofriam. E há consequências no próprio sistema. Demos um nó cego nesta crise quanto às soluções. As pessoas perderam a possibilidade de imaginar o seu futuro. Estão apenas a tentar evitar o seu presente.

 

As soluções têm que existir a nível europeu? Sobretudo porque estamos presos numa teia.

Só há uma solução no plano da Europa. Mas estamos também perante uma crise mundial que começou com o subprime nos Estados Unidos e que terá influência na evolução do problema.

 

A verdade é que os EUA recuperaram mais rapidamente. A queda do gigante Lehman Brothers foi em 2008, e a recuperação já começou.

Mas o ponto de partida é diferente. Na Europa houve uma situação política e social em que havia algumas defesas. Na América isso nunca sucedeu. Os Estados Unidos vivem o individualismo puro. O programa do presidente Obama de dar assistência médica a cinco milhões de crianças que a não tinham, de criar um seguro de saúde, tem sido lá considerado um ataque à liberdade individual e uma perigosa deriva socialista.

 

Na Europa, sobretudo nos últimos anos, têm-se falado da falência do sistema que emergiu no pós-Segunda Guerra, envolvendo a Alemanha. Um estado-social erguido sobre os escombros da guerra e cujo fim, dizem, é inexorável. Concorda que assim seja?

Isso é outro problema. Houve 30 anos de crescimento, fez-se a reconstrução europeia, e não vivíamos a crise demográfica que hoje existe. A Europa representa apenas sete por cento da população mundial o que significa ser necessária uma verdadeira política de imigração. Com as actuais alterações geoestratégicas, com os mesmos recursos da Terra para uma população mundial que, em termos de consumo, é dupla da que havia há 20 anos, justifica-se que tenhamos que repensar a política social a uma escala europeia.

 

O quadro é especialmente preocupante numa sociedade envelhecida como a nossa e com uma esperança de vida prolongada.

A solução não pode assentar no actual modelo. A redistribuição de recursos deixará cada vez mais de ser uma tarefa interna dos Estados nacionais para se alargar ao espaço europeu. E isto implicará novas formas de equilíbrio com responsabilidades partilhadas.

 

Para isso são precisos líderes, visão estratégica, e um entendimento. Antes do pragmatismo, tem de haver um entendimento quanto ao que se quer para a Europa.

Quem leia um pouco de história tem algum sossego nesta constatação banal: nenhum sistema se mantém sempre. Hitler acabou, Mussolini acabou, Salazar acabou. Passei a minha vida convencido de que o Salazar nunca mais morria, mas morreu [riso]. Este sistema vai falir. A posição ultraliberal é insustentável quando vemos que em todo o lado a consciência colectiva dos direitos do Homem cresceu. É ver o que se está a passar com os países árabes, embora os resultados sejam uma incógnita. Na Birmânia, Aung Suu Kyi, ao fim de 20, anos está no parlamento.

 

E grandes líderes para o implementar, não estamos falhos disso?

Em casos anteriores apareceram grandes líderes quando havia crises. Roosevelt, Churchill, De Gaulle, Staline, na Segunda Guerra Mundial. Esta crise, – estou a falar da Europa – não produziu grandes líderes. Isso tem a ver com a natureza da construção europeia, que não foi democrática. Não escolhemos os líderes europeus. A nossa participação é feita nominalmente através de eleições para um Parlamento longínquo. Na prática, faz-se através de governos que elegemos, mas cuja acção é dirigida por razões que são deles próprios, governos, e de defesa da sua posição político-partidária.

 

Quando olhamos para o sonho de Jacques Delors parece que foi ontem. E entretanto tudo ficou em pantanas.

As raízes disto eram previsíveis na construção da Europa, concebida para evitar uma nova guerra entre a França e a Alemanha. Fez-se à volta da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço e depois foi-se alargando. O problema é saber se se consegue modificar a situação no quadro político actual, ou se tal se vai dar em resultado de uma agitação social grave que obrigue a mudar.

 

A implosão da zona Euro e do projecto europeu, de que tanto se fala e que todos temem, é evitável?

Evitável é. Sou optimista a prazo. As coisas estão a mudar lentamente. A própria Alemanha está a começar a perceber. Além disso pode vir a estar em causa a política interna da Sra. Merkel, que tem eleições para ganhar, mas que já perdeu cinco...

 

... A última das quais no maior estado da Alemanha. Acha que é um sinal?

Acho. Os dirigentes europeus começam a entender que a implosão do sistema afectará todos. A estratégia de conquista de uma posição hegemónica alemã vai manter-se até se perceber, à beira do abismo, que não pode ir mais além. Mas sair da situação actual não é o mesmo que resolver o nosso futuro, o futuro dos nossos filhos e dos nossos netos. Esse será um novo combate e mais duro ainda.

 

Esta manhã estava a reler a entrevista que lhe fiz vai para seis anos. Dizia que na sua juventude o marxismo era uma forma de dar sentido ao futuro. O que é que ocupou esse lugar na sociedade contemporânea?, o neo-liberalismo?

A situação é diferente. Vivíamos numa ditadura. Éramos oprimidos e tínhamos a esperança que vinha de uma visão ideológica integrada. O neo-liberalismo é, pelo contrário, o resultado de uma política de classes dirigentes para manter o poder. A nossa, era uma visão de futuro, o neo-liberalismo é uma forma de preservação do presente. Mas a História não tem fim, ao contrário da afirmação estúpida do Fukuyama.

 

Mas aquele paradigma acabou com a queda do muro. Qualquer coisa radicalmente nova começou na sequência disso.

O que Fukuyama escreveu foi que o modelo democrático se tinha estabilizado com o desaparecimento do socialismo real na União Soviética. É verdade que, com o fim da União Soviética e da experiência do socialismo real, desapareceu um quadro de referência, que falhou completamente. Hoje o que não há é uma ideologia estruturada e perdemos ilusões utópicas quanto ao futuro e quanto a nós próprios. Mas ganhámos um conjunto de valores que interiorizámos e se vão globalizando. O que andamos a tactear é a melhor forma de, nas circunstâncias que temos, os traduzir num discurso coerente e numa aplicação política concreta.

 

Retomo uma linha que vem de trás: como é que se convoca a sociedade civil em Portugal? Nem há duas semanas, o Banco Alimentar reuniu um valor recorde de alimentos, e num período de crise como este que atravessamos. Por outro lado temos a taxa de abstenção eleitoral que se sabe, e uma participação na res publica diminuta.

A falta de participação traduz a perda de confiança na classe política. A adesão à campanha do Banco Alimentar significa que as pessoas têm um grande espírito de solidariedade e que são mobilizáveis quando percebem que outros estão numa situação difícil. Mas não reagem de forma cívica contra o que gera essa situação.

 

O medo é uma das razões para compreender essa não-intervenção? Medo do futuro, de perder o emprego.

Não é por acaso, voltando à Thatcher, que ela atacou os sindicatos. Uma parte dessa política consistiu em reduzir a capacidade de intervenção destes, destruindo o emprego, baixando os salários, admitindo alterações à lei do trabalho com despedimentos facilitados. O medo é do futuro e do presente. E isso, ou se mantém assim se as pessoas não reagirem, procurando cada um resolver o seu problema, ou então a agitação social é um risco crescente.

 

Comecei por falar de si num contexto de luta e instabilidade. Como é que não se tem medo, como é que se encontra o caminho?   

As reacções não são as mesmas em toda a gente. Não se pode exigir de todos o mesmo espírito de luta. Mas a acção comum potencia a força. O conhecimento da História permite ter uma visão mais segura da realidade e das alternativas de que dispomos.

 

Esta série de entrevistas, genericamente intitulada Ampola Miraculosa, discute Portugal, a sua identidade e o momento que vivemos. Como olha para quem somos?

Fala-se muito do que é ser português. Há uma frase do Eric Hobsbawm que diz que é a nação política, são as classes dirigentes que formulam o vocabulário político da consciência nacional. E também do que são os projectos nacionais, a sua execução e a imagem com que ficamos desses projectos. A ideia que a elite do tempo teve do que foram as Descobertas, realizadas por toda a espécie de razões (políticas, religiosas, económicas), não era a mesma dos marinheiros apanhados nas tabernas do Cais do Sodré e que iam à força tripular as caravelas. Não há uma visão unitária do que é ser português. Nem há a mesma visão em todos nós sobre o que é a nossa participação na História. Claro que temos traços distintivos próprios: a forma como nasceu o Estado, características geográficas e culturais; tudo isso criou homogeneidade, mas não uma imagem comum de nós próprios.

 

No Discurso sobre as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares Antero de Quental escreve coisas que hoje poderiam ser ditas sobre Portugal. Parece que há uma constância no modo como nos vemos.

Repito, mas não em todos nós por igual. O Eça de Queirós dizia que a marcha da civilização para a justiça é feita pelos que riem. O Ramalho Ortigão escreveu que o dever da crítica perante um acontecimento ou uma personagem importantes é o desprezo e a zombaria. A Geração de 70 representou um cosmopolitismo estéril. Por isso Antero respondeu que o riso é um dissolvente, não é um remédio. A elite fez as Descobertas mas depois expulsou os judeus. Foi a elite que fez de nós proprietários absentistas de um Império que nunca desenvolvemos. E isso explica a indiferença com que o povo português recebeu a perda das colónias. Sabiamente, compreendeu que a paz era o objectivo vital para o derrube da ditadura. [Viveu] alheio ao desaparecimento de um Império de que a maioria nunca beneficiou. Não houve um projecto português integrado ligado a uma acção cultural, económica, social. E depois tivemos os 48 anos de ditadura.

Em Portugal pertencer a uma elite nunca representou, como devia, uma fonte extra de obrigações, antes uma atribuição anormal de privilégios. O povo foi sempre melhor do que as elites.

 

Antero falava de decadência. É uma palavra que pode ser facilmente aplicada aos portugueses?

Falar de decadência implica estabelecer uma referência em relação a um padrão histórico, o que não faz sentido. Aquilo que se fez depois do 25 de Abril – dignificar as pessoas, que passaram a ter liberdade, a poder ir à escola, a ter direito à saúde – isso sim constituiu um projecto, um valor e uma verdadeira reforma da sociedade.

 

Queria pedir-lhe que falasse da esquerda e dos valores de esquerda que sempre defendeu. Nos últimos anos, os países europeus têm virado à direita de um modo geral (e já vamos a Hollande).  

A esquerda ficou órfã com o desaparecimento da União Soviética e foi batida em função do tipo de globalização que tivemos e da influência do neo-liberalismo. Quando há uma globalização que nos torna a todos interdependentes, ao mesmo tempo que os centros de poder financeiro, económico, político, geoestratégico e militar impõem um determinado modelo, é difícil combatê-lo de forma estruturada.

Aquilo que hoje são os valores da Esquerda e de crescentes sectores da sociedade portuguesa são aqueles de que temos estado a falar. Valores ligados à dignidade da pessoa, aos direitos e às obrigações que fazem parte da nossa consciência colectiva. Esses valores devem ser defendidos e efectivamente aplicados.

 

Com a vitória de Hollande nas presidenciais francesas, acredita que alguma coisa de significativo vai mudar nessa redefinição do que é a Europa, que, disse, urge fazer?

Não sei bem até onde é que Hollande quer ou pode ir. Aquilo que ele significa não é tanto o que consiga fazer, mas a possibilidade que criou de esperança e mudança de perspectiva dos povos europeus. A falência do sistema neo-liberal é de tal maneira patente, e as consequências concretas são de tal forma graves, que vamos ter que mudar.

 

Disse que o povo português foi sempre melhor que as suas elites. Outra linha constante na imagem que temos de nós mesmos: somos individualmente extraordinários – no futebol, Ronaldo ou Mourinho são exemplos – e na interligação com o colectivo falhamos.

Há um problema perene em Portugal: o do corporativismo em que Salazar nunca acreditou e apenas utilizou como mais um meio de domínio político. Há hoje outro tipo de corporativismo em todos os extractos – médicos, farmacêuticos,  juízes, advogados. O meio é muito pequeno e de muitos interesses instalados. Estou de acordo consigo quando diz que os líderes têm influência; com líderes diferentes tudo poderia ter outro caminho. A participação política é cada vez mais necessária, mas a acção da sociedade civil, sem um apoio político, não pode ir longe.

 

A resistência à mudança é uma característica de velhos. Este país é um país de velhos? Em princípio, os novos têm menos medo da mudança. Como olha para os mais novos?

A geração mais nova é em geral de grande qualidade. Num exemplo caseiro, vejo isso no escritório. São todos para mim  miúdos, na casa dos 30, 40. São muito melhores tecnicamente do que nós éramos. São impecáveis do ponto de vista deontológico. E são civicamente interessados e generosos. Não são é politicamente motivados. Não acreditam no funcionamento do sistema. É gente que está a mudar a forma de estar na vida. Não está é a traduzi-la em participação política. Digamos que sou o velhote esquerdista [riso]. O escritório tem de ter algum.

 

O que é que lhe agrada em Portugal?

Tudo. Por tudo aquilo que vivi antes. Gosto das pessoas. Têm qualidades que muitas vezes não vêm ao de cima por circunstâncias que lhes são alheias. Os problemas dos portugueses não resultam da sua falta de qualidade, decorrem da estrutura que temos, dos corporativismos, da luta pela sobrevivência. Gosto do clima, gosto do sol. Gosto de sardinhas, de carapau. Adoro o Alentejo. Fizemos muita asneira na História, como todos os povos, mas fizemos muita coisa boa. Mas não temos o sentido de que a mudança se obtém através de um combate constante, não de forma imediata. As revoluções põem termo ao que está mas não definem por si o que há-de vir. No 25 de Abril a pseudo-Esquerda...

 

Pseudo-esquerda?

Nessa altura muita gente me ultrapassava pela Esquerda [diz com tom irónico] e está agora na Direita pura e dura. Antes do 25 de Abril (custa dizer isto, mas é verdade), estou convencido de que se o Salazar fizesse eleições livres era capaz de as ganhar. Tirando o Partido Comunista que fez uma resistência organizada, houve um grupo relativamente pequeno que combateu o regime. Quanto ao resto, predominava uma espécie de suave cobardia generalizada. Hoje tudo mudou, mas há traços de acomodação.

 

De acanhamento?

E falta de confiança própria, falta de convicções. E são as convicções que guiam a acção.

 

Isso foi outra coisa que disse na entrevista: “Ter coragem não é uma qualidade, é uma consequência de ter convicções”.

Se uma pessoa acredita numa ideia tem coragem. É a prova de fogo. Durante a ditadura caímos numa apatia a que pouca gente resistiu. Veio o 25 de Abril e também se supôs que era possível fazer alterações rápidas na sociedade portuguesa, que é conservadora como todas as sociedades. Houve um grande irrealismo. A ideia de que a luta pela liberdade, pela dignidade das pessoas deve ser permanente e contínua, que não é algo que se ganhe de repente, é um factor básico de vida.

 

Não foi sempre?

Foi. E a verdade é que, com recuos e avanços, o Homem tem-se libertado de muitos arbítrios e violências, tem ganho consciência de si próprio e do seu poder para transformar o futuro. Isto parece lírico, mas é verdade. Por estas razões sou incorrigivelmente optimista a prazo.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012

 

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