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Anabela Mota Ribeiro

Margarida Vila-Nova

20.09.15

Margarida Vila-Nova já foi Scarlett. Tinha oito anos e repetia com a heroína de E Tudo o Vento Levou que amanhã é um novo dia. Procurava aquela emoção, aquela entrega. Puxava as VHS para trás até partir a fita. Esta é a história de uma bela actriz que não fez Shakespeare. Faz telenovela, é líder de audiência. Algum problema? Esta é a história de uma actriz que começou com Filipe La Féria. Dá para parar com os preconceitos?

Margarida Vila-Nova tem 32 anos, é actriz. Tem uma luz que não se sabe de onde vem e que nos obriga a olhar para ela quando está em cena. Mais do que tudo, faz televisão. Também teatro e cinema. Nos últimos anos mudou-se para Macau, abriu uma mercearia de produtos portugueses, mergulhou num quotidiano anónimo. Um corte absoluto com a vida supostamente glamorosa das actrizes de telenovela que são líderes de audiência. Entretanto tinha casado, um filho, estava à espera do segundo. Queria fazer como naquela canção da Elis Regina: ter somente a certeza dos amigos do peito e nada mais, ter os filhos de cuca legal. Ter a cuca dela também legal. Ou seja, feliz – o que quer que isso queira dizer.

Passou o último ano em Portugal, protagonizou a telenovela da SIC Mar Salgado, participou no filme do marido, o realizador Ivo Ferreira, que trabalha as cartas que António Lobo Antunes escreveu à mulher, durante a guerra colonial.

Chegou à entrevista antes da hora, com a descontracção de quem vem do mar. Entregou-se às fotografias e depois à conversa como se entrega a tudo o que faz. No momento, só existe aquilo. É uma jovem mulher que quer fazer da sua vida um grande enredo. E vivê-la com verdade. Daqui a dias, volta para Macau. Há um ciclo que aqui se encerra. 

 

Representar, aprende-se?

Claro que se aprende. Há métodos, técnicas. Não fiz o conservatório, fui fazendo workshops. A melhor aprendizagem é a nossa bagagem de vida, a bagagem emocional. E não é só por os anos passarem, pelos filhos, pelo casamento, pela perda que ganhamos essa bagagem. É por ver os outros representar. São os espectáculos que vamos acumulando, os textos que vamos lendo, as músicas que vamos ouvindo. A dança, a fotografia. Um actor tem que ser culto sobre um assunto, sobre a vida, sobre o outro, para poder interpretá-lo de forma livre e madura.

 

Olhando para trás, era mais ou menos previsível, ou obrigatório, que a sua vida viesse dar à representação?

Sim! É uma relação de amor/ódio. É como se estivesse completa, quando estou a representar. Ao mesmo tempo, sempre que vou iniciar um projecto, é uma angústia. É o medo de não me superar. Sou naturalmente insatisfeita, sou extremamente insegura.

 

Não se nota.

É porque gosto muito do que faço. Sou mais feliz quando represento. Ajuda-me a descobrir o mundo. Os meus pais são produtores. Cresci rodeada de encenadores, fotógrafos, bailarinos, coreógrafos, pintores. É certo que isso me inspirou e levou a representar. O meu marido goza comigo: “Gostavas de ter uma vida organizada, das nove às cinco. Esse espírito pequeno-burguês que te acompanha...”.

 

Quando era criança imaginava o quê? Quando imaginava um futuro organizado, ele correspondia sobretudo a quê?

Eu queria ser caixa de supermercado. Ficava fascinada com as unhas pintadas! Em parte cumpri alguns dos meus sonhos de criança. Queria casar-me, queria ter filhos. Esse percurso familiar, conquistei. Ou encontrei-o.

Há 20 anos, os artistas em Portugal eram uns outsiders. Sentia-me sempre uma outsider. Vestia-me de maneira diferente, via espectáculos diferentes, os meus pais eram diferentes. Andei em escolas tradicionais, no Jardim Escola João de Deus, no Lar da Criança, onde havia um padrão. Nunca fiz parte do padrão.

 

Como é que se vestia?

Pessimamente [risos]. Só reparo nisso nas fotografias. Lembro-me de uns collants brancos canelados, com umas camisas aos quadrados, umas botas vermelhas. Lembro-me de ir à Gulbenkian ver um espectáculo com um vestido cor-de-rosa até aos pés, de dama de honor, comprado numa feira, em segunda mão, em Inglaterra. Era uma grande liberdade de poder ser, pensar, criar.

 

O que descreve é uma criança livre e excêntrica num mundo de adultos, a fazer vida de adulto.

Fazia a vida dos adultos. Os meus pais separaram-se quando eu tinha um ano. Cresci com os amigos da minha mãe. Andávamos sempre em bando. Sempre me trataram como uma pessoa. Não era uma criança nem era uma adulta, era uma pessoa.

 

Quando é que foi criança?

Era criança com os meus avós. Tinha uma relação muito próxima. Ainda tenho. Fazíamos as férias no Algarve, piqueniques, o Jardim Zoológico. Com horários, regras.

Às vezes faltava à escola porque as férias da minha mãe nunca eram previsíveis. E ficava angustiadíssima porque faltava à escola. Contudo, esses dias permitiam-me ver o Botticelli, o Michelangelo, o Rafael, outros pintores e artistas. Ver Roma, Veneza. Há um universo que só pude conhecer por causa da transgressão. Sempre quis tudo ao mesmo tempo. E coisas contrárias. É como representar: a minha maior paixão e o meu maior medo. Por isso a família, um equilíbrio, saber onde é que está o norte e o sul...

 

Os seus filhos têm seis e três anos. Sente com a infância deles que vive, ou revive, a sua infância? Em moldes diferentes.

Sim. Há uma característica [comum] entre mim e o Ivo [Ferreira, o marido e pai das crianças]. Ele também é filho de pais actores, cresceu entre A Comuna e O Bando. Crescemos com adultos, tornámo-nos adultos muito cedo. Tratamos os nossos filhos como pessoas. Não como crianças, não como adultos, mas como seres pensantes. E sim, faltam às aulas para ir viajar.

 

Teve assim tanto mal faltar às aulas? O dever ser tomou conta da vida quotidiana, da educação das crianças.

É verdade. Eu andei sempre a trocar de escola e a trocar de casa. A minha mãe gostava muito de trocar de casa. Cada vez que via a minha mãe a forrar prateleiras já sabia que tinha esgotado tudo o que havia para fazer dentro de casa. Mudávamos de ano a ano, de dois em dois anos no máximo. (O meu pai não, e na casa dele sempre tive o meu quarto.)

O mesmo com a escola. De cada vez que construía o meu universo escolar, entre amizades e professores, mudava. Não me assustam as mudanças hoje em dia. Posso gostar mais, posso gostar menos, empacotar uma casa, uma vida, não me angustia.

 

Não tem medo do futuro, do que possa resultar da mudança. É isso?

Estou de regresso a Macau e não me assusta regressar. O que me espera lá não é necessariamente melhor nem pior. Não há nada aqui que me faça ficar.

 

Mudou-se para Macau em 2011. Era a actriz que protagonizava as novelas de maior audiência, no pico da fama, da forma. De repente retira-se para o Oriente e vai abrir uma mercearia.

Foi por tudo isso que me fui embora. Tinha esgotado o meu caminho. Não era exactamente esse percurso que eu esperava, que ambicionava. Queria muito ser actriz. Queria ser uma grande actriz. Não esperava ser a actriz do prime time. Sentia-me esgotada. Sentia que tinha que parar.

 

Quantos anos estavam para trás, de novela?

Cinco anos de exclusividade com a TVI, sete de novela. Até era das actrizes privilegiadas, fazia uma, descansava outra.

 

Receava ficar com o estigma da actriz de telenovela?

Uma actriz é uma actriz. Há actrizes mais talentosas para fazer determinados papéis, trabalhar determinada linguagem. Não consigo padronizar as coisas assim, é muito redutor. O que sentia era que o meu percurso estava a afunilar com a televisão. Estava a ficar cada vez mais longe das companhias de teatro que admirava, que respeitava e com as quais gostaria de trabalhar.

 

As coisas estão ainda muito segmentadas, apesar de tudo, em Portugal.

Hoje em dia já é aceite fazer televisão. Já se aceita que um actor pague as suas contas a fazer telenovela. Coisa que há dez anos não se aceitava. Isto não quer dizer que se cruzem os caminhos. É natural que os actores se identifiquem com determinadas companhias ou com determinados realizadores.

 

Muitos actores mexem na telenovela com pinças, dizem: “Faço telenovela para pagar as minhas contas”. É uma forma de paternalismo, de escusa? Não parece ser o seu caso.

Não, não é. Aliás, não tinha necessidade nenhuma de vir a Portugal fazer esta telenovela [Mar Salgado]. Estive três anos sem receber um único convite para televisão. O meu contrato com a TVI tinha terminado. Rescindimos, não renovámos. O meu filho Dinis tinha acabado de nascer. Comecei por pensar: “Ai, vou ficar sem chão”. É muito confortável ter um contrato de exclusividade. Mas não me sentia actriz, tinha desistido de representar. Queria ver os filhos crescerem. Queria acompanhar o Ivo na jornada de construir uma produtora [de cinema] em Macau. Queria viajar, queria estudar. A não-renovação do contrato, ao mesmo tempo, foi uma libertação. Por medo ou insegurança acabamos por aceitar os projectos que menos nos agradam.

 

Como é que era a vida de novela? Como é que chega a esse estado de exaustão?

Sempre quis poder escolher. Não era eu que estava a escolher a minha vida, eram as circunstâncias. Estava a ser ultrapassada nas minhas escolhas. Nem todas as personagens em televisão são interessantes. Nem toda a gente escreve bem para televisão. Nem toda a gente realiza bem em televisão. Como em qualquer outra profissão. São 12 horas por dia. Os estúdios são fora de Lisboa, são 90 minutos num carro, todos os dias, para trás e para a frente. E as personagens são muito saturantes em telenovela. É preciso trabalhar muito para não “fazer à novela”.

 

Como é “fazer à novela”?

É fazer figurinha triste, puxar a lágrima ao olho. Assim uma coisa estereotipada. Agora somos o casal romântico, agora somos os vilões. Os personagens já estão catalogados. É muito difícil fazer bem se estivermos a fazer umas atrás das outras. Perde-se frescura.

 

Porque é que veio fazer esta novela?

Quando menos esperava; quando tínhamos avançado para uma segunda loja; quando o Ivo tinha acabado de receber subsídio para uma longa-metragem; a meio do ano escolar dos miúdos; surgiu o convite. Recebi a chamada a meio da noite. Esta coisa da diferença horária..., as pessoas esquecem-se das oito horas de diferença. Fico logo em pânico, alguém morreu, taquicardia! “Personagem certa, altura certa, a protagonista da próxima novela da SIC.” Depois de um longo namoro, comecei a ler a sinopse. Era uma novela dirigida pela Patrícia Sequeira, que para mim é a melhor coordenadora de projectos em televisão. Amiga de longa data, com quem praticamente me estreei na televisão. Quis muito representar esta personagem. Não vim porque precisava de pagar as contas.

 

Parte de si estava com medo de que se tivessem esquecido de si?

Não. Estar três anos fora, não ser chamada, haver um esquecimento... Macau é mesmo longe, não dá para vir cá passar o fim-de-semana. Esta distância, este vazio, também traz um crescimento pessoal.

 

O seu filho Martim tinha dois anos quando foi para Macau. Os filhos pesaram muito na decisão de abandonar a televisão e partir?

Queria ver o meu filho crescer. Queria viajar. Um dos privilégios de viver lá é que viajamos a cada três meses. Vamos à Tailândia, Malásia, Indonésia, Índia. Vamos ver outras pessoas, outras culturas, ouvir outras línguas. E pensamos na nossa insignificância neste universo. Se estiver fechada num T0 em Lisboa a fazer novela, e não abrir a porta para conhecer mundo, vou acabar claustrofóbica.

Recomecei uma vida lá. Chegámos a Macau de mochila às costas, uma criança de três anos e grávida do Dinis. Montámos uma casa, uma loja. Fazia muitas horas de mercearia. A única forma de conhecer o próprio negócio é atrás do balcão, a conhecer o cliente que vai comprar os produtos. Sobretudo pessoas de Hong Kong, Singapura, Taiwan e japoneses. Da facturação, apenas 15% são portugueses. E tenho uma caixa registadora!

 

E unhas?

Hoje, como vinha para uma entrevista ainda pensei pintá-las, mas deu-me a preguiça [risos]. É um personagem, chegava, vestia o avental como quem veste um figurino. Arrumar os sabonetes, forrava as prateleiras. Ao longo de três anos, claro que houve dias difíceis. Vivemos os quatro ao colo uns dos outros, e somos muito felizes assim, em tribo, mas há uma logística familiar que é mais difícil. Não me permiti que falhasse o meu projecto. Passei a viver com menos, tivemos que fazer concessões, encontrámos um equilíbrio. Esta determinação, não sei se é força se é inconsciência. Não meço o risco, não meço o medo. Perante o precipício atiro-me. Podia ter falhado a loja, podia ter arruinado o negócio. Podia não me ter adaptado àquela vida.

 

E se tudo isso tivesse acontecido?

Teria sido uma experiência de vida.

 

No fundo sabia sempre que podia voltar.

Há uma coisa que dizemos sempre um ao outro, somos muito companheiros, o Ivo e eu: “Quando não estiver bom para ti, não está bom para mim, vamos embora”. O projecto falha se ficarmos encurralados; isto é, se não estivermos felizes.

Para nós faz sentido ter duas vidas paralelas, duas cidades, duas histórias, dois momentos. E vamos sendo o condutor deste carrossel.

 

Não aparecer nas revistas, não ser reconhecida na rua, não aparecer na televisão, esse tipo de reconhecimento…

Não me faz falta nenhuma. Não sofro nada com isso. Vim sem medos. Claro que tinha um peso muito grande em cima, era a novela que ia suceder ao Sol de Inverno, que tinha tido uma audiência enorme, com a Rita Blanco e a Maria João Luís, duas actrizes de indiscutível talento e popularidade junto do público, na estação concorrente. Mas a expectativa do outro, da imprensa não me intimidava. O meu desafio era comigo mesma.

 

Tem noção da sua reputação? Mesmo as pessoas que não a vêem na novela, reconhecem-na, e ao seu talento.

Para mim não é assim tão óbvio. E de qualquer forma não é por arrogância que não dou importância, é por defesa. Se for abordada na rua não sou antipática, não faço cenas. Mas já não quero apanhar secas, já não quero perder tempo.

 

Tudo somado, esteve cá um ano. Fez uma novela, participou no filme do seu marido, fez férias. Regressa daqui a poucas semanas a Macau, à vida que está a descrever. As filmagens decorreram entre Angola e Lisboa.

As minhas sessões foram passadas em Lisboa. Não cheguei a ir a Angola. Estive muito perto da rodagem. Tinha a alcunha de driver do Ivo... Este projecto surge nas nossas vidas… digo nas nossas porque era eu que estava a ler o livro quando ele entrou em casa e me viu a ler as cartas, em voz alta. Estava grávida do Martim. Foi no ano em que o Águas Mil estreou [2008], ele andava sempre em festivais, eu a gravar novela. Um dia disse-me: “Se falasse com a Zé, isto podia dar um grande filme.” O Ivo é amigo da Maria José e da Joana [as duas filhas de António Lobo Antunes] de longa data. O projecto acompanhou-nos durante sete anos.

 

O que é que a comoveu nessas cartas?

Sou uma romântica apaixonada.

 

Adora dizer “o meu marido”...

Sim!

 

O seu pai esteve na guerra?

Não. Aquelas palavras eram de uma grandeza, transmitiam uma realidade... São cartas de amor e guerra. Ao longo das cartas vê-se o crescimento do homem, médico, escritor, a sua consciência política, o seu testemunho.

 

De um modo silencioso, subterrâneo, o projecto das cartas acompanhou-vos nos anos de Macau.

Sim. Se não tivéssemos ido para Macau, se não tivéssemos inventado uma vida – inventámos a vida que queríamos ter, não nos convidaram para abrir uma mercearia –, se tivéssemos ficado à espera de um dinheiro que desbloqueasse, de uma novela ou de uma peça de teatro que não surgiu, teríamos colapsado. Fomos fazendo um verdadeiro croché ao longo destes anos. E outros projectos se seguiram, Na Escama do Dragão, uma curta-metragem que filmámos em Macau para Guimarães Capital da Cultura, com o apoio do governo de Macau. O documentário O Estrangeiro, também filmado em Macau para a RTP, quando se assinalaram os dez anos da transição. Fizemos coisas, mesmo como artistas, não só como merceeiros. E o projecto das cartas fechou um ciclo.

 

Gostava de voltar ao começo da entrevista, à bagagem. Voltar ao seu tempo de formação, em que foi vendo pessoas, aprendendo o mundo.

Ia muitas vezes com o Fernando Heitor (actor, escritor, encenador) para o Teatro Aberto. Ele é como um padrinho para mim, esteve muito próximo do meu crescimento, é padrinho do meu filho Martim. Eu ficava dias e dias a assistir a ensaios. Nunca me cansei de ver os outros representar. Depois a minha mãe trabalhou muitos anos com o Filipe La Féria. Ainda que seja visto por muitos como o encenador da revista, o primeiro espectáculo que vi dele foi What happened to Madalena Iglésias, que de revista tinha pouco.

 

E muito antes disso, encenou Pasolini.

Eu ainda não tinha idade para ir [risos]. Não gosto desse preconceito sobre um género. Cada um tem o seu tempo e o seu espaço. A minha mãe esteve muito próxima do Filipe. Não tinha babysitter e levava-me para os ensaios. Eu ficava sempre curiosa sobre como chegar àquele estado de entrega, de emoção. O mesmo com a televisão, a música.

 

Por exemplo.

Via uma cena, puxava atrás as VHS, até partirem. Scarlett O’Hara em E Tudo o Vento Levou. “Tomorrow is another day.” Ia para as escadas, sentada na minha Tara, a dizer: “Tomorrow is another day”. Tinha oito ou nove anos. A minha cantora favorita era a Édith Piaf. Não sabia falar francês mas decorei as letras. Se soubesse cantar era assim que faria. Se soubesse representar era assim que faria. Foi a puxar a Scarlett muitas vezes para trás que aprendi. A repetição sempre esteve muito presente. Repetir um olhar, repetir um trejeito, procurar a verdade daquele texto, daquela emoção.

 

O seu primeiro filme foi na Curia, tinha seis ou sete anos. É incrível pensar como tudo começou tão cedo.

Lá está, a minha mãe não tinha babysitter naquele Verão. Era chefe de produção do filme e precisavam de uma miúda. Só sabia dizer oui e non (era um telefilme francês), o realizador achou-me graça.

 

Porque é que não ia brincar para um canto, porque é que ficava a assistir?

Porque ficava fascinada. Via montar a calha do travelling e ficava fascinada com a forma como montavam a calha – até atingirem o equilíbrio. Como preparavam a luz. Há uma memória de infância que tenho muito presente – é o silêncio. O silêncio do plateau. É uma questão de respeito pelo deus do cinema, seja ele qual for. Depois achava graça aos actores, às maquilhagens, aos figurinos. Sempre gostei do lado folclórico que isto possa ter, a fantasia, o sonho.

 

A sua mãe, foi sempre a grande cúmplice?

Foi super cúmplice.

 

Não teve que se emancipar em relação a ela? Acontece muito, no meio do espectáculo, quando as crianças são precoces, haver uma mãe tentacular que toma conta. E depois é muito doloroso o corte.

A minha mãe preparou-me para ser independente, fui viver sozinha aos 18 anos. Este cordão umbilical era inevitável ser cortado para cada uma poder seguir as suas escolhas, o seu caminho. Não há ressentimentos. Era não só inevitável como necessário. Não vejo as coisas como o lado bom e o lado mau, o antes e o depois. Crescemos as duas juntas.

 

Que idade é que ela tinha quando a teve?

Vinte e poucos, 23. Foi mãe nova. Se houve algum passo que não foi o certo, seja em termos de opções pessoais, seja em termos de opções profissionais, durante a minha infância, a minha adolescência, o meu crescimento, foi porque nem uma nem outra sabia fazer melhor.

 

Quando é que se reconciliou com isso? Parece um discurso muito arrumado, pacificado.

Não sei determinar. Os passos foram sendo dados naturalmente. Somos muito família. Falamos muito alto. Adoramos estar à mesa. Sei que tive uma infância diferente, e sobretudo uma adolescência diferente, porque comecei a trabalhar cedo. Os Jornalistas, a primeira série que fiz, tinha uns 15 anos.

 

Porque é que fez, era preciso ganhar dinheiro?

Porque gostava de representar. E na altura havia poucas crianças a fazê-lo.

 

Estava a tentar perceber até onde é que o dinheiro condicionou a sua vida.

Nada. Tinha uma conta onde fui depositando e aos 18 anos levantei o dinheiro e fui a Nova Iorque. Ver espectáculos, comprar roupa, coisas de adolescente. Aos 16 podia convidar a minha melhor amiga para jantar. E às vezes chegava o Inverno e não tinha que ficar à espera do Natal, se quisesse comprar umas botas, comprava.

 

Aos 18 anos, montou uma empresa de produção com a sua mãe, Magníficas Produções. Sempre a trabalhar em televisão, paralelamente. Abandonou o projecto.

Os anos foram passando e não queria mais fazer Confissões de Adolescente. Queria fazer o Tchekhov, o Pinter, o Shakespeare. E não fazia sentido continuar a pagar para trabalhar. No fundo, fazia uma novela, ganhava dinheiro e investia numa peça de teatro. Fechámos a produtora e seguimos com as nossas vidas. As Confissões de Adolescente eram vistas como um teatro pobre, jovem, comercial. Num percurso dito sério, isto não poderia fazer parte dos meus espectáculos. Hoje em dia estou mesmo em paz com isto. Não me ofende sequer uma piadola sobre as Confissões de Adolescente ou sobre o La Féria. O percurso de vida, aquele que tive, não tenho vergonha. E vergonha de quê?

 

O que é que fazia na Grande Noite, programa de La Féria na RTP, gravado ao vivo no Politeama?

O primeiro papel que fiz foi a Marisol, uma espanholita de castanholas e vestido de bolas. Dizia: «Marisol soy yo, estoy en el cárcere por la maldita cocaina!». Maldita Cocaína era a peça que o Filipe ia produzir a seguir.

Nunca mais me esqueci das dores de barriga antes de entrar em cena. Não me esqueço também da garganta seca, da falta de ar. E das palmas. Não tenho qualquer memória da última vez que recebi um aplauso, lembro-me da primeira vez. Não estamos à espera.

 

Tinha que idade?

Nove. Entrei, as pessoas bateram palmas, calei-me, e depois disse a frase. O meu avô assistiu. “Como é que sabias que tinhas que ficar em silêncio, que com as palmas as pessoas não te ouviam?” Não sabia. Fiz intuitivamente. Ou porque passei muitos anos a ver os outros receberem palmas.

 

Já mostrou aos seus filhos algumas imagens desse período, criança em cima dos palcos?

Não. Às vezes conto-lhes coisas que fiz e ficam maravilhados. Ficam baralhadíssimos quando as pessoas querem tirar fotografias comigo. Em Macau isso não existe, sou uma pessoa anónima. (O Dinis, a primeira vez que chegámos à praia, disse: “Mãe, encontrámos o Mar Salgado!”. [risos]) É bom saberem o que estou a fazer, que quando não estou em casa estou ali [a gravar]. Mas gosto que tenham as histórias deles, as vidas deles, os amigos deles.

 

Eles sim, têm a vida pequeno-burguesa que imaginou que seria bom ter?

Não, coitados, são uns freaks, uns pequenos selvagens. Começaram a viajar muito cedo, em caravanas, a trepar às árvores, a fazer caminhadas. São felizes assim.

 

Nunca os levou num colchãozinho para um camarim como a sua mãe fez.

Não, nunca os levei para o teatro nem para as gravações. Não gosto. E não foi preciso.

 

Agora vai regressar. Logo se vê por quanto tempo.

Sim. Esta vinda a Portugal foi importante. Há assim um mito de que sou muito cara ou muito difícil, mas não é verdade. No próximo ano, tenho vontade de integrar um projecto do Teatro do Bairro. E de voltar a trabalhar com a SIC. Em Janeiro que vem começamos uma longa-metragem. Foi o que fiz hoje: imprimi o guião. É o começar a trabalhar.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2015

 

 

Alfredo Marvão Pereira

17.09.15

Alfredo Marvão Pereira é economista. Um dos seus objectos de estudo é o investimento público. É professor do departamento de Economia do College of William and Mary nos Estados Unidos. Saiu de Portugal há muito. Olha-nos com optimismo. Há um ano participou na elaboração da lei da fiscalidade verde – hoje confessa a sua decepção. Ao contrário da maior parte das pessoas, não tem um “ataque cardíaco” quando ouve falar de PPP. Pelo contrário.

 

Que história de Portugal é que pode ser contada quando olhamos para as grandes obras dos últimos 40 anos?

Com o benefício de não viver em Portugal há muitos anos, e de não ter de sofrer com muitas das coisas com que as pessoas sofrem por viver cá, tenho um visão muito optimista.

 

Quando é que saiu?

Em 1982. Quando cheguei aos Estados Unidos, a sensação que tinha era a de que era um parvónio da província que estava a chegar à cidade. Mas há um ano, vivi em Portugal [uns meses], e tive a sensação de que vinha de uma cidade para vir para uma cidade ainda mais bonita. Olhando para o país, do ponto de vista das infra-estruturas, temos um país moderno, desenvolvido.

 

E não é provinciano?

Não é. Tem ainda as suas coisas provincianas, mas isso é natural.

 

O quê?

Ter uma visão esquizofrénica da nossa dimensão no mundo. É sempre oito ou 80. Nunca conseguimos estar no meio. Isto é paradigmático não só em coisas de economia como em coisas de futebol. Não há a dimensão [sensata] de que somos um país pequeno e de que fazemos o que podemos.

 

Por exemplo.

Tem a sua posição internacional, que não é a melhor nem a pior, mas é uma posição boa, confortável. Temos um país com um património (que criámos nestes 40 anos) inestimável. Temos uma rede de auto-estradas inacreditável, boa. Vamos a qualquer lado e vemos turbinas eólicas. É um activo muito importante que acabamos por não valorizar.

 

Porquê?

A dor que veio com esse activo acaba por nos anestesiar para perceber a importância desse activo. Mas vai ver os rankings de Portugal nos fóruns de competitividade e sistematicamente o que lá vê é que Portugal tem um grande potencial de futuro – porque, entre outras coisas, tem uma rede de infra-estruturas terrestres espectacular.

 

Nós, olhamos e falamos sobretudo do que nos doeu no bolso. E do desperdício que a obra representou. Mais verdadeira, mais falsa, essa é a imagem dominante.

Temos auto-estradas de que não precisamos. Mas, uma vez que temos, o que é que vamos fazer para maximizar o que temos? Estou a lembrar-me de coisas que foram descabidas, estádios de futebol, mais rotundas, piscinas e pavilhões gimno-desportivos que qualquer outro sítio do mundo.

 

Os pavilhões gimno-desportivos e as piscinas, mesmo que sejam em excesso, têm uma conotação diferente. Como existe a possibilidade de a população usufruir, de um modo tendencialmente gratuito, agride menos do que um estádio de futebol que foi feito para um grande evento e que não é usado. Ou uma segunda ou terceira auto-estrada onde ninguém passa.

Claro. Não tenho nada contra piscinas, mas há piscinas por este país fora que não estão a ser usadas porque as autarquias não conseguem mantê-las.

Indiscutivelmente gastou-se muito dinheiro mal gasto. Contudo, é nossa obrigação, em vez de nos auto-flagelarmos, perguntar como é que vamos usar o património que temos.

 

Que solução adoptaria, especificamente para as auto-estradas?

Desde o princípio que tenho sido muito contra as portagens. Por uma questão conceptual, estou de acordo. A minha formação é neo-liberal e diz-me que devemos ter utilizador-pagador.

 

Na prática...

Mesmo descontando o efeito dos ciclos económicos, vemos uma diminuição aterradora do uso destas auto-estradas. Só não faço mais finca-pé nisso porque acaba por soar populista. As portagens não chegam a pagar 1/5 dos encargos das PPP. (Refiro-me às SCUT muito mais do que às concessões a seguir.) Vamos maximizar o uso destas auto-estradas, vamos encorajar as pessoas a usar e a desenvolver todo o tecido produtivo. Quanto mais se usar as auto-estradas, melhor.

 

E menos acidentes, há.

Se se puser no cômputo geral a redução do tráfego, o aumento da sinistralidade nas vias alternativas e as receitas de portagens, não valeu a pena. É uma constatação pragmática, não é uma constatação ideológica.

 

A maneira como é permeável ao embate da realidade é uma marca de viver há tantos anos nos Estados Unidos? Uma das críticas que mais frequentemente se fazem em Portugal aos académicos é que ficam encapsulados nos livros, em folhas Excel, na teoria. E têm dificuldade em dar o passo até à realidade.

Os princípios que aprendemos na teoria guiam-nos para perceber a realidade. Depois a realidade é o que é. Tenho todo o interesse em falar consigo durante dias, se for preciso, para resolver um problema. Não tenho o menor interesse em falar consigo para discutir e para marcar pontos, para dizer que estou correcto e você não está.

 

Nos Estados Unidos, as coisas são muito mais pragmáticas e imediatas. A cultura democrática portuguesa tem 40 anos.

Temos uma boa cultura democrática, não precisamos que ninguém nos dê lições de democracia. Tivemos uma convulsão muito grande nos anos 70, e esses anos ainda marcam muito o nosso discurso e as nossas atitudes. Muita gente ainda funciona na base de conceitos mentais de luta de classes, ainda que não explicitamente.

 

A esgrima retórica e partidária...

Para isso não tenho paciência. Claro que é fácil acabar por cair na retórica quando a margem de manobra é pequena [relativamente] às coisas que se têm a decidir.

 

Por causa do espartilho dos compromissos europeus?

Mais do que o espartilho europeu: nos últimos quatro anos, que tipo de discussão é que se pode ter que não seja emocional? Os partidos do Governo estão a fazer a única coisa que podem fazer. Os partidos da oposição, se estivessem no Governo, faziam exactamente a mesma coisa. Não tenho a menor dúvida.

 

Então, a apregoada sensibilidade social do PS não teria espaço nos últimos quatro anos? Teriam de engolir as críticas que frequentemente fazem ao partido de direita?

São críticas, são retóricas que têm muito pouco a ver com a realidade. Se olhar para a experiência histórica do PS no princípio dos anos 80, se olhar para os números oficiais na União Europeia, vê uma perda de salários real. Toda a gente pode ter sensibilidade social. O nosso ministro Vítor Gaspar tinha imensa sensibilidade social.

 

Está a ser irónico?

Estou e não estou. É muito fácil ter sensibilidade social quando não têm que se resolver coisas de um momento para o outro, quando se está na oposição. O próprio CDS, que está na oposição do Governo, também tem muita sensibilidade social. Porque pode ter. Não estou convencido de que a sensibilidade social seja um apanágio de direita ou de esquerda, é mais uma herança da revolução.

 

Vê essa sensibilidade na Agenda para a Década do PS?

É um passo muito importante na política portuguesa – ter aquele documento com propostas [a prazo]. Se tivesse que adivinhar, [diria que] foi escrito de maneira um bocadinho esquizofrénica. Temos um diagnóstico da situação que está apenas preocupado em atacar o Governo e em marcar posições, ignorando o que se passou antes de o Governo se tornar Governo. Depois tem uma parte em que se começa a falar em decisões. As soluções são muito centrais, pragmáticas, o universo é estreito.

 

Não há como escaqueirar a casa, romper com compromissos, fazer coisas completamente diferentes?

Não. Quando fazemos um compromisso (se calhar isto é old fashion), cumprimos. Quando se pede dinheiro emprestado, paga-se. Ninguém pôs ao país uma pistola à cabeça para este pedir dinheiro emprestado. Toda a gente ganhou com isso. Se não directamente, indirectamente. Isto não foi uma crise criada por poucos, foi uma crise em que todos participámos.

Renegociar a dívida, perdoar metade da dívida, como o PCP defende: não consigo compreender esse conceito.

 

Uma coisa é o perdão da dívida, outra é renegociar a dívida.

Temos estado a renegociar a dívida desde o princípio da Troika. Estou convencido de que será uma questão de poucos anos até percebermos – como país – o quão fundamental foi o que o ministro Vítor Gaspar fez.

 

Como assim?

O que ele fez foi restabelecer a credibilidade externa do país – como ninguém conseguiria. E desde o princípio ir olhando para a maturidade da dívida. É uma coisa de que no dia-a-dia não nos apercebemos, mas estamos agora a ter as vantagens disso. Desse ponto de vista, a dívida renegoceia-se através do mercado.

 

E o custo social? No dia em que fazemos esta entrevista, é conhecido um relatório da OCDE muito crítico do Ministério da Saúde: houve uma quebra dos cuidados primários. As pessoas passaram a chegar ao hospital num estado mais adiantado da doença. O que fazer com isto? Isto é a realidade a impor-se.

Venho de uma realidade um pouco diferente. Muitas das coisas que em Portugal as pessoas acham que são direitos adquiridos, nos Estados Unidos não são. Sou muito crítico porque os Estados Unidos estão no “80” na falta de sensibilidade social.

 

A saúde paga-se, aumentaram muito as taxas moderadoras. A escola é tendencialmente gratuita, excepto na universidade.

Mas paga o custo? Nem pouco mais ou menos. Se tivesse que pagar, mesmo com seguros, o que pagamos nos Estados Unidos, tinha um discurso diferente.

 

A matriz europeia, à qual pertencemos e da qual somos herdeiros, construída no pós-guerra quando tudo estava em frangalhos, é diferente da americana.

Não tenho dúvida disso. Mas tenho uma visão um bocadinho diferente. Tenho dificuldade em perceber porque é que não houve a preocupação de fazer uma repartição mais progressiva – no sentido fiscal – da resolução da crise.

 

Quer concretizar?

Todos os portugueses têm que pagar, com certeza. Mas porque é que as camadas mais baixas tiveram que pagar tanto? As pensões mais baixas, os salários mais baixos. A minha sensibilidade social diz-me que isto podia ter sido feito sem chegar ao extremo de… O meu pai tem 96 anos e vive de reformas. Teve que sair de um lar e ir para outro por causa dos cortes. Tem umas reformas baixíssimas. Não é o fim do mundo. Mas faz sentido?

Há problemas seríssimos, o desemprego jovem preocupa-me muito. No geral, temos um nível de vida e uma qualidade de vida que é invejável. Vai por essa Europa fora, pelos países mais jovens da União Europeia, a Croácia, a Bósnia, e em Portugal vive-se razoavelmente bem.

 

O que é que sustenta esse “vive-se razoavelmente bem”?

Ainda temos um bom tecido económico. Temos boas bases. Houve pessoas que sofreram imenso, indiscutivelmente. Mas muita da reacção das pessoas não é tanto uma questão de pobreza efectiva, mas reacção ao que se pensa que se deve ter, e que se tem direito a ter, e não tem.

 

O que é que é um direito adquirido hoje em dia?

O direito adquirido tem um custo. O que é um direito adquirido para uma geração é um pesadelo para outra geração. Temos um mercado de trabalho segmentadíssimo, em que é muito difícil despedir. O outro lado da moeda é ter uma precariedade horrorosa.

 

Então, ficamos em quê?

O direito de uns é pago pelos outros. Como sociedade temos que pensar assim: “Direito adquirido a todo o custo? Direito adquirido quando está a ferir outros?”

 

Quando se celebraram os 40 anos do 25 de Abril, foram feitos estudos sobre a democracia. A definição que os portugueses deram não se resume a eleições livres e a liberdade de expressão. Inclui no pacote acesso à educação, à saúde, Segurança Social.

Daí que diga que o nosso discurso está muito marcado pela vivência desse período. Já começa a ser altura de ultrapassar essa outra herança. Algumas dessas coisas são ilusões de óptica. No tempo do Salazar pagava-se ensino superior? Não pagava.

 

Havia 25% de analfabetos em 1974. Não se pagava ensino superior, mas os que lá chegavam eram uma franja reduzidíssima da população.

E logo a seguir, no 25 de Abril, no meu curso, Economia, começámos umas 200 pessoas, acabámos para aí 25. Isto é um desperdício de recursos. Nem toda a gente tem que ir para a universidade. Devíamos ter um ensino técnico, como existe na Alemanha, muito mais desenvolvido. Fazemos as nossas escolhas, mas temos que ter a noção do mercado de trabalho que nos rodeia.

 

Outros direitos adquiridos.

As pessoas fazem greve dos transportes. Têm direito? Têm. Têm direito legal. Têm o direito moral? Não tenho nada a certeza. O que se faz tem custos muito grandes para as outras pessoas. Chegámos a um ponto em que o direito adquirido pode ser de um egoísmo atroz.

 

Voltando ao início da conversa, à história que é possível contar de Portugal a partir das grandes obras e investimentos feitos nos últimos anos. A visão que temos disso está tingida por questões que têm que ver com o desperdício, com o desequilibro das contas públicas e mesmo com a corrupção.

Mas está mal tingido.

 

São uma espécie de efeitos secundários?

São. Hoje em dia, quando se diz PPP, as pessoas têm um ataque cardíaco. Este tipo de reacção é perigosíssimo. As PPP são um modelo de financiamento incontornável para o futuro. São um bom modelo que correu mal por que foi aplicado a investimentos que não deviam ter sido feitos.

Se não conseguirmos distinguir o modelo da aplicação que foi feita, do oportunismo político, vamos ter problemas sérios. A China está a considerar um conjunto de mais de mil PPP. Eles não são malucos.

 

Em Portugal houve, sobretudo, falta de rigor?

Houve pessoas que decidiram fazer obras por razões que não têm mesmo nada a ver com o benefício económico que aquelas obras iam gerar. O buraco das PPP é comparável à dívida das empresas públicas de transporte, tão inaceitável como o défice tarifário da electricidade (para nomear apenas alguns casos). Está longe de ser o único ou o pior problema.

 

E a corrupção, também associada ao que corre mal nas PPP?

Estou a ser um bocadinho naïf ao pensar que não é só corrupção, é também um pouco de voluntarismo em excesso. E um pouco de “fontismo”. Havia também a percepção de que havia imenso dinheiro – era uma realidade – a entrar em Portugal, que precisava de ser usado. Os anos 90 foram marcados por isso.

Em termos de infra-estruturas de transportes rodoviários, a fronteira entre o que fazia sentido e o que deixou de fazer sentido são as SCUT. Tenho a opinião de que foi boa ideia fazê-las. Mas todas as concessões depois de 2008: foram um disparate completo, olhando para as taxas de rentabilidade. As análises custo-benefício de algumas das SCUT foram feitas vários anos depois de a infra-estrutura estar feita.

 

Durante muitos anos o investimento público foi, para o bem e para o mal, o motor da economia.

Foi. Todo o país ganhou com isso. Houve muito exagero, mas não foi a causa principal dos problemas do país. Nem de perto. É preciso mais, mas sobretudo melhor e mais direccionado investimento. Impor uma maioria parlamentar de dois terços para grandes projectos de investimento é inapropriado e contraproducente.

 

Nos últimos anos, apesar das reformas que foram feitas, sobretudo para corrigir as finanças, a economia não descola. Como resolver isto de outra maneira?

A solução não pode ser mais investimento público à moda antiga.

 

O que é “à moda antiga”?

É a moda dos anos 90 e a maior parte dos anos 2000. Foi chão que deu uvas. Foram anos em que havia uma boa comparticipação da União Europeia através dos fundos comunitários. E tínhamos um défice de infra-estruturas que hoje não temos. Eventualmente nesta ou naquela comarca haverá obras last mile. A nossa economia tornou-se dependente de uma maneira muito determinante do sector público, o sector público acaba por chegar a mais de metade da economia.

 

Que comentário faz às reformas que foram feitas?

Foram feitas muitas reformas em termos de consolidação orçamental. Não tenho a certeza de que tenham sido feitas as que era preciso, ou da maneira que era preciso fazer. Grosso modo, metade foi feita através de aumento de impostos. E mais ou menos metade foi feita através da redução de gastos. Não era aquele 1/3, 2/3 como dizia o memorando. Além disso, nos gastos, o que caiu, de uma maneira precipitadíssima, foi o investimento público. O ajustamento das finanças públicas do lado das despesas não está feito. Esse vai ser um dos pontos em que tem que ser feita alguma coisa para libertar recursos para o resto da economia. A única maneira de resolver as coisas é através de reformas estruturais.

 

As famosas reformas estruturais de que se fala há décadas e que nunca mais se fazem.

Esse é outro problema, falamos imenso das coisas e depois não se fazem. É preciso mais preocupação com implementar do que com legislar. De que serviria uma regra de ouro na Constituição se a não levarmos a sério? O mesmo que as condições de défice e dívida de Maastricht.

Uma das coisas que me custam a perceber, sem sarcasmo, é como é que as pessoas que têm uma clarividência tão grande quando não estão no Governo, perdem toda a clarividência quando estão no Governo.

 

Porque não têm distância? Porque estão no meio do turbilhão?

Sim. E depois começa-se muito na linha do apagar fogos. Se calhar, precisamos de explicar às pessoas porque é que, para salvar a casa, se deita uma parede abaixo. Por outro lado, falou-se muito de muitas coisas e fez-se muito pouco. A reforma do IRC, a reforma do IRS, a reforma da fiscalidade verde, em que colaborei muito de perto: foram grandes decepções.

 

Pode falar da sua decepção com a fiscalidade verde?

Existe um grande voluntarismo e depois percebemos que a realidade é outra. Estive encarregue de coordenar um grupo de avaliação. Obviamente não fazia parte dos dez génios que eram as pessoas da comissão. Eles fizeram um trabalho extraordinário de tentar resolver os problemas, criar consensos, de tentar criar transparência. A distância que vai disso ao que foi aprovado corta-me a respiração. Faço uma pergunta retórica: o que é que foi aprovado? O que é que a lei diz sobre isto?

 

Vou fazer uma pergunta nada retórica: que interesses intervieram para que fosse aprovada qualquer coisa tão divergente do que tinha sido inicialmente proposto? Essa não é sempre a questão?

É. Esta minha pergunta não é maldosa, tem a sua razão de ser. Ainda não encontrei ninguém que me saiba responder. E não é que as pessoas sejam ignorantes. O que foi aprovado foi haver neutralidade fiscal, reciclagem das receitas em 2015, apenas em 2015. Não está consignado na lei nada que imponha uma neutralidade fiscal no futuro. A partir de 2015 temos um aumento de impostos puro e simples. Não há nada na lei que sugira que a receita da fiscalidade verde, mesmo em 2015, deva ser aplicada em questões de eficiência energética. Não existe nada que sugira que as receitas sejam usadas nem em reduções da TSU, nem em reduções de subsídios fiscais.

Temos uma lei para a qual contribuí e em relação à qual teria votado contra sem a menor hesitação. É uma lei má. Superficialmente parece-se com o que a comissão sugeriu mas não tem nada a ver uma coisa com a outra.

 

Há muito a fazer na área fiscal?

Há. De simplificação do sistema fiscal. Quando se tem um sistema tão complicado, com tantos buracos, com tantas isenções…

 

E espaço para fuga.

Claro. O que acontece é que quem tem mais espaço para fuga acaba por mudar as sedes legais para a Holanda e para outros sítios. Isto acontece porque é um sistema que continua a ser estupidamente complicado.

Temos que fazer um reordenamento de reformas estruturais, também, no mercado de trabalho. Como é que conseguimos competir com o resto do mundo?

 

Competitividade através de baixos salários?

Não é necessariamente salários baixos, é um mercado de trabalho em que as pessoas tenham incentivos. Se não aprendi mais nada a viver fora, aprendi isto: em 82, o estereótipo do trabalhador português, em Portugal, era que fazia pouco, que fazia o menos que pudesse. Como diz o Economist, em Portugal trabalha-se imenso e produz-se muito pouco. Havia esta ideia de que somos preguiçosos.

 

Ou desorganizados. Se estamos muitas horas a trabalhar e não produzimos, isso pode não ser um sintoma de preguiça mas um sintoma de má organização.

Nos anos 70 e 80 estar oito horas no trabalho não significava nada. Podia muito bem significar estar a jogar paciências.

Chego aos Estados Unidos, e vejo, em Silicone Valley, a reputação que os trabalhadores portugueses tinham. Desde as pessoas da limpeza até aos outros. Trabalhadores sérios, de confiança.

 

Qual é a sua explicação?

Quando se põe um trabalhador num contexto em que, se trabalha bem, recebe mais, e em que, se não trabalha como deve ser, é despedido, o trabalhador trabalha bem. Se se põe o mesmo trabalhador num contexto em que independentemente de trabalhar muito ou pouco recebe a mesma coisa, independentemente do que faça dificilmente vai ser despedido, como era a maioria das pessoas na altura, o que é que é racional fazer? É não fazer nada, é minimizar o esforço.

Se conseguíssemos impor no mercado de trabalho português, em particular no sector público, um sistema que premeie a produtividade, que premeie o esforço... Não lhe vou dizer quantas pessoas já vi que no princípio da sua carreira tinham um voluntarismo enorme e que acabaram absorvidas e trucidadas pelo sistema. Não podemos permitir-nos continuar a perder uma geração a seguir à outra assim.

 

Considera, então, que o que foi feito foi no mercado de trabalho foi insuficiente. Que outras apostas faria? Estamos condenados a apagar fogos?

Nesta fase é muito difícil não estar a apagar fogos. O problema, como o vejo, é que a nossa maneira de apagar fogos vai mudando muito. A melhor maneira de apagar fogos não é usar água. É mudar a vegetação, para a vegetação não arder tanto. 

Depois, há outros estrangulamentos que são menos relevantes do ponto de vista da minha análise. Ao nível da justiça. Há uma tendência interessante na justiça em Portugal: ou o sistema se moderniza ou vamos assistir ao desenvolvimento de sistemas alternativos de justiça, muito mais ao nível da arbitragem.

E continuo a pensar que é importante a questão das infra-estruturas de investimento.

 

Em que áreas, especificamente?

Não na parte de transportes rodoviários, mas na parte ferroviária e portos. São duas áreas em que tem que se fazer um bom investimento muito específico, cuidadoso. Na área do investimento público, estivemos nos “80”, agora estamos no “oito”: a verdade anda ali no meio. Precisamos de mais e, sobretudo, de melhor investimento público.

 

No começo da entrevista disse que está optimista em relação ao futuro...

Com o benefício da distância, estou. Espero que esta crise tenha servido de lição. O grande teste vai ser se todas estas reformas que precisam de ser feitas, que precisavam de ser feitas antes, vão ser feitas ou não. Ou se agora que as coisas já estão menos complicadas vamos tirar o pé do acelerador. Já se começou a tirar o pé do acelerador. Esse vai ser o grande desafio.

 

 

 Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015

 

 

 

 

Frei Bento Domingues (2015)

15.09.15

Frei Bento Domingues acabou de lançar “O Bom Humor de Deus e outras histórias”, o livro que reúne crónicas originalmente escritas para o Público, e aqui organizadas por António Marujo e Maria Julieta Mendes Dias. Nas suas palavras há sempre qualquer coisa de indomável, a capacidade de se espantar e interrogar. O riso de Deus, fio que atravessa as crónicas, esteve presente no começo desta entrevista...  

  

“… como é que vai o ser?”

Conheci um padre a quem saltou a mola. Tinha ensinado metafísica todo o tempo, e falava sempre do ser, da essência e da existência.

 

Há um ditado que diz que de louco todos temos um pouco. Ao mesmo tempo, essa pergunta é uma maneira de interrogar o nosso lugar no mundo, o que estamos aqui a fazer.

Eu estudava Filosofia e estava-me sempre a apetecer Teologia. Estudei Teologia e quis voltar à Filosofia. Era preciso pensar naquilo em que acreditava. Ninguém acredita senão interpretando. Não há credos de chapa.

 

É surpreendente o que diz. Muitos dizem que se acredita porque se acredita. Não há uma âncora racional.

Também estou de acordo: não há nenhum argumento que me faça crer ou descrer. Agora, não são as razões que tenho para crer que me fazem crer. A entrega – na fé – não é classificável em razões. Contudo, eu não acreditaria senão visse que isso me vai dar alegria, e me expande, e me transforma e me faz entrar noutra pista. Eu, para acreditar e não me sentir burro a acreditar, tenho de dizer: “Que sentido é que isto tem?”

Quando me dediquei a Jesus Cristo (é o centro do meu interesse), as perguntas que fazia sempre eram: que sentido faz acreditar em Jesus?, que beleza é que Ele traz à vida?, que responsabilidade me dá? Se não tiver isso, não alinho naquela frase bonita: creio porque é absurdo. Embora acreditar seja absurdo, seja um salto no escuro. Só que não me sinto eu a acreditar se não me der a mim razões para ir por este lado. Não acredito porque está mandado.

 

Fale de São Tomás de Aquino, que disse: “Se faço uma coisa porque está mandado, mesmo que seja por Deus, não sou livre. Só sou livre quando faço, ou deixo de fazer, porque é mal ou é bem”.

São Tomás era um místico. Desde muito criança. A pergunta dele era: quem é Deus? Quando chegou ao fim da vida, em Roccasecca [Itália], foi ali tratado por monges cistercienses. O superior faz-lhe uma pergunta fantástica: como é que é possível ser livre se Deus já tem tudo previsto?

 

É uma questão entre o livre arbítrio e os mandamentos de Deus?

Entre livre arbítrio e a própria ideia de Deus. Se Deus sabe tudo, nunca é surpreendido. Aquino dá um exemplo a esse abade. Uma procissão, as pessoas vão umas depois das outras, e não vêem nada; mas o que estiver em cima, na torre, vê a sucessão do tempo sem ser afectado pela sucessão do tempo. Marca o tempo mas não está afectado pelo tempo. Deus sabe no momento em que sabe. Portanto, Ele é livre e eu também sou livre. O conhecimento que Ele tem de mim não me afecta, eu continuo na vida.

Eu tenho uma solução para mim: espero que Deus não seja parvo.

 

Deus e parvo na mesma frase?

Sim. Se Ele não for capaz de conciliar a minha liberdade e a sua acção profunda, livre, então, é parte do mundo, é parte do mecanismo. Não é a transcendência na nossa imanência.

A Bíblia. Quando S. Paulo está em Atenas, está a ferver de indignação ao ver tantos ídolos, tantos templos. Convidam-no a ir à ágora falar. “Já vi que sois os mais religiosos dos homens. Mas vi um altar ao deus desconhecido: é desse que venho falar.” Começou a expor a sua retórica a partir de um poeta deles, pagão: “Na divindade vivemos, nos movemos e existimos”.

Aquino era de uma tendência racionalista, mas dava-se conta do mistério da vida de todos nós. (Uma pessoa que não tem a noção do misterioso de tudo, a meu ver, é um contabilista.) Perguntava-se: como é que é verdade aquilo que eu confesso na minha fé que é verdade? E, na “Suma Teológica”, à pergunta “como é Deus?”, opõe “vamos saber como não é Deus”. Sabe que Deus excede todos os conceitos. Tenta encontrar uma gramática para falar de Deus sabendo que não sabemos como Deus é.

 

Aquino era um místico, disse. Toda a linguagem da Bíblia é simbólica?

Sim. Feita de mitos, narrativas [fantásticas]. Se entender aquilo realisticamente, estrago tudo.

 

É o perigo dos fanatismos?, porque fazem uma interpretação literal dos textos sagrados?

É. Mesmo quando não vão aos extremos do fanatismo, têm uma coisa: confundem a linguagem que aponta para um sentido com a própria realidade. “Deus existe”. Esquecem que a palavra “existe” não tem ali o mesmo significado que tem quando dizemos que uma pedra existe. São registos múltiplos da linguagem. Se não se entra nessa dança, na dança simbólica, não se entende nada no plano religioso. E aqueles que querem, para segurar as pessoas, dizer que não se discute... Deu o resultado que deu no Islão, que tem uma Idade Média cheia de Filosofia, de Arte, de interrogações. Quando começam a perseguir os filósofos, aquilo estagna. O Corão não pode ser interpretado? Porque é que não pode ser interpretado? Então não é para nós.

 

Tudo é susceptível de ser interpretado?

Na minha opinião, tudo deve ser tentado ser interpretado. E depois ter à perna, sempre, a Teologia negativa. Deus é bom, mas não é bom da forma que entendo as outras coisas que são boas. Se não há o salto para o ilimitado da linguagem, de todas as linguagens... Os únicos que fazem alguma coisa muito boa são os músicos, os da grande música. Porquê? Porque não a posso apanhar.

 

Porque nos fazem ir a lugares onde a palavra não entra?

É. E porque não tem referente. Quando fazemos da palavra Deus um referente, é como se metêssemos Deus numa gaiola, é como se metêssemos Deus dentro dos nosso conceitos, das nossas imagens. Os nossos conceitos, as nossas imagens são para nos fazer viajar. É para que a imaginação não pare.

A linguagem mística, por um lado afirma muito, e por outro diz que é a noite (disse São João da Cruz).

 

Quer dizer, há sempre uma zona e outra e outra de mistério, de que não se sabe.

É. Há uma expressão em francês a que acho piada: “Un Dieu défini est un Dieu fini”. [Um Deus definido é um Deus acabado.] Quando andamos nestes percursos e queremos definições da fé... Por exemplo, o Credo. Uma pessoa não acredita no Credo. O Credo é um puro instrumento para nos fazer pensar. Se aquilo nos circunscrevesse, era uma traição ao mistério.

 

Então, por mais que tentemos tactear, tactear, tactear, há coisas que não podemos apanhar com as mãos.

Podemos! O tactear é uma forma de dizer que há uma realidade que não se atinge. Estamos a ceder a um irracionalismo? Não, o saber os limites da nossa linguagem é que é importante.

O Eduardo Lourenço diz que o poema se comenta a si mesmo. Nós podemos é entrar no poema. Os romances da Agustina Bessa-Luís respiram, andam, fazem-nos andar. É preciso não querer correspondentes. Deus vem à linguagem nessa indefinição.

 

Devemos é ter o coração aberto para ser levados (para usar uma formulação poética)?

É isso. A primeira graça de Deus é a nossa bolinha, a nossa cabecinha, o nosso coração, os nossos sentidos. Não é a graça, é a natureza? Na interpretação que faço desta natureza, é a graça. Acontece que levantamos questões que não somos capazes de resolver. O questionar é fazer-nos viajantes. O encontrar razões em discurso coeso é fundamental (nas ciências, na Filosofia) – para não cairmos no vale tudo. Mas temos a consciência oceânica, a consciência de que estamos dentro do mistério, do inabarcável. São Paulo, de novo: “Na divindade vivemos, nos movemos e existimos”.

Há uma narrativa de São Lucas que faço sempre nos funerais, nos baptizados, nos casamentos.

 

O que é que tem de essencial e que pode coadunar-se com essas ocasiões, tão diferentes? Antes disso, como é a narrativa?

Lucas conta que Jesus mandou uns 70 discípulos em pregação. Quando voltaram, voltaram como os adolescentes dos campos de férias, que contam, contam, contam. Jesus disse: “Alegrai-vos. Os vossos nomes estão inscritos nos Céus.” Em tradução nossa: alegrai-vos, a vossa vida está no coração de Deus. Somos amados. Aquilo de que todas as pessoas gostam é de contar para os olhos de alguém.

 

Voltando à pergunta inicial, ao “como vai o ser”: o ser, o que procura é ser amado, contar para alguém.

Sempre. Fora do amor não existimos. O amor é a suprema forma de ser. O amor é doação, é dar-se.

 

É por isto que, mais do que tudo, lhe interessou Jesus?

Sim, sim. A gente nota, mesmo nas leituras do Evangelho, que Jesus levou muito tempo a encontrar o seu caminho. Coisa espantosa.

 

Como nós?

Como nós.

 

Falemos do Papa Francisco, do que está a mudar. Tem um impulso que não estamos habituados a ver na igreja, que muda as coisas de lugar.

É dentro da estrutura da igreja que andam assustados. Porque tinham tudo arrumadinho. Estava como no tempo de Jesus: uma religião que era a salvação de poucos e a condenação de muitos. Jesus, a isso, disse que não podia ser.

O Papa Francisco teve uma iluminação que o fez ver tudo às avessas.

 

Isso é tão difícil. Sem nos darmos conta, somos facilmente domesticados pela vida, pelas circunstâncias.

As pessoas gostam de fazer caminhos de oração... (como é que hei-de dizer?) para ter mais uma segurança.

 

No fundo, estamos sempre a falar do medo do desamparo.

É isso, é isso. O Papa Francisco desamparou isso tudo. Foi também a obra de Jesus com os discípulos. É quase sentir uma incompatibilidade de viver quando os outros estão a desviver.

 

Vivemos um período em que tudo parece inquinado. Em que parece que precisamos de uma revolução. Crentes e não crentes apontam, sobretudo, uma alegria, que irradia de Francisco e de estamos falhos.

Acho que tocou no ponto essencial. Temos de nos alegrar no meio da dor. A igreja deve ser um foco de alegria – porque há esperança! A crença na ressurreição é uma crença muito razoável. Se não há uma memória de alegria para biliões de seres, baptizados e não baptizados, para aqueles que nem tiveram tempo para viver, para os que foram para a vala comum..., pelo amor de Deus, isto não tem jeito.

O Papa estava a ver a igreja num túmulo. Enterrada. Quais eram as notícias, quando Francisco chega? No Vaticano só se falava dos dinheiros, dos escândalos que havia, da pedofilia. Francisco aparece, alegre. Não alegre por ser Papa. Alegre por poder estar com as pessoas de outra maneira. Diz-lhes: “Bom jantar”. As pessoas repararam em coisas. Não as eclesiásticas. Não a Cúria. A sua primeira visita foi a um cemitério, a Lampedusa.

 

Foi crítico da indiferença, apelou à solidariedade. Foi “chorar os mortos que ninguém chora”.

É algo que comove até às tripas. Fez uma homilia em duas palavras: “Que vergonha, isto é uma vergonha”. Esta capacidade de indignação é simétrica da capacidade de exultação. Não se aguenta a desvida se não se faz um hino à vida. O Papa está a dizer de todas as maneiras, aos grandes, aos pequenos, que temos de mudar a vida. O que há nele é o sentido da conversão. Podemos mudar, podemos ser outra coisa, o mundo pode ser outra coisa.

 

O Papa falou expressamente da economia, dos desequilíbrios num mundo globalizado que matam.

Que o Papa fale na “economia que mata”: está a dizer evidências! As mudanças no campo económico e financeiro são fundamentais. Por causa de quê? Para que a economia funcione bem? Não, não. Para que funcione em função das pessoas. Podem-lhe dizer que o seu programa não se pode executar. Mas ele não tem programa. Ele faz uma convocatória. A toda a inteligência, a todo o coração, a todas as energias, a todos os recursos que há no mundo. E diz assim: comecemos a olhar a partir daqueles que são sistematicamente excluídos. Usou umas palavras para esses: descartáveis e sobrantes.

 

Descartáveis e sobrantes.

Os que não contam, os que tanto vale que existam como que não existam. Um mundo que se organiza e em que há gente que sobra, não é mundo. E as pessoas não podem dizer que não há recursos. Recursos para oprimir, há sempre. Então e recursos para libertar, não há? O Papa, o que trouxe: um ver as pessoas a partir de fora.

Já me irrita quando se fala da “pessoa humana”! É evidente que é bonito, porque também há as pessoas trinitárias, as pessoas divinas [tom irónico].

 

Não há outra coisa senão “pessoa humana”, mesmo quando não é tratada como pessoa humana.  

Sobretudo, o que há são pessoas desumanizadas. Despersonalizadas. Violentadas.

 

Há pouco falou de o Papa convocar. Convocar-nos, globalmente, para que não viremos a cara. Mas disse ainda outra coisa: que olha de outro lugar. É uma forma de nos incitar a que mudemos o sítio a partir do qual vemos.

É isso: de onde é que vemos o mundo? As histórias que vão acontecendo... Ele ia para uma periferia de Roma, no caminho olha pela janela e vê um grupo de escuros. Manda parar. Era um bairro de lata com migrantes da América Latina. Ficou primeiro ali e depois é que foi [para o outro destino]. Esta capacidade de ser surpreendido por aquilo que não está programado é espantosa. Porque esta gente toda é desprogramada. Está fora dos programas. Mesmo aqui ao redor de Lisboa.

 

Quando falamos de Lampedusa, de bairros de lata, do quão as pessoas estão desprogramadas e perdidas, parece que estamos num cenário pré-cataclísmico. Dizemos que o mundo está tão desengonçado que precisamos de qualquer coisa que represente uma grande fractura. Como uma revolução, para compor de novo. Por outro lado, todos sabemos que não há folha em branco.

Sim. Acho graça, nos textos assim, não só bíblicos, estão sempre a falar de novos céus, nova terra, onde não haverá violência, não haverá isto... Digo sempre que é melhor que pensem nisso do que no contrário, mas, de facto, somos pessoas de um caminho. Quando chegámos, isto já estava como estava e quando partirmos, isto ainda fica muito atrasado. Agora, segundo o sopro que cada um receber, segundo o vento que chegar a cada um, que [este] responsa.

 

Está a pensar no vento, na acção que cada um possa produzir?    

Sim, sim. E que seja um foco de irradiação de outra maneira de ver. Eu vejo assim. No interior da História encontramos coisas com sentido e outras sem sentido. Depois, não temos capacidade nenhuma de dizer que o mundo tem sentido. Não temos uma abrangência, um sobrevoar que nos permita saber para onde é que isto vai. Mas o nosso sentido vem sempre de uma descoberta de sentido. Digo às pessoas todas: se não tem sentido, a única filosofia verdadeira é o suicídio. A questão toda é que confessamos que temos sentido. Saímos, vamos a um sítio bonito e vemos que tem sentido. Vemos uma coisa escangalhada, uma praia estragada e dizemos que não tem sentido.

 

Num quadro religioso, há um sentido, o sentido que Deus representa.

Quando dizemos Deus, dizemos que o mundo tem sentido. É uma forma de falar. Wittgenstein viu muito claro quando disse que dizer que o mundo tem sentido é [uma forma de] rezar. Não é rezar as orações feitas, é dizer que ao fim e ao cabo vamos lutar. Não vamos deixar que as energias que temos, as capacidades com que vimos, os talentos com que nascemos [sejam anulados]. Uma parábola. A dos talentos.

 

Conte.

Um recebe um talento, outro recebe dois, outro recebe cinco. Os que receberam muitos talentos, fizeram-nos render. O pobre, que só tinha um, enterrou-o. Disseram-lhe: “Não podias tê-lo feito render? O pouco que tens te será tirado e ao que mais tem mais será dado”. [É a tradução de] um mundo de um capitalismo selvagem. Só que depois há a representação do julgamento do mundo. O mundo está dividido entre aqueles que fizeram o bem (“tive fome, deste-me de comer, tive sede, deste-me de beber, estava na cadeia, visitaste-me...”) e os outros, que não o fizeram. Respondem: “Mas nunca soubemos que eras tu, que eras o Senhor da História. Senão, tínhamos-te tratado de outra maneira”. “O que fizestes a um destes, a mim o fizestes.”

 

Como interpreta esta passagem?

Aquilo que dá sentido à vida é o que eu posso fazer pela alegria daqueles que não podem nada. Ou então nego-me, e nego-me ao sentido da vida. O encontro que tenho com Deus, nesta parábola, é o encontro que tenho com aquelas pessoas que precisavam e ajudei, ou o desencontro com Deus porque me desencontrei daqueles que precisavam de mim. As pessoas podem dizer: “Pois, mas isso é literatura”. Claro que é literatura! Queria era ver o povo que possa viver sem literatura.

 

Falemos do que não é literatura. Das pessoas com quem nos últimos anos tem contactado, no terreno. Pessoas que precisam, pessoas que estão em crise, não só porque foram acossadas pela crise mas porque a situação as conduziu a uma crise pessoal e de sentido.

A minha geografia é muito limitada, mas faço conferências no país inteiro. As pessoas que me procuram, procuram-me porque... há muita gente, de muitas maneiras, que se sente sem saber o que fazer da vida. Tiveram de se deslocar dos familiares – é a emigração. A frase mais horrorosa que ouvi em Portugal foi, não sei se há três anos: “Não sejam lamechas”. Quem não está bem, que emigre.

 

Porque é que foi a mais horrorosa? Porque é que essa frase, de Passos Coelho, o agrediu tanto?

Agrediu. Porque esta frase é a negação de um país. Seja que governo for, pode fazer bem, pode fazer mal. Não pode, à partida, dizer que está para uns tantos, e que, os que não estão bem, que se amanhem.

 

O que é diferente, nestes anos de crise?

Senti mais, de outras formas, tanta gente que não tem quem cuide dela. Uma gente de que não se fala senão de vez em quando. Gente que tinha uma vida razoável, sob um ponto de vista económico, de gestão da vida. Uma família, e estão os dois desempregados. Têm vergonha de ir para a fila na paróquia, na Cáritas, no Banco Alimentar. Tenho vários testemunhos de párocos, de pessoas a quem pedem: “Arranje maneira de nos levar essas coisas a casa. Temos de fazer uma ficção para os nossos filhos, que temos coisas que vamos arranjando, e tal...” Isto de ter de viver perante os filhos numa ficção... E as pessoas que perdem o emprego aos 45, 50 anos? Fatal.

 

Essas pessoas recorrem mais à igreja, precisam mais. Mas a relação com a igreja, na sua dimensão espiritual, está a mudar, também?    

Há muitas pessoas que estavam perdidas da igreja. Porque proíbe isto, proíbe aquilo. De repente viram uma luzinha. Também acho que isto seja [um efeito] do Papa Francisco. “Acha que eu posso ir à missa? Acha que posso comungar?” Às vezes até me dá riso. Oh, meu Deus, como é que foi possível viver tanto tempo sem se dar conta que era amada? Estimada. A única coisa que posso dizer é que essas coisas que dizem que as impedem de estar de bem com Deus... Tonteria total!

 

Estou a pensar nas pessoas que se divorciam, têm relações homossexuais, fizeram um aborto. Nas pessoas que se sentiram excluídas da igreja porque foram contra os dogmas da igreja.

É isso. Repare, confundir um pecado nosso, confundir as nossas medidas com a desmedida do amor de Deus, é uma blasfémia. É um fariseísmo. É evidente que uma instituição tem de ter regras, mas tem de ter consciência de que não foi Deus que as ditou. Foi o que puderam arranjar ou desarranjar. O que é fulcral: uma igreja para ser testemunha num mundo como este, tem de ser uma igreja de saída (como lhe chama o Papa).

 

Como é uma igreja de saída?

Uma igreja de entrada: as pessoas que venham cá ter connosco e a gente diz como é. Não. É sair ao encontro. É uma frase de Jesus que este Papa reencontrou: “Vinde a mim vós todos que andais aflitos e oprimidos, e Eu vos aliviarei”. (Na minha terra havia a Nossa Senhora do Alívio.)

 

Este reencontro das palavras de Jesus com um Papa...

O primeiro que me deixou assim foi João XXIII. Todos os dias me lembro dele. Achei que naquela cara havia uma aparição de Deus.

 

Ir ao encontro e ir de encontro são coisas opostas. Muitas pessoas nem fazem a distinção. Trata-se de não ir aos encontrões, contra alguma coisa, mas de procurar o encontro com, caminhar nessa direcção.    

É um ir ao encontro, sim, dessa gente que por motivos éticos, religiosos, sexuais, se sente excluída. Ética sexual, sobretudo: arranjaram que as pessoas se sentem excluídas. Eu, isso, não.

 

É uma voz crítica, muitas vezes. Sem custos?

Às vezes escrevo coisas nas crónicas do Público, e dizem-me: “Desta vez é que vais apanhar”. Apanhar de quê? Temos de ajudar as pessoas que estão muito aflitas a encontrar alívio na vida.

 

Pensei de novo nas pessoas que seguiam como naquele verso do Alexandre O’Neill, quando a vida permitia a rotina, num “modo burocrático de viver”. Com o desemprego, a pobreza súbita, foram sacudidas da sua normalidade. Ficaram desamparadas.

Desamparadas num mundo alagado. Muitas vezes andamos distraídos de nós mesmos. Achamos que é tudo auto-estrada, e não é. Mas quando chega um momento em que a vida fica desarranjada segundo os cânones estabelecidos, quando as pessoas ficam doentes, não são de lado nenhum. Tenho encontrado imensas pessoas que não se sentem de lado nenhum. Digo que não pode ser, não pode ser. Deus não pode ser confundido com os nossos limites. Quando digo Deus, não falo de uma entidade que possa definir, mas de um amor imenso. O ser humano, com a sua razão, organiza o mundo como pode. (Digo muitas vezes: “Foi o que se pôde arranjar!”) O importante é perceber que são pessoas da nossa família que sofrem. Não são estranhos.

 

Podíamos ser nós?, é isso que quer dizer?

Somos nós, também. Aquela é gente nossa. O mundo é de muitos povos, cores... No outro dia na Gulbenkian, um senhor disse que a filha era casada com o negro. Não sabia se havia de dizer negro ou preto. Uma pessoa ao meu lado comentou: “Porque é que não lhe chama pelo nome?”. Queremos todos ter o mundo arrumadinho. As nossas arrumações devem ser pontes. Pontes com os outros.

Já houve muitas civilizações, muitos impérios, ruiu tudo. Deixaram coisas admiráveis. Mas quando se pensa que se domina, acabou. Uma coisa é poder – poder é capacidade. Outra coisa é dominação. Hoje, tudo está no quem é que domina quem. Quem é que tem mais peso na Europa, no mundo. Não se pensa na capacidade de serviço. O homem veio, não para ser servido, mas para servir.

 

Ouço-o e penso nos países da Europa que dominam, penso na Alemanha.

Os outros, se pudessem, queriam ser dominantes. Serviços? Posso dar uma esmola. Posso dar um contributo para isto, para aquilo. Há muita gente que serve fazendo essas coisas. Mas conceber a vida, desde a educação das crianças, como um serviço... A pergunta é: em que é que posso servir? Pergunta delicada para a burguesia. Não devemos é deixar que os outros abusem na nossa generosidade. Mas esta é a pergunta.

 

É comum nos restaurantes ingleses ou americanos, nos serviços, perguntarem: how can I help you? Mas transformou-se numa frase banal, esvaziada.

Tornou-se uma frase publicitária. E a alegria que um dia posso conquistar por estar capacitado para servir? Isto mudava muita coisa, até na política. A categoria dominação entrou de tal maneira que se tornou a nossa cultura interior. As pessoas dizem-me: “Não pense que as coisas vão mudar”.

 

E pensa?

Não. O que penso é que se não disser o que penso, se não disser o que sinto, se não fizer o que posso, estou a autodestruir-me. Uma pessoa está velha, um dia morre. Da morte tive sempre medo, desde criança. (Ver gente morrer? “Para onde é que vai?”, pensava.) O problema é que tenho pouco tempo. Pouco tempo para fazer aquilo que pode ser feito. São Tomás de Aquino teve muito pouco tempo para viver, 49 anos. Tinha uma tal paixão por entender... O essencial não entendemos. Mas podemos caminhar para ele. O essencial é o que puxa por nós, o que nos faz andar. A arte, a poesia, que nos faz saltar para lá do muro. A Teologia e a Filosofia: são um interrogar contínuo. Cada adquirido é só um patamar para nova interrogação.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015

 

 

 

 

Dulce Maria Cardoso

10.09.15

Dulce Maria Cardoso regressou de Angola na ponte aérea de 1975. Diz que o frio da metrópole lhe fez o que faz aos bolos quando se abre o forno: parou de crescer. Viveu uns meses em Trás-os-Montes, mudou-se para Cascais. Estudou Direito, é escritora. Tem 50 anos. “O Retorno” centrado na experiência da perda e do recomeço, está traduzido em várias línguas, vendeu milhares de exemplares, é estudado em escolas.

Passam este ano 40 anos sobre a independência das colónias. A ferida sarou?

  

Qual foi o dia do retorno?

Foi 8 de Julho de 1975. Dois dias antes de fazer 11 anos. Fiz anos quando cheguei a Trás-os-Montes. Deduzo que tenha sido esse o dia. Mas pode haver um registo a 7... Fomos para o aeroporto [em Luanda], estava cheio, ficámos à espera. Não havia um bilhete, um “vai-se naquele dia”.

 

Foi o fim de uma vida e o começo de outra. Foi o fim da infância e o começo da vida adulta – sem passagem pelo corredor de transição que é a adolescência?

Passa-se pela adolescência. É uma coisa que se aprende nestes períodos mais extremados: independentemente das nossas circunstâncias, há uma parte biológica que se impõe.

África é o continente da infância. Por causa do espaço, da cor, dos cheiros. É tudo muito excessivo. A infância é sempre um tempo mítico. A minha infância ainda foi mais.

 

Porquê?

Foi passada num cenário ao qual nunca mais regressei. Coincidiu, não com o fim da ditadura, mas com uma coisa mais vasta: o fim do império. Foram 500 anos. A minha história pessoal cruzou-se com a História. Foi a única vez na vida em que fiz parte de um processo assim. Fui uma das vítimas, fui uma das testemunhas, e, por ser criança, não fui uma das cúmplices. Senão teria sido.

 

O império foi desmantelado e a sua vida também. Arrumada em malas, apressadamente, para iniciar uma nova vida. Retrospectivamente é essa a imagem que fica, que se impõe?

Na altura não se pensa em nada disso. Olhamos para o passado com lentes do presente. Obviamente já sabemos o desfecho. Já somos outros. Na altura é uma família com malas – ou sem malas, no nosso caso. É só uma família aflita num país que está em guerra civil. Que vai perder tudo. Que sabe a miséria de que a metrópole é feita, e que sabe que vai regressar para a realidade de onde fugiu.

Os meus pais foram para Angola por questões familiares e financeiras. Foram para Angola como podiam ter ido para outro sítio qualquer. Mas para a maior parte das pessoas a narrativa era a da pobreza da metrópole. Poucos recursos, pouco emprego, vida pior. Muitos retornados foram para os Estados Unidos, África do Sul, Brasil. Eu tinha muita inveja deles.

 

Porque iam para destinos exóticos?

Porque não vinham para aqui. Tanto me fazia. O mundo era pequeno para mim. Só há pouco tempo deixei de querer sair daqui. Só em 2010.

 

Coincidiu com a escrita d’”O Retorno”?

Foi uma coincidência. Já tinha passado uma temporada nos Estados Unidos e um ano na Alemanha. Foi aí que percebi que pertenço aqui. Não por um sentimento de pátria. Esses conceitos não me dizem quase nada.

 

Onde é que sente que pertence?

Geograficamente não pertenço a lado algum. Pertenço aos meus pensamentos. Pode ser uma construção minha... Pode estar um sol maravilhoso, se estiver triste e não conseguir sair dessa tristeza, o sol não existe para mim. E nos pensamentos englobo tudo. Pertenço aos meus amores. Concentraram-se aqui as pessoas de que preciso. Não me habituo à ausência dos que amo.

 

Ainda antes do 25 de Abril, vai para a escola, onde é ensinada uma ideia de império. Como é que era?

A ideia de império era passada como é passada qualquer ideia de propaganda. Com a glorificação de um mito. Portugal era um país que ia do Minho a Timor. Tínhamos um mapa [onde se lia] “Portugal não é um país pequeno”. Tínhamos outro mapa só para as colónias: Portugal continental enorme e as colónias à volta muito pequeninas. (Ainda hoje sou muito má a geografia.) Aos sábados de manhã havia os hinos, com a Educação Física. Cá, na metrópole, mitificava-se a vida nas colónias. Com fazendas e elefantes e pôr do sol e mariscos, e as pessoas sempre bem dispostas e na praia. Não era de todo assim. Eram muitas vezes vidas modestas. Muito medo do desconhecido.

 

Não mencionou uma coisa que fazia parte dessa mitificação: grandes casas com um rancho de empregados. Pretos, como se dizia.

Talvez no interior fosse assim, talvez nas fazendas tivesse de ser assim. Em Luanda, na minha realidade, não era assim. Se for para o Restelo, ficará com a ideia de que os portugueses vivem todos em vivenda com jardim e jardineiros. Portanto, havia, não era a maioria, nem podia ser. A vida maravilhosa que era contada, e muito pelos retornados, não é verdadeira. Mas as pessoas, tendo perdido tudo, tinham que dizer que perderam uma coisa maravilhosa.

 

Também se mitificava a metrópole? No seu livro escreve: “Então a metrópole afinal é isto”.

Essa frase, levou meses a ser escrita. Escrevi exaustivamente, folhas e folhas e folhas, a dizer como é que era a metrópole.

 

Como era de facto ou como imaginava que era?

Como era quando cheguei. O que vi. Embelezei tudo. Só agora, a escrever “O Retorno”, é que tirei os pormenores de decoração e passei à memória pura e dura. Foi muito doloroso. De repente percebi que a desilusão é o branco. É o vazio. Não há nada. Surgiu-me esta frase: “Então a metrópole afinal é isto”. “Isto” é a desilusão, é a minha desilusão.

 

Como era a metrópole mitificada?

Havia cerejas, o fruto mais apetecido. Não havia doenças. Roupas fantásticas. Em Angola fazíamos o calendário pela metrópole. Ou seja, no tempo mais quente estávamos em aulas, no tempo mais fresco estávamos em casa. Tínhamos casas com alcatifa e lareira! As fatias douradas azedavam da consoada para o dia de Natal, mas era assim que na metrópole se fazia.

 

E as cerejas?

Não havia. Tudo se dava, que era uma terra abençoada (como toda a gente dizia). Caía um caroço e nascia uma árvore. Cerejas e maçãs, não havia. Uma vez, num casamento muito rico, disseram que havia cerejas. E havia, numa cestinha, umas coisas mirradas, feias, que me pareciam pitangas. Provei, achei terrível. Disse que era maravilhoso e passei eu também a alimentar o mito das cerejas. É assim que se faz. Deve ser por isto que não há nada que eu escreva que não tenha cerejas. [riso]

 

Mitificavam-se as cerejas, a vida cá, a vida lá...

E a verdade está, como tudo, mais ou menos ao meio. Claro que havia coisas maravilhosas em Angola. A vida era mais fácil, havia mais dinheiro, mais oportunidades. Havia coisas terríveis. Medo. Nós éramos uma minoria. Quando digo nós, digo brancos.

 

Havia medo palpável antes do ano de guerra civil?

Claro que havia. Tinha havido 61, “para Angola, rapidamente em força! [frase de Salazar]”. Tinha amigos que não tinham pai – tinha sido decapitado na década de 60. Usavam-se aquelas braçadeiras de luto: era muito frequente vê-las. Sabíamos que estávamos em território hostil, que não pertencíamos lá.

 

Sabiam como? Estava nas conversas?

Para já, era uma questão de quantidade.

 

Na sua turma, na escola, havia meninos negros?

Não. Eu andava no colégio João de Deus, que era privado. Na escola pública, havia. Os negros misturavam-se muito com os brancos. Não havia em Angola o racismo que havia na África do Sul ou mesmo em Moçambique. Mas havia racismo em Angola. Há pessoas que se indignam quando digo que havia racismo em Angola. Mas, nesta esplanada, quantos negros vê? Na Assembleia da República, quantos negros vê? Na televisão, a dar notícias, quantos negros vê? Agora vá para bairros desfavorecidos, e veja quantos negros encontra. Se há racismo em Lisboa em 2015, como é que se quer que em Angola em 1975, numa situação de domínio, de colónia, não houvesse racismo? Como? Só se tivéssemos caído num buraco e nos tornássemos todos infinitamente bons.

 

Era banal encontrar um branco a maltratar um negro, a falar torto a um negro?

Claro que era. Mas isso até se podia resolver, porque esse branco podia ser punido ou ensinado. O problema do preconceito é anterior: é na não-oportunidade. Se um negro se conseguisse impor e vivesse ao pé dos brancos, e tivesse dinheiro, tirando um ou outro branco, ninguém o expulsava. O problema era ele não chegar lá.

 

Não havia nenhum negro proprietário de uma empresa com brancos a trabalhar na construção civil?

Não. Como cá não há, quase. E nem nos apercebemos disso, de um fundo lodoso, pantanoso. Em Angola, não me lembro de cenas violentas. Não mais do que aqui quando vou a um bairro menos privilegiado.

 

A questão é a estratificação social.

A questão é a falta de oportunidades. Quantos negros existiam na escola, quantos viviam em bairros com água canalizada? Acho muito interessante que se estude o que aconteceu se se fizer a ponte para o que está a acontecer. É anestesiante esta ideia de que o colonialismo foi terrível, “como é que nós fomos capazes?”, não percebendo que o que está a acontecer é tão grave como o que aconteceu.

 

Tão grave, como?

O colonialismo deixou de ser territorial. A não ser que escavemos até ao centro da terra e encontremos algo semelhante a índios ou negros, já não podemos colonizar nada. O mundo tornou-se finito. Só que há outras formas de colonialismo. O económico. O colonialismo económico põe milhões no desemprego, leva a uma desigualdade social enorme – é uma coisa gravíssima. Tornou-se invisível. Não temos consciência dele. “Isso é mesmo assim.”

 

Diz, no fundo, que temos uma lente treinada para ver a discriminação racial, e que banalizamos a discriminação de classe ou económica?

Ou estética. De alguma forma, a revolução tem de partir das elites. São as elites que têm poder, tempo e dinheiro. Os explorados, os discriminados em geral não têm nada disso.

 

Estão ocupados a sobreviver.

Estão muito ocupados a sobreviver. Não têm voz. O esforço tem de ser sempre dos que estão numa situação de privilégio. Normalmente, quando estamos numa situação de privilégio tornamo-nos indiferentes. Somos muito rápidos no gatilho, a acusar, mas não estou a falar dos outros, estou a falar de mim. Enquanto não nos toca a nós, o sofrimento do outro pode esperar. Uma das coisas que mais me agradam n’”O Retorno” foi ter falado da Pirata, uma cadelinha que fica lá. Várias pessoas me disseram que perceberam que não podiam abandonar animais por causa da Pirata. Fez-lhes muita impressão aquela cadela que não parava de correr. As vítimas não param de correr. Nós é que paramos de olhar para elas. Há sempre uma altura em que paramos de olhar – torna-se insuportável.

Há dois dias comemorámos os 41 anos de uma revolução, sabemos que fizemos um enorme caminho (é bom que se diga que isto era terrível em termos de pobreza, atraso, etc.), e estamos tão longe, tão longe dos ideais de Abril...

 

Celebrou o 25 de Abril?

Celebro sempre. Celebrarei qualquer revolução que vise a igualdade de oportunidades.

 

A maneira como o colonialismo era visto, na metrópole, foi uma das razões pelas quais os retornados foram mal recebidos? Havia a acusação de que eram racistas, que tratavam mal os negros, que estavam a ter o que mereciam.

Acho que sim. Nós fomos os despojos de uma realidade que ninguém queria ver. É simples acusar aqueles que, por desespero, por falta de alternativa, por espírito mais aventureiro, o que for, saíram. Depois esse meio milhão voltou a competir por casas, empregos, namoros. A condição faz [com que sejam olhados assim]: “Vocês são os que exploraram”. Sendo que cá se explorava a criadita da aldeia, que vivia no bairro social de Alvalade num quarto exíguo, que o patrão engravidava.

É verdade que lá exploraram tanto quanto cá, tanto como agora quem tem poder. A questão é: o que é que faz uma pessoa que está numa situação de poder prescindir de explorar o outro? O que nos faz não ceder aos nossos piores instintos?

 

Civilização, educação?

Mesmo assim. É da condição humana, querer sempre mais, querer sempre o melhor, de sermos pouco empáticos com o sofrimento do outro quando o nosso está de permeio. O que é que faz [com que não seja assim]? Para mim, é a ideia de Deus.

 

É uma ideia de Bem?

É uma ideia de Bem que me é exterior, que não reconheço em mim nem nos meus semelhantes, e que me impede de ser a maior bandida do mundo. O que é que impede um país ou uma pessoa com poder de subjugar a outra? Se soubéssemos, podíamos prevenir o Mal. Mas o Mal é impossível de expurgar. Há uma parte muito cinzenta – a da ética – em que não se fala de Mal nem de Bem. Fala-se de territórios, mistos, em que vamos sendo bons e maus à vez. É assim que nós somos. O maior idiota tem razão duas vezes ao dia, o ser mais malvado tem uma ou duas qualidades (toda a gente fala de o Hitler ser vegetariano e de gostar de cães).

(Quando falo de Bem e de Deus, não é de religião que estou a falar.)

 

No espaço de um ano chegou mais de meio milhão de pessoas. A sua inserção não provocou grandes convulsões ou fracturas. A que é que acha que se deveu isso?

Por um lado, temos de definir o que é correr bem. Não há relatos das pessoas que se suicidaram. Não há relatos dos que enlouqueceram. Não há relatos dos que ainda hoje envelhecem amargos e pobres. É verdade que não houve um [faz som de deflagração]! Não foi pelo esforço de integração dos de cá – compreensivelmente. O que aconteceu foi que os retornados decidiram integrar-se.

 

Decidiram?

Decidiram [integrar-se] porque estavam cansados. Já sabiam o que era uma guerra civil (ao contrário dos de cá). Tinham perdido tudo, estavam muito concentrados em sobreviver. Perceberam que estavam em minoria, mais uma vez. E abriram um café, abriram lojas diferentes. Foi muito através do negócio [que se instalaram].

 

Muitos funcionários públicos, também.

Mas esses tinham a vida assegurada. Detesto pensar que Marx tinha muito mais razão do que julgamos, mas a questão é sempre económica. Havia retornados que tinham muito dinheiro. Conheci uma família, em Cascais. Tinham uma casa enorme, faziam uma festa todos os sábados. Eram os heróis do bairro. O estigma maior é a pobreza, seja retornado ou não. Os retornados que vieram com dinheiro ou emprego, sim, houve uma perda afectiva, sim, uma saudade, sim, viram coisas terríveis...

 

A questão é se vieram com uma mão à frente e outra atrás ou se vieram com um punhado de diamantes no bolso.

Exactamente. Tudo o que estamos aqui a falar: vamos bater aí, à pobreza.

 

Frequentemente diz-se que a descolonização correu mal. Mas podia ter corrido bem, tendo começado com tantos anos de atraso?

Tendemos a ver e a pensar a descolonização só pelo nosso lado. Deixámos povos em guerra, o que por si só demonstraria que a descolonização correu mal. Claro que a independência era fundamental, mas talvez pudesse ter acontecido de outra maneira. Passados 40 anos, atrevo-me a dizer que se passou com o império e as colónias o que em geral se passa nas nossas vidas com a maior parte das pessoas e dos acontecimentos. Avistamos mas não conhecemos, e muitas vezes nem sequer vemos. Avistámos vários continentes, vários povos e várias culturas, mas não conseguimos ver, não conseguimos conhecer, não conseguimos ficar próximos como provam as relações que temos actualmente com esses Estados. Basta olhar para as políticas de imigração e de emigração.

 

Que memórias tem do ano de guerra civil? Era uma criança de nove, dez anos.

Por incrível que pareça, tenho memórias divertidas. Apesar de terem morrido pessoas. O meu Rui d’ “O Retorno” chama-se assim por homenagem ao meu amigo Rui, cujos dois irmãos foram assassinados.

Não tínhamos televisão. Tínhamos rádio, e os mais velhos adoravam o “Simplesmente Maria”. Antes e depois, havia uma lista interminável de desaparecidos. Basicamente, queria dizer que estavam mortos. A indiferença era tão grande que a minha mãe e as vizinhas diziam: “Esta lista está cada vez maior! Nunca mais chega a novela.” Não eram monstros. Era só porque não lhes dizia respeito.

 

Quando é que passou a dizer respeito?

Quando ouvi o nome do Hélder e do Zé Abreu na lista. Foram os primeiros dois conhecidos. Irmãos desse amigo, com quem dancei pela primeira vez. E de repente já não era uma lista. Aquelas pessoas tinham cara. O Rui é um adolescente e um homem por causa disto. O Rui foi sempre a minha medida da guerra e a medida do meu conforto. Porque quando cheguei cá e tinha uma vida desesperada, pensava: “Mas o Rui, esteja onde estiver, tem isto tudo e não tem dois irmãos.” Reencontrei-o por causa d’ “O Retorno”, disse-lhe o quanto me sentia culpada por me ter confortado com a ideia de que eu, ao menos, tinha a família completa...

A meio do livro percebi que Rui é o imperativo do verbo “ruir”.

 

Eram vidas em ruína.

Rui estava certo, porque eu tinha assistido ao monstro a ruir.

Houve isto, houve uma mulher barbaramente violada, houve uma mulher grávida a quem abriram a barriga. Isto tudo entre os vizinhos.

 

E como é que pode ter memórias divertidas?

Habituamo-nos a tudo. Era lindo ver as balas luminosas, da sede do MPLA para a FNLA. Não sei o nome técnico, parecia fogo de artifício. Assistíamos da varanda, como assistíamos a muitos outros confrontos, que nos tiravam, a nós crianças, ou a adultos inconscientes, do tédio. O recolher obrigatório fazia com que não se voltasse a horas para casa. As festas prolongavam-se pela noite. Fazia com quem os professores faltassem às aulas. Fazia com que tudo fosse extremado, urgente. Muitas coisas deixaram de ter importância. Eu podia andar com umas botas de salto alto da minha irmã, cinco anos mais velha, e a minha mãe não me dizia nada. Havia tanta coisa a tratar... Habituamo-nos a tudo. E até, se tivermos talento para isso, habituamo-nos a ser felizes nestes contextos.

Estou sempre a falar do ponto de vista de uma criança. Acredito que a disposição do meu pai, preocupado com o regresso ou o nosso sustento, fosse diferente da minha. As recordações piores já são na metrópole.

 

São dos pais e dos amigos dos pais a falar do que perderam? É a sensação de desamparo, aqui?

Não. Como eu dizia, não há nada como a pobreza. Era ponto assente para os meus pais que nem eu nem a minha irmã podíamos parar de estudar. Por isso, tivéssemos roupa ou não, comida ou não, passe ou não, íamos. Repare, as crianças são muito cruéis. É complicado ir para uma escola onde não se conhece ninguém, onde se é diferente... Se tivesse o dinheiro dos retornados da casa grande e pudesse impor o meu exotismo... Tinha de andar com o pijama debaixo da roupa, uma gabardine e umas galochas que deram na Cáritas, sem cadernos, livros emprestados, uma professora que disse: “Um dos retornados que responda”. Quem é que quer um colega destes? O poder que tive foi tornar-me muito boa aluna. Mas percebi que isso também não chegava. Continuava a não ser convidada para as festas. A maior parte das pessoas sucumbe. E assim cessa qualquer possibilidade de ascensão.

 

Conversas políticas, ódios políticos inflamados: o que é que apanhou disto?

Havia dois grupos. Um de pessoas mais velhas, mais de direita, mais reaccionários, que achavam que a esquerda lhes tinha estragado a vida; raramente eram apoiantes da ditadura; havia a ideia de que Angola devia ser independente e ter um governo misto.

 

Essa direita polarizava o seu ódio em Mário Soares e no PS?

No PS e em tudo à esquerda do PS. No Rosa Coutinho. Outro grupo: o dos mais novos, que tinham um fascínio pela esquerda. A esquerda de Cuba! Cresci com os revolucionários, no liceu. Todos sonhávamos ir para a União Soviética, para os países de Leste e, não sei porquê, para os kibutz de Israel.

 

“Tu és fascista, tu és comunista.” Durante anos não havia nada no meio. Era dos comunistas?

Era uma comunista especial com um sonho imperialista [riso]. Eu queria era ir para a América!, adorava filmes e coca-cola.

Cresci. Evidentemente sou de esquerda?

 

Evidentemente?

Pelo que acabei de dizer: porque acho que somos todos iguais e que merecemos as mesmas oportunidades.

 

Isso é a base do ser de esquerda?

Para mim, é. Tudo o que retire essa possibilidade, está eticamente errado, é imoral.

Não tive filhos, voluntariamente. Como é que poderei contribuir para deixar aos que vêm um mundo melhor? Por exemplo, acho que maltratamos muito os outros animais. Não uso nada de origem animal, e acho que isso faz a diferença. Sou tão minoritária neste momento a dizer isto como há um século foi minoritário quem disse que o império não devia existir.

 

Quando é que a ferida começou a sarar? Para tantos, a ferida continua aberta.

Muito cedo tomei uma série de decisões. Por causa deste percurso e por causa de outras coisas que me aconteceram, e que foram mais gravosas do que isto... Aos 15 anos tive um acidente enorme e fiquei muitos meses no hospital. Tive muito medo de não tornar a andar, de ficar desfigurada. Foi outro um antes e um depois. Mas diferente. Em 75 fazia parte de um grupo. É como estar doente numa epidemia. Em 1980 estava sozinha naquele problema. Tive tempo para decidir que não queria pautar a minha vida pelo ódio, pela amargura, pela raiva. Não abdico de lutar pelo que acho que está certo. Sou optimista da condição humana. “O Retorno” ter corrido tão bem, ter tantos leitores, tem a ver com o facto de eu não querer ajustar contas.

 

Porque é que o livro não pode ser lido como uma forma de ajustar contas com o seu passado, com o país?

O livro é uma radiografia da perda. E é, acima de tudo, uma ideia de recomeço. Perder um país é estranho; é como se parte de nós desaparecesse num fenómeno histórico. Há muitos retornados com um ódio enorme à metrópole, aos de cá, aos de lá... Não sou desses.

 

Estão a passar 40 anos sobre a Independência das ex-colónias...

O que talvez interesse é pensar, perceber a natureza das relações entre Portugal e Angola. Agora [a situação] inverteu-se. São eles que nos estão a colonizar em termos económicos, e um grupo, alguns de nós, estão a lucrar muito. Talvez fosse interessante perceber de onde é que vem esse dinheiro, como é que a elite angolana obtém esse dinheiro, o que nos torna, como país, receber esse dinheiro.

Já ouvi artistas dizer: “Ainda bem que há o dinheiro angolano, ainda bem que há o dinheiro chinês”. Quando dizemos isto, ignorando o atropelo dos direitos fundamentais, na verdade merecemos o que vamos tendo. Se o nosso privilégio vem à custa da exploração de outros, isso não nos torna só testemunhas, torna-nos cúmplices. As linhas são muito ténues, e passamos de uma para outra sem nos darmos conta.

As relações pantanosas entre Angola e Portugal, neste momento, incomodam-me muito mais do que o colonialismo. O colonialismo foi errado, o império nunca devia ter existido, mas está acabado. Mas isto [o presente] não. E vivendo numa democracia pode-se votar ou não em quem permite estes negócios. Acredito que cada cidadão tem imenso poder e que abrimos mão disso.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015

 

 

 

Ler o Diário de Anne Frank

09.09.15

O Diário de Anne Frank é um dos livros mais lidos do século XX. É um espaço de conhecimento e formação. Às vezes, a escrita é também um lugar de salvação.

O livro foi reeditado este Verão e isso serve de pretexto para falarmos sobre ele no próximo Ler no Chiado. 
Com Bárbara Wong, jornalista do Público, que gosta de escrever e falar sobre educação, e escreveu livros como "A escola ideal"; a filha dela, Leonor Wong Castelo, que tem quase 16 anos e escreve maravilhosamente; e Margarida Fonseca Santos, uma das mais conceituadas autoras de livros infanto-juvenis. 
No dia 10 de Setembro às 18.30, na Bertrand do Chiado.
Eu modero. 
Ler no Chiado é uma iniciativa mensal da revista Ler e da Bertrand.
 
 

José António Pinto Ribeiro

08.09.15

A história desta entrevista começa num almoço em frente ao rio Tejo. A intenção era conhecer os seus percursos. Deixar ainda o gravador em silêncio e reter apenas as cintilações do caminho. Verdadeiramente a história desta entrevista começa há meses, quando fomos apresentados por amigos comuns e eu o ouvi falar de amor e de morte. De não haver mais nada senão amor e morte.

O almoço alimentou a minha curiosidade, a minha expectativa. Queria conhecer a espessura deste homem que por vezes aparece na televisão a falar de Direitos Humanos. Deste homem que se afirma de esquerda e se movimenta no mundo da alta finança. 

A entrevista propriamente, tal como foi registada pelo gravador, aconteceu sobre a mesa de trabalho, no escritório. Prosseguiu em vésperas da publicação da mesma porque ficara entretanto desfasado o que fora dito sobre a guerra no Iraque.

José António Pinto Ribeiro é advogado. Tem 56 anos. Nasceu em Moçambique. Tem uma inteligência superior. Mas o que faz dele uma pessoa particular é comover-se, ainda, com o outro. É a sua definição de bondade. É o que diz acerca do amor e do engrandecimento que ele nos provoca.

 

Disse-me que, se lhe fosse dado um talento à escolha, seria o da irresponsabilidade. O que é que isto quer dizer?

Por razões várias, carrego comigo um grande sentimento de culpa. Isso prende-se – suponho – com coisas da minha infância. Com o facto de a minha mãe ter adoecido quando eu tinha cinco, seis anos – uma doença progressiva, auto-imune. Por outro lado, senti uma hiper-responsabilização de parte do meu pai sobre o meu futuro, sobre o de cada um de nós. Vivi esse tempo com o peso de não poder perder tempo. Não poder fazer mal as coisas para não ter de as fazer segunda vez.

 

Uma sofreguidão em relação ao tempo?

Não era sofreguidão. Era ter de ser adulto depressa. A infância e a adolescência eram-me formuladas como etapas para chegar à autonomia, à autarcia. Para não depender da existência do pai e da mãe.

 

Na prática, como é que isso era passado?

Numa prestação de contas, mais ou menos quotidiana. À hora das refeições, o meu pai perguntava o que se tinha passado na escola, queria saber de aproveitamento e notas. Queria ir tendo provas de que seríamos autónomos, auto-suficientes. Sinto hoje que ele tinha medo de nos faltar. De que a morte lhe sobreviesse inopinadamente.

 

E os afectos, ficavam para quem? No meio desse prestar contas, perguntava também por outras coisas?

Os afectos foram muito racionais. Muito masculinos. Diria que o afecto era sobretudo percebido como ser-se inteligente, articulado, argumentativo, ter razão, ganhar.

 

Mas isso é admiração. Não é amor.

Talvez, mas quando se tem o centro de afeição, de protecção, de estima quase só no pai, esses outros afectos, os afectos, não se vivem, aprendem e desenvolvem da mesma maneira. Até porque, em casa dos meus pais, uma grande moradia na Foz, no Porto, não havia permanentemente muita gente. A doença da minha mãe, e não só, determinou algum fechamento.

 

As famílias tradicionais não costumavam fechar-se sobre si, adstritas ao núcleo duro. Além disso, há uma teia social que costuma ser alargada.

Ainda houve uma outra perturbação, que é uma perturbação muito portuguesa. Mais ou menos na mesma altura [da doença], tiveram de se fazer partilhas na família da minha mãe, que tinha muitos irmãos. Zangaram-se.

 

Parece que o Shakespeare já escreveu sobre isso...

Conta-se uma história, daquelas histórias que se atribuem ao Salazar, que seria expressão de certas qualidades escondidas (porque qualidades públicas ele não tinha). Diz-se que estava a remodelar autocraticamente um daqueles governos e que o secretário lhe sugeriu uma determinada pessoa para ministro: «É um homem muito competente». O Salazar continuou a escrever. E o secretário disse: «É um homem muito sério». E ele continuou a escrever. A certa altura, o secretário disse: «É um homem de muito boas famílias». Reza a história que o Salazar terá parado, terá tirado os óculos, terá olhado para ele e terá dito: «Já fizeram partilhas? Já fizeram partilhas?».

 

Há uma agudeza, uma certa sagacidade, consensualmente atribuída a Salazar.

Esperteza. Uma esperteza florentina na gestão das qualidades e no aproveitamento dos defeitos humanos. Existem muitas formas de inteligência. Existe uma inteligência sobre as coisas e existe uma inteligência relativamente às pessoas. É muito difícil governar bem e democraticamente. É muito mais fácil governar com uma polícia, com uma censura, com proibição de liberdade alheia. É mais fácil ser autoritário do que ser democrático. Não me convenço de que tenha sido muito inteligente. Senão, teria feito coisas muito diferentes para o país. Para as pessoas, para o bem estar das pessoas, para a felicidade das pessoas. Não teve inteligência sequer para perceber isso. O poder autocrático é um desrespeito pelos outros, é uma falta de inteligência que decorre e gera uma extrema insegurança na relação com o mundo.

 

Então duvidamos da inteligência e conferimos-lhe pelo menos esperteza.

Sobretudo esperteza para perceber a fragilidade e a fraqueza do outro. Para falar com o outro, não como um igual melhor, mas como confessor. Acho que ele tinha uma mentalidade de confessor, percebia as fraquezas e os medos das pessoas. E aproveitava-se politicamente disso.

 

Falávamos disto a propósito das partilhas.

Essa zanga familiar afastou o convívio com aquilo que é a unidade de socialização essencial no Porto, a família. Nasci em Moçambique de onde vim com três anos. A zanga deu-se pouco tempo depois. A minha família ficou reduzida a uma pequena parte. O facto de a zanga se ter dado e de a minha avó e os meus tios terem deixado de aparecer, (isto é, não terem conseguido separar as relações pessoais das patrimoniais), o facto de a minha mãe ter atravessado doente e sozinha muitos anos da vida dela, foi uma coisa que me magoou profundamente. Agora já não me interessa saber quem tinha razão, se é que alguém tem razão em partilhas...

 

Porque é que nas partilhas o património se sobrepõe quase sempre aos afectos?

Porque o património, o dinheiro, é instrumento de muita coisa. Diria, em primeiro lugar, que a fortuna dá respeitabilidade. Em segundo lugar, dá liberdade – poder fazer isto ou aquilo, escolher isto ou aquilo. Também dá servidão a quem não a sabe usar. Mas dá margem de escolha. É um instrumento de poder, de liberdade.

 

E felicidade, como se diz, não dá mas ajuda muito...

É mais fácil ser-se feliz quando se é livre do que quando se é escravo de um quotidiano esmagador. É mais fácil ser-se feliz quando os outros têm comportamentos que correspondem, aparentemente, a gostar de nós e a respeitar-nos. É mais fácil ser-se feliz quando temos condições para escolher, para fazer, para acontecer. Não quer dizer que se seja necessariamente feliz. Não quer dizer que se encontre o amor. E é o essencial na vida, encontrar o amor.

 

O grosso das pessoas sabe isso, ou pelo menos apregoa isso. É por isso difícil compreender que as questões patrimoniais interfiram com as relações íntimas. Às vezes por valores não tão significativos quanto isso. É a questão do território, que é preciso marcar?

Não sei se é uma questão de território. Há sempre muitas contas a ajustar com o passado, entre parentes e sobretudo entre irmãos, em função da sucessão. As partilhas fazem-se geralmente quando se está perto dos 50 anos, numa situação um pouco dramática de balanço de vida. De repente, para a generalidade das pessoas, é o momento em que, se têm capacidade e coragem para o fazer, verificam que não alcançaram nada do que queriam alcançar nem do que sonharam alcançar. Vivem muitas vezes com um homem ou uma mulher de quem já não gostam, mas de quem não conseguem separar-se. Mesmo quando não pensaram verdadeiramente em etapas, mesmo quando não fizeram um projecto de vida, verificam que vivem mal. Vivem vidas más.

 

Conhece muitas pessoas para as quais existe uma correspondência entre a vida sonhada e a vida vivida?

Não sei se é possível dizer isso assim. Porque as coisas vão mudando. Quando temos 20 anos, altura em que formulamos expectativas, «the sky is the limit». E a verdade é que nunca atingimos o céu. Só depois da morte. E mesmo esse céu, duvido que exista. Há pessoas que têm 40, 50 anos que estão satisfeitas, tranquilas com a vida que têm. Mas a generalidade das pessoas não está. Esta sociedade errada em que vivemos é essencialmente denegadora da felicidade. O mal-estar na civilização, a que o Freud se refere, de algum sítio vem. Não temos a gratificação, nem a instintiva nem a sucedânea, correspondente à nossa capacidade de ter prazer, de gostar, de ser feliz. De gostar de ser feliz. Normalmente, isso é tudo frustrado.

 

E isso não é pessimismo? É só lucidez?

Acho que é só olhar à nossa volta. Não sou nada pessimista nem em relação à sociedade nem em relação à vida, pelo contrário. Acho que tudo isto é alterável, é possível fazer de outra maneira, é possível mudar as coisas. Mesmo sabendo que as pessoas tendem a repetir as erradas e bloqueadas soluções que dão aos problemas. Mas, colectivamente, a caminhada que o Homem tem feito é uma caminhada extraordinária para criar condições efectivas de maior bem-estar. As condições de abolição de servidão e sofrimento são cada vez maiores. Se eu tivesse nascido há mil anos não podia exercer nenhuma actividade que pressupusesse ver bem. Vejo mal. E há mil anos não havia óculos.

 

Desde quando é que usa óculos?

Desde os meus 15, 16 anos. Queixava-me de dores de cabeça.

 

Estávamos no ajuste de contas com os outros, que é feito aos 40, 50 anos.

Pela oportunidade de ultrapassar o destino recebendo uma herança..., é preciso esgadanhar o irmão, o primo, a tia. Ainda por cima, somos um país de poucas grandes heranças.

 

Os seus dois irmãos são médicos. Já tinha a intenção de não ser médico?

Não tinha nenhuma intenção.

 

Porque é que decidiu ser advogado?

Acho que o meu pai é que decidiu. O meu avô queria que ele fosse advogado e ele quis ser e foi médico. Ele achava que eu daria um bom advogado, achava que eu era muito articulado, pensava bem, argumentava bem. Durante as férias grandes, no fim do Colégio Alemão, enquanto esperava pela equivalência do Ministério da Educação para me matricular, convenceu-me da grandeza que era merecer a confiança que os outros em nós depositam para os representar e defender. Verdadeiramente – na altura não tinha disso consciência – o que gostaria de ter sido era arquitecto.

 

Porquê?

Gosto de não depender senão de mim. Daí a preferência por uma profissão liberal. Mas a arquitectura é ainda criação, é fazer surgir uma coisa nova, no seu sentido físico e corpóreo.

 

E a advocacia?

A advocacia é, no seu melhor, rigor e imaginação na formulação de soluções para problemas. Mas não é criação de novas realidades. Faço Direito Comercial – contratos, sociedades, banca, sobretudo a parte financeira. É muito criativo, mas muito abstracto. Depois tenho uma esquizofrenia benigna e à noite, às vezes, faço Direitos Humanos. Mas não é a minha actividade profissional. Não faço Penal, recuso-me, dado o sistema processual penal que temos, que não é adversarial, que não é um processo de partes e limita extraordinariamente as garantias da defesa. É injusto.

 

Familiar nunca faria, pois não?

Já fiz talvez uma vintena de divórcios e não me saí mal a evitar que as pessoas se agridam.

 

O que é preciso observar para que as pessoas não se destruam?

A primeira coisa a prevenir são os gestos que inexoravelmente se fazem, as atitudes que se tomam para exprimir a zanga que se tem, e que levam a uma espiral de destruição recíproca, absolutamente trágica. As pessoas quase sempre imputam aos outros a culpa do que sentem.

 

Mas esse não é o seu tipo de Direito.

O Direito Comercial é um tipo de advocacia por um lado tensa, por outro puramente racional. Lido muito pouco com pessoas, no sentido de que lido pouco com afectos e sofrimentos pessoais. Não quer dizer que no âmbito dos contratos e das sociedades comerciais não haja muitas vezes pessoas muito zangadas. Mas tudo é muito mais amortecido. Em última análise é só uma questão de dinheiro. Não se jogam tão directamente a liberdade e as paixões como no crime e na família. Preferia fazer coisas mais físicas, em que a obra crescesse, em que não fosse só papel e solução de conflitos – daí a arquitectura.

 

A arquitectura pode ser comovente para si, nesse fazer obra, vê-la erguida? António Damásio dizia numa conferência que algumas obras de Mies van der Rohe lhe poderiam suscitar a mesma comoção que uma obra de arte. Para si há essa comoção na ligação à arte ou é a coisa da obra feita, tangível?

É a obra feita, também é muito a estética. Mas não é emoção ou comoção. A emoção e a comoção é o outro. E não é sequer o outro abstracto. É o outro concreto, nas suas formas todas. O sofrimento alheio. O prazer alheio. A felicidade estampada num rosto.

 

Pode comover-se por ver alguém ganhar uma corrida na televisão? Ou celebrar com júbilo imenso uma vitória?

Na televisão menos. Mas ao vivo sim. A companhia encurta a caminhada, mas dobra a caminhada quando se trata de prazer. Descobrir um outro com o qual se atravessa a vida, envelhecer com alguém deve ser extraordinariamente agradável.

 

Caminhos paralelos.

São caminhos próprios, nem paralelos nem divergentes. É um quadro de cumplicidade, entendimento, compreensão, e de valor acrescentado. Cada um se faz melhor por via do outro. Dão-se uma dimensão que não existiria ou não se manifestaria se não fosse a oportunidade que o outro dá.

 

Então o melhor do amor é engrandecer o outro? Fazer do outro uma melhor pessoa?

Não, não. Não é fazer ao outro. Nem fazer do outro. É fazermo-nos de graça e por graça do outro um ser humano melhor.

 

Quando é que se tomou em ombros?

Tomar-me em ombros, desde sempre. Como disse, para isso fui educado. Mas fazer-me a mim mesmo, só à medida e cada vez que me fui apaixonando. Só então me fui descobrindo e refazendo.

 

Alguma vez foi refém de uma paixão? Digo paixão e não amor. A paixão, pensando que é um sentimento fulgurante, deixa-nos enfeitiçados.

Não se pode estar apaixonado sem se ser simultaneamente absolutamente livre e totalmente refém. Isto é, não se é refém. A paixão é paixão, é o absoluto. Ou então não é paixão.

 

Há diferentes gradações...

Não, não há. Ou é paixão ou não é paixão. Pode ser uma paixoneta, uma brincadeira, um amor. Estou a falar de paixão.

 

Dessas de caixão à cova, existem quantas na vida?

Não sei. Nem sei se se repetem. Não sei se é preciso inocência para as ter. E não sei se, tendo-as, podemos repetir e se as comparamos ou não. Ou se nos reapaixonamos.

 

Porque é que falou de inocência? Até pensei que não tinha tido um período de inocência. Quando penso em inocência, penso numa fase em que se está liberto. Dissolvido, então.

Não. Acho que inocência é o período que antecede o conhecimento. A revelação. A paixão é a revelação da vida. Todo o período que a antecede é de inocência.

 

Habitualmente estabelece-se uma correspondência directa entre a infância e a inocência.

Porque na infância ainda não se sabe, ainda não se esteve apaixonado.

 

O que é que muda tão drasticamente?

Descobrir o outro. Descobrir que somos o outro. Que somos, por via do outro, outro. É a descoberta.

 

É o sair de nós.

É, subitamente, o conhecimento. É a perda de nós por mais nós. É uma morte e uma ressurreição permanentes.

 

Tudo se resume a amor e morte.

Sim, o que distingue os homens dos animais é sermos capazes de amar. Mas não deixamos de ser animais e, mesmo quando nos vamos da lei da morte libertando, morremos.

 

No seu caso parece que houve uma primeira apresentação da morte, e depois do amor.

A da morte muito cedo. A ameaça da morte. Aquilo que mais me esgota, que mais me pesa, é a ameaça. Prefiro que as coisas se concretizem à tensão da ameaça. Vivi toda a minha infância sob a ameaça da morte daqueles que mais amava. Essa suspensão, essa espada, é um cansaço. Só a paixão me libertou dela.

 

Essa suspensão é aquela que cada um sente em relação à sua própria morte. É sempre o horizonte da morte.

Acho que nos sentimos imortais, pelo menos até aos 35 anos.

 

Quando é que voltou a pensar na morte, mas na sua morte? Tem 56 anos.

Não penso na minha morte.

 

Porque se recusa a pensar ou ela não aparece?

Não aparece. Não quer dizer que não seja hipocondríaco, como todos os homens são.

 

Todos os homens?

Todos os homens são hipocondríacos. As mulheres temem coisas específicas.

 

O que é que faz os homens serem homens?

A natureza e a sociedade. Nos anos 60 eu acreditava estar abolida a diferença de géneros, feminino e masculino. Mas é muito mais forte do que eu pensava essa diferença física e genética e social. Na sociedade de hoje, ainda é muito marcada essa diferença, apesar da liberdade conquistada pelas mulheres.

 

O que é que hoje imputa imediatamente ao masculino e ao feminino?

Ter filhos, ser mãe e pai. A maternidade e a paternidade são totalmente diferentes. Fisicamente só há maternidade. A paternidade é uma construção social.

 

O que é constitutivamente o papel de mãe e de pai? O que é constitutivamente o feminino e o masculino?

O que estou a dizer é que fisicamente, biologicamente o papel da mãe é ser portador da criança durante 9 meses. Não quer dizer que depois seja necessário amamentá-la. Pode dar-lhe biberão ou pode ser o pai a dar-lhe biberão. A partir daqui, o papel da sociedade é fazer com que tudo o que esteja para além da necessidade biológica não exista. A liberdade é o reconhecimento da necessidade. É preciso alargar o campo da liberdade e restringir o campo da necessidade. Existem dois caminhos que se interpenetram: o da liberdade e o da igualdade. Um é o caminho da nossa condição de seres humanos, isto é, seres físicos. A nossa esperança é sermos totalmente livres, imortais, não ter corpo, ser só espírito. Ou, se quiser, ser só informação, ser só memória.

 

A memória é o nosso último reduto.

Se calhar é o nosso único. Por acaso temos um corpo concreto; mas se é possível fazer uma clonagem integral do corpo, o que me diferencia do meu clone é aquilo que está na minha cabeça, aquilo que retive, que aprendi. Provavelmente daqui a 50 anos vai ser possível pegar nesta informação toda e passá-la para outro cérebro. Ou mesmo, como diz o Hanif Kureishi, ser possível fazer um transplante do cérebro. Significa que nos libertaremos da nossa condição física. Não ficar grávida quando se tem relações porque se toma a pílula é liberdade. Tudo o que supera sujeições alarga a liberdade.

 

Ou seja, libertarmo-nos na nossa condição física é liberdade.

O ser mais livre e absoluto que concebemos? Deus. Não tem corpo. Eterno, infinito. Mas a liberdade da morte declina-se antes em muitas liberdades anteriores, como a liberdade da fome, da doença, da ignorância, do medo, etc. E nesta luta pela liberdade, põe-se um problema de distribuição das conquistas. Distribuição que normalmente não é homogénea. Há uns que aproveitam mais essas conquistas do que outros. Há uns que alcançam essas conquistas à custa dos outros. É uma segunda luta. Entre homens e mulheres, ricos e pobres, poderosos e não poderosos, brancos e pretos. É a luta pela igualdade, pela democracia. Dentro da luta pela liberdade há uma luta pela igualdade.

 

O que é que nos põe em conflito?

Absolutamente, a vontade de sermos absolutos, de não termos limites. Relativamente, a desigualdade na distribuição da liberdade.

 

É um dos fundadores do Fórum Justiça e Liberdades. Pode apresentá-lo sumariamente?

O Fórum Justiça e Liberdades tem por objecto a defesa das liberdades cívicas da primeira geração. Das liberdades que, face ao Estado, nos permitem afirmar o indivíduo. O direito à vida, à integridade física e moral, à liberdade. O direito e os meios de defender estes direitos, o direito à Justiça. Não tratamos nem dos direitos políticos, nem dos direitos sociais. Em qualquer caso, o Fórum, estatutariamente, não pode tomar posição sobre uma coisa onde não vigore a Constituição portuguesa. É uma luta mais pequenina, mais reformista, pela criação de um Estado de Direito. Fazer com que as pessoas tenham instrumentos para exercer rápida e eficazmente os seus direitos e defender as suas liberdades.

 

Porque é que se empenhou?

Hans Rau, alemão, jurista, dirigente do FDP, veio cá em 1978 fazer um relatório para a Amnistia Internacional sobre o processo penal português depois do 25 de Abril. Eu falava alemão, tinha contactos com a Amnistia Internacional, fui buscá-lo ao aeroporto. Estabeleceu-se uma grande empatia, fui com ele aos tribunais algumas vezes e comecei a perceber que aquilo que para mim eram coisas inquestionadas, eram para ele surpreendentes. «Porque é que o Ministério Público se senta lá em cima?». Porque é Ministério Público, é Estado, é acusador. «Ah, era assim na Alemanha. No nazismo fizeram isso. Mas acabou em 45». Depois perguntava: «Porque é que as pessoas se levantam quando entra o Ministério Público e não se levantam quando entra o advogado de defesa? Isso era assim na Alemanha até 45». Comecei a ver como o processo penal português era – e é – tributário de uma lógica autoritária e fascizante. Juntei-me com a Ana Prata, o João Nabais, o José Santos Carvalho, o António Almeida Simões, o José Manuel Sampaio Cabral e decidimos fazer o Fórum. Achámos que era inaceitável o estado do Estado de Direito em Portugal. Uma vergonha.

 

Sente mesmo vergonha quando vai lá fora e tem de falar do seu país nestes termos?

Não. Sinto vergonha quando ouço portugueses que se vêm queixar ao Fórum. Sinto vergonha do país em que vivo e do desinteresse das pessoas, dos políticos, dos juristas, dos advogados, dos delegados do Ministério Público, dos juízes pelo destino dessas outras pessoas e pelo que lhes acontece na procura de justiça. Estou a falar genericamente. Há belíssimas excepções. É verdade que nos preocupamos e elevamos a voz quando pessoas mais relevantes do ponto de vista da comunicação social são presas. E é verdade que fazemos isso para aproveitar uma oportunidade, porque durante todo o resto do ano, todos os restos dos anos, ninguém nos ouve ou quer saber de nada. O que se deve pensar, quando nos conseguimos fazer ouvir, é se essa denúncia tem ou não razão de ser e não a pessoa ou pessoas a propósito de cuja situação essa denúncia se faz.

 

E tem?

Posso dizer-lhe coisas tão ignominiosamente bárbaras como: no código 29, feito em Portugal na ditadura, o prazo de prisão preventiva sem culpa formada era de 5 dias, (excepcionalmente podia ser prorrogada por mais 15 dias). Andei na rua a protestar contra decretos-lei que permitiam que presos políticos estivessem presos preventivamente 6 meses sem culpa formada. Hoje, a prisão preventiva sem acusação pode ser de 6 mais 6 meses, pode ser de 12 meses. A pessoa pode estar presa 12 meses sem saber do que está acusada! Temos jovens de 18, 19, 20 anos que estão inconstitucionalmente presos preventivamente, que vão para as cadeias, onde existem doenças infecto-contagiosas em quantidade muito grande, e que são sistematicamente sodomizados. E eu ouvi um ministro dizer que se não se põem preservativos nas cadeias porque isso os ofenderia. Então transmitam-se à vontade as doenças. E depois os miúdos suicidam-se. Nunca se sabe porque é que se suicidam, mas suicidam-se. A reforma das cadeias é urgente.

 

Em relação à culpa e ao crime, propriamente, tem dificuldade em lidar com a comprovação daquela?

Nenhuma. O advogado é uma pessoa que aprofunda permanentemente a sua esquizofrenia. No sentido em que os seus sentimentos, as suas emoções, as suas escolhas pessoais não são chamados para a função que desempenha.

 

Nesse exercício deve estar o mais destituído de si próprio e investido apenas da função?

O mais destituído possível de tudo o que tem a ver com as minhas opiniões e os meus sentimentos naquela circunstância. O papel de um advogado em processo penal é o de defender o arguido o melhor possível, assim contribuindo para que com grande rigor se reconstitua o passado e se apure se ele fez ou não fez algo de que é acusado. E para assegurar isso, não posso estar senão imbuído da minha função. Se achar que é abjecto aquele crime e não conseguir, por isso, distância, não devo desempenhar a minha função. Tenho que estar em condições de o defender o melhor possível, o delegado da acusação tem que o acusar o melhor possível e, um júri, idealmente um júri, 12 pessoas escolhidas com grande rigor, devem concluir que ficou ou não provado, para além de qualquer dúvida razoável, que ele fez. Nessa altura, ele é condenado ou absolvido.

 

Quando começou a sua carreira já tinha a noção de que deveria estar demitido de si próprio?

Estava convencido de que devia pôr-me integralmente ao serviço do cliente. Mas não tinha nada a noção de que era para isso necessário despir-se dos meus sentimentos. Foi uma coisa que vim a adquirir progressivamente. Há uma coisa muito portuguesa e latina, que é as pessoas identificarem os clientes com os advogados e os advogados com os clientes. Não tem de ser assim. É como se se identificasse o psiquiatra com os doentes que ele tem.

 

Mas há um processo de reconhecimento. Em todas as relações inter-pessoais há.

Sim, mas esse processo pode não ter a ver com o conteúdo da relação, mas com a maneira como se procede. Cada vez acredito mais que não são os fins que justificam os meios, mas os meios que legitimam os fins. Acredito em maneiras de fazer, em procedimentos. Se as coisas forem bem feitas, o resultado será bom, se forem mal feitas, o resultado será mau. Independentemente da intenção, do objectivo. É preciso, na sociedade em que vivemos, passarmos para lógicas procedimentais.

 

A intenção não é tudo?

Na sociedade, não. Na sociedade o processo é que é o essencial. Dito de outra maneira, acho que há cada vez menos amanhãs que cantam, e que não podemos ir atrás de amanhãs que cantam. Não sabemos o que é o destino, o futuro, e a maneira como se fazem as coisas é que determina a justeza daquilo a que se chega.

 

Há uma expressão popular que traduz isso: perdeu toda a razão por agir desta maneira.

Exactamente. Isto tem a ver com o que se passa neste momento no Iraque, com a guerra. É possível que seja devido e legítimo não respeitar a soberania de um Estado, que haja uma legitimação para intervir nos assuntos internos de outro Estado, sobretudo quando este Estado é ditatorial, gerador de infelicidade da população, quando pratica genocídios.

 

«Mas se viola o Direito Internacional...», é esse o seu argumento?

Se a maneira como isto é feito viola as regras de convivência, viola os princípios que fazem com que este resultado seja legitimamente atingido, é o próprio resultado que se torna ilegítimo. Acho que é o que está em causa. A Queda do Muro fez-nos perceber que o essencial é a maneira como vamos avançar. Se a sociedade for organizada de uma forma correspondente a um estado de direito, em que exista justiça, credível, séria e pronta, em que exista democracia, em que as pessoas sintam que participam nas decisões que a elas dizem respeito, em que não exista sensível discriminação entre poderosos e não poderosos, ricos e pobres, homens e mulheres... Se a equipagem do navio for boa e bem treinada, se o navio for bom, temos a certeza que vamos chegar bem, independentemente do porto. Não sabemos onde a viagem nos leva, mas a maneira como fazemos a viagem é determinante.

 

Muito se tem discutido esta violação do Direito Internacional. É possível avaliar já a dimensão disto?, a implicação deste precedente?

Julgo que ninguém sabe ainda o que vai decorrer para as regras de funcionamento das relações internacionais. Pode ser um precedente ou não. Pode ser a administração americana, esta administração americana, este George W. Bush, este Colin Powell. Ou pode ser o começo de uma intervenção a seguir no Irão, na Coreia do Norte, na Líbia...

 

Está tudo em aberto?

Está. Vamos ver como é que nos próximos 15 dias, três meses isto pára, para depois sermos capazes de fazer algum levantamento dos danos. Há uma outra coisa, muito ténue ainda: saber se existe alguma analogia entre o que se está a passar e aquilo que se passou na formação dos Estados. Os Estados foram unificados à força e criou-se um poder central. Nessa criação praticaram-se muitas guerras, barbaridades contra os senhores que foram sendo derrotados. Depois de unificado o Estado é que começou um processo de democratização interna que durou 100, 200, 500 anos. Quer dizer, no processo de formação dos Estados houve um momento de unificação autocrática. Será que estamos, agora que caiu o Muro e as duas potências deixaram de se anular, e há só uma, no início de um processo de unificação mundial, de criação de estado mundial?

 

Há uma aparente contradição na sua vida, a de ser um homem de Esquerda e um advogado da alta finança. Os seus clientes têm noção das suas convicções pessoais ou elas não lhes interessam de todo?

Estou convencido de que a única coisa que lhes interessa é saber como é que eu sou profissionalmente.

 

Não há uma dimensão pessoal que lhes interesse?

Há. De lealdade, sigilo profissional e competência.

 

É sócio da empresa de argumentistas Produções Fictícias, é advogado de vários artistas. Isso não é incompatível com o exercício do Direito Comercial, com o universo do Direito Comercial?

De todo.

 

Enquanto advogado de artistas, consigo encaixá-lo mais facilmente como o fundador do Fórum.

Não tem nada a ver. No Fórum exprimo o desejo de fazer um Estado de Direito. No fundo, trata-se de fazer com que todos sejamos iguais perante a lei. Iguais homens e mulheres, iguais brancos e pretos, iguais cristãos e islamistas. E depois, termos todos meios expeditos de exercer esses direitos. Ou seja, que eu seja dotado dos meios para ser uma pessoa, um indivíduo.

 

Acha que a impunidade, que é uma situação de injustiça, é um dos principais cancros de Portugal?

Acho que a justiça é essencial. Numa sociedade de mercado democrática as pessoas têm como prémio ter dinheiro, ter poder. Numa sociedade meritocrática, chega-se lá pelo mérito. O sistema de justiça é o que distingue o trigo do joio. Permite distinguir o que tem mérito do que não mérito. Uma sociedade sem justiça não é meritocrática. Em Portugal é melhor conhecer o primo do tio do cunhado do director geral do que ter razão. Em Portugal é mesmo mau ter razão.

 

Porque nos desgastamos?

Sim, vamos desgastar-nos numa luta para ter razão e incomodar toda a gente e as pessoas vão ficar muito mal dispostas... Devíamos ter um sistema em que seja simples, fácil, e económico mostrar que se tem razão. E se não se tem razão, ser punido rapidamente. Quanto mais cedo formos punidos, melhor é.

 

E aprende-se?

Aprende-se. Educar é criar um conjunto de reflexos condicionados. Todos gostaríamos, enquanto crianças, de eliminar tudo o que nos é desagradável. Um processo de socialização implica a aprendizagem e compreensão de que não é assim. Temos de aprender a lidar com as coisas sem ser eliminando-as, pura e simplesmente. O direito tem um papel essencial nisto. Pode fazer perceber que quem for bom, competente, empenhado tem prémio, e quem não for, não tem. Estes sinais são dados por um sistema de justiça. Se não funcionar, a sociedade é, como eu acho que em Portugal é, uma sociedade não meritocrática. Isso, por exemplo, é uma das coisas que faz com que o Fórum tenha grande dificuldade em se desenvolver. Só os desprovidos vêm ter connosco; os outros mobilizam os seus conhecimentos sociais para se safarem.

 

Começámos nesta conversa por falar de irresponsabilidade...

Gostava de ser irresponsável, mas tenho a noção de que socialmente não é possível. E em boa verdade não é a responsabilidade que me pesa. O que não suporto é a culpa. Mesmo que fosse possível viver numa situação em que nada justificasse sentir culpa, eu sentiria culpa à mesma. Como é que se trata disso? Porque é assim?

 

E a salvação? Agora vamos ao individual: a sua salvação.

A felicidade. A paz plena e a alegria: a felicidade.

 

São momentos? Ou caminha-se à procura dessa paz plena?

Caminha-se à procura desses momentos. Acho que às vezes se fazem e encontram bocados. Bocados desse bem-estar. Às vezes com coisas tão simples como fazer uma viagem e esquecer. E partir, e encontrar.

 

Eu encontro esse brilho quando fala da sua neta Rita. O amor de uma criança pode ser a mais redentora das coisas, não é?

Não sei. A Rita é um ser admirável. As crianças nascem Messias, mas tantas vezes não se conservam assim.

 

Então fica com medo...

Não fico com medo nenhum. Espero que seja melhor do que cada um de nós é e todos nós somos.

 

E no seu caso, que teve sempre uma aura de geniozinho?

Não acho que seja e nunca achei que fosse muito diferente dos outros. E cada vez acho menos.

 

Porquê?

Porque cada vez gosto mais dos outros. Das suas grandezas e fraquezas, do seu génio, das suas incapacidades. Da tentação, do bem e do mal. Cada vez gosto mais disto que é ser humano. Mesmo do ser humano que tropeça e cai. Mas zango-me com os que fazem pagar aos outros os seus tropeções e quedas.

 

Não assumindo a sua responsabilidade nessa queda e tropeção?

Não sei se é um problema de responsabilidade. É um problema de saber lidar com a dor que a queda causa. Não tenho muita complacência para as pessoas que são brutas, que projectam nos outros o seu mal-estar, a sua infelicidade. E acho que lutarei, farei o que souber, para que assim não seja.

 

E o que é uma pessoa boa?

É uma pessoa que nos faz, naturalmente, sem sequer disso ter especial consciência, melhores. É uma pessoa que tem o dom da alegria. Há pessoas que têm esse dom, essa graça, essa felicidade.

 

Isso não entronca na noção de amor de que falávamos há pouco?

Sim, é uma bela maneira de se chegar à alegria, à felicidade.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003