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Anabela Mota Ribeiro

Viriato Soromenho Marques

05.07.15

É um filósofo que considera Portugal um país excepcional. “No campeonato dos países com dez milhões de habitantes, não estamos atrás de ninguém.” É um estudioso da Filosofia Política que analisa o país numa Europa em perigo de implosão. Que diz que Sarkozy é dez por cento de De Gaulle. Ou que seria bom que Merkel ocupasse parte da energia que usa para defender o interesse alemão na defesa de uma Europa depauperada. Acusa o governo de Passos Coelho de não ter um plano B e de apostar num plano A altamente irrealista. O plano A corresponde a uma austeridade cega. A estratégia não é o nosso forte – não é novidade para ninguém. Os temas estratégicos, filosóficos e ambientais são aqueles de que se ocupa. Viriato Soromenho Marques é professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tem editada uma obra vasta. Nasceu em 1957. Foi na sede do Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, de que é membro, um magnífico palácio na Lapa, que nos encontrámos.  

  

Somos um povo que gosta de obedecer ou de mandar?

Nós, portugueses, temos sobretudo uma grande dificuldade em construir um projecto colectivo. Para obedecer ou para mandar é preciso existir um plano intermédio – o plano do poder. O plano do poder não tem a ver com o exercício de funções governativas, tem a ver com o contrato social que transforma um grupo de pessoas num povo organizado. A questão de mandar ou de obedecer depende da questão prévia do poder. Tem sido o nosso grande problema permanentemente adiado.

 

Funcionamos com o estereótipo de que os alemães são um povo que manda; nós somos um país que, pelo menos durante 48 anos, uma ditadura longa, obedeceu. Estas coisas entranham-se.

O contraste com a Alemanha não se pode aplicar nessa perspectiva. Não esqueçamos esse milagre europeu que é a nossa existência como Estado há quase 900 anos, com as fronteiras mais consolidadas, mais estáveis, com características de grande homogeneidade. Não que seja contra a pluralidade, mas a homogeneidade, politicamente, é um factor importante. E um país que, ao contrário da Alemanha, foi capaz de construir três impérios. A Alemanha não conseguiu construir nenhum que não tivesse terminado numa rápida tragédia para si e para o resto do mundo.

 

Essa nossa excepcionalidade tem que ver com o exercício do poder?

A razão pela qual somos um Estado muito antigo, nascido na Idade Média, consolidado a partir de D. João II na Idade Moderna, é porque houve gente que soube exercer o poder. A Segunda Dinastia, a mais gloriosa que Portugal teve, começa com uma revolução popular mas com uma liderança firme do Mestre de Avis, com um projecto nacional extraordinário. Portugal começou a globalização. A partida de Vasco da Gama para a Índia marca uma separação da história – “antes de Gama e depois de Gama”, Voltaire dixit.

 

Para esse desígnio, o do Mestre de Aviz ou de qualquer outro, são precisas duas coisas: a primeira é um projecto e a segunda é a capacidade de o implementar.

Exactamente. O facto de a Alemanha só ter conseguido unificar-se em 1871, quando é declarado o Segundo Reich na Sala dos Espelhos do Palácio de Versailles, em território francês (uma atitude bastante agressiva, declarar a fundação do império alemão em território ocupado); o facto de a unificação alemã ter sido a solução da kleine Deutschland, da pequena Alemanha, e não da grande Alemanha, que envolveria também a Áustria e os outros territórios de língua alemã, mostra que os alemães, embora tenham de si próprios a imagem de uma nação organizada, disciplinada, têm todavia uma pulsão interna descentralizada e centrífuga. Tiveram um império em África e um império no Pacífico e não ficou nada. Não ficou língua, não ficou memória.

 

A organização ficou como traço dominante do ser alemão. E isso é inegável.

Mas uma coisa é ter organização, outra coisa é ter capacidade de mandar e de exercer o poder. No que diz respeito ao exercício do poder, num quadro que não seja o doméstico, não temos nada a aprender com os alemães. Tivemos três impérios; um que terminou quando eu tinha 16 anos, em 1974, e construímos administrações, faculdades, fábricas, estradas, na Ásia, em África, no Brasil. Estivemos lá durante séculos de forma constante. Nessa capacidade de incluir os outros, diferentes de nós, não há qualquer comparação entre a capacidade portuguesa e a alemã. Esta crise europeia só está a ser agravada porque a Alemanha não tem um projecto para a Europa.

 

A culpa, mais que tudo, é de Angela Merkel?

É uma culpa partilhada. Todos somos responsáveis, inclusivamente os europeístas e os federalistas, nos quais me situo. Somos responsáveis porque deixámos um projecto amadurecer ao ponto do apodrecimento. As tendências patológicas da União Europeia já eram visíveis há dez anos, quando entrámos na moeda comum.

 

Avançou-se com a moeda antes das outras coisas que podiam solidificar esse projecto?

O chanceler Kohl, enquanto se estava a discutir Maastricht, que é o embrião de tudo isto, fez uma intervenção no Bundestag em que dizia: “É perigoso avançarmos para uma união económica e monetária sem termos uma união política garantida”. Ele próprio acabou por rever a sua posição e aceitar o que veio a seguir. Hoje queixamo-nos da falta de liderança, mas foi um compromisso entre Mitterrand e Kohl que nos levou a entrar nesta aventura da união económica e monetária (UEM) sem termos as condições básicas para isso. Há desculpas, há atenuantes? Há. A perspectiva é a mesma que encontramos nos pais fundadores da nossa união logo a seguir à Segunda Guerra, no Robert Schuman, no Jean Monnet. É a ideia de que podemos criar uma dinâmica funcional que acabe por alargar e aprofundar um projecto de natureza federal a médio, longo prazo.

 

A expressão que usou foi “deixámos amadurecer o fruto até ele apodrecer”. À medida que tudo se alicerçou na moeda, e ficaram para trás aspectos importantes, nomeadamente o político, a crise passou a ser inevitável? Deixou de ser surpresa para si?

Talvez valha a pena sintetizar o que falhou. Uma das coisas de que mais sofremos (não só em Portugal, na Europa) é a crença de que só hiper-especialistas são capazes de perceber estes assuntos europeus. Sofremos de um mal de que não sabemos sequer o nome.

 

Esse nome e esse mal, até há relativamente pouco tempo, em Portugal, era o de Sócrates. Funcionava como bode expiatório da crise.

Também tem as suas responsabilidades, mas não são as principais.

 

Neste momento, um pouco desse ódio, que estava fulanizado em Sócrates, está a ser transferido para Cavaco. A expressão que Marcelo Rebelo de Sousa usou – o tiro ao Cavaco – sintetiza isso. É como se o comum dos mortais achasse que não é capaz de compreender as grandes crises e então….

… domesticamente encontra o bode expiatório. Inteiramente de acordo. Claro que podemos e devemos, também, pedir responsabilidades aos nossos governantes, e a nós próprios como cidadãos, que também fomos coniventes. A nossa dívida pública é importante, mas a nossa dívida privada ainda é maior. Fomos irresponsáveis quando fomos no canto da sereia das entidades bancárias, que agora nos vêm pedir disciplina. Basta fazer um estudo sobre os anúncios publicitários no início da década de 2000: foram um convite à mais cega das irresponsabilidades por parte do consumidor.

 

Quem é que viu os perigos do euro? Quem é que percebeu que uma moeda comum não era suficiente?

Temos uma série de economistas que viram isto com bastante nitidez. O Krugman, o Stieglitz. Mas quem viu melhor foi Martin Feldstein, um economista conservador norte-americano, que escreveu um artigo na Foreign Affairs, em 1997, notável e premonitório. Fala de uma linha de clivagem entre países credores e países devedores – como agora. Não sendo uma união económica perfeita, com países que têm níveis de competitividade diferentes, mais tarde ou mais cedo o que iria acontecer era uma situação destas. Temos que fazer o diagnóstico do que falhou para tentar corrigir, se queremos continuar juntos, se não queremos que a Europa se torne apenas num sítio geográfico onde as pessoas sofrem.

 

O que é que falhou, o que é que correu mal?

Faltaram três coisas fundamentais. Temos uma união no que diz respeito à emissão da moeda e à desvalorização da moeda, mas não temos uma união fiscal, não temos políticas fiscais coordenadas.

 

Por isso há empresas, como há pouco aconteceu com a Jerónimo Martins, que deslocam as suas sedes para a Holanda, nomeadamente.

Uma união fiscal funciona de uma forma simples: temos que ter um acordo mínimo em relação aos grandes impostos, o IRS e o IRC. Nos Estados Unidos existem um IRS e um IRC federais que são progressivos, variam entre dez e os 35 por cento, dependendo do rendimento das empresas e dos particulares; e depois os estados acrescentam uma taxa estadual onde existe margem para competição fiscal. O que está a acontecer na Europa é que existe uma total autonomia. A política fiscal é uma competência totalmente soberana.

 

Vamos voltar às coisas que falharam.

Falhou um verdadeiro orçamento. Como é possível, com um por cento do PIB da União, financiar políticas comuns? Financiar uma política de energia europeia, de segurança alimentar, uma rede de transportes que permita o equilíbrio. Se em vez de uma Comissão Europeia tivéssemos um governo europeu, um presidente eleito por sufrágio universal (não há outra maneira de termos a quem chamar nomes senão elegê-lo), com um orçamento de cinco ou seis por cento do PIB, faria toda a diferença. Um governo europeu que não hostiliza os governos estaduais, que vão continuar a ter o quinhão principal das responsabilidades.

 

Outro aspecto importante: o comprometimento e o empenhamento dos países membros com o projecto europeu. A resposta foi desigual.  

O pacto de estabilidade e crescimento, que foi o dispositivo que a Alemanha impôs para se avançar com a moeda comum, tem critérios (a dívida pública não pode ser superior a 60 por cento do PIB, ou o défice orçamental que não deve ser superior a três por cento) que os franceses e alemães violaram logo em 2003, logo após a entrada em vigor da moeda comum.

 

Ou seja, foram criados mecanismos que nem os países de moeda mais forte respeitaram.

No Tratado de Lisboa (TFUE), nos artigos 121, 126 e 136, está inscrito o pacto de estabilidade e crescimento, e estão os limites do BCE, nos artigos 123 e 127. O 125, que já foi mais que violado, é o artigo que diz que não há resgate para os países que não cumpram o pacto de estabilidade e crescimento. Então por que é que os mercados emprestaram a Portugal e à Grécia com uma taxa de juro semelhante à alemã durante estes anos todos? Porque os mercados também acreditaram que se houvesse uma crise haveria uma resposta solidária da Europa.

 

O que falhou foi a solidariedade e a coesão europeia?

Foi um propósito. Para mandar é preciso uma máquina, um músculo, mas é preciso ter um projecto.

 

É a falência do federalismo que, no fundo, acaba por conduzir a esta falência do projecto europeu?

Não quero ir tão longe. Estamos numa situação em que existem mais probabilidades de isto terminar muito mal do que de terminar bem. Mas não estamos ainda numa situação em que se possa dizer que estamos condenados. Estamos na luta, há pessoas que se estão a mexer. O Mario Monti, na Itália, só tem feito coisas positivas. Não é um tecnocrata fechado, é um homem que tem uma cultura política baseada no rigor. E é uma pessoa com coragem, que diz à senhora Merkel que quer Eurobonds, que faz um discurso no Parlamento Europeu que deixa toda a gente encantada porque tem um projecto europeu, que assinou a carta com Cameron e mais dez países para o crescimento económico.

 

Apesar de Monti, de Cameron, destas movimentações alternativas, coisas como o encontro do ministro Vítor Gaspar com Schäuble fazem-nos perceber que na prática quem manda é a Alemanha.

O projecto europeu, até à moeda única, tinha uma dinâmica federal dominante, com componentes inter-governamentais. O que é que era a Europa para o general De Gaulle? Eram os chefes de Estado e do governo reunidos à mesa. O que é hoje o conselho europeu [reproduz] esta ideia. Sarkozy, que vale dez por cento do De Gaulle, em relação a isso tem a mesma ideia. Nesse aspecto os alemães são muito mais institucionais, têm um sistema federal. O problema dos alemães é que querem o federalismo só para eles.

 

Querem mandar eles… Voltamos ao estereótipo.

Não são os alemães, é este governo. Os Verdes e o SPD têm defendido publicamente a mutualização da dívida, os Eurobonds. A questão é que não temos tempo para esperar até 2013, e vai ser penoso esperar tanto tempo.

Temos uma dinâmica dupla. Temos uma componente federal que aponta no sentido de aprofundar o processo da união e fazer da Europa um lugar político onde há poder, há instituições, um estado de direito, uma democracia federal à escala europeia. E temos uma dinâmica que contraria esta, dos velhos poderes estaduais, da prudência. Neste momento temos uma Europa espectral, um holograma da Europa, um Tratado de Lisboa que já ninguém cumpre. E temos uma Europa real, de relações de forças, em que quem manda é a Alemanha.

 

Face a esta Europa em desagregação, os mais fracos estão naturalmente mais vulneráveis. Se pensarmos nas pessoas individualmente, e não em frases de tratados ou em números, são vidas que estão a ser coarctadas quotidianamente nos seus aspectos essenciais.

Neelie Kroes, uma vice-presidente da comissão do Durão Barroso, disse que se a Grécia sair do Euro ninguém morre. É falso! Estão a morrer pessoas por causa desta crise. E não é só na Grécia. Estão a morrer pessoas em Portugal. A taxa de suicídio está a aumentar. Só quem não percebe o impacto psicológico de uma crise económica, de perder o emprego, [pode dizer uma frase daquelas]. Já temos seis mil casais em Portugal em que ninguém trabalha naquela casa.

 

Temos pobres cada vez mais pobres, e uma classe média que empobrece a olhos vistos.

O aspecto patológico principal da sociedade portuguesa é o facto de termos uma grande desigualdade social. A diferença entre o rendimento dos mais ricos e dos mais pobres é das maiores da OCDE, não é só da UE. Na austeridade todas as camadas sociais estão a perder rendimento, mas quem está a perder mais são aqueles que já têm pouco. Estamos a aumentar as assimetrias sociais numa política que nos é imposta; o que significa que temos de negociar a forma como ela é aplicada.

 

Isso tem sido feito?

Não. O discurso oficial é o de ir mais longe do que o programa da Troika. É um discurso que tem uma dinâmica que pode ser suportada durante alguns meses, mas quando for confrontado com os resultados desastrosos vai voltar-se contra quem o profere; e vai prejudicar o país porque vai criar tensão social. Numa altura de dificuldade o pior que pode acontecer a um país é ele fragmentar-se socialmente.

 

Encontramo-nos na segunda-feira de manhã, a Troika está cá. Podemos dizer que “passámos” no exame trimestral, antes mesmo de ouvir a conferência de imprensa do ministro das Finanças.

A verdade é que o actual Governo só realizou metade das tarefas que deveria realizar a partir do momento em que entrámos no programa de austeridade da Troika. Temos uma margem de manobra altamente limitada, temos inspecções, temos pessoas da Troika a viver cá, há um fel que é preciso engolir.

 

Qual é a outra metade?

Negociar. Em vez de ir para além da Troika, há uma margem de manobra que tem a ver com aquilo que só nós portugueses conhecemos sobre Portugal, e que poderia ser negociada com a Troika e com os outros países da União Europeia. É inadmissível que o governo português não tenha assinado aquela cartinha do Cameron. É uma cartinha que não é inocente, mas que não tem nenhuma palavra mágica, daquelas subversivas – não tem Eurobonds.  

 

Essa carta desafia o poder da Alemanha e não estamos em situação de afrontar aquele a quem devemos, e de quem estamos mais dependentes.

É um erro político e estratégico perigosíssimo.

 

Estratégia é outra coisa de que somos altamente deficitários.

Sem dúvida. A estratégia está associada à questão do poder. O contrato social implica uma visão de futuro. Um contrato implica um projecto, o projecto implica tempo, implica uma promessa. Um dos estados básicos da política é a imprevisibilidade. As coisas nunca acontecem como são planeadas, por isso é que temos que prever.

 

Ter um plano B?

Neste momento apenas temos um plano A altamente irrealista, que é o plano de que isto vai resultar quando tudo indica que não vai resultar. A austeridade não vai resultar. Quando temos um ciclo de regressão e de depressão económica, temos que ter políticas que promovam o crescimento, mais emprego, mais riqueza. Só uma visão intelectualmente medíocre pode pensar que um país que tem que estabilizar as suas contas públicas, que tem que pagar a credores, pode fazê-lo não produzindo riqueza mas destruindo o seu tecido económico. Isto é elementar, os técnicos da Troika sabem isto. Se estivessem a cumprir outra coisa que não um programa de credores, e se fosse um programa no interesse da Europa e no interesse nacional...

 

A Troika poderia argumentar dizendo que não tem mandato político para fazer isso, mas apenas para obrigar à implementação de políticas que garantam o cumprimento do contrato de que são parte. Na sua opinião, podia ir mais longe?

Nós é que temos que ir mais longe. É muito fácil co-responsabilizar os outros. Por isso é que disse que este Governo é hemiplégico, só funciona metade do cérebro. Uma coisa é ter uma atitude de cumprimento em relação a metas (há um conjunto de coisas que lá estão previstas que são sensatas: as reformas da justiça, mais eficiência nos serviços, racionalização da administração pública); mas temos a obrigação, na margem de manobra que de que dispomos – talvez de cinco por cento – de avançar para o plano B a dois níveis. Chamar à atenção para o facto de que o grande problema que nos levou até aqui, independentemente de muitas culpas do Sócrates e do Guterres, é uma situação de défice crónico da nossa balança comercial. O último ano em que tivemos um saldo positivo foi em 1953. Somos um país que exporta menos do que importa.

 

Como resolver essa equação?

Fortalecendo o nosso mercado interno, aumentando a capacidade de produção de bens para o mercado interno, e aumentando a produtividade das nossas empresas no exterior. Há um economista da Universidade da Madeira, o Ricardo Cabral, um jovem que aprecio muito, que fez um estudo [que identifica este como] o calcanhar de Aquiles da nossa economia.

Tendo nós um aparelho que tem dificuldade de produzir bens e serviços para o mercado interno e para o mercado externo, esse aparelho produtivo não pode sofrer o que está a acontecer neste momento: um défice de financiamento. Temos empresas viáveis, com empregados, que estão a ir à falência porque não têm recursos.

 

A Alemanha é um dos vértices principais do seu discurso. O futuro da Europa depende essencialmente dela?

O que digo é que temos que ter um plano B para o caso de haver uma ruptura com a União Europeia – que não desejo. Quero uma Europa federal, com a Alemanha bem dentro da Europa. Os alemães estão a meter-se num buraco absoluto. Daqui a cinco anos, se a Europa rebentar, é mais seguro estar em Portugal do que na Alemanha. Vão ficar entre uma Rússia com armas nucleares, e uma França que não lhes vai perdoar o facto de eles já se estarem a demarcar. E militarmente são um zero, não têm nada. Se voltarmos a uma lógica de política de força, a Alemanha não tem trunfos.

 

Está a falar de um cenário belicista.

Um cenário de regresso ao equilíbrio do poder. Se saímos de uma Europa protofederal, multilateral, baseada no império das leis, para uma Europa estado-nação, de equilíbrio do poder baseado na força, aí a força nua é que manda. Uma das coisas que estão a acontecer na nossa democracia é que estamos a ser governados por pessoas muito levianas, muito superficiais, com pouco conhecimento da história.

 

Não deixa de ser irónico que Merkel venha de Leste.

Merkel tinha 35 anos quando caiu o muro. Na sua biografia não se conhece nenhum gesto de oposição. Fez a carreira normal de uma cidadã obediente a duas disciplinas, a luterana (é de uma família de pastores luteranos) e à disciplina do Estado da RDA. A grande diferença entre a RDA e a RFA é que na RFA havia uma coisa chamada “culpa alemã”. Os miúdos nasciam e eram educados na ideia de que a Alemanha tinha sido responsável pela Segunda Guerra Mundial, como foi, e pelo Holocausto, e que a democracia alemã tinha que ser capaz de compensar esse prejuízo à boa imagem da Alemanha, como país importantíssimo. Na RDA mergulhavam numa pia baptismal onde eram absolvidos de todos os crimes. Os alemães maus tinham sido ou mortos ou expurgados. Não há em Merkel uma dimensão de responsabilidade alemã que encontramos noutros líderes. É uma espécie de novo começo, como se o que aconteceu tivesse sido rasurado. Mas isso tem limites. A Europa tem que escolher entre ser os Estados Unidos da Europa ou ser uma hiper-Jugoslávia. Se entramos numa fragmentação, quais são as regras do jogo?

 

É a lei do mais forte? Na fragmentação é o salve-se quem puder.

É. E quem é que paga a dívida? Ninguém paga a ninguém. O principal economista alemão já disse que é preciso pagar à Grécia para sair do Euro.

 

O problema é a Grécia? O problema são os países que incumprem?

É um bocadinho a ideia de que o problema é da Grécia… Como não conseguem ver a dimensão sistémica da crise, como não conseguem ver que esta crise tem a ver com o mau desenho da UEM, com o péssimo software da sua construção, e como não querem consertar o software, o que fazem é ir retirando os abcessos. Há quem diga que somos a seguir.

 

Se o abcesso Grécia sair, inevitavelmente vão querer retirar o abcesso Portugal? Ou aí terá feito sentido a estratégia do bom aluno que se demarcou da Grécia?

É um jogo diabólico. Deixar a Grécia entregue a si própria significa que vamos ter um default de 100 por cento. Os privados e as instituições públicas, o BCE, o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira vão ficar com zero. Significa que a Grécia vai passar muitos anos antes de ter recurso aos mercados, e vai orientalizar-se, vai agarrar-se aos vizinhos que estão ali ao lado. A Turquia, que é o inimigo figadal, vai ajudar a Grécia.

 

E a Grécia aceita porque está dependente.

Não tem outra hipótese. O que é que vai acontecer à NATO no meio disto tudo? Qual é o interesse da Grécia em ficar na NATO depois de ter sido tão maltratada pelos seus parceiros europeus? Como estamos a falar de meninos a dirigir países, estas consequências complexas não são medidas. O que é que os mercados, que em grande parte não são europeus, mas que têm investimento na Europa, vão pensar?

 

Mas existe ou não uma ligação entre os dois países? Se um cair, o outro cai? E quando?

Se a Grécia cair, Portugal cai logo. Não cai naquele dia, mas tudo o que é activo de dívida pública portuguesa fica infectado. Ficamos em coma assistido. A única coisa de que tenho quase certeza é de que a Grécia não vai cair antes de 20 de Março, que é quando têm que pagar 14,4 mil milhões de euros aos credores. A Alemanha tem que garantir que as eleições francesas se fazem em ordem, e as eleições são em Maio. Até aí a Grécia vai flutuar. O nosso plano B, verdadeiramente, é saber a que jangada de pedra vamos pertencer. É tolo pensar que podemos fazer uma jangada de pedra com os alemães. Temos que a fazer com aqueles que estão perto de nós.

 

Além da geografia, há questões de identidade. Com quem poderíamos ficar?

A haver uma ruptura, temos que ficar com o maior número possível de países europeus. Com a Espanha, com a França (quando a França tiver um estadista, alguém que pense), com a Itália.

 

Esperava mais do Governo Passos Coelho?

É uma política de sobrevivência, de decisões muito difíceis. O que vejo é um Governo que em relação aos ministérios fundamentais, que são o das Finanças e o dos Negócios Estrangeiros, juntamente com a coordenação do primeiro-ministro, não tem sido capaz de fazer os tais 50 por cento que faltam.

 

Que se traduz em quê?

Garantir a protecção do tecido económico e garantir que o empréstimo da Troika vai financiar o tecido económico onde é preciso (para criação de emprego). É extraordinário que Paulo Portas, que tinha a ideia que seria a pessoa mais capacitada deste Governo, em termos intelectuais e de experiência, se tenha tornado numa espécie de ministro da Economia para os assuntos externos. Que tenha feito viagens para promoção da indústria portuguesa numa altura em que o fundamental era alicerçar as nossas alianças no quadro de uma possível recomposição da União Europeia (após fractura).

 

Se olharmos para o equilíbrio de forças no Governo, não por acaso, esse dois ministérios são ocupados por pessoas de diferentes partidos. Paulo Portas, mesmo sendo o mais experiente membro do Governo, representa a parte minoritária da coligação.

Na análise em que me situo, o que está aqui em causa é a sobrevivência de um projecto estratégico nacional. É preciso não esquecer que a Europa é o nosso desígnio estratégico. E não podemos ter uma visão partidária das coisas. Cada membro do Governo, cada partido da oposição deve dar ao país o contributo que é necessário. O que está em causa é também a nossa terceira república. Se o projecto europeu falhar, e se não encontrarmos uma resposta doméstica para permitir a viabilidade do país, para permitir que os portugueses tenham com que se alimentar, e que tenham um tecido económico que permita a sua subsistência, a terceira república cai.

 

E então, que aconteceria? Que perigos?

Nada garante que caia para o lado correcto, que caia para uma quarta república democrática. O que está em cima da mesa é de tal maneira momentoso que não podemos ter uma visão paroquial. Não estou a olhar para os ministros como sendo do partido B ou C, estou a olhar para os ministros como pessoas que têm competências específicas.

 

Que apreciação faz de Vítor Gaspar?

Conhece a situação europeia, os meios financeiros. É uma pessoa muito competente e está a fazer um trabalho muito difícil. Não foi a primeira escolha. As primeiras escolhas não tiveram a coragem de assumir o desafio – é um homem corajoso. E não pode fazer tudo. Há uma falta de visão estratégica. Um Governo tem um primeiro-ministro para alguma coisa. Há um défice estratégico ao nível do plano B, e isso é uma coisa que tem que ser feita em colaboração com a oposição. Este governo não pode ser de trincheira, do PSD e do CDS. Tem que ser um governo nacional.

 

Tem recebido apoio do PS? A oposição não tem sido musculada. É como que uma participação tácita?

O PS tem uma situação ambígua. Para todos os efeitos foram os seis anos de governação PS que conduziram o país a esta situação. Não quer dizer que não tenha havido também uma participação, na parte final, do Presidente da República e do PSD, que precipitaram a queda do Governo. O Governo anterior estava esgotado. Há limites para a falta de credibilidade de um dirigente.

 

Esse era o principal problema de Sócrates, a falta de credibilidade?

Era. Não é possível ter uma liderança sem confiança. Um dos défices principais que temos hoje em Portugal e na União Europeia é a desconfiança. No final do anterior Governo essa desconfiança estava a atingir valores insuportáveis. A política é sempre baseada na confiança, numa promessa que se faz ao outro.

 

Gostava de voltar ao início da conversa, ao mandar e ao obedecer. Imediatamente na sua resposta derivou para a existência (ou não) de um pensamento estratégico. Por que é que somos assim? Como é que damos a volta a isto?

Há uma longuíssima tradição de reflexão nacional sobre a nossa crise. Eu seria o primeiro a apoiar a senhora Merkel se ela se quisesse candidatar a presidente de uma Comissão Europeia fortalecida. Se usasse 70 por cento da energia que usa para defender aquilo que considera ser o interesse alemão para defender o interesse europeu, saíamos da crise. Não há qualquer sombra de ressentimento ou de hostilidade contra o povo alemão; é um povo que estimo, uma história que conheço, uma língua que acarinho. O Antero de Quental, em 1871, quando fez a sua reflexão sobre a nossa decadência…

 

Num célebre texto sobre as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares…

… que é um documento muito interessante. Antero era um general, sem exército, mas um general. Chamava à atenção para aspectos que permitiriam uma renovação do projecto nacional numa perspectiva crítica. Tínhamos uma elite intelectual que tinha a noção de que o projecto nacional tinha que ser baseado, não em forças ambíguas da raça, do sangue, da comunidade, mas em projectos racionais. Oliveira Martins defende a tese de que o nosso império foi importante porque foi baseado em ideias – como o império romano. Faz uma comparação. O atractivo de Roma era um ideal abstracto de igualdade perante a lei. É o que nos falta hoje. Os portugueses, quando entram em sociedades em que a questão do poder está resolvida, onde há um pacto social, onde há uma constituição…

 

São trabalhadores exemplares. E individualmente somos extraordinários, todos o dizem.

Exactamente. Os portugueses são muito individualistas. O nosso analfabetismo é também a resistência à escola, a nossa fuga ao fisco é a resistência aos impostos. São aspectos perversos do individualismo. Esta crise, se não trouxer mais nada, vai certamente trazer a questão do poder. Temos que encontrar uma medida para o nosso contrato que permita que os portugueses façam em Portugal aquilo que são capazes de fazer no exterior. Que sejam capazes de entender quando é tempo de mandar e quando é tempo de obedecer. Quem é que manda, como é que manda, quem é que obedece, como é que obedece, e por que é que obedece. Estas questões continuam confusas na realidade nacional. Vão ter que ser clarificadas.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012

 

 

 

 

 

Vasco Vieira de Almeida (2012)

05.07.15

É um socialista que se preocupa ante o desmoronamento de uma Europa solidária. Que considera que não pode cair ninguém, sob pena de cairmos todos. Que recupera a História e nos mostra os alicerces mais fundo da crise em que estamos submergidos. Porque “o conhecimento da História permite ter uma visão mais segura da realidade e das alternativas de que dispomos”. Vasco Vieira de Almeida sustenta as razões – não-líricas – porque é um velhote marxista. Afirma com segurança que o povo foi sempre melhor do que as elites. Ele que é elite e que sempre esteve do lado do povo. Que gosta de tudo em Portugal. Tem um dos maiores e mais importes escritórios de advogados do país. Uma entrevista com ele é um acontecimento raro.  

  

Tenho ideia que o melhor de si emergiu em tempos de luta e de instabilidade. Estamos novamente num momento da história do país, e não só, em que tudo parece prestes a desmoronar. Queria ouvi-lo sobre este período, e perceber onde procurar o melhor de nós, e como lidar com situações de instabilidade como esta que vivemos.

As crises têm um lado positivo. Em História geram sempre um caminho em frente. O meu Pai costumava dizer que viver e morrer não faz grande diferença, o pior é a transição [riso]. Estamos nessa transição. Importante para percebermos o que se passa hoje é compreender como chegámos aqui. Fala-se na crise do Euro como se fosse puramente financeira e orçamental e na crise da União Europeia como transitória e não estrutural. É um processo muito mais complicado.

 

O que é que nos trouxe a esta crise?

Três causas. A primeira tem que ver com o carácter ideológico do projecto neo-liberal. A Sra. Thatcher dizia nos anos 80 que não há uma coisa chamada sociedade, só há homens e mulheres individualmente. “There is no such thing as society, there are only individual men and women”. E acrescentava que “a economia é o método, mas o objectivo é mudar a alma”.

 

É uma surpresa que comece por citar Thatcher.

São frases reveladoras de uma concepção da sociedade e de um plano político. Friedrich Hayek afirmava que a ideia de justiça social é uma ameaça para a eficiência dos mercados e para o individualismo liberal, porque justifica a imposição de um sistema de redistribuição de rendimentos.

Na base deste sistema ideológico está o Consenso de Washington, onde se estabeleceu o que seria o modelo da estrutura da sociedade global futura, e definiu o método da defesa dos interesses das potências hegemónicas do Ocidente.

 

Que consequências é que deixou esse plano?

Entre outras a mundialização do investimento, a financiarização da economia, a ortodoxia orçamental e o ataque ao Estado social. Politicamente pretendeu-se a privatização de serviços públicos, como forma de enfraquecimento do Estado. O Estado passa a instituições não-democráticas muitas das suas próprias funções. E uma das consequências mais graves foi a completa desregulação dos mercados financeiros.

 

Reagan e Thatcher podiam prever, há 30 anos, os efeitos a longo prazo dessas opções?

Eles obtiveram o que queriam, mas já havia todas as razões para desconfiar nessa altura. Entre os anos 1980 e 2000 o plano Brady estabeleceu o perdão de dívidas a Estados que não as podiam pagar. Pelo menos dezoito Estados foram abrangidos, e a própria Inglaterra teve de recorrer ao FMI em 1976. O projecto político neo-liberal teve o objectivo de criar uma classe dirigente adaptada ao novo ideário. No caso inglês, Thatcher destruiu os sindicatos, desestruturou a sociedade e desindustrializou o país.

 

De qualquer modo, as praças mais poderosas estavam nos EUA e em Inglaterra.

Sim. Levar a bom porto este projecto só foi possível porque os dois centros financeiros fundamentais eram em Nova York e Londres. E os Estados Unidos tinham a única moeda de reserva que havia na altura. A isto juntava-se o controlo do desenvolvimento tecnológico, a supremacia no comércio mundial, a força militar, e o poder geoestratégico. Esse plano não constitui a origem imediata do que se está a passar mas é um quadro sem o qual é impossível uma interpretação clara dos acontecimentos actuais.

A segunda causa da actual crise é a da construção antidemocrática da estrutura da União Europeia.

 

Anti-democrática? Como assim?

Na origem da União esteve não só um projecto de integração através da criação de instituições de natureza técnica, como na sua estrutura constitucional prevaleceu o poder intergovernamental. A Europa hoje não constitui um projecto de sociedade comum, pela inexistência dos factores de solidariedade social e cultural que permitem espaços de identificação alargados.

A zona Euro surge num quadro de enormes diferenças de competitividade entre o Norte e o Sul e a promoção da convergência está a fazer-se apenas à custa de uma austeridade iníqua, ineficaz e destrutiva, que recai sobre os mais fracos.

 

A Alemanha é um caso particular quando olhamos para a União. Para entender esta Europa, é preciso atender à culpa da Alemanha, resultado ainda da Segunda Guerra Mundial? Subliminarmente isso está lá?

Só subliminarmente. Há uma constante na política alemã que resulta da fragilidade da sua situação geográfica e vem desde o século XIX. A Alemanha, com a doutrina da mittel Europa, necessitava de liberdade de acção, pelo que sempre se opôs à política inglesa de equilíbrio de poderes no continente, que resultava do congresso de Viena de 1815. Daí a união aduaneira, imposta por Bismarck em 1870, que criou o Império unindo os estados germânicos. Em 1914, o primeiro-ministro Bethmann-Hollweg defende a necessidade de criar um grande espaço económico alemão. Depois da Primeira Guerra Mundial, em 1919, o chanceler austríaco Coudenhouve-Kalergi lança a ideia de uma União Pan-Europeia, apoiado pelo plano de Heidelberg do SPD. E já nessa altura se viu que isso só era possível com um elo de ligação à França. É assim que alemães e franceses propõem à Sociedade das Nações, em 1929, a União Federal Europeia. Com o nazismo, Karl Haushofer, doutrinário da posição geoestratégica da Alemanha, escreve que o país tem de constituir um grande espaço económico, com exclusão das “nações periféricas”. Sabe quais eram?

 

Quais?

A Inglaterra, a Holanda, Portugal e Espanha, países que se tinham projectado para fora do continente. A política alemã foi sempre a de que os interesses da Europa devem coincidir com os seus. É o presidente do Bundesbank, no mandato de Helmut Kohl, que estabelece a doutrina da construção europeia de geometria variável e de círculos concêntricos. Era já a ideia de uma hegemonia alemã. Aquilo que faz hoje a Alemanha…

 

... É pôr em prática um plano que foi sendo delineado, de diferentes maneiras, ao longo de século e meio.

É. Mas foi a conjugação das três causas de que falei que levou à situação actual. E que é necessário alterar radicalmente.

 

Alteração política?

Não apenas política. Criar um federalismo institucional e formal não resolve o problema. É necessário aplicar políticas de convergência fiscal, regulação bancária e de coesão que não resultem da imposição autoritária de qualquer directório e possam ser absorvidas pelos Estados em condições diferentes. Ou há uma Europa solidária, com uma visão estratégica assente na justiça social ou teremos a prazo o desaparecimento gradual do Estado de Direito e poremos em risco o sistema democrático. Mas para já tem de resolver-se esta crise, sem destruir o tecido interno da sociedade e sem comprometer soluções futuras assentes na livre escolha democrática.

 

No imediato, a expressão mais clara da crise é a saída eventual da Grécia, é a explosão do Euro.

Estou convencido de que a Grécia não sairá e o Euro não implodirá. Mas a contradição é que com a actual política nenhum poderá ficar ou subsistir. É a política que terá, quanto a mim inevitavelmente, de mudar.

 

Porque os danos são imprevisíveis?

Quando se desregulou o mercado internacional de capitais criou-se uma enorme massa monetária que foi aplicada em financiamentos a Estados, empresas e famílias a juros muito baixos durante muito tempo. Houve países que não tinham condições para contrair esses empréstimos e geriram irresponsavelmente a sua dívida. Mas o facto é que lhes foram criadas condições nesse sentido.

 

Não só criadas como incentivadas.

Por isso a ideia de que somos os únicos ou mesmo principais culpados é inaceitável.

 

Os Eurobonds são inevitáveis na solução deste problema?

Creio que serão inevitáveis. Mas há várias hipóteses. Existe uma proposta interessante segundo a qual só se aplicariam à dívida actual acima de 60 por cento do PIB e até que ela regressasse a esse nível, com um prazo de pagamento de 25 anos.

Fazer um ajustamento meramente orçamental, em dois anos, com sacrifícios incomportáveis dos mais fracos, e que implica aumentar impostos, baixar ordenados, reduzir despesas sociais, reduzir o consumo, com um sistema bancário paralisado, e querer a partir daí “adicionar” medidas de crescimento, é simplesmente inviável.

 

É preciso tempo?

O problema da dívida exige um período muito mais longo. Estes tratados e pactos, ou são renegociados, ou levam à necessidade de perdoar dívidas, ou desaba todo o edifício. Já agora, é mau que se fale de crescimento e não de desenvolvimento, que é uma coisa totalmente diferente.

Temos de perceber que Europa é que queremos. As crises não duram eternamente. O que me preocupa ainda mais é o mundo que pode seguir-se. Se é aquele em que, como diz Hayek, a ideia básica de justiça social é uma ameaça. Para já sucedem-se ataques ao Estado de Direito. Algumas das medidas que estão a ser tomadas em Portugal são anti-constitucionais.

 

Porquê?

Os ataques aos direitos laborais, por exemplo. A forma como foi feito o corte dos subsídios e pensões. Uma das propostas do Tratado de 30 de Janeiro é a inclusão de um limite constitucional para o deficit e para o prazo de pagamento da dívida superior a 60% do PIB. Ora, justamente do ponto de vista neo-liberal o funcionamento do sistema capitalista implica a existência de condicionantes endógenas e exógenas não domináveis pelos governos. Ou seja, quem propõe a necessidade dessa constitucionalização, cria por outro lado as condições para a violação dos princípios constitucionais. Além disso, aquela disposição significa a imposição permanente do mesmo sistema. Seria instaurar sem hipótese de escolha um neo-liberalismo constitucional e portanto destruir a essência das instituições democráticas.

O risco que corremos, e já o vimos na Grécia, é o do condicionamento do sistema democrático e da promoção de forças que querem o seu desmoronamento.

 

Significa o regresso a sistemas totalitários, tantas vezes prenúncio de guerras? Voltámos àquele momento entre as duas Guerras e ao crescendo de crise, agitação social, emergência de partidos totalitários?

Uma guerra europeia, não acredito. Mas há um perigo crescente de sistemas autoritários. Em Portugal receio isso porque temos uma sociedade civil muito fraca. O facto é que as pessoas por enquanto não têm reagido de forma enérgica.

 

Visto de fora, e olhando para a Grécia, o que parece é que os portugueses são um povo brando e de espinha curvada, que não se manifesta com a violência com que os gregos dizem: “Isto, não aceitamos”.

Não podemos fazer uma ligação directa, mas 48 anos de ditadura e a actual descredibilização da classe política levam muita gente à ideia de que não temos força, a pensar que é inútil reagir.

 

É uma grande diferença, essa. Acreditar no sistema, ou não. Acreditar que reagir leva a algum lado, ou não.

O desemprego e a crise fragilizaram o movimento sindical e por isso os sindicatos também têm de perceber que a sua acção não pode ser apenas corporativa. Temos hoje direitos, mas sentimos menos obrigações do que devíamos para justificar os direitos que temos. A nossa concepção de democracia é mais a do exercício de direitos do que a do cumprimento de deveres.

 

No fundo está a dizer que os sindicatos não podem viver à margem do seu tempo e do país.

Estou.

 

A Alemanha é a grande potência europeia. No quadro mundial, a China será a primeira potência? E daqui a quanto tempo?

Provavelmente daqui a 20 anos. Uma das razões porque a Alemanha vai ter de ceder é porque 40 por cento do que exporta é para a Europa. E aquilo que exporta para a China, estarão os chineses a produzir dentro de 10 a 15 anos. Essa fonte vai reduzir-se. E se secar a Europa, a indústria de exportação alemã será a primeira a sofrer.

 

Vou usar uma metáfora: têm de proteger o seu rebanho, mesmo contando com as ovelhas tresmalhadas.

Claro. Se Portugal, Grécia, Espanha e Itália não puderem pagar as suas dívidas, uma boa parte das quais está em bancos alemães e franceses, tal significa uma perda impossível para o sistema bancário dos países credores que tiveram liquidez para emprestar. Como esses prejuízos têm um seguro, os Credit Default Swaps, o efeito multiplicador para o sistema financeiro é incomportável.

 

É uma coisa tentacular. Muitas vezes os bancos têm uma grande participação nas companhias de seguros. Tudo acaba por ser uma espécie de património comum.

Ninguém pode deixar cair ninguém. É por isso que a criação de um novo modelo, de uma Europa de solidariedade, não é uma questão moral ou uma forma de ajuda, mas uma inevitabilidade a prazo para a sobrevivência da União. É preciso não esquecer que a concepção dos direitos humanos constou inicialmente de uma declaração universal abstracta, mas entrou na consciência colectiva, e está ligada à própria dignidade individual. Esses direitos concretizaram-se. Hoje há os direitos da criança, na Convenção de Viena, os direitos da mulher, na Declaração de Pequim, o direito de lutar contra a prepotência económica, o direito à autodeterminação.

 

É uma narrativa que está enraizada na mentalidade destes dias.

Sim. E esse caminho, com derrotas e vitórias é imparável.

 

Bill Rhodes disse em Portugal a semana passada que a austeridade só pode conduzir ao desânimo e à falência se não for acompanhada de medidas de crescimento.

Estou de acordo quanto ao desânimo e à falência. Mas juntar crescimento (repito, desenvolvimento) a esta austeridade é uma falácia. Como é que pode haver medidas de desenvolvimento com um sistema fiscal que aumenta os impostos de forma incomportável, com reduções de salários, com miséria que começa a alargar, com um sistema bancário que não pode financiar a economia real?

 

Os bancos estão descapitalizados. E agora é o Estado que vai lá meter o dinheiro.

É necessário renegociar a forma de restabelecer um equilíbrio financeiro, mas que não pode ser considerado um dogma estático. O prazo tem de ser prolongado para que quaisquer medidas que venham a impor-se sejam eficazes.

 

Enquanto isso, a taxa de desemprego dispara...

É inaceitável, sob o ponto de vista económico e social e ético, termos o nível de desemprego actual. As consequências não são só não poder ganhar a vida. Constituem um ataque à dignidade e levam à perda do respeito por si próprio.

 

A crise está a penalizar os do costume? Não só os pobres, mas também a classe média. Também são os do costume os que estão a ser poupados?

As consequências são diferentes para uns e para outros. Para as empresas, que podem ir (e muitas estão a ir) para a falência e gerar o desemprego dos seus trabalhadores. Para as pessoas que não ganham a sua vida, que não podem mandar um filho para a escola ou pagar as despesas de saúde. Sofre neste momento a classe média e sofrem aqueles que já sofriam. E há consequências no próprio sistema. Demos um nó cego nesta crise quanto às soluções. As pessoas perderam a possibilidade de imaginar o seu futuro. Estão apenas a tentar evitar o seu presente.

 

As soluções têm que existir a nível europeu? Sobretudo porque estamos presos numa teia.

Só há uma solução no plano da Europa. Mas estamos também perante uma crise mundial que começou com o subprime nos Estados Unidos e que terá influência na evolução do problema.

 

A verdade é que os EUA recuperaram mais rapidamente. A queda do gigante Lehman Brothers foi em 2008, e a recuperação já começou.

Mas o ponto de partida é diferente. Na Europa houve uma situação política e social em que havia algumas defesas. Na América isso nunca sucedeu. Os Estados Unidos vivem o individualismo puro. O programa do presidente Obama de dar assistência médica a cinco milhões de crianças que a não tinham, de criar um seguro de saúde, tem sido lá considerado um ataque à liberdade individual e uma perigosa deriva socialista.

 

Na Europa, sobretudo nos últimos anos, têm-se falado da falência do sistema que emergiu no pós-Segunda Guerra, envolvendo a Alemanha. Um estado-social erguido sobre os escombros da guerra e cujo fim, dizem, é inexorável. Concorda que assim seja?

Isso é outro problema. Houve 30 anos de crescimento, fez-se a reconstrução europeia, e não vivíamos a crise demográfica que hoje existe. A Europa representa apenas sete por cento da população mundial o que significa ser necessária uma verdadeira política de imigração. Com as actuais alterações geoestratégicas, com os mesmos recursos da Terra para uma população mundial que, em termos de consumo, é dupla da que havia há 20 anos, justifica-se que tenhamos que repensar a política social a uma escala europeia.

 

O quadro é especialmente preocupante numa sociedade envelhecida como a nossa e com uma esperança de vida prolongada.

A solução não pode assentar no actual modelo. A redistribuição de recursos deixará cada vez mais de ser uma tarefa interna dos Estados nacionais para se alargar ao espaço europeu. E isto implicará novas formas de equilíbrio com responsabilidades partilhadas.

 

Para isso são precisos líderes, visão estratégica, e um entendimento. Antes do pragmatismo, tem de haver um entendimento quanto ao que se quer para a Europa.

Quem leia um pouco de história tem algum sossego nesta constatação banal: nenhum sistema se mantém sempre. Hitler acabou, Mussolini acabou, Salazar acabou. Passei a minha vida convencido de que o Salazar nunca mais morria, mas morreu [riso]. Este sistema vai falir. A posição ultraliberal é insustentável quando vemos que em todo o lado a consciência colectiva dos direitos do Homem cresceu. É ver o que se está a passar com os países árabes, embora os resultados sejam uma incógnita. Na Birmânia, Aung Suu Kyi, ao fim de 20, anos está no parlamento.

 

E grandes líderes para o implementar, não estamos falhos disso?

Em casos anteriores apareceram grandes líderes quando havia crises. Roosevelt, Churchill, De Gaulle, Staline, na Segunda Guerra Mundial. Esta crise, – estou a falar da Europa – não produziu grandes líderes. Isso tem a ver com a natureza da construção europeia, que não foi democrática. Não escolhemos os líderes europeus. A nossa participação é feita nominalmente através de eleições para um Parlamento longínquo. Na prática, faz-se através de governos que elegemos, mas cuja acção é dirigida por razões que são deles próprios, governos, e de defesa da sua posição político-partidária.

 

Quando olhamos para o sonho de Jacques Delors parece que foi ontem. E entretanto tudo ficou em pantanas.

As raízes disto eram previsíveis na construção da Europa, concebida para evitar uma nova guerra entre a França e a Alemanha. Fez-se à volta da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço e depois foi-se alargando. O problema é saber se se consegue modificar a situação no quadro político actual, ou se tal se vai dar em resultado de uma agitação social grave que obrigue a mudar.

 

A implosão da zona Euro e do projecto europeu, de que tanto se fala e que todos temem, é evitável?

Evitável é. Sou optimista a prazo. As coisas estão a mudar lentamente. A própria Alemanha está a começar a perceber. Além disso pode vir a estar em causa a política interna da Sra. Merkel, que tem eleições para ganhar, mas que já perdeu cinco...

 

... A última das quais no maior estado da Alemanha. Acha que é um sinal?

Acho. Os dirigentes europeus começam a entender que a implosão do sistema afectará todos. A estratégia de conquista de uma posição hegemónica alemã vai manter-se até se perceber, à beira do abismo, que não pode ir mais além. Mas sair da situação actual não é o mesmo que resolver o nosso futuro, o futuro dos nossos filhos e dos nossos netos. Esse será um novo combate e mais duro ainda.

 

Esta manhã estava a reler a entrevista que lhe fiz vai para seis anos. Dizia que na sua juventude o marxismo era uma forma de dar sentido ao futuro. O que é que ocupou esse lugar na sociedade contemporânea?, o neo-liberalismo?

A situação é diferente. Vivíamos numa ditadura. Éramos oprimidos e tínhamos a esperança que vinha de uma visão ideológica integrada. O neo-liberalismo é, pelo contrário, o resultado de uma política de classes dirigentes para manter o poder. A nossa, era uma visão de futuro, o neo-liberalismo é uma forma de preservação do presente. Mas a História não tem fim, ao contrário da afirmação estúpida do Fukuyama.

 

Mas aquele paradigma acabou com a queda do muro. Qualquer coisa radicalmente nova começou na sequência disso.

O que Fukuyama escreveu foi que o modelo democrático se tinha estabilizado com o desaparecimento do socialismo real na União Soviética. É verdade que, com o fim da União Soviética e da experiência do socialismo real, desapareceu um quadro de referência, que falhou completamente. Hoje o que não há é uma ideologia estruturada e perdemos ilusões utópicas quanto ao futuro e quanto a nós próprios. Mas ganhámos um conjunto de valores que interiorizámos e se vão globalizando. O que andamos a tactear é a melhor forma de, nas circunstâncias que temos, os traduzir num discurso coerente e numa aplicação política concreta.

 

Retomo uma linha que vem de trás: como é que se convoca a sociedade civil em Portugal? Nem há duas semanas, o Banco Alimentar reuniu um valor recorde de alimentos, e num período de crise como este que atravessamos. Por outro lado temos a taxa de abstenção eleitoral que se sabe, e uma participação na res publica diminuta.

A falta de participação traduz a perda de confiança na classe política. A adesão à campanha do Banco Alimentar significa que as pessoas têm um grande espírito de solidariedade e que são mobilizáveis quando percebem que outros estão numa situação difícil. Mas não reagem de forma cívica contra o que gera essa situação.

 

O medo é uma das razões para compreender essa não-intervenção? Medo do futuro, de perder o emprego.

Não é por acaso, voltando à Thatcher, que ela atacou os sindicatos. Uma parte dessa política consistiu em reduzir a capacidade de intervenção destes, destruindo o emprego, baixando os salários, admitindo alterações à lei do trabalho com despedimentos facilitados. O medo é do futuro e do presente. E isso, ou se mantém assim se as pessoas não reagirem, procurando cada um resolver o seu problema, ou então a agitação social é um risco crescente.

 

Comecei por falar de si num contexto de luta e instabilidade. Como é que não se tem medo, como é que se encontra o caminho?   

As reacções não são as mesmas em toda a gente. Não se pode exigir de todos o mesmo espírito de luta. Mas a acção comum potencia a força. O conhecimento da História permite ter uma visão mais segura da realidade e das alternativas de que dispomos.

 

Esta série de entrevistas, genericamente intitulada Ampola Miraculosa, discute Portugal, a sua identidade e o momento que vivemos. Como olha para quem somos?

Fala-se muito do que é ser português. Há uma frase do Eric Hobsbawm que diz que é a nação política, são as classes dirigentes que formulam o vocabulário político da consciência nacional. E também do que são os projectos nacionais, a sua execução e a imagem com que ficamos desses projectos. A ideia que a elite do tempo teve do que foram as Descobertas, realizadas por toda a espécie de razões (políticas, religiosas, económicas), não era a mesma dos marinheiros apanhados nas tabernas do Cais do Sodré e que iam à força tripular as caravelas. Não há uma visão unitária do que é ser português. Nem há a mesma visão em todos nós sobre o que é a nossa participação na História. Claro que temos traços distintivos próprios: a forma como nasceu o Estado, características geográficas e culturais; tudo isso criou homogeneidade, mas não uma imagem comum de nós próprios.

 

No Discurso sobre as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares Antero de Quental escreve coisas que hoje poderiam ser ditas sobre Portugal. Parece que há uma constância no modo como nos vemos.

Repito, mas não em todos nós por igual. O Eça de Queirós dizia que a marcha da civilização para a justiça é feita pelos que riem. O Ramalho Ortigão escreveu que o dever da crítica perante um acontecimento ou uma personagem importantes é o desprezo e a zombaria. A Geração de 70 representou um cosmopolitismo estéril. Por isso Antero respondeu que o riso é um dissolvente, não é um remédio. A elite fez as Descobertas mas depois expulsou os judeus. Foi a elite que fez de nós proprietários absentistas de um Império que nunca desenvolvemos. E isso explica a indiferença com que o povo português recebeu a perda das colónias. Sabiamente, compreendeu que a paz era o objectivo vital para o derrube da ditadura. [Viveu] alheio ao desaparecimento de um Império de que a maioria nunca beneficiou. Não houve um projecto português integrado ligado a uma acção cultural, económica, social. E depois tivemos os 48 anos de ditadura.

Em Portugal pertencer a uma elite nunca representou, como devia, uma fonte extra de obrigações, antes uma atribuição anormal de privilégios. O povo foi sempre melhor do que as elites.

 

Antero falava de decadência. É uma palavra que pode ser facilmente aplicada aos portugueses?

Falar de decadência implica estabelecer uma referência em relação a um padrão histórico, o que não faz sentido. Aquilo que se fez depois do 25 de Abril – dignificar as pessoas, que passaram a ter liberdade, a poder ir à escola, a ter direito à saúde – isso sim constituiu um projecto, um valor e uma verdadeira reforma da sociedade.

 

Queria pedir-lhe que falasse da esquerda e dos valores de esquerda que sempre defendeu. Nos últimos anos, os países europeus têm virado à direita de um modo geral (e já vamos a Hollande).  

A esquerda ficou órfã com o desaparecimento da União Soviética e foi batida em função do tipo de globalização que tivemos e da influência do neo-liberalismo. Quando há uma globalização que nos torna a todos interdependentes, ao mesmo tempo que os centros de poder financeiro, económico, político, geoestratégico e militar impõem um determinado modelo, é difícil combatê-lo de forma estruturada.

Aquilo que hoje são os valores da Esquerda e de crescentes sectores da sociedade portuguesa são aqueles de que temos estado a falar. Valores ligados à dignidade da pessoa, aos direitos e às obrigações que fazem parte da nossa consciência colectiva. Esses valores devem ser defendidos e efectivamente aplicados.

 

Com a vitória de Hollande nas presidenciais francesas, acredita que alguma coisa de significativo vai mudar nessa redefinição do que é a Europa, que, disse, urge fazer?

Não sei bem até onde é que Hollande quer ou pode ir. Aquilo que ele significa não é tanto o que consiga fazer, mas a possibilidade que criou de esperança e mudança de perspectiva dos povos europeus. A falência do sistema neo-liberal é de tal maneira patente, e as consequências concretas são de tal forma graves, que vamos ter que mudar.

 

Disse que o povo português foi sempre melhor que as suas elites. Outra linha constante na imagem que temos de nós mesmos: somos individualmente extraordinários – no futebol, Ronaldo ou Mourinho são exemplos – e na interligação com o colectivo falhamos.

Há um problema perene em Portugal: o do corporativismo em que Salazar nunca acreditou e apenas utilizou como mais um meio de domínio político. Há hoje outro tipo de corporativismo em todos os extractos – médicos, farmacêuticos,  juízes, advogados. O meio é muito pequeno e de muitos interesses instalados. Estou de acordo consigo quando diz que os líderes têm influência; com líderes diferentes tudo poderia ter outro caminho. A participação política é cada vez mais necessária, mas a acção da sociedade civil, sem um apoio político, não pode ir longe.

 

A resistência à mudança é uma característica de velhos. Este país é um país de velhos? Em princípio, os novos têm menos medo da mudança. Como olha para os mais novos?

A geração mais nova é em geral de grande qualidade. Num exemplo caseiro, vejo isso no escritório. São todos para mim  miúdos, na casa dos 30, 40. São muito melhores tecnicamente do que nós éramos. São impecáveis do ponto de vista deontológico. E são civicamente interessados e generosos. Não são é politicamente motivados. Não acreditam no funcionamento do sistema. É gente que está a mudar a forma de estar na vida. Não está é a traduzi-la em participação política. Digamos que sou o velhote esquerdista [riso]. O escritório tem de ter algum.

 

O que é que lhe agrada em Portugal?

Tudo. Por tudo aquilo que vivi antes. Gosto das pessoas. Têm qualidades que muitas vezes não vêm ao de cima por circunstâncias que lhes são alheias. Os problemas dos portugueses não resultam da sua falta de qualidade, decorrem da estrutura que temos, dos corporativismos, da luta pela sobrevivência. Gosto do clima, gosto do sol. Gosto de sardinhas, de carapau. Adoro o Alentejo. Fizemos muita asneira na História, como todos os povos, mas fizemos muita coisa boa. Mas não temos o sentido de que a mudança se obtém através de um combate constante, não de forma imediata. As revoluções põem termo ao que está mas não definem por si o que há-de vir. No 25 de Abril a pseudo-Esquerda...

 

Pseudo-esquerda?

Nessa altura muita gente me ultrapassava pela Esquerda [diz com tom irónico] e está agora na Direita pura e dura. Antes do 25 de Abril (custa dizer isto, mas é verdade), estou convencido de que se o Salazar fizesse eleições livres era capaz de as ganhar. Tirando o Partido Comunista que fez uma resistência organizada, houve um grupo relativamente pequeno que combateu o regime. Quanto ao resto, predominava uma espécie de suave cobardia generalizada. Hoje tudo mudou, mas há traços de acomodação.

 

De acanhamento?

E falta de confiança própria, falta de convicções. E são as convicções que guiam a acção.

 

Isso foi outra coisa que disse na entrevista: “Ter coragem não é uma qualidade, é uma consequência de ter convicções”.

Se uma pessoa acredita numa ideia tem coragem. É a prova de fogo. Durante a ditadura caímos numa apatia a que pouca gente resistiu. Veio o 25 de Abril e também se supôs que era possível fazer alterações rápidas na sociedade portuguesa, que é conservadora como todas as sociedades. Houve um grande irrealismo. A ideia de que a luta pela liberdade, pela dignidade das pessoas deve ser permanente e contínua, que não é algo que se ganhe de repente, é um factor básico de vida.

 

Não foi sempre?

Foi. E a verdade é que, com recuos e avanços, o Homem tem-se libertado de muitos arbítrios e violências, tem ganho consciência de si próprio e do seu poder para transformar o futuro. Isto parece lírico, mas é verdade. Por estas razões sou incorrigivelmente optimista a prazo.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012

 

José Cutileiro

05.07.15

Encontrámo-nos no átrio do hotel. No final da entrevista falámos de filmes, de Rossellini e de Renoir. Aparentemente, nada que ver com a crise ou a Europa ou a austeridade ou a memória curta da Alemanha (o filme de Rossellini de que falámos, e que é o nosso preferido, é “Viagem a Itália”, e não “Alemanha Ano Zero”).

As coisas de que falámos na entrevista – assuntos europeus, a imprevisibilidade da movimentação das peças no xadrez, o facto de a Europa ter tido mais olhos que barriga na criação do Euro – não tinham que ver com “A Regra do Jogo”; mas ambos nos lembrámos de Octave, o personagem interpretado pelo próprio Renoir, que se sacrifica a um grande amor. (Neste ponto da História, é a Europa, uma certa ideia de Europa, que é sacrificada?) Talvez pudéssemos fazer uma outra entrevista para falar só de filmes, e do muito que se aprende neles, como quem não quer a coisa. Outro dia.

Disse-lhe que parecia um professor de Oxford. Pelo aprumo da vestimenta, uma certa combinação de cores, o cabo belíssimo da bengala (Eça chamava-lhe um nome mais elegante e João da Ega, o personagem d’”Os Maias”, poderia usar uma igual), o modo como se apoiava nela. Mas Oxford foi há uma eternidade. A sua vida de antropólogo, também. Embora o que aprendeu no trabalho de campo venha à tona, como a verdade e o azeite, nas circunstâncias mais inusitadas.

José Cutileiro, diplomata, tem um currículo espesso. Acompanhou de perto, tantas vezes no terreno, o pulsar da História das últimas décadas. É um eborense que se sente bem em Nova Iorque e em Bruxelas, onde vive (“é uma espécie de Nova Iorque dos pobres”). Por uma razão simples: “É que não há ninguém que seja de lá. Somos todos mais ou menos estrangeiros”. É um estrangeirado que nos ajuda a desenrolar e a compreender o mapa que esticamos sobre a mesa – e que parece no fio.

 

Já viu, mediou, trabalhou em muitos projectos europeus, conflitos, tratados, resoluções. Face a esta crise, ao que parece ser um beco sem saída, parece-lhe que ainda se vai a tempo de salvar a Europa?

Beco sem saída, não há. Há sempre saídas. Podem é ser más saídas. Tive alguma experiência, sobretudo de coisas jugoslavas, mas outras, também. Pelo facto de ser diplomata, de ter sido director-geral político no Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa, de ter sido secretário-geral de uma organização que era a única organização de defesa europeia na altura, tenho acompanhado muito as questões europeias. A Europa teve mais olhos que barriga.

 

Em que momento? A ambição era excessiva, desadequada?

Quando se introduziu o Euro, não era preciso. E depois, à parte dos países originais, houve outros que se lhes juntaram. Que se juntaram cheios de esperança.

Em 2006 quando Chipre entrou para o Euro, o então governador do Banco Central, Jean-Claude Trichet, disse que era uma óptima ideia porque uma economia pequena e aberta como a de Chipre ficaria muito mais protegida das turbulências financeiras internacionais se fizesse parte do Euro. Isto mostra a grande dificuldade de fazer previsões sobre estas matérias.

 

Trichet deve estar a engolir em seco neste momento.

O Trichet não é tonto nenhum, sabia muito daquilo que fazia.

A coisa mais forte que os europeus têm é o Mercado Único. Os seis países fundadores fizeram um tratado aduaneiro a partir do qual cresceu aquilo a que os ingleses chamam single market (o marché unique dos franceses), e que nos transforma, a todos os membros da União Europeia, numa potência comercial no mundo.

 

A valência é essencialmente comercial?

Hoje não somos uma potência militar nem uma potência política, mas somos uma potência comercial muito importante. O Mercado Único permite-nos a todos negociar como uma única entidade perante concorrências muito grandes de outros países.

 

Nomeadamente a China e os Estados Unidos.

E os BRIC’s . O que é importante saber é que o Mercado Único não está acabado. Na energia estamos longe de ter chegado a uma posição como essa. Estamos muito à mercê de quem nos vende energia.

 

Da Rússia.

O caso mais importante é o da Rússia, mas há outros.

A meu ver não era preciso para nada fazer o Euro. Quando se fez o Euro, tal como tinha acontecido noutros passos da construção europeia, uma vez aquilo lançado, os ajustes consistiriam numa maior coordenação fiscal entre os países.

 

Numa procura de convergência entre os países do norte e os países do sul?

Também, mas mais tecnicamente, até em aspectos financeiros da moeda. Do que não se lembraram, e que tem que se perceber, é que já não havia União Soviética.

Houve um grande político belga, durante a Segunda Guerra Mundial e a seguir, que foi mais tarde primeiro-ministro da Bélgica e secretário-geral da NATO, Paul Henri Spaak. Num artigo publicado em 1970, e depois nas suas memórias, diz que já se chamou o “pai da Europa” a muita gente. (Ele não fala dele, – embora já o tenham apontado.) Fala-se de Adenauer, a pensar no esforço feito pelos alemães e pelos franceses a seguir à guerra para se entenderem, com a criação da Comunidade do Carvão e do Aço. Fala-se de Schuman, que era francês, de De Gasperi, que era italiano. Spaak disse: “Não, o pai da Europa foi o Estaline”.

 

Porquê?

Se não houvesse o terror absoluto do Estaline, se não houvesse o perigo que ele representava daquele lado, não teria havido nem construção europeia nem NATO. As duas instituições que permitiram aos europeus atravessar estes 50 anos, desde a guerra até ao fim do século XX, com segurança e com prosperidade, foram o resultado disso.

Quando a Moeda Única é introduzida, a Alemanha está reunificada, a União Soviética colapsou. Deixámos de ter o perigo soviético, e passámos a ter uma Alemanha forte outra vez. A construção europeia foi feita sobre uma Alemanha de rastos.

 

Toda a Europa estava de rastos no pós-guerra.

Os outros não estavam em muito melhor estado. Nem os franceses nem os ingleses. Se não fossem os Estados Unidos e o plano Marshall não se tinham aguentado. Mas a Alemanha não contava, estava arrasada. Houve um ministro de Roosevelt que disse que a Alemanha devia ser completamente devolvida à agricultura, que não devia ter uma única indústria.

 

Sobretudo era preciso não lhe dar espaço para alimentar uma reserva militar.

Mas isso foi tomado em conta e beneficiou a Alemanha, também, porque não teve despesas militares e pôde gastar dinheiro de outra maneira. Por fim, em 1953, como o perigo soviético era o grande perigo, e a Alemanha era precisa para a defesa do ocidente, uma grande parte da dívida das duas guerras alemãs foi perdoada e foram determinadas melhores condições para o pagamento do resto. É uma coisa de que os alemães não se têm lembrado ultimamente quando se fala na Grécia, em Chipre ou em Portugal.

 

A Alemanha tem a memória curta? Mais recentemente, basta olhar para a reunificação das duas Alemanhas e para o valor que foi atribuído ao marco da Alemanha de Leste.

A reunificação alemã também custou aos parceiros [europeus], custou-nos a nós, portugueses, custou a toda a gente. Não sei que países têm a memória mais curta ou mais longa. Faz-me confusão que nesta altura ninguém lembre aos alemães isto tudo. Publicamente. Em privado acredito que haja muita conversa.

Uma das caricaturas mais correntes agora é que os do sul são uns caloteiros, e os do norte, vistos pelo sul, são uns proto-nazis.

 

Como é que se extremaram estas duas posições?

Porque com o dinheiro não se brinca [riso]. Isto é muito sério, está a atingir muita gente. E é evidente que há diferenças entre o norte e o sul. Pessoalmente sempre achei que há uma linha horizontal algures na Europa.

 

Continua a ser essencial, para entender a Europa, esta Europa, ler o que Max Weber escreveu sobre o protestantismo dos países do norte e o catolicismo dos países do sul? A fissura pode ser esta?

É evidente que isso se nota. É uma grande discussão de que nunca fui um protagonista. Li o que outros escreveram. O Max Weber faz-me imenso sentido. Por outro lado, não se esqueça que Veneza e outras repúblicas italianas foram grandes focos de capitalismo e não eram protestantes, e foi antes da Reforma. Não sei se é tão categórico e definitivo, mas é sedutor e convincente. Às vezes penso na ética protestante. Vivi na Suécia dois anos. Há uma espécie de tessitura de hipocrisia na sociedade, que é enorme, e que não existe aqui no sul.

 

Passa por quê, essa hipocrisia?

Voltando ao Weber: temos que mostrar que fomos salvos. Há a noção de que a aparência é muito importante. Quando se fazem coisas más tem de se fingir que se fazem coisas boas.

Retomo a sua pergunta: julgo que a Europa está numa fase muito complicada. O que em 1953 ajudou a tornar a vida na Alemanha menos dura, a integrar a Alemanha no processo europeu, foi o medo da Rússia soviética. Infelizmente agora não vejo de quem é que se possa ter medo.

 

Da China.

Estão longe.

 

Um medo da força económica da China, e não da força militar Evidentemente o mapa é outro, o cenário é outro.

Com certeza. E tem-se medo também de outras [potências]. A Índia vai ser uma coisa importante. Mas nada disto concentra os espíritos como concentrava um grande exército que podia de repente entrar por aquelas planícies adentro. Não temos muitos estímulos exteriores para nos corrigirmos.

 

Disse que o grande trunfo da Europa é ter um mercado comum. A ideia de Estado Social, de uma solidariedade que atravessa as sociedades e as nações, é uma marca identitária da Europa. É a falência deste princípio que nos faz sentir que a Europa está a desmoronar-se? É isto que está em causa, também?

O que dá a força à Europa é esse mercado. O Estado Social europeu é possível enquanto a sociedade for suficientemente próspera para poder pagá-lo (com uma grande concorrência de outras partes do mundo que torna a venda dos nossos produtos mais difícil).

Neste momento, com uma crise tão complicada à volta do Euro… O Euro é mais um pretexto. Não é o Euro. É a crise das dívidas soberanas. Nalguns países, as crises da banca. De tal maneira que quase todo o mundo está a sair da crise e a Europa é a que está a sair mais devagar, ou não começou a sair ainda. Esse modelo social europeu foi possível num clima de prosperidade, e em grande parte porque [a Europa] não tinha que se defender.

 

Como assim?

A paz foi mantida, durante muitos anos, durante a Guerra Fria, enquanto a União Soviética durou. Havia uma protecção nuclear americana que era dissuasiva, e despesas militares enormes que os europeus, na sua maioria, não fizeram. Uns países gastaram mais do que os outros, o Reino Unido e a França especialmente.

Uma das vantagens da NATO não foi só impedir um ataque russo, mas impedir-nos de andarmos à pancada uns com os outros. E agora não sei por quanto tempo continuaremos a não andar à pancada uns com os outros. Não sou capaz de prever praticamente nada.

Pode ser que isto tudo se arrume, ainda. Há uma grande quantidade de coisas que os europeus têm em comum e que continuam a funcionar. Bruxelas é 24 horas por dia, 365 dias por ano, 27 países a negociar sobre as mais variadas coisas. É um activo que não é fácil de destruir, mas tem-se feito o possível ultimamente [riso].

 

Não sabe quanto mais tempo vamos conseguir estar sem andar à pancada uns com os outros...

E disse-lhe também que não sei fazer previsões.

 

Têm surgido vozes nos últimos tempos a dizer que não é de excluir um cenário de guerra na Europa.

Com certeza que não. O Helmut Kohl (que não era um filósofo, tinha feito um bocado de História, era a formação dele, e que era um político de enorme capacidade), dizia duas coisas de que me lembro. “Nós [a geração dele] somos os últimos políticos que nos lembramos da guerra. Os que vierem a seguir, não. E não vai ser a mesma coisa”. Outra coisa que dizia é que se a União Europeia se escavacasse, era a guerra.

Assustamo-nos muito com as guerras hoje em dia porque nos lembramos das bombas atómicas. Mas pode-se fazer imensa coisa com fisgas, à paulada [riso].

 

Essa sugestão da fisga e da paulada parece uma caricatura, uma imagem paleolítica quando olhamos para os testes na Coreia do Norte, por exemplo. Ou para todo o arsenal militar das super potências. Por isso temos uma visão apocalíptica da guerra.

A Coreia: não sabemos se o homem é maluco e se aquilo tem, apesar de tudo, controlo, se é uma provocação que saberá ou não parar… Quando era pequeno tinha um automóvel de brinquedo, um Chucco, uma marca alemã, que se punha em cima de uma mesa, e que, quando chegava à borda da mesa, virava para dentro. Nunca caía. Não sei se o coreano tem um automóvel Chucco na barriga ou não. Mesmo um tipo visivelmente perturbado como era o Khadafi, a certa altura percebeu que não lhe servia de nada ter um arsenal nuclear. O que ele queria era fazer as pazes e esquecer aquilo.

 

Está a dizer que as armas atómicas têm, mais do que tudo, um efeito dissuasor.

Com certeza. E sabemos que a sério só foram usadas em Hiroshima e Nagasaki. Mas há muitas outras armas que não são nucleares, que não são químicas, que não são biológicas, e que matam que se farta. Canhões, metralhadoras, carros de assalto, navios. Coisas muito sofisticadas, modernas.

 

Ou não tão sofisticadas, e que também matam que se farta. Basta olhar para a Síria.

A Síria é uma história diferente. Ali usam o que têm, o que arranjam, o que lhes dão, o que conseguem comprar. Aquilo é um horror. Era um sistema muito duro e brutal, mas o que vai sair dali, para muita gente, vai ser pior. As forças [políticas e religiosas] estão divididas. Há um ingrediente fortíssimo de radicalismo islâmico. Essa gente normalmente está ali para salvar o mundo e ensinar a verdade. E depois há um tricô que nós, portugueses, não conhecemos, não temos. Vou contar-lhe uma história.

 

Conte.

A certa altura fui antropólogo e estava a fazer trabalho de campo. Vivia numa aldeia alentejana e comia numa taberna, numa salinha onde a senhora também tinha o correio. De vez em quando havia gente de fora. Turistas, que vinham ver a terra, que era bonita. E se isso acontecia, normalmente aos domingos, eu ia comer para a cozinha. Um dia chegaram dois casais, umas crianças, duas famílias do Porto. A Sra. Antónia, quando voltou para a cozinha, vinha furiosa, e disse assim: “Queriam pão de milho. Filhos da puta!”.

Quando estava na Jugoslávia [nos cenários de mediação para a paz], pensei nisto. Daqui à limpeza étnica vai um passo muito curto. Se uma pessoa que quer pão de milho – porque vem do norte de Portugal – é um filho da puta, com um bocadinho mais de mau jeito chega-se à pancada.

 

Odeia-se pela diferença.

Exactamente. Odeia-se pela diferença. A diferença implica uma rivalidade e ficamos em risco.

Voltando à Síria. A Síria é um buraco e é muito fácil dizer que é indecente, que não se tem feito nada. Se toda a gente quisesse fazer da mesma maneira, talvez já se tivesse feito qualquer coisa. Mas a Rússia não quer. E a Rússia tem uma importância enorme ali. Não vai mexer, não vai facilitar a vida.

 

A resolução da crise europeia pode passar por uma reconfiguração do mapa, pelo papel da Rússia nessa reconfiguração, nomeadamente no plano energético?

Não.

 

O que fizeram ao dinheiro russo no Chipre vai ter uma factura a médio prazo.

Não. O dinheiro russo no Chipre era relativamente pouco. Há muito mais dinheiro russo na Alemanha ou no Reino Unido. É dinheiro que já tinha sido lavado. Os russos não gostaram nada, mesmo. O que se está a fazer é terrível e é um péssimo precedente para as coisas europeias. (Agora dizem todos que não é um precedente. Há um personagem curioso, o ministro das Finanças holandês, que disse que era óptimo, que assim é que se iam resolver as coisas daqui para o futuro.)

A Rússia é um problema muito complicado. Está condenada a ser governada numa espécie de ditadura com um aparato democrático à roda. Em meados do século XVIII foi publicado em Amesterdão, em francês, o código russo da Imperatriz Catarina. Dizia que a Rússia é grande demais para ser governada por mais do que uma pessoa [riso]. Tem sido assim. A Rússia não atrai ninguém.

 

Quem é que pode fazer face à Alemanha?

Os dois únicos que podem fazer qualquer coisa são os britânicos e os franceses. Julgo que o poder actual britânico tem cedido muito ao que pensa que é o sentimento das pessoas (faz parte desta maré populista em que quem chefia acha que tem de seguir os outros e não lhes impor qualquer coisa). E isso é mau. Os ingleses, se estivessem um bocadinho mais engagé na Europa… Mas não estão. E não estão no Euro.

Se François Hollande fosse uma espécie de pequeno De Gaulle – que não é –, podia anunciar a Angela Merkel que cancelava a participação na próxima cimeira franco-alemã por achar que o eixo franco-alemão já não existe e que a Alemanha se está a comportar (nas questões financeiras) de uma maneira que ele não considera boas para a Europa e para a França. Se fizesse isto, os alemães apanhavam um enorme susto. A Europa foi o único sucedâneo que tiveram, durante muitos anos, de uma pátria. Eles não podiam ter uma pátria: estavam divididos. E tinham uma grande culpa associada.

 

Essa culpa está expiada?

Ultimamente, provavelmente, muita gente está convencida de que ela não existe. Mas acho que ainda estará por lá. Em relação aos outros [países] , a culpa estava quase expiada. Se, na Grécia, quando o Papandreou era primeiro-ministro e disse que afinal o défice era muito maior, se nessa altura fosse Khol [o chanceler], e Khol tivesse dito: “Essa dívida europeia é nossa”, tinha-se gasto muitíssimo menos dinheiro [do que se gastou nesta crise] e não se tinha chegado a este apuro.

 

Estamos a falar de líderes, da força e do desígnio desses líderes, nomeadamente de Merkel e de Hollande. De decisões políticas.

Pois. A Merkel é um líder considerável neste sentido. Consegue ser o político mais popular da Alemanha, a uma grande distância dos outros. E numa democracia um político quer ser reeleito. A ideia que se tem hoje na Alemanha, e que me dizem que está muito viva, das maldades e das imperfeições e das velhacarias dos povos do sul, foi-lhes em grande parte ensinada pelos seus próprios políticos.

Durante esta crise, Merkel teve uma linha muito curiosa: havia um problema qualquer e ela dizia que não; por fim dizia que sim, e quando dizia que sim, já custava muito mais dinheiro. E já havia aquilo que os espanhóis chamam de mala leche, um mau sentimento de uns países em relação aos outros.

 

A França: conta da mesma maneira?

A França de hoje é um país muito mais fraco do que era em relação a uma Alemanha dividida.

 

Isso acontece porque o Hollande é um líder fraco? Com Sarkozy, e se calhar era só pelo estilo histriónico de Sarkozy, parecia que a França tinha mais importância neste tabuleiro do que hoje tem.

Sarkozy resolveu que se ia colar à Merkel de alto a baixo, mas que o ia fazer mostrando-se um igual. E fez isso, de facto. Sarkozy era um personagem muito diferente de Hollande e a França ter-se-ia dado melhor se pudesse pôr os dois num shaker e fazer um personagem qualquer [risos]. Um “Hollandy”, um “Sarkollande”.

 

Hollande é uma decepção para si? Esperava mais dele?

Não, não esperava. É um homem inteligente. Nunca o conheci.

 

Ele era, há um ano, quando foi eleito, uma espécie de esperança da esquerda europeia – isto numa Europa que estava em quase todos os países a virar à direita.

A esquerda conseguiu manter uma certa importância política quando deixou de acreditar, ou pelo menos de dizer que acreditava, numa quantidade de patetices que durante muitas décadas funcionaram mas que hoje já não funcionam. A visão do mundo e da economia de uma grande parte da esquerda europeia é patética. Parece a Casa dos Estudantes do Império à solta.

 

Está a dizer que o Estado Social, que é uma das bandeiras da esquerda, e que é uma das marcas da construção europeia…

O Estado Social foi em grande parte uma consequência do sindicalismo. O sindicalismo foi a grande força da Europa não-comunista, da Europa Ocidental em que os comunistas não tomaram o poder.

 

Foi também uma necessidade do pós-guerra em que a Europa estava em escombros e era preciso acudir aos desvalidos.

O que acudiu aos desvalidos foi sobretudo o Plano Marshall.

Vou contar-lhe uma pequena história. Durante a Segunda Guerra Mundial foi embaixador britânico em Moscovo um homem que veio a ser ministro das Finanças do primeiro governo trabalhista, Sir Stafford Cripps. O Churchill perguntou uma vez ao Estaline o que é que ele tinha achado do Stafford Cripps. O Estaline disse: “Um homem encantador. Só tinha um problema: queria explicar-me a mim o que era o socialismo”. [risos] Eu acho que o socialismo era aquilo, e depois, aqui deste lado, havia o que se podia arranjar.

 

Considera, então, que é inexorável o fim do Estado Social na Europa?

Não. Mas vai ser mais calibrado. Hoje em Portugal uma pessoa vai à Caixa, ou tem uma destas protecções que existem; a quantidade de análises que se pedem quando uma pessoa está doente... Há uma despesa brutal que vem da Saúde que não vai poder ser mantida. Como é que se pode introduzir nisto um certo bom senso sem ao mesmo tempo parecer que se estão a favorecer algumas pessoas e não outras?

 

Alguma coisa pode mudar com as eleições na Alemanha? Ainda faltam muitos meses.

Faltam cada vez menos meses, qualquer dia estamos lá.

 

Daqui até Setembro, muita coisa pode acontecer na Europa, não?

A Europa não nos mantém distraídos, temos que dar por ela. Sabia-se que Chipre, tão pequenino, ia ser um problema, e foi o que foi. A Eslovénia talvez tenha um problema um dia destes. Outros países.

 

Itália continua sem formar governo.

Sempre achei que uma das grandes forças da Itália era o facto de o governo ser praticamente desnecessário. A Itália tinha péssimos políticos e óptimos fabricantes de roupa e de carros, de tudo.

O que se diz é que, [na Alemanha], havidas as eleições, vai-se organizar um governo, provavelmente uma grande coligação, que poderá tomar medidas mais eficazes para acudir às dificuldades no sul da Europa sem medo da opinião pública. O problema aqui é que as dificuldades do sul já começam a ser as da Alemanha. A Alemanha exporta um bocado para fora da União Europeia, mas o grosso da sua exportação é para dentro da União Europeia.

 

É do seu próprio interesse não abandonar estes pobres preguiçosos porque são eles que compram a sua indústria...

Exactamente.

 

Pode ser por aí, e não por nenhum outro bom sentimento, que revejam o seu comportamento?

Bom sentimento?, alguma vez? Nem eles nem nós, nem ninguém.

 

Estava a ser irónica.

A Alemanha é recuperada em grande parte pelo facto de ser um baluarte importante contra a União Soviética (a partir de 1953, oito anos depois do fim da guerra, percebe-se que é fundamental na luta de contenção da União Soviética). E aí a dívida começa a ser perdoada. Entretanto tinha havido o processo de construção europeu e a Alemanha era um dos fundadores, com a França. Depois, a Alemanha não é membro fundador da NATO, em 1949, mas entra pouco depois.

 

É um negociador, enquanto diplomata, para a paz. Quem é que sentaria à mesa para começar a negociar e a tratar da resolução da crise europeia?

A primeira coisa é que a “crise europeia” é um grande palavrão. Há muitas crises, todas juntas. Não me cabe fazer essa escolha. Temos regimes democráticos, é esta gente que vai ter que negociar e ver como é que se sai disto. E sobretudo ver como é que consegue repor a economia em marcha.

 

Como é que se põe a economia em marcha num clima de austeridade? Vamos olhar para a Espanha, para a Grécia, para Portugal.

Aí estou em discordância categórica [das políticas que têm sido seguidas]. A austeridade não é a melhor [política] para tirar estes países do buraco em que estão. Devia minorar-se a austeridade. É preciso pagar as dívidas e pôr as contas em ordem, mas não é preciso fazê-lo tão depressa. Há aquela história do cavalo inglês... Conhece-a?

 

Não.

Um inglês tinha um cavalo e estava a treinar o cavalo para viver sem comer. Quando o cavalo estava quase, quase habituado a viver sem comer, morreu.

 

Renegociar a dívida é imperativo, nomeadamente para Portugal? Uma renegociação da dívida parece-lhe necessária para não matar o cavalo?

As coisas estão todas ligadas umas com as outras, as pessoas que estão actualmente no governo e a Troika. Era preciso, com certeza, renegociar a dívida.

 

Como é que lhe parece Portugal, visto de fora? Temos estado a falar sobretudo da Europa, que é onde desde sempre se movimenta.

Não é desde sempre. Fui embaixador na África do Sul, em Moçambique. Portugal. A maneira mais sintética de mostrar a minha relação com Portugal está num verso do Alexandre O’Neill, num poema que se chama Feira Cabisbaixa, e que uso como citação do começo de um livro (que publiquei primeiro em Inglaterra e depois em Portugal). “Portugal, questão que eu tenho comigo mesmo”. Há dias em que I don’t like Portugal, but I always love Portugal. É assim.

 

O título genérico destas entrevistas é Ampola Miraculosa, título de um livro do Alexandre O’Neill. Escolhi-o para falar globalmente de Portugal porque há uma parte de nós que alimenta uma espera messiânica.

Imagine (era muito pior) se houvesse um tarado que convencesse toda a gente que ele é que sabe...

 

Esta questão consigo mesmo, que tem por ser português, traduz-se no essencial em quê? Quais são as constâncias?

Quer a visão do Alexandre [O’Neill], quer o aproveitamento dela que eu possa fazer, vinham muito de termos vivido – eu até aos 40 anos e ele até mais tarde – sob um regime com o qual não estávamos de acordo e pelo qual nos sentíamos oprimidos. Mal ou bem eu vivi no estrangeiro uma parte desses anos. E depois veio a democracia. Nessa altura, como dizia um amigo meu, o português foi destapado [riso]. E quando se tirou a tampa, não havia propriamente democratas impolutos – havia toda a gente.

Dos sítios onde vivi, não me lembro de ter estado com gente que eu preferisse que fosse a minha. Eles têm muitas vezes as mesmas complicações que nós temos, e outras vezes têm outras que não são necessariamente melhores que as nossas. Portugal não tem, nem uma maldição específica nem um messianismo ou uma bênção. Somos o povo menos eleito que há. Calhou-nos isto, e ainda bem.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2013