Os mais lidos em Agosto
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O blog (também) vai de férias. Em Setembro, volto a disponibilizar artigos novos. Obrigada pelas leituras e visitas.
Que o Verão seja assim, como num poema de Sophia:
"Os dias de verão vastos como um reino
Cintilantes de areia e maré lisa
Os quartos apuram seu fresco de penumbra
Irmão do lírio e da concha é nosso corpo..."
Os Gatos. Dito assim, toda a gente os conhece. Conhece sobretudo os sketches que passam na televisão, ou que estão disponíveis no YouTube para serem vistos e partilhados até à exaustão.
Mas quem são os Gatos? Ricardo Araújo Pereira, Zé Diogo Quintela, Miguel Góis, Tiago Dores. Ricardo sumariava a resposta assim: «São uns gajos que são amigos, normais, juntam-se numa casa, jogam e depois inventam umas merdas».
Eles não costumam dizer merda. Embora sejam, em privado, muito asneirentos. Eles não recorrem ao palavrão, à insinuação brejeira, ao facilitismo em que a comédia é pródiga, para ser líderes de audiências. Os Gatos fazem um humor inteligente que contagia o país há quatro anos. Desde há um ano e meio com grande, grande sucesso.
Nasceram num blog. Antes disso, conheceram-se na empresa de escrita criativa em que todos trabalhavam. Eu conheci-os nesse tempo. E parti para esta entrevista com grande expectativa: quem iria eu encontrar? Esses quatro, os mesmos, do tempo do anonimato? Ou os Gatos, célebres e ricos, com que o país delira? Já sabia, com segurança, que a conversa não podia ser séria... E sabia que a conversa seria séria entre gargalhadas...
Vamos começar pelo dono da casa e por uma coisa pomposa, a ver se não caímos já na bandalheira: ser humorista obriga a uma espécie de esquizofrenia bem resolvida? O Zé Diogo do Gato Fedorento diverge muito do Zé Diogo cá de casa?
ZDQ - O Zé Diogo cá de casa é muito preocupado com a limpeza, que estes gajos só fazem porcaria. Neste momento considero-me mais um humorista do que um argumentista. Não quer dizer que não vá fazer outras coisas. Posso ser agente imobiliário, que é uma aspiração antiga que o Tiago e eu temos.
Era suposto seres um beto agente imobiliário, que torce pelo Sporting aos fins-de-semana, que tira a curso na Universidade Católica?
ZDQ - Tudo ao lado! Não tenho curso nenhum. Tenho cadeiras feitas no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Era uma universidade muito reputada no tempo do fascismo, onde formavam os quadros ultramarinos. Fui para lá tirar Comunicação Social porque não entrei na Universidade Nova, naquilo que acho que foi um preconceito da Nova – porque é malta de esquerda, a da Nova, e não me quiseram lá.
Que fique sublinhado que és o tipo da direita, neste colectivo.
ZDQ - Também é certo que não estudei o suficiente para tirar boas notas... E torço pelo Sporting todos os dias. Não sabia o que queria ser, nem tenho essa coisa de terem feito planos para mim. A personagem do humorista não é muito diferente daquilo que eu sou. Uma das coisas boas de trabalharmos desta maneira é que não temos que ser muito diferentes do que somos na intimidade. Quando chegaste, nós estávamos a partilhar um momento íntimo...
Quando cheguei vocês estavam a jogar futebol num vídeo jogo!
TD - Estávamos a trabalhar e a partilhar um momento de intimidade.
O vosso encontro mudou a tua vida?
TD - Mudou um bocado, não sei se para melhor... Eu também não fazia ideia nenhuma do que queria fazer. Por isso tirei um curso de Economia. Que é um curso para quem não faz ideia do que quer fazer, mas tem esperança de vir a perceber e quer ir trabalhar para a banca. Comecei a trabalhar na área do marketing e da publicidade.
ZDQ - Onde te destacaste...
TD - Destaquei-me com enorme brilhantismo e tremendo sucesso!! Quando se pôs a hipótese de entrar no grupo [Gato Fedorento] tive de ponderar muito... Porque chegava a ganhar 50 contos por mês!
Gargalhada geral
A brincar que o digas, isto da massa não é nada despiciendo... E vocês, com tanto programa, tanto espectáculo, tanto anúncio, devem estar cheios de guito...
ZDQ - Como se vê pela minha casa... [que é modesta, nota a jornalista, ainda que no centro de Lisboa]
TD - Um problema que eu tenho é esta borbulhagem... São precisas pomadas que vêm lá de fora, e que são muito caras...
Voltamos ao ponto da partida: esta entrevista é aos personagens do Gato Fedorento, ou é ao Ricardo, ao Zé Diogo, ao Miguel e ao Tiago?
TD - Como somos maus actores, mesmo nas entrevistas não sabemos ser outra coisa que não nós próprios. Às vezes, as pessoas caem no erro de dizer: “Eles fazem-se de parvos, mas no fundo não são”.
MG - É tudo um plano...
RAP - Queremos desmentir isso...
TD - O que se vê no ar, sobretudo na parte de estúdio, é mesmo aquilo que somos. Gozamos uns com os outros.
ZDQ - É um bocado como os concorrentes do Big Brother: “Somos iguais a nós próprios, e ninguém é ninguém para julgar ninguém! Somos frontais”.
RAP - Há sempre um elemento do Big Brother que diz que quer ser ele próprio. Eles têm-se a si próprios em muito alta conta. Eu não tenho interesse nenhum em ser eu próprio. Gostava de ser... o Mozart!
Vamos assumir já que vos conheço há anos, antes de serem “os Gatos”. Posso atestar que sempre foram um pouco avariados da cabeça... Mas retomando a seriedade: depois de uma exposição tão desmesurada, imagino que seja preciso acertar o registo na relação com a senhora da mercearia. Ou com aqueles que vos conhecem há muitos anos e que, de repente, vos olham de maneira diferente porque têm sucesso.
MG - Ser humorista não significa necessariamente ser bem disposto.
ZDQ - Ser humorista não é uma condição, é uma ocupação.
TD - Não sinto que isto nos tenha forçado a mudar fosse o que fosse nas nossas vidas. Mas é verdade que há uma expectativa nas pessoas que nos interpelam ...
ZDQ - E uma defesa da nossa parte. Mas isso acontece com qualquer pessoa que esteja...
RAP - Na berrrrlinda!
MG - Sim, mas não muda. Pelo menos a ponto de se poder chamar a isso uma personagem.
Quer dizer que essa personagem não tomou conta das vossas vidas? Não é um génio à solta...
RAP – Não. Até porque nem tenho muitas hipóteses de conviver com a personagem pública. Se tenho dois, três amigos depois disto [sucesso], é muito. Quase todos são anteriores a isto.
TD - O meu mundo é o mesmo, basicamente.
RAP - Não nos protegemos a ponto de não dizer certas coisas, ou mostrar outras que não são verdadeiras. Há muita gente que diz que o Mourinho é um tipo muito afável. Mas a imagem pública não é bem essa... Ter uma personalidade de fachada até lhe dá jeito. É uma coisa óptima para intimidar os adversários! Provavelmente é mais inteligente fazer como ele faz: não revelar fraquezas em público, nem sequer se revelar a si próprio em público. Revela uma espécie de postiço. Como aquelas pessoas que têm o plástico em cima dos sofás para não o estragarem.
Também não revelam muito sobre a vossa vida...
RAP - Às vezes usamos [a nossa vida], nem que seja para gozarmos uns com os outros.
ZDQ - Nem o país tem dimensão para questões desse género: quem é essa pessoa, quem é, quem é? Não há indústria do espectáculo...
TD - E mesmo indústria... Somos o país do sector terciário!
Ainda voltas a ganhar 50 contitos por mês, se vais para o sector terciário!
TD - Exactamente.
ZDQ - Somos iguaizinhos ao que éramos há quatro anos. Só que com melhor pele!
RAP - O Zé Diogo tem menos 30 kg, mas o resto é igualzinho. Agora estamos mais tempo calados..., que era o tempo que preenchíamos a dizer: «Olha o badocha», e tal.
ZDQ - Acabou.
A minha questão base mantém-se: o que é que muda na vida de uma pessoa quando se é visto por milhões de espectadores todas as semanas.
RAP - Mudou muito pouco, realmente. Não vamos fazer a rábula do gajo que veio do bairro social... Eu vivo na mesma casa em que vivia antes de fazer o Gato Fedorento. Tenho o mesmo carro.
ZDQ - Eu mudei de carro para ter ar condicionado e CD.
O dinheiro não muda a vida de uma pessoa? Em coisas tão prosaicas quanto ir ao restaurante e não olhar para o lado direito da ementa...
RAP - O MacDonalds não é tão caro assim...
MG – E é preciso dizer que antes do Gato Fedorento já ganhávamos bem, os quatro. Só tivemos tempo e disponibilidade para fazer o Gato Fedorento porque tínhamos um bom ordenado – o que nos permitia investir criativamente no Gato Fedorento. Se tivéssemos que trabalhar das nove às seis, isto não teria sido possível. Se tivéssemos que esgaravatar para ganhar dinheiro, isto não teria sido possível.
TG - Nos primeiros dois anos do Gato Fedorento estávamos praticamente a pagar para trabalhar.
Nesse tempo, eram associados das Produções Fictícias e escreviam textos de humor para outros actores.
RAP - Para o Herman, sobretudo.
Há um lado irónico nisto... Fizeram mão a escrever para uma pessoa que admiravam, que vos formou enquanto humoristas. E depois o vosso sucesso ultrapassa o dele. Como se o criado superasse o criador.
RAP - Quem é o maior actor português? Quem é o maior cantor português? Quem é o maior escritor português? Como é óbvio que o Herman é o maior humorista português, está tudo interessado em que isso deixe de ser assim. Para haver coisas sobre que escrever nos jornais, provavelmente...
TD - O último livro do Saramago vendeu menos do que o livro da Carolina Salgado. Quem é o maior escritor português?
RAP - É uma boa comparação. Nós também alternamos... Entre a imprensa e a televisão.
Gargalhada geral
O Herman leva 30 anos de carreira, o Gato quatro. Pode acontecer que daqui a 30 anos ninguém se lembre da vossa existência? Que tenham sido apenas um epifenómeno?
RAP - Pode perfeitamente ser. Até daqui a 10 meses.
ZDQ - A minha mãe poderia dizer: tenho dois filhos e um epifenómeno!
Dizerem isso que agora disseram sobre a fama e o Herman parece uma coisa de rapazes bem-educados, muito polidos nas respostas...
RAP - É-se preso por ter cão e por não ter... Se disséssemos que somos muito superiores ao Herman [diz isto com voz de troglodita], as pessoas diriam: “Que rapazes desagradáveis...”. Mais vale dizer a verdade. Gostava de ter um euro por cada epifenómeno em relação ao qual as pessoas disseram: “Cá está!, este é o novo Herman”.
MG - Dá uns dez euros.
RAP - Se olhares para trás, nem te lembras. Houve uma altura em que uma pessoa que conhecemos bem andava 50 metros na rua e as pessoas paravam-no para pedir um autógrafo! Hoje, é voz off de um concurso na televisão.
Discutem sobre o tempo de duração do Gato Fedorento? Do que vai ser a vossa vida daqui a uns anos? Até que ponto isto é uma coisa estratégica? Ou continua a ser um nacional porreirismo que corre muito bem?
ZDQ - Também temos um lado de nacional porreirismo – é uma boa maneira de funcionarmos. Mas sempre tivemos uma visão estratégica do projecto, mesmo sem saber onde iríamos parar. Quando começámos na SIC Radical, não sabíamos onde íamos parar. Não supúnhamos que daí a quatro anos estaríamos no prime time da RTP1, domingo à noite.
MG - Preocupamo-nos em tomar boas decisões. Mas fazemos aquela coisa muito simples do futebol: é de jogo a jogo.
RAP - Recusámos alguns convites para fazer publicidade antes de aceitar o da PT. São decisões que vamos tomando à medida que as coisas vão aparecendo.
Porque recusaram publicidade? Estavam a guardar-se para coisinha melhor?
ZDQ - Decidimos que preferimos fazer campanhas de que gostemos, que possamos controlar mais ou menos, onde ganhemos bem, em oposição a fazer várias, com menos qualidade, e sem qualquer controlo criativo.
TD - O facto de sermos quatro ajuda a não meter tantas vezes a pata na poça. Como decidimos por consenso, é preciso haver três palermas... Nós os quatro fazemos uma boa cabeça.
Ricardo, tu tens o estigma de ser a cabeça, o líder do grupo...
RAP - [com voz enfatuada, e com gargalhadas dos outros] Bom, eu sou o líder natural, o Zé Diogo é a eminência parda, o Miguel é o chefe...
TD - E eu sou o gajo que diz: eminência parva!
RAP - Não há liderança. Nas decisões importantes, chegámos sempre a acordo.
ZDQ - Publicamente, o Ricardo tem a imagem mais forte do Gato.
RAP - [com voz profunda] Por ser o mais sensual...
Gargalhada da jornalista
RAP - Se tem assim tanta graça, é porque não é verdade... Assim não, Anabela!
Bem, não és o George Clooney!
RAP - Muitas vezes digo: “Não me apetece decidir, pensem vocês nisso”. O Tiago é o desgraçado que faz a ronda. Anda de telefone na mão a dizer: «Zé Diogo, o que é que achas disso? Mas o Miguel acha o contrário...».
TD - Não dá trabalho nenhum, este rapaz...
O facto de ganharem todos o mesmo é determinante para a facilidade com que chegam a um consenso e para a dinâmica do grupo?
TD - Nunca nos passou pela cabeça que pudesse ser de outra forma. Não seria o Gato Fedorento.
RAP - Seria a Ricardo’s Band.
O sucesso tem a vantagem de dar mais poder, permite escolher. Têm agora mais poder sobre o produto final?
TD - Sempre tivemos.
MG - Ou porque ninguém ligava nada e tínhamos que ser nós a resolver...
RAP - Ganhávamos tão pouco... Ao menos que a última palavra fosse nossa... E tivemos a sorte de a RTP dizer, quando nos convidou: “Vocês vêm para cá fazer exactamente o que faziam”.
ZDQ - Quer na SIC quer na RTP, sempre tivemos um controlo máximo sobre o produto criativo.
Mas sentem que têm Poder? Eu aqui atrás de palavras suculentas..., e eles a dizer que isto não é nada de mais...
MG - É só chegar a mais pessoas e dizer as coisas que se quer dizer – e isso, é verdade, é um grande poder. Há um clima que nos é útil: “Ah, esses rapazes, são irreverentes, deixem-nos lá dizerem o que querem”.
Mas agora os rapazes têm muita audiência. E poder...
MG - Mas deixam-nos na mesma à solta.
Vou pegar num caso concreto: fizeram uma campanha para a PT. Podiam fazer agora um sketch demolidor sobre o Henrique Granadeiro (presidente da empresa)?
TD - Há pessoas que acham que os problemas que temos com o Pinto da Costa, por exemplo, nos agradam. Não dá gozo nenhum estar envolvido em processo judiciais. O nosso objectivo não é maçar as pessoas; é fazer coisas com piada.
RAP - Mas é preciso dizer que há sempre um compromisso. Nós não somos jornalistas, não temos o dever da imparcialidade. Às vezes, há coisas que acontecem com amigos nossos, e a gente não faz. [riso seco]. Não tem a ver com dinheiro. No tempo em que estávamos na SIC seria possível fazer uma coisa demolidora sobre o Balsemão? Será possível na RTP fazer uma coisa demolidora sobre o Almerindo Marques? Há sempre um compromisso.
Há, pelo menos, constrangimentos. Uma auto-censura.
RAP - Mas se eu estiver na rua é a mesma coisa: há sempre um constrangimento. Hoje em dia posso fazer uma coisa demolidora sobre o Presidente da República e não correr risco nenhum. Mas se fizer uma coisa demolidora sobre o senhor Joaquim Oliveira é possível, e até provável, que não volte a trabalhar em nenhuma das empresas do grupo que ele detém. E uma vez que trabalho na comunicação social...
TD - Mas nunca aconteceu esta imposição ser externa. Nem a RTP ou a SIC alguma vez nos puseram um limite em relação ao que podemos fazer. Embora nós mesmos possamos fazer esta análise.
Como é que trabalham? Como é que chegam àquilo que as pessoas vêem? Funcionam muito concentrados, exactamente como estavam, quando aqui cheguei, não é verdade?...
RAP - Exactamente.
Portanto estão meia hora a descontrair...
MG - Meia hora? A nossa vida era tão fácil se fosse só meia hora...São pelos menos três horas.
ZDQ - Estamos sempre em contacto uns com os outros, por telefone, por mail, por pombos-correio, também. Começamos na terça-feira a falar sobre o que se está a passar nessa semana e trabalhamos nalgumas ideias.
TD - Escolhemos as piores ideias e avançamos.
ZDQ - Preparamo-nos para ir gravá-las na quinta, na sexta. E no sábado gravamos o programa.
A casa do Zé Diogo funciona um pouco como escritório?
ZDQ - Sim. É central, é perto da nossa produção, e vivo sozinho.
Os outros têm vidas de casados, com filhos?
MG - Eu tenho dois filhos.
TD - Eu não tenho filhos.
O Ricardo também tem filhas. E ensaiam? Aqui?
Gargalhada
TD - Chegou a haver um ensaio, uma vez.
ZDQ - Fazemos o chamado ensaio gravado. Quando a coisa não resulta, só percebemos na altura. A equipa sai, vai lanchar, dar uma volta, e nós ficamos a resolver. Mas não acontece muito.
Inseguranças, têm? Sobre o que fazem, e o talento individual.
MG - Tendo a achar que não existem humorista seguros [de si mesmos]. Porque há sempre um elemento de surpresa, não sabemos se vai resultar ou não...
RAP - Há sketches que têm imenso sucesso e nós não prevíamos que isso fosse acontecer. Aquele sketch e aquele sucesso.
ZDQ - Ficamos sempre espantados com os bordões. No meu grupo de amigos, as frases com que ficam nunca são as frases em que apostámos. Agora estão com aquela: “Estou aqui que pareço um cão”.
TD - O que é isso?
ZDQ - Uma coisa do sketch do atum.
TD - Já nem me lembrava. Muitas vezes as pessoas vêm falar-nos na rua e não nos lembramos.
Ainda sobre a insegurança...
ZDQ - A minha postura no humorismo é como meu pai me ensinou em relação ao mar da Ericeira: não confias em ninguém, se souberes nadar, nadas.
Os outros, em coro - Duraaão, pá, durão!
TD - Mas continua, pá, que é saudável, e não nos faz perder muito tempo a pensar nisso.
ZDQ - Trabalhamos bem em equipa. Às vezes posso estar inseguro, mas basta sentir neles confiança... Basta isso.
RAP - Mas há insegurança, e é a insegurança que leva isto para a frente.
TD - Isto não é nada por acaso. É porque trabalhámos bastante para que as coisas acontecessem assim.
Trabalhámos ou trabalhamos?
TD - Sempre trabalhámos e agora também.
RAP - Não rejeitamos os acasos de sorte...
TD - Claro, mas na base está a vontade que sempre tivemos, e temos, de fazer aquilo que estamos a fazer.
ZDQ - Tivemos sorte em ter-nos encontrado naquelas circunstâncias, naquela altura, e com vontade de fazer coisas. Eles já se conheciam os três, mas eu..., podia ter acertado na porta ao lado... E hoje em dia estava na Associação Portuguesa de Barmen, [cuja sede era em cima das Produções Fictícias].
MG - Não é por acaso no sentido de pensarmos que inventámos meia dúzia de parvoíces e, sabe-se lá porquê, isto correu bem. Foi por termos vontade de fazer o que fazemos e termos investido nisso. E felizmente houve depois um número grande de pessoas que concordaram.
Se isto não desse gozo, podiam desistir facilmente?
RAP - A ideia é desistir num futuro próximo.
TD - É difícil dizer: daqui a cinco anos não vamos estar a fazer nada.
RAP - Mas é muito provável.
TD - O nosso contrato com a RTP acaba em Dezembro... Portanto, para o ano não temos nada!
É previsível que o Gato Fedorento deixe de existir. Mas seguirão carreiras a solo, como na música?
RAP - Como actores?
TD - Como actores, em coisas que não sejamos nós a escrever, acho bastante improvável.
Parece que estamos a falar de uma banda, do fim dos Trovante. O João Gil vai para um lado e o Luís Represas para outro...
TD - E quem é fica com a Catarina Furtado?
RAP - Eu ofereço-me para ficar com a Catarina.
MG - Se nós acabarmos... Posso estar enganado, mas não acaba porque os quatro deixamos de ter coisas compatíveis. Acaba porque deixamos de ter vontade de fazer isto e porque este trabalho não se pode eternizar.
RAP - O Destak já disse que tinha havido porrada entre dois de nós e que isto ia acabar!
Passo da porrada para a família: isto é uma segunda família para vocês?
RAP - Não, isso seria horroroso! [com voz de gozo infantiloide] Quando as pessoas dizem: «Bem-vindo, isto é uma grande família», eu viro costas e vou-me embora. Porque conheço a minha família, não quero outra... Eu quero é um sítio onde se trabalhe.
ZDQ - Mas antes de mais somos um grupo de amigos, senão, isto não funciona.
Tu és o “Tio Zé Diogo” das filhas do Ricardo?
RAP - Chamam-lhe “Tio Fininho”... Que já foi uma alcunha mais irónica do que é hoje... É mesmo tudo muito desinteressante: são uns gajos que são amigos, normais, juntam-se numa casa, jogam e depois inventam umas merdas.
Já estão a olhar para o relógio? Querem é voltar para o trabalho, não é? Só jogam futebol no vídeo?
MG - O Zé Diogo agora está a pensar jogar râguebi...
RAP - Aqui para nós: enquanto for a classe alta a jogar aquele jogo, é óbvio que a gente vai levar na cabeça de toda a gente... Agora, a malta da Buraca, que já está habituada a fugir depressa com coisas na mão...
Gargalhada!
Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest
Esta Maria não vai com as outras. É fácil pensar nela como a florzinha, simpática, que ficou bem na lapela do Governo de António Guterres, na defesa de causas sociais. Mas quem a conhece de perto, sabe que é firme, hábil, determinada. É uma negociadora, que, sem ser impositiva, leva a água ao seu moinho.
Onde é que ela aprendeu a ser assim? Ou com quem é que ela aprendeu a ser assim?
Maria de Belém passa na rua e é “a Ministra da Saúde”. (As pessoas até lhe confidenciam coisas íntimas, confidencia ela…) Mas foi também, ainda que por um período curto, Ministra para a Igualdade. A causa da igualdade, a defesa dos direitos das mulheres, está-lhe no sangue. Não é pura retórica dizer isto, é saber da sua genealogia. Saibam onde nasceu, e percebam porque não podia ser de outra maneira.
O que é que a anima? Porque é que esta mulher, de natureza conciliadora, liderou a comissão de inquérito parlamentar ao Banco Português de Negócios? E de onde conhece ela aqueles protagonistas? E como se decidiu a sua ida para o primeiro governo de Guterres? E o que aprendeu ela em anos e anos de função pública?
Fala-se disso nas próximas páginas. Como do homem mais feio do Brasiu que a queria raptar! E de uma filha que ela fez idealista. E de uma mãe que não queria que as filhas fossem nem muito bonitas nem muito feias. E da separação do sonho e da realidade. Surpresas de Belém, Maria de.
Maria de Belém Roseira, deputada do PS, sabe que fez parte, que faz parte. “Tendo eu integrado muitos gabinetes de Governo, fui construtora da História recente e fui actriz nesse filme. No que foram as grandes transformações na Segurança Social, na legislação do Trabalho e na Saúde”.
Casada, tem uma filha. É realmente mignonne, e é do estilo que combina a joia com o lenço. Muito feminina, aprumada.
Conversa no seu gabinete na Assembleia. Uma sala não especialmente habitada. Nem parece que o PS é uma casa há anos e anos, e a Assembleia o posto de trabalho há mais de uma década. Há nela, muito vincado, um lado racional. De quem trabalha com a razão. A par do coração. Mas isso é outra oração, depois de um ponto final.
O que é que representou para si fazer 60 anos?
Não olho para a vida como [uma série de] etapas. Acho que é um contínuo. Faço balanços em função de um exercício ou de um mandato que tem uma determinada duração; em relação à minha vida pessoal e a seis décadas cumpridas, não faço. Tento viver na perspectiva de considerar que o meu percurso não é irrelevante. Acho que existo para fazer alguma coisa, e faço-o dentro dos meus padrões de comportamento.
Quando é que foi claro para si que tinha que ter um propósito?
Fui sempre educada para a responsabilidade. Se calhar foi isso que intersticialmente se inscreveu na minha maneira de ser e de pensar. Mesmo quando fiz a opção pelo curso de Direito para ser advogada. Acabei por ser capturada para uma intervenção nos assuntos sociais. Quando a pessoa intervém nesta área percebe que o que faz, ou não faz, tem uma implicação directa no bem-estar das pessoas. Talvez essa conjugação tenha aprofundado em mim o sentido de um rumo para a minha vida.
O que é que está antes disso?, o que é que dita as escolhas?
A minha adolescência passa-se nos anos 60, no contacto com a literatura do pós-guerra, com a noção de que a intervenção política é importante. Era muito jovem, mas tinha irmãos mais velhos. Vivia-se o tempo do Humberto Delgado. Depois Coimbra e a crise de 69. Nem toda a gente tinha acesso ao ensino superior; os que tinham, podiam ter uma participação mais forte na construção do mundo futuro. O 25 de Abril coincidiu com o começo das nossas carreiras profissionais e, por razões conjunturais, alguns de nós acabaram por ser chamados a desempenhar determinado tipo de funções. Eu tinha começado o estágio de advocacia, que não era remunerado. Na Primavera Marcelista houve uma grande abertura dos quadros do Estado para pessoas licenciadas; entro nessa altura na Direcção Geral da Providência, no Ministério do Trabalho.
Foi o seu primeiro trabalho?
Foi o primeiro trabalho pago. A seguir ao 25 de Abril, a Eng.ª Maria de Lurdes Pintasilgo foi para a Secretária de Estado da Segurança Social e precisaram de uma jurista. Foi um período de intervenção arrebatador, de grandes transformações sociais, sobretudo nsta área da Segurança Social, da Saúde, da Reabilitação, do Trabalho, onde me fui integrando.
Maria de Lurdes Pintasilgo foi uma mulher que marcou muito a sua geração.
Era uma personalidade muito forte, uma mulher com uma inteligência criadora fascinante, e era muito estruturada. Foi um privilégio ter trabalhado com ela. Mostrou-nos a importância de construir uma sociedade mais justa, mais igualitária. No Direito Constitucional, na capacidade de votar, no Direito Civil e no Direito Comercial, o papel das mulheres era de total subalternidade e dependência. Vinda de uma família marcada por mulheres muito fortes, autónomas, capazes e libertas, tudo isto, em mim, caía muito bem!
Conte uma história que tenha vivido com Maria de Lurdes Pintasilgo.
O 11 de Março foi muito marcante. Durante um Conselho de Ministros houve um tiroteio [risos]. A Maria de Lurdes Pintasilgo, já Ministra dos Assuntos Sociais, tinha saído de manhã para o Conselho de Ministros e regressou cedíssimo porque teria havido um golpe de Estado. Foi um momento de grande perturbação. Mais tarde soubemos o resultado: a saída do General Spínola e a tomada do poder pelo General Vasco Gonçalves. Foi como uma mudança de época, foi o início do PREC. Lembro-me muito bem desse episódio de grande susto, sobretudo de grande insegurança em relação ao futuro que aí vinha, depois de um passado recente tão marcante, tão cheio de significado.
Quem são as mulheres fortes e autónomas da sua família que a ensinaram a ser quem é?
A minha avó, que era interessantíssima, culta, autónoma.Tinha posses (de família) e escolheu fazer a vida que entendeu fazer. Era de uma família de produtores de vinho do Porto. A mãe dela tinha ficado viúva cedo e teve de assumir um papel de liderança. A minha mãe, embora não tivesse tirado nenhum curso superior – fez a educação das senhoras da época, tocar piano e falar francês – sempre defendeu em nós a aquisição de uma situação de independência financeira, para podermos verdadeiramente sermos nós próprias. Às vezes, isto nem são coisas explícitas, mas são orientações que se dão, conversas que se têm e que nos marcam mais do que pensámos na altura em que fomos espectadores ou participantes nessas cenas.
A sua avó pôde levar a vida que quis. Isto no norte e num quadro conservador. Além da independência financeira, o que é que a animava?
Era a personalidade muito forte. Optou por viver sozinha numa quinta que tinha em Trás-os-Montes e abandonou o Porto, já com filhas crescidas e criadas; o meu avô ficou no Porto. Isto numa altura difícil e com um revólver debaixo da travesseira. Quando íamos lá passar as férias, recebíamos umas encomendas com as coisas da cidade e tudo era repartido com os caseiros e pessoal da casa. É uma coisa que não acontecia no resto do país. Era um espírito de solidariedade nas necessidades e na repartição dos bens. Talvez isso tenha sido, indirectamente, importante para as minhas opções.
Estávamos a falar das mulheres autónomas da sua família.
Também tive duas tias que nunca casaram. Uma delas era farmacêutica, a mais velha. A outra, que era minha madrinha, fez um percurso à revelia da família e do que podia ser mais convencional. Era uma mulher muito alegre, tinha o curso do Conservatório de piano e era educadora de infância. Trabalharam sempre.
Porque é que a sua mãe não se licenciou, ao contrário das suas tias?
Porque queria tirar um curso com o qual o meu avô não concordava; e entendeu não fazer aquilo que ele queria. É este o ambiente das mulheres da minha família. Eu não poderia ter um feitio diferente daquele que tenho, porque é esta a minha matriz.
É a mais nova de cinco irmãos. Nunca houve dúvida de que ia tirar um curso superior?
Nunca. E sempre aquele que eu quisesse. O meu pai incentivava-nos a isso. Ainda hesitei entre Direito e Medicina. Não fui para Medicina porque exercia-se uma enorme pressão sobre as raparigas…, sobretudo nas aulas de Anatomia, [risos], e achei que era melhor não me meter nisso.
Era o pudor de ver um corpo?
Não. Assustavam-nos com os cadáveres, com partes de cadáveres que metiam no bolso das batas. Ao mesmo tempo que era muito afirmativa em termos de personalidade, também era muito mimada por ser a mais nova e por ser protegida pelo meu pai. Tínhamos uma relação fortíssima. E nessa altura, era a época da importância do Direito como construtor da justiça.
Em Coimbra, viveu a crise académica de 69.
Participei com algum distanciamento, porque tive sempre a noção de que as multidões são manobradas. Um bocadinho “Maria vai com as outras”. Eu gosto de comandar a maneira como sou senhora de mim, das minha atitudes e dos meus comportamentos. Fiz greve, participei em assembleias-gerais, mas nunca me aproximei das classes dirigentes, nem pretendi ter um papel nesse movimento. Todos os movimentos estavam ligados a partidos políticos. Nunca senti necessidade de me enfeudar. O enfeudamento retira-nos um bocadinho a nossa liberdade, e sempre tive muita preocupação com isso.
A preocupação, era porque isso estivesse ameaçado? Havia esse fantasma?
Multidões são sempre cenário. Ser uma peça de um cenário construído por outros pode ir contra aquilo que nós achamos em determinado momento. Porventura não estaria ainda preparada. Quando se é peão não se influencia: é-se mandado. Poderá perguntar-me porque é que agora estou inserida num partido político; porque hoje posso ter voz e posso tentar influenciar. É muito importante o processo de crescimento e o processo de demarcação da nossa individualidade.
O seu pai estava envolvido politicamente?
Não, não estava.
O que é que representou uma ruptura na sua vida, nesses anos? A ida para Coimbra, estar por sua conta?
Foi um processo muito doloroso. Deixava de estar no meu ambiente, com uns pais que não eram nada castradores do ponto de vista da educação; tentavam incutir-nos princípios, mas os actos eram da nossa responsabilidade. Um ambiente muito aberto, onde se conversava sobre tudo, onde podíamos fazer tudo. E vou cair em Coimbra, em 1966, num meio fechado, conservador. Fui para um lar com normas asfixiadoras. Nunca tinha estado em nenhum colégio interno; só lá estive dois anos, depois fui para um apartamento com mais três ou quatro colegas. Senti desconforto e saudades de casa.
E era um ambiente masculino.
No meu curso, fundamentalmente. Havia 95 por cento de pessoas muito conservadoras e 5 por cento completamente avant garde. De qualquer forma, tinha sido importante cortar aquele cordão umbilical – era preciso assumir a minha personalidade – e isso foi extraordinariamente robustecedor. Lembro-me até de pensar: filha minha que chegue aos 17 anos, tem de ir para fora de casa para conseguir afirmar-se. Depois, a minha filha não quis sair de casa quando chegou a altura! [risos]
Com que idade é que casou?
A primeira vez, tinha 24 anos.
O casamento, numa altura em que as mulheres precisavam da autorização ao marido para se deslocar ao estrangeiro, era olhado como uma ameaça à sua individualidade?
Não. Nunca casaria com uma pessoa que tivesse isso como regras de vida. Em minha casa nunca tinha assistido a isso, era só o que faltava! Na altura, o casamento também significava alguma emancipação. Conseguíamos a nossa independência através de um ordenado e depois casávamos para fazer a vida que entendíamos fazer.
A trave essencial sobre a qual assenta a sua vida, a seguir, e que conduz à pessoa que hoje conhecemos, é o trabalho.
Sim. Tendo eu integrado muitos gabinetes de Governo, fui construtora da História recente e fui actriz nesse filme. No que foram as grandes transformações na Segurança Social, na legislação do Trabalho e na Saúde. Lembro-me de diplomas que fiz no tempo do Governo da Eng.ª Maria de Lurdes Pintasilgo, em 79, que se mantiveram até ao Código de Trabalho de Bagão Félix. Foram redigidos por mim como jurista.
Sente que participou.
Que construí, que fui obreira.
Esse percurso é indissociável de ter poder, da ambição. Quando é que foi claro para si que tinha poder e que tinha ambição?
Não concordo consigo. Nunca tive projectos de poder nem de ambição. Talvez erradamente. Podia ter tido um percurso muito diferente daquele que tive. Por exemplo, fui convidada para ser directora-geral aos 36 anos de idade e não aceitei.
Porque é que não aceitou?
O convite veio na sequência do Governo de Maldonado Gonelha e nunca quis ter nomeações partidárias da área em que me inscrevia. Sempre preferi ser nomeada por ministros que não eram da minha cor. Isso significava que reconheciam que eu era competente. Sempre tive muito escrúpulo nisso. E acho que não faz mal nenhum às pessoas estarem em determinados lugares com alguma maturidade. Penso que se usa e abusa de atirar para a frente pessoas que podem ser inteligentíssimas e ter carreiras brilhantes no domínio académico, mas a quem falta a experiência da vida. A conjugação das duas coisas é essencial.
Estávamos no poder e na ambição.
Tive uma inscrição num partido político que não foi feita para entrar numa carreira. No meu tempo, tínhamos carreiras autónomas, profissões que eram exercidas independentemente da militância partidária. Militância no sentido de contribuir com as nossas ideias. Nunca numa perspectiva de carreira pessoal. Se o tivesse sido, podia ter chegado mais cedo a determinados lugares. Nunca tive essa vontade. Como nunca tive a ambição de ser Ministra da Saúde. Acabo por integrar o Governo porque o Primeiro-Ministro me pressionou muito nesse sentido. Considerou que eu tinha as características adequadas para esse lugar. Mas houve uma grande resistência da minha parte.
Porquê?
Primeiro porque, embora conviva bem com a visibilidade, não a procuro. E depois porque acho que posso fazer muita coisa independentemente do palco onde estou. O que me interessa não é o palco, é a realização.
De onde é que vem a relação com António Guterres?
É uma relação pessoal. Ele fazia parte do grupo de amigos mais chegados, e também era amiga da mulher dele, que era médica e que tinha grande apreço pela maneira como eu dirigia a área da Saúde. Antes de ir para o Governo, além de ser vice-Provedora da Misericórdia de Lisboa, com os pelouros da Saúde e da Acção Social, nomeada por Leonor Beleza, era administradora-delegada do IPO.
A relação com Guterres e com esse grupo tem alguma coisa que ver com o catolicismo?
Não.
Não sei se é católica e se isso tem uma dimensão importante na sua vida.
Sou profundamente cristã. Acredito na mensagem de Cristo, não só como religião mas como filosofia. É uma das grandes revoluções da Humanidade.
Consegue reconstituir esse momento em que António Guterres a convidou pela primeira vez? O que é que pensou?
Pensei que não queria [risos]. A pasta da Saúde é extraordinariamente exigente. Aquele Ministério não era uma prioridade política. As prioridades eram a Educação e a luta contra a pobreza. Conheço suficientemente a matéria para ter a noção de que o combate à pobreza e a Educação são armas fundamentais para ter bons resultados em Saúde; mas aquilo em que invisto hoje vai ter significado e expressão 20 anos depois.
O que politicamente…
O que politicamente não rende, do ponto de vista da análise. Por outro lado, quando um homem é convidado para um lugar, discute os meios que vai ter para levar a cabo as tarefas que lhe são acometidas; normalmente, a uma mulher não se dão meios. As mulheres, para o exercício do poder, são confrontadas com a sua capacidade de se sacrificarem [risos].
Era assim no seu tempo? Ainda é assim?
Não sei como é com as actuais ministras, mas comigo foi assim e sei que é normalmente assim.
Que argumento é que Guterres usou para a convencer?
Por acaso não foi ele que me convenceu, foi mais a mulher. E foi a pressão familiar. Eu gostava muito de estar no Instituto Português de Oncologia. A oncologia é uma doença de tal forma traumática que a pessoa sente que todas as decisões que toma se repercutem imediatamente na resolução de um problema gravíssimo. O estar num ministério implicava uma enorme utilização de energia que nem sempre se traduzia em resultados concretos, palpáveis. Tinha estabelecido uma relação muito forte com a casa e a casa comigo, e custava-me cortá-la. Tive duas grandes lições de vida, bastante mais do que a da política: a Misericórdia de Lisboa e o IPO. Ajudam-nos a perceber o que é verdadeiramente importante. Por isso é que aquela história do poder e da ambição não me dizem nada.
Quando falei de poder e ambição não estava a falar disso como um projecto em si. Mas é inequívoco que os cargos que teve são cargos de poder.
Para mim sempre foram cargos de poder/dever. Aquilo que achava é que podia dar um apoio ao então Primeiro-Ministro na área da Saúde não deixando o IPO. A minha filha disse-me que devia aceitar; perguntei-lhe se já tinha percebido que ia ficar sem mãe, e ela respondeu que não se importava, que era bom para as outras pessoas.
Que idade é que ela tinha nessa altura?
Tinha dez anos. Se calhar a culpa é minha, que a pus um bocadinho idealista... Acabei por aceitar com a noção exacta da tarefa ciclópica que tinha, embora também tivesse a noção de que conhecia o ministério por dentro e por fora para poder, com a minha passagem, marcar alterações importantes.
Por exemplo.
O primeiro hospital-empresa, que nasceu nessa altura. A gestão integrada de cuidados primários e diferenciados. A adopção de modelos inovadores de remuneração associados ao desempenho. As unidades de saúde familiares. E sempre considerei que, apesar da conjuntura histórica que deu origem à criação do Ministério da Saúde separado do da Segurança Social, é indispensável que os dois ministérios se articulem na sua intervenção. Como tinha uma óptima relação com o então Ministro Ferro Rodrigues, trabalhámos nisso. Datam daí todas as alterações que acabaram por ser abraçadas no programa do Governo seguinte.
Essas são as coisas de que se orgulha da sua passagem pelo Ministério?
Não só isso. A questão da contratualização. A estrutura perceber que a recursos têm de corresponder resultados. Definir uma estratégia de Saúde, definir melhores resultados, e pôr todos os instrumentos em coerência com esses objectivos estratégicos (a política de recursos humanos, de investimento, a afectação de todos os recursos à construção de um determinado objectivo).
A sua resistência em aceitar teve que ver, em algum momento, com o medo de não ser capaz?
Não. O Ministério da Saúde implicava, para além de muito trabalho – mas sempre trabalhei muito –, uma grande pressão mediática. A visibilidade faz-nos perder autonomia pessoal. Isso é desconfortável.
No fundo, estou a perguntar se nunca foi insegura em relação a si e àquilo de que era capaz.
Não, nunca fui insegura.
O que é que aconteceu na sua vida para não ser insegura? Que provas foi dando a si mesma de que era capaz?
Sou muito firme, mas não sou impositiva. Respeito muito as opiniões dos outros, mas as minhas são muito fortes. Gosto de convencer os outros da bondade das minhas opiniões. Ser Ministro é sobretudo ser um diplomata, um negociador, e sempre me mexi muito bem nesses domínios porque não sou agressiva, não sou inflexível. Mas sou capaz de fazer com que pessoas com visões diferentes acabem por encontrar uma base comum de entendimento. Isso eu gosto muito de fazer e acho que sou capaz de fazer.
É o seu grande talento, ser uma diplomata e uma negociadora?
Acho que é sobretudo demonstrar que sou coerente. Isso permitiu-me adquirir respeitabilidade. As pessoas sabem que o meu discurso não é incoerente com aquilo que verdadeiramente penso, que não estou a fazer teatro.
Que não está a fazer jogo político?
Não. E não estou a tentar convencer os outros de uma coisa em que não acredito. Penso que há alguma genuinidade no meu comportamento, que é interpretável pelas pessoas. Funciono numa química de relacionamento em que busco a confiança dos outros, e tenho-a conquistado, mesmo daqueles que pensam de uma maneira diferente da minha.
Sentiu isso, mais especificamente, no caso da comissão de inquérito ao BPN?
As outras pessoas é que são as grandes juízas da maneira como aquilo correu. Quando o Dr. Alberto Martins me convida para presidir a essa comissão, disse-lhe que presidiria se fosse à minha maneira, e isso foi aceite.
O que é à sua maneira?
É dar um tratamento adequado aos vários partidos políticos, permitir-lhes que eles exerçam a sua função, apesar de o Partido Socialista ter uma maioria absoluta. Houve um grande equilíbrio na gestão dos poderes de cada um dos partidos políticos. A Assembleia da República é um órgão de soberania, e como tal tem que se impor pela qualidade da acção que exerce. Essa qualidade da acção também é forte no domínio da acção fiscalizadora. Cada partido político exerce essa acção consoante entende, mas têm de ter essa oportunidade. E depois temos de ter um comportamento em que as pessoas se revejam; sendo as sessões públicas, é preciso que as pessoas ganhem apreço pela maneira como a AR se comporta. Penso que conseguimos passar essa imagem.
Passou a dar-se com pessoas mais da área financeira nesse período? A área de onde provém é a dos assuntos sociais.
Sim, mas já conhecia a maioria dos banqueiros que aqui vêm. O meu marido foi administrador da banca [risos]. Conhecia as pessoas que eram das relações do meu marido. Eu própria estive no exercício de funções em que tinha uma fortíssima relação com as pessoas desse sector. As coisas não são estanques. Algumas tinham trabalhado no mesmo espaço que eu.
Pode concretizar?
O Dr. Rui Machete, conheci-o quando foi Ministro dos Assuntos Sociais em 1975/6; eu estava no gabinete do Secretário de Estado da Segurança Social. O Dr. Dias Loureiro foi aqui deputado connosco. O Dr. Karim Vakil conheço-o há imensos anos, ele era do banco Efisa; o irmão dele, aliás, era médico no IPO. Tirando o Dr. Oliveira e Costa e as pessoas mais directamente ligadas ao BPN, que eu não conhecia, muitas das que vieram a ser ouvidas eram do meu conhecimento pessoal.
E não era estranho encontrá-las aqui, na Assembleia, em circunstâncias completamente diferentes?
Perguntou-me há bocado o que é ter 60 anos: é ter muitos anos de vida e muita experiência numa vida polifacetada. Não há nenhum domínio onde não esteja à vontade com os protagonistas portugueses. Estou na cena política há trinta e muitos anos, acabo por conhecer as pessoas todas.
Aprendeu a lidar com esta sobreposição de palcos?
Sim, não tem problema nenhum. Faz parte da minha vida, é o espaço em que me sinto mais à vontade.
Vamos voltar atrás. Nunca pensou em seguir uma carreira política como forma de, verdadeiramente, fazer as coisas que queria fazer?
Fazer coisas não significa fazê-las apenas na esfera política. Posso ser uma boa profissional em qualquer domínio. Tendo uma relação tão forte com a coisa pública, faço política no pressuposto de que estou numa missão nacional, não partidária, sem prejuízo do jogo político-partidário, que também conheço e no qual participo. Todos acabamos por estar num espaço muito politizado, mas coloco sempre à frente dos interesses político-partidários o interesse nacional. É a minha formatação. Não só porque estive muitas vezes em governos, mas porque toda a minha formação e sensibilização foram nesse sentido.
Entrou para o PS relativamente cedo. Nunca se desencantou?
Os partidos políticos têm momentos em que nos sentimos melhor ou pior. Mas como tenho a minha voz autónoma nunca deixei de assumir em cada momento as posições que entendi na vida interna partidária. Como é público e notório.
A sua vida fez-se quase sempre em gabinetes, apesar de haver uma grande relação com o terreno. Já disse que lê bastante. Alguma vez pensou que as vidas grandiosas que lia nos romances não coincidiam com a sua, razoavelmente certinha e arrumada?
[risos] Não, tenho uma noção muito clara do que é o sonho e do que é a realidade. A ficção é extraordinária para nos libertarmos, mas isso não quer dizer que perca os pés na terra. Não me deixo encantar nem seduzir por coisas inconcretizáveis.
Porque é que são inconcretizáveis?
São inconcretizáveis em função da conjuntura, ou até porque a mim não me fazem feliz. O meu quadro de prioridades está muito claro na minha cabeça: primeiro que tudo a família e o equilíbrio familiar, a saúde e a boa saúde das pessoas que me são próximas; depois, ter a cabeça no lugar e ser uma pessoa que não faz má figura naquilo que faz e que tem expressão pública.
Há alguma coisa que a desarrume? Os livros são uma possibilidade de nos desarrumarmos.
Na minha vida de trabalho sou muito desarrumada, mas sei onde está tudo na minha desarrumação. Sou é muito contida. Sou muito racional, mas caso bem a minha componente de sonho, a componente imaterial, e a real. Estou bem comigo mesma, gosto de mim como sou e não pretendo ser outra coisa diferente.
É muito pequenina; quando começou a crescer, na adolescência, nem nessa altura se desarrumou, se fracturou?
Se gostava de ter sido mais alta?, com certeza que gostava! Mas isso nunca constituiu um drama. Era muito pequenina, mas era equilibrada do ponto de vista da minha imagem. Sempre fui muito mimada precisamente porque era pequenina. Mesmo entre as minhas colegas, no liceu, era apaparicada. Sou muito prática, dou a volta. Por causa da minha capacidade de relativizar as coisas, não transformo num problema aquilo que verdadeiramente não o é. A minha mãe dizia-nos que éramos como ela gostaria: nem muito bonitas nem muito feias. Convivi com pessoas lindíssimas [para quem a beleza foi] factor de infelicidade. Sempre convivi bem com esta minha anormalidade em termos de tamanho.
Nem na adolescência, ou quando começou a trabalhar, pensou que tinha que se afirmar de outra maneira – ser encantadora, competentíssima, extraordinária – para deslocar o centro da atenção para aí?
Nunca senti nenhuma insuficiência. As mulheres medem esse seu desvalor na capacidade de atrair o sexo oposto; e sempre tive tantos pretendentes [risos], que não podia ser uma pessoa complexada!Havia um colega meu brasileiro, em Coimbra, que tinha uma paixão enorme por mim e que ameaçava raptar-me! Ele apresentava-se como o homem mais feio do “Brasiu”, parece que era riquíssimo, tinha avião privado e tudo. Eu achava que era verdade!, andei uns tempos aflita…
Não lhe aconteceu desejar uma coisa dessas, que a loucura lhe batesse à porta?
Podia ser interessante, mas nunca tive esse desejo de aventura. Isso seria interessante para a sociedade de hoje em dia. O Portugal de há 40 anos atrás não dava para esses arrojos. Esses arrojos partiam de pessoas muito desequilibradas e desinseridas. Eu nunca fui desequilibrada nem desinserida.
O exercício do poder fez de si uma pessoa diferente?
Percebi cedo que, no âmbito da política e dos lugares de poder, as pessoas se relacionam connosco enquanto titular do lugar. Vi algumas pessoas fazerem muito tristes figuras quando tomavam posse… Transmutavam-se. Não percebiam que os rapapés que lhes faziam eram dirigidos não a si mas ao lugar. Pensei sempre que os subservientes são pessoas de quem devemos fugir e que estarmos com determinada farda é efémero e passageiro. Quando tomei posse como Ministra da Saúde houve algumas regras que imprimi a mim própria e às pessoas que trabalhavam comigo: ninguém me tratava por Ministra, a não ser que estivesse numa situação oficial. E tanto quanto possível continuaria a fazer a minha vida, ia às compras ao supermercado; para não sentir nenhuma diferença entre o exercício do lugar e a saída dele. Fui vacinada cedo contra o ridículo.
Como é que foi vacinada?
Percebi e presenciei. Numa altura de grande rotação, como foram os governos provisórios, as pessoas de manhã eram ministras e às três da tarde já não eram; e as pessoas que de manhã as tinham conhecido, à tarde faziam de conta que não as conheciam. Do ponto de vista da auto-estima, é terrível. Gosto que as pessoas, respeitosamente, me digam o que está mal. Não acredito numa pessoa que vem ter comigo e que me bajula – livro-me dela imediatamente.
Nunca ficou deslumbrada com nada?
Não me deslumbro. Deslumbro-me com coisas pequeninas, que não têm importância para a maioria das pessoas.
Parece muito equilibrada. É realmente uma fortaleza? Para quem é que ficam os seus momentos de fragilidade?
Os momentos de fragilidade são sempre os momentos familiares, doença ou risco de doença na família. Mais nada. O resto resolve-se.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010
E agora, António? Agora, ele tem 71 anos e já plantou árvores e fez filhos e escreveu um livro. Agora ele sabe que só fica enquanto dele tiverem memória. Que tem raízes e que deixa descendentes. As coisas que são do senso comum.
O incomum: a barba que fazia ao pai, carinhosamente, nas últimas semanas de vida, com a intenção de pedir-lhe perdão. Dizer que o seu cadastro social não é impoluto. Fazer da coragem uma arma e saber que, ainda assim, não é um suicida e que mede o alcance das palavras. Descrever o deserto, as mãos sujas da gasolina. Transportar-nos para Londres e para a perna de galinha que metia no forno. A sobremesa de Natal de um menino pobre. O primeiro licenciado da família. O que não ligou nada aos filhos porque estava a pavonear o cargo e a competência. O que faz mea culpa.
Para já, é ele que faz a barba. Na esperança de que um dia o filho lha faça a ele.
António de Almeida, chairman da EDP. Primeiro, encontrámo-nos num almoço. Ele queria ser simpático e perceber ao que eu ia. A seguir, foi a entrevista propriamente dita numa manhã de confissões. Leiam-nas a seguir.
Disse-me que o período mais feliz da sua vida foi aquele em que viveu em Londres. Porquê?
Foram cinco anos em que tive uma grande tranquilidade pessoal e profissional. Seguiu-se a um período de grande agitação da EDP e a uma doença grave que debelei.
Descreva-me a sua vida lá.
Tive tempo para gozar uma cidade encantadora. Caminhar, visitar, apreciar a arquitectura. Cumpria, durante a semana, este regime: levantava-me cedo, quando estava sozinho preparava eu o pequeno-almoço e apanhava o metropolitano para a City.
Andar de metro em Londres não é o mesmo que em Lisboa. Mesmo assim, como é que foi voltar a usar transportes públicos depois de anos a andar de motorista?
Foi uma experiência útil. No princípio, alguma dificuldade com os apertos – queria entrar no metropolitano e não conseguia porque já estava cheio. Depois aprendi que horários eram os mais adequados. Habituei-me à leitura durante o trajecto, que era relativamente longo.
Esperar-se-ia que um administrador de um banco, mesmo em Londres, onde toda a gente usa o metro, optasse por um motorista… Porque é que ia trabalhar de metro?
Em Londres, a cultura do ponto de vista empresarial é radicalmente diferente da de Portugal. No BERD, só o presidente tinha automóvel. Todos os administradores usavam metropolitano; os que queriam usar viatura própria e estacionavam no parque do banco, pagavam um fee mensal elevadíssimo.
No outro dia, li num jornal inglês que a mulher do Príncipe Carlos, Camila, foi para o aeroporto de comboio, no Gatwick Express. E depois li noutro que o Tony Blair não tinha dinheiro para pagar o bilhete do Heathrow Express. Cá, seria bizarro encontrar a mulher do presidente ou o antigo primeiro-ministro nos transportes públicos. Mas o que quero é saber o que significou para si, um homem de origens humildes, voltar ao anonimato.
Tive motorista pela primeira vez quando fui administrador do Instituto de Crédito de Moçambique. Tinha 34 anos. Era aquela fase da vida em que ficamos deslumbrados por ser administradores de um banco e temos carro com motorista e somos convidados para os melhores restaurantes e viajamos em primeira classe. Não seria honesto consigo se não dissesse que esse deslumbramento assalta todos os jovens quadros quando atingem estes lugares.
Teve sempre motorista, então.
Sim. Quebrei esse ciclo em 1991 quando fui despedido da Presidência da União de Bancos Portugueses. Até 96, tinha o meu automóvel particular, era eu que punha ar nos pneus, que o lavava. Aprendi a saber quanto custam os combustíveis, quanto custa sujar as mãos na bomba da gasolina. Voltei um pouco às minhas origens. Isso ajudou-me, depois, em Londres, a andar de autocarro e metropolitano.
Voltemos a Londres, ao homem que procura as melhores carruagens do metro para ler.
Aprendi o gozo da solidão e do silêncio. Aproveitei bem os fins-de-semana: calçava as sapatilhas, vestia o fato de treino e andava km a pé. No Verão, dormi umas boas sonecas debaixo das árvores do Hyde Park. Tive uma vida simples. Fazia compras no [supermercado] Waitrose.
Há quanto tempo não sabia o preço dos iogurtes? Há quanto tempo não sabia o que tinha na despensa ou no frigorífico?
Se calhar, nunca. Aprendi em Londres o preço das coisas, a fazer saladas, a meter uma perna de galinha no micro-ondas. Aprendi a ir à lavandaria, sei tratar da minha roupa.
É um homem rico, já na altura era um homem rico. Podia com certeza levar uma governanta daqui, contratar um butler lá…
Sabe, há uma ideia um pouco errada do que era a remuneração de um administrador do BERD…
Quando digo que é rico, estou a pensar no que está para trás, nas indemnizações.
Só tive indemnização quando saí da EDP e apliquei-a totalmente na compra do apartamento onde vivo. No BERD ganhava 150 mil euros por ano. Em moeda antiga, ganhava 2500 contos por mês, 12 meses, e pagava 4000 euros por mês de renda de casa.
Nesse tempo, ficaram famosas as crónicas que escrevia para jornais portuguesas – London Smiles. Mais que tudo, pareciam um acerto de contas com o país…
Numa primeira fase, as crónicas foram um acerto de contas. Apesar de reconhecer que o governo foi simpático em ter-me convidado para esta experiência, tive dificuldade em esconder que a maneira como saí da EDP foi traumática. Eu tinha feito a privatização da EDP – a primeira fase foi de grande sucesso. Fiz a operação debilitado – tinha um cancro e fazia tratamentos todos os dias muito penosos para me poder aguentar. Fui operado em Bruxelas, onde estive bastante tempo internado, e pouco depois de regressar o Governo começou a procurar uma pessoa para me substituiu.
Saiu com indemnização.
Saí, indemnizaram-me, convidaram-me para o BERD, não tenho razões de queixa. Mas a forma como saí, depois de uma operação de grande sucesso e de uma situação de saúde que era conhecida, deixou marcas. E nos primeiros artigos, acertei contas com esse tratamento que considerei inadequado. Acertei contas com pessoas que se portaram de maneira menos correcta. Mas eu também tenho, no meu passivo, atitudes que não foram as mais correctas…
É surpreendente que diga isso. Que nem sempre foi exemplar. O Nelson Rodrigues diz que todo o homem tem o seu momento de canalhice…
Tenho na minha vida atitudes das quais me orgulho e outras de que tenho vergonha – do ponto de vista pessoal, familiar, profissional. Se calhar, na altura, tentei encontrar desculpas para o que fiz; mas hoje, os anos passaram e reconheço que não foram as mais adequadas.
Consegue perceber porque é que foi canalha? Porque é que sucumbiu? Apesar de denegar para si mesmo e encontrar justificações… O que fica, nesse encontro a sós com o espelho?
De uma maneira geral, é aquilo que marca as pessoas que têm sucesso: a vaidade, o gosto pelo poder, alguma ambição e um sentimento de superioridade em relação aos outros. Esta mistura é explosiva e no relacionamento com amigos, subordinados e colegas conduz-nos a práticas que nos envergonham. Faz parte da natureza humana. Se fizer esta entrevista a outras pessoas, se tiverem coragem, provavelmente a resposta não será diferente da minha.
Em que momento foi capaz de se olhar ao espelho desta maneira?
Se me tivesse entrevistado aos 50 anos, não lhe respondia assim. Como me está a entrevistar aos 71, já lhe respondo assim. A grande viragem da minha vida foi a doença. No dia em que fui visitar o meu médico e ele me disse que tinha um cancro na próstata, aprendi que a vida é mesmo finita e que as coisas têm uma importância relativa. Estava convencido de que era imune a qualquer doença – tinha aquele sentimento, muito típico, de que os aviões só caem quando os outros viajam.
Qual foi a sua reacção?
Entrei no carro e chorei, chorei, chorei. Tinha 59 anos. Tinha terminado um ciclo da minha vida e começado outro.
Teve muito medo de morrer?
Tive. Tive e tenho. Gosto muito da vida. Ainda hoje me custa a ideia de que vou deixar de ter a companhia de pessoas, mais do que de coisas materiais. De ouro, tenho a aliança, tenho um relógio, e… Não ligo a coisas materiais.
Esse desprendimento resultou também da doença? Antes disso, guindado pela ambição e pela sede de poder, sonhava com um conforto financeiro? Uma recompensa de um menino que nasceu pobre.
O dinheiro era importante, era. Vivi em África, comia banana como sobremesa todo o ano e no Natal tinha direito a comer maçã ou pêra. O meu pai era operário dos Caminhos-de-ferro; tinha de trabalhar de noite para poder manter três filhos a estudar em Portugal. Quando vim estudar para a Universidade a roupa que trouxe foi feita pela minha mãe. Por isso, quando fui convidado a ser administrador da banca aos 34 anos, e comecei a ter automóvel, motorista, secretária, gabinete, um bom ordenado, quando almocei no Ritz com o Daniel Barbosa ou fui recebido em Lisboa pelo ministro do Ultramar, embriaguei-me do ponto de vista material.
Partilhava isso com os seus pais? Eles sentiam-se orgulhosos, vingados até, pelo seu sucesso?
Os meus pais sentiam um enorme orgulho. Fui o primeiro licenciado na família. Ainda em Moçambique, fui convidado para administrador não executivo dos Caminhos-de-ferro – isso deu-lhe um grande orgulho. Depois do 25 de Abril fui convidado para Governador do Banco de Angola e depois fui para o Governo, como Secretário de Estado. Tudo isso o encheu de orgulho. Não partilhei com os meus pais, e é um peso que tenho. Na embriaguez da carreira, do sucesso, do poder, fiz-lhes muito pouca companhia.
Os seus pais assistiram ao seu sucesso?
O meu pai faleceu há 20 anos e a minha mãe há 10. Infelizmente não os fiz partilhar o meu sucesso. Se calhar os meus filhos vão fazer-me o mesmo. É uma dor muito grande que a gente tem depois de os pais morrerem: não lhes ter dado… um bocadinho.
Fiquei comovida, no seu livro, com a descrição que faz da relação com o seu pai enquanto “um cancro o levava em meses”. Visitava-o e fazia-lhe a barba. De que é que vale o dinheiro todo na doença…
Aquele gesto de pegar no pincel, pôr-lhe o sabão na cara e fazer-lhe a barba, nas últimas semanas de vida, pretende redimir-me de uma falta de companhia. No fundo, ele tinha enfermeiros para lhe fazer isso…
O que é que deixava de fazer para ir fazer a barba ao seu pai?
Era presidente da União de Bancos, saía de Lisboa ou do Porto onde estava e ia à casa de saúde de Viseu. Fazer a barba era um modo de lhe pedir perdão. Por exemplo, um dos sonhos do meu pai era ir a Paris. Gostava de ver o túmulo de Napoleão, a Torre Eiffel. A União de Bancos Portugueses tinha um banco em Paris, fui a Paris centenas de vezes… O meu pai morreu sem eu ter tido a generosidade de sacrificar um fim-de-semana para lhe dar esse prazer.
O seu filho far-lhe-ia a barba?
Acho que sim. Ou por outra: vivo na convicção que sim. Se isso não sucedesse, seria para mim uma morte muito deprimente e dolorosa.
Philip Roth é um autor de que gosta. Em “Património”, conta como tinha limpo a casa de banho depois de o pai, doente, a ter usado. Temos ali o grande escritor, a grande figura, meticulosamente empenhado, amorosamente empenhado em qualquer coisa que não imaginaríamos que pudesse fazer. Que património lhe deixou o seu pai?
O meu pai, do ponto de vista material, não me deixou nada. Tenho uma fotografia dele quando tocava música na banda do Clube Ferroviário de Moçambique com as medalhas que ganhou. E da minha mãe tenho um gato de cristal. Mas recebi deles uma coisa muito importante: do meu pai, a coragem de um homem que, sendo caiador em Celorico, em 37, quando eu nasci, disse: o nosso filho vai ficar igual a nós, eu tenho que sair. E meteu-se num barco e foi para Angola e depois Moçambique. Da minha mãe, recebi uma capacidade de trabalho e uma determinação espectacular. Deram-me o exemplo. E deram-me a ferramenta para poder singrar na vida: os estudos.
O que deixa aos seus filhos?
Não deixo um património tão bom quanto aquele que o meu pai me deixou. Julgo que o meu pai não tinha grandes coisas que lhe perturbassem a consciência. Eu tenho – e os meus filhos acompanharam-nas. Dei-lhes formação, e em termos materiais deixo mais do que uma fotografia. Medalhas, não, porque nunca recebi nenhuma. Mas deixo esta atitude perante a vida: de combate, de frontalidade, e uma capacidade de trabalho invulgar.
Se recebesse uma medalha, ela iria premiar o quê? A capacidade de trabalho?
A capacidade de trabalho e a frontalidade. Eu resisto mal, muito mal, a pactuar com aquilo que acho que não está certo. Isso tem-me trazido grandes dissabores. Numa sociedade como a portuguesa, em que os lugares bons são escassos, as pessoas têm uma atitude artificial no sentido de manterem os lugares. Tenho muita dificuldade em pactuar com isso. Os políticos portugueses, os empresários portugueses, os gestores portugueses não gostam desta atitude. Isto talvez justifique o facto de ter ocupado tantos lugares e, sempre que fico de fora, nunca sou convidado por privados. É sempre o Estado a convidar-me.
É corajoso?
Relativamente. Sou consciente, medianamente inteligente e pondero a coragem de acordo com o ambiente em que vivo. Não sou um suicida. Mesmo quando sou frontal, sei estabelecer os limites da minha frontalidade. Isso nota-se na minha escrita. Se eu pudesse publicar o que escrevo antes de corrigir… Faço-lhes a barba, também. Não a barba do peso na consciência. Mas a barba da inteligência.
O que é que faz de si um vencedor? Nasceu num casebre e muito cedo foi administrador de um banco na terra onde cresceu – isto contrariando o prognóstico social, enfrentando um sistema classista. De que ferramentas dispôs para singrar?
Quando conseguimos singrar, há sempre uma dose de sorte e azar que persegue o humano.
A sorte protege os audazes, como diz o ditado.
Quando acabei o curso e acabei o serviço militar fui para Moçambique como funcionário público, com o ordenadão de 9000 escudos. A minha família achava que eu estava arrumado. Eu era um tipo importante.
A parte do reconhecimento social também era muito importante?
Sim. Mas percebi que aquilo não me levava a lado nenhum e tive a coragem de me despedir ao fim de dois anos. Não quis a licença sem vencimento que me propuseram – porque iria para a privada sempre a pensar nesta segurança. A juntar a este gesto, as minhas qualidades de trabalho e determinação fizeram com que, entre 65 e 71, fosse notado. O governo queria um indivíduo novo e convidou-me para administrador. A partir daí, a sorte protegeu-me. A sorte e algumas pessoas. Quando veio o 25 de Abril e vim para Portugal, onde ninguém me conhecia, dificilmente eu seria governador do Banco de Angola se o ministro da altura não fosse o meu querido amigo António Almeida Santos.
É uma coisa que o persegue: ser um protegé do Almeida Santos. O “sobrinho”. Na boca dos seus inimigos, é o homem de mão do Almeida Santos. Falemos desta relação. Como é que se conheceram?
Conheci o Almeida Santos em Moçambique. Ele era muito amigo do pai de um grande amigo meu e trocávamos impressões. Reconhecia nele um homem de grande cultura, ouvia-o com atenção, e ele reconhecia em mim algumas ideias, a frontalidade. Nasceu uma grande empatia. Quando vim para Portugal, passámos a encontrar-nos muito.
Incomoda-o que digam que é protegido do Almeida Santos porque isso ofende o seu mérito, o brio.
Os meus sucessos e os meus insucessos devem-se aquilo que fiz, ao meu trabalho e ao meu esforço. Quando fui convidado para o Instituto de Crédito de Moçambique foi o regime anterior no que me convidou – e os oposicionistas não tinham influência. Admito que ele me tenha recomendado para o Banco de Angola; mas depois, foi o meu trabalho que levou Nobre da Costa a convidar-me para o seu governo e Mota Pinto para o governo dele.
Quando almoçam, falam sobre quê?
Falamos muito da família. Falamos muito de política, do Governo, do que poderá vir a acontecer. O Almeida Santos, desde que o conheço, está sempre envolvido em negócios – está-lhe na massa do sangue; uma parte da conversa tem que ver com os projectos nos quais está envolvido. Aí dou-lhe algum conselho, em coisas políticas dá-me ele a mim.
Outra relação muito antiga e importante é com Jorge Jardim Gonçalves.
Fomos colegas no tempo da faculdade, do mesmo lar. É uma relação cimentada no tempo de estudantes.
É uma relação entre dois competidores? Fiquei com essa impressão depois de ler o seu livro.
Nunca competi com ele, não sei se alguma vez ele pensou que eu era competidor dele. Acho que não. Ele foi presidente do Banco Português do Atlântico quando eu estive no governo e o convidei. E de repente, com a criação do BCP aconteceu o mesmo que com o preço dos combustíveis: guindou-se a um nível de notoriedade, influência e importância muito altos. Este gap nunca se verificou na minha relação com Almeida Santos, que podia ser ministro, vice-primeiro ministro… Vamos almoçar, se é tempo de cerejas começamos o almoço com uma boa pratada de cerejas.
Uma relação entre iguais.
A minha relação com o Jardim Gonçalves era uma relação entre iguais e de repente ele catapultou-se para uma posição de grande importância. O Almeida Santos foi sempre solidário comigo, mesmo quando não era necessário. Quando saí da EDP há dez anos, foi praticamente a única pessoa que veio a público dar a cara contestando aquela decisão. Já os banqueiros, o Jardim Gonçalves, apesar de ser um grande amigo, não foi capaz de assumir publicamente a mesma posição.
Isso custou-lhe, emocionalmente?
Custou-me muito. Eu saí da União de Bancos em 91, fiquei no deserto muito tempo. Fiquei no deserto mesmo. Tive que fazer programas na Rádio Capital, o Nicolau Santos teve que me convidar para escrever no Diário Económico…
Precisava desse dinheiro?
Precisava. Eu saí da União de Bancos Portugueses, fui para o Banco de Portugal e o meu rendimento eram 200 contos por mês. Tive que comprar carro, deixei de ter telemóvel, secretária, cartão de crédito… Fiquei pendurado. Digo-lhe que recebi ontem a comunicação da reforma da Segurança Social: são 990 euros. E recebo do Banco de Portugal 2000 euros por mês. Portanto, quando eu sair da EDP vou viver com 2000 e poucos euros líquidos.
E olhava para o seu amigo Jardim, que viajava, e viaja, num avião privado…
Era amigo e é. Eu não tenho inveja de ninguém.
Porque é que acha que o Jardim Gonçalves não lhe deu a mão quando esteve no deserto?
Essa é uma pergunta que terá de lhe fazer a ele. Posso adiantar hipóteses – uma vez que nunca lhe perguntei, nem teria de perguntar, porque ele não tinha obrigação de deitar a mão. Quando saí da União de Bancos, estava plenamente convencido de que, com o currículo que tinha, que saía num dia e que no dia seguinte me estavam a convidar para alguma coisa. O grande choque da minha vida foi ter visto passar as semanas e os meses e os anos, e, de facto…
O telefone não tocava.
Chocou-me. Esperava que uma pessoa na posição do engenheiro Jardim Gonçalves, pelo menos, me faria uma proposta – mesmo que eu não aceitasse. E isso falhou. Saí da União de Bancos em conflito com o governo de Cavaco Silva – na altura em que Cavaco teve a segunda maioria. Sobretudo dei uma entrevista ao “Público” fazendo na primeira página afirmações destemperadas… Perguntavam-me sobre o Ministro das Finanças e eu disse: “Esse Ministro não existe”.
Tratava-se de Miguel Beleza.
Portanto, eu compreendo que um presidente da banca, que está muito dependente do Ministro das Finanças, aparece um indivíduo que diz que o ministro das Finanças não existe… Convidá-lo, pode levantar um mal-estar. Admito que tenha sido um raciocínio estratégico do grupo que geria. Mas já lá vai, passaram 17 anos. E nestes 17 anos, nomeadamente nos últimos dois, sucederam muitas coisas… Gostaria de dizer também que ele me ajudou noutras alturas. Sobretudo quando estive doente, ele foi um irmão. Pôs o seu médico pessoal à minha disposição. Vale muito mais esse activo que um pequeno passivo – o de 91.
Teve um cancro na próstata. Que ameaça os homens na sua virilidade.
Teve que confessar que foi muito preocupante. Sabia que após a operação a probabilidade de ficar impotente sexualmente situa-se na ordem dos 80%; preocupou-me de tal maneira que foi a primeira pergunta que fiz quando acordei.
A sua vida mudaria?
Como tive a sorte de ficar nos 20%, tenho dificuldade em responder.
Estamos novamente no Philip Roth, no grande tema do envelhecimento. Mas os homens, regra geral, têm dificuldade em falar disto. Como se os diminuísse socialmente. Como se falar de incontinência urinária ou de impotência fosse impróprio. Porque é que o senhor fala?
Eu falo porque faço parte de uma geração em que todos esses temas eram tabu, no relacionamento com os pais ou professores. Tudo o que tinha a ver com o aparelho sexual era tabu. Nos meus 12, 13 anos chegou-me às mãos um livro técnico com imagens dos órgãos sexuais e o meu pai quis dar-me uma tareia!
Na sua amizade com Jardim Gonçalves e Almeida Santos, cabem estas conversas? Não é fácil imaginá-lo a falar com o engenheiro Jardim de impotência…
Consigo [falar disto] com os dois. Com o Almeida Santos, apesar de ele ser mais velho, sempre falámos destas questões com grande à vontade. Com o Jardim Gonçalves é mais difícil, mas admito que, entre as pessoas que lhe são próximas, sou capaz de ser o único que lhe fala destes temas e de outros semelhantes… Falo-lhe das dificuldades por que passei e dos aditivos que hoje existem que permitem ultrapassar estas pseudo-deficiências. Ele reage sempre com uma gargalhada, com humor.
Confesse que faz isso para o chocar… Para saber até onde ele se diverte…
10% é informação, 90 % é provocação.
Foi também por isso que no seu livro publicou uma fotografia onde todos aparecem de roupão? Ver o engenheiro Jardim de roupão é tão surpreendente quanto ver a Rainha de Inglaterra agarrada a uma botija de água quente!
Quando escrevi o livro ele estava no auge do seu prestígio. Vi políticos, presidentes, gente importante, todos muito solícitos com o Jardim. Pus a fotografia para mostrar que ele é tal e qual como nós. Que nos tratemos com menos formalismo e com mais humanismo. O objectivo não foi, de maneira nenhuma, degradar a figura dele. Tenho muita amizade e respeito por ele, mas é importante que as pessoas percebam que o grande banqueiro também veste pijama.
De que falavam quando partilharam o lar?
Falámos muito dos diferentes cursos. Ele tinha já uma propensão missionária. Tentava orientar-nos para aquilo que achava ser o bom caminho. Fui sempre arredio disso. Preocupava-me mais com desporto, que praticava. Com o Jardim não, mas com outros colegas falava das raparigas mais bonitas.
Entre rapazes, como é que resultava esta coisa de um ser baixo e o outro ser, comparativamente, um gigante, e atlético? Tinham atitudes opostas em relação ao corpo…
Nunca jogámos um com o outro. Nunca tivemos disputas em que a pujança física entrasse. Os nossos encontros eram muito à hora de almoço, eram conversas.
Como é que saiu tão alto?
O meu pai era um bocadinho mais baixo do que eu, e o meu filho é mais alto do que eu. Não sei se o meu neto vai chegar aos dois metros. Gosto de ser alto. Notei isso quando fui oficial de marinha e vesti a primeira farda: tirei uma fotografia que tenho hoje exposta em casa. Gosto de me ver alto e elegante.
A farda, ainda a tem?
Infelizmente, não. Levei-a para Moçambique em 1963e o empregado encantou-se com as fardas e um dia não resistiu, levou-as e fugiu! Espero que tenha feito um grande sucesso na terra para onde foi, no interior de Moçambique, fardado de oficial da marinha! Fugiu e foi a única coisa que levou, a farda branca e a azul.
Até que momento o perseguiu o peso de ser um rapaz pobre que singra na vida?
Nunca tive esse trauma. Talvez o tenha sentido mais no liceu, em Lourenço Marques. Na faculdade, os que viviam em lares tinham situações muito semelhantes à minha. Eram filhos de operários, pequenos comerciantes, vinham do Ultramar. Os filhos de fazendeiros não iam para os lares. E, quando voltei para África, foi com o chorudo ordenado de nove mil escudos – passei a fazer parte da burguesia. Por isso não tive esse problema.
Fez-me em África, singrou em África, mas diz de si que é um beirão.
Vivi numa comunidade de celoricenses e acompanhei a vida da terra, com o meu pai, com os meus primos, na comida, nas histórias. Nunca cortei o cordão com Celorico. Quando regressei a Moçambique, casado, licenciado, bem, senti-me moçambicano. Vi que tinha futuro naquela terra. Houve uma hesitação, pensei ficar ali para sempre. O 25 de Abril ajudou a resolver tudo. Toda a perturbação – de me considerarem um colonialista… Coitado de mim, fui para lá com dois anos, o meu pai era operário… colonialista! Começaram a chamar-me fascista e isso facilitou o regresso a Portugal. Consciencializei-me que não era ali que estava a minha vida. Apaguei África, não tenho nostalgia de África. Aqui reencontrei-me com a terra e a cultura. E singrei, sem descriminação. Sou beirão: no feitio, na teimosia, na persistência.
O seu pai tinha o sonho de ir a Paris. Que sonho tem por cumprir?
Bem, eu já fiz quase tudo: já plantei árvores, já escrevi um livro, já fiz filhos. Do ponto de vista da carreira, já atingi o topo, do ponto de vista da saúde, tirando aquele acidente, tem sido impecável. Não tenho nenhum desejo nem nada que me crie ansiedade. Mas gostava de ir à Austrália!
Sozinho?
Não. Viajo sempre com a minha mulher.
Não falámos de mulheres nesta entrevista. Nem da sua mãe, nem da sua mulher, nem da sua filha.
São pessoas completamente diferentes. Sou uma fotocópia do feitio da minha mãe. A minha mãe não se ficava, respondia, era uma trabalhadora incansável. Não há dia nenhum que não os recorde [os pais] e não utilize frases deles.
Qual é a frase que mais cita da sua mãe?
Quando nós nos portávamos muito mal – e eu costumo dizer isso aos meus netos – dizia: “Estão a portar-se como uns húngrios”. Não húngaros, mas húngrios. Devia haver a ideia que os ciganos vinham dessa zona. Da minha mulher, que é muito serena, sobretudo elogio o apoio que me deu. Ela tolerou tudo na minha vida profissional. Deu uma grande ajuda na educação dos filhos – que eu não liguei nenhuma aos filhos, só pensava na minha carreira; e ter tido a grandeza de alma para perdoar alguns desvios do caminho matrimonial. A minha filha é uma fotocópia minha. Quando a vejo a trabalhar e a discutir, vejo a minha cópia. Sem desprimor para o meu filho de quem gosto muito, ela é a herdeira da minha matriz. Isto dá-nos o sentimento óptimo de termos raízes e descendentes.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Junho de 2008