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Ana Bacalhau é cantora. Prepara o novo disco dos Deolinda, a sair em 2016. Recentemente esteve em São Paulo, a solo. É formada em Línguas e Literaturas Modernas.
“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo” – Fernando Pessoa. Pode falar-me de alguns dos sonhos do seu mundo?
O que me impele é a vontade de ir. A única coisa a que me obrigo é dar ouvidos à voz interior que me vai dizendo quando preciso de ir e para onde devo ir. Sempre que é ela que me comanda, não me engano. Quando é a cabeça, corre mal e estatelo-me. Se souber respeitar o tempo próprio das coisas, as coisas com que sonho acabam por se materializar. Entrego-me por completo em tudo o que faço. Cantar, amar e ser amada. Rir muito, chorar um pouco. Fazer música que me importe e que importe a alguém. Saber viver o que a vida tem reservado para mim e não apenas aquilo a que me reservo na vida. Ser quem sou.
Outro verso de Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. O problema é que viver é preciso. Quais são as dificuldades concretas do viver que acha mais preocupantes em Portugal?
O que me toca mais é a injustiça, a falta de empatia que encontramos em todos os cantos da nossa sociedade que, assustada por uma austeridade que corta tudo, se recolhe na sua concha, temendo que ao ajudar o próximo, dando-lhe a mão, acabe por se cortar também.
Que caminho, então?
É preciso que sintamos que somos todos uns pelos outros, é preciso que vejamos isso na prática dos nossos políticos, dos nossos gestores, da nossa justiça. E, caso todos esses agentes falhem, é preciso pedir responsabilidades e fazermos nós. Não podemos deixa que um pai não tenha o que dar de comer aos seus filhos, que um ancião não tenha dignidade no final da sua vida, que um doente não receba o melhor tratamento possível, que um animal seja maltratado. A democracia precisa de ser protegida de alguns por todos os outros.
O que se aprende nos livros, no cinema, na arte é muito diferente do que se aprende na vida?
Pode ser muito diferente da vida, se negarmos à vida a imaginação de que a arte precisa. Se nos contentarmos com a realidade e deixarmos a criação, o sonho fora da equação, preferindo viver uma vida “normal”, “padronizada”, nunca aprenderemos com a arte. É preciso darmo-nos ao objecto artístico para que ele possa exercer o seu efeito em nós.
Pode dar um exemplo de uma obra que tenha exercido um efeito em si?
A personagem mais importante para mim foi Raskolnikov, de “Crime e Castigo”, por Dostoievski. A forma como a nossa cabeça, ou, melhor dizendo, a nossa mente pode (re)criar a realidade, como pode ser a nossa desgraça, o nosso castigo divino, mudou tudo para mim. A redenção, no final, através da espiritualidade, confirmou aquilo em que já acreditava, mas o processo mental que leva a personagem do crime ao castigo abriu um admirável mundo novo. A música também sempre me ajudou a expurgar e a sublimar muita dor e alegrias.
Vamos aos gregos: diz o guerreiro Aquiles ao rei Agamémnon, na “Ilíada”: “Ah, como te vestes de vergonha, zeloso do teu proveito”. Os portugueses estão divorciados dos políticos? Que parte deste divórcio tem que ver com o zelo do interesse próprio?
Parece-me que o facto de o nosso voto não ser directo leva a que nos sintamos separados por um muro daqueles que são eleitos e daqueles que decidem quem fica ou não em posição de ser eleito. Talvez por isso sintamos que os nossos deputados não nos representam. Há também a sensação de que a política não está ao alcance do cidadão comum. O centralismo dos nossos órgãos decisórios retira protagonismo aos órgãos de poder local. E é a partir do local, do que nos está mais próximo de “casa”, que podemos começar a exercer a mudança. Se nem o nosso “quintal” está ao nosso alcance, é difícil manter a motivação para ir mais além. Exigir medidas duríssimas à maioria da população e à maioria das profissões e votar medidas de excepção para a classe política também não ajudará...
Quando José Saramago recebeu o prémio Nobel da literatura, isso coincidiu com os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O discurso do escritor português reflectiu essa coincidência. Que direito lhe parece mais ameaçado e que urge fazer cumprir?
O direito a exercer a nossa liberdade de expressão, de acção, de pensamento. O direito à prática democrática.
“Caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento, no sol de quase Dezembro, eu vou...”, canta Caetano Veloso. Já não vamos sem lenço, sem documento. Levamos atrás o quê?
Há uma obsessão em controlar todos os passos do nosso caminho, na ânsia de que dê tudo certo: a escola certa, o curso, a casa e o carro certos, o companheiro e os filhos certos. A vida certa. Infalivelmente ficamos frustrados. É que a natureza da vida não é essa. A sua natureza é a da imprevisibilidade, da mudança (muitas vezes) brusca. Não adianta levar demasiada bagagem connosco. Atrasa-nos a viagem e podemos perder a saída. Levar uma mala que caiba nos padrões das “low cost” e nada mais do que isso. E o passaporte, para podermos viajar para qualquer lado que nos apeteça. A vida não pode ser vivida como uma prisão, mas como uma aventura.
O futuro passou a ser uma ameaça, evitar o perigo uma divisa. É mesmo assim? Quando foi a última vez que usou a palavra esperança?
Se nos tiram o futuro, tiram-nos a liberdade. E a esperança passa a ser como o Latim: letra morta. Há que perseverar e cuidar para que os pretéritos não ameacem e condicionar as presentes e futuras esperanças. Que nunca deixemos de estar de esperanças. A esperança é fértil e sem ela a humanidade terminará.
Matilde Campilho disse que a poesia não salva a vida, mas que pode salvar o instante. O que é que salva o seu instante?
A música. Fazer música é estar no presente. Cantar é sentir que se está vivo em todos os instantes da melodia. A minha avó dizia que cantar é rezar duas vezes. Elis Regina, que é sacerdócio. Eu digo que cantar é a minha salvação.
Férias de Verão: dê-me uma recordação das férias de quando era criança. São um dos seus maiores tesouros?
Quase todas as memórias são no Carvalhal de Mouraz, uma aldeia perto de Tondela, terra dos meus avós maternos. Lembro-me do pastor a acabar o pastoreio das suas ovelhas e gado no largo da aldeia. Das mulheres a escolher o milho e o feijão. Da água fria dos tanques, onde tomávamos longos banhos. E do bom que era apanhar amoras das silvas que estavam à sombra, para as poder comer de imediato sem arriscar uma valente dor de barriga.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2015
Pedro Vieira é escritor, ilustrador, trabalha na empresa de consultores editoriais Booktaylors e no Canal Q. O seu segundo romance, “O que não pode ser salvo”, tem poucos meses.
Um verso de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. O problema é que viver é preciso. Quais são as dificuldades concretas do viver que acha mais preocupantes em Portugal?
O problema com esta questão é o manancial de escolhas à disposição. Como se fôssemos miúdos numa geladaria nova, incapazes de escolher o sabor (amargo) a que temos direito. Viver é preciso e é preciso, passe a redundância, fazê-lo com dignidade. Tocam-me os que estão desmoralizados ao ponto de já não contarem para os números do desemprego. Os que já perderam as forças para se manterem de pé. Os que envelheceram com a esperança de um final de vida descansado e que rapam do que não têm para voltarem a amparar os filhos.
O que se aprende nos livros, no cinema, na arte é muito diferente do que se aprende na vida?
São planos distintos embora ficção e realidade se contaminem sem pudor, e ainda bem. Os livros têm a vantagem de oferecer-nos perguntas em que nunca tínhamos pensado, independentemente dos contextos de onde vimos. Ou apesar deles. A leitura de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” numa fase crucial da minha vida foi muito importante. Jesus homem, depois do Jesus Filho de Deus a quem fui ensinado a orar por entre o medo e a culpa. Com o Jesus de Saramago é possível ir beber uns copos, comer uns petiscos e dizer mal da vida, deixando a salvação para depois.
Há 40 anos tivemos um Verão Quente, com o país a rasgar-se. Os seus falaram especificamente sobre este Verão? Falaram sobretudo da revolução e menos do tempo que se lhe seguiu?
Nasci em Agosto de 1975, uma semana antes do famoso comício de Vasco Gonçalves em Almada. Os meus pais, nada politizados, contaram sempre a narrativa da esperança, como se esperaria de alguém que teve filhos nessa época. Do PREC falava-se menos. Do que se lhe seguiu, também. Falávamos sobre o 25 de Abril. A liberdade. Os anacronismos da ditadura, que impunha licenças de isqueiro e de pensar. O alívio que foi o fim da guerra colonial. Isso era o mais importante.
Vamos aos gregos: diz o guerreiro Aquiles ao rei Agamémnon, na “Ilíada”: “Ah, como te vestes de vergonha, zeloso do teu proveito”. Os portugueses estão divorciados dos políticos? Que parte ocupa neste divórcio a acusação ou suspeição de que são corruptos (demasiado zelosos do seu proveito...)?
Os portugueses estão divorciados de si mesmos, confiam em muito pouca coisa. Eu diria que boa parte do problema passa pelas nossas elites, que infelizmente espelham o que de pior tem o país. Todos nós temos responsabilidades de cidadania, mas a nossa “nomenklatura”, como se dizia no de lá do muro, é muito canhestra, auto-centrada, poucochinha. Preocupa-se muito com o eduquês, mas foi a sua suposta educação superior que nos trouxe aqui. Gosta de brincar aos pobrezinhos, mas não tem a noção do ridículo.
Acha o discurso: “Eles são todos iguais!” uma consequência banal do estado a que isto chegou? Ou considera que é grave e abre espaço a populismos?
Considero que é uma consequência expectável, sem deixar de ser grave. E é tudo menos um exclusivo português. Vive-se um cansaço em relação à coisa pública, também porque a democracia deixou de dar respostas e os ayatollahs dos mercados e da economia conseguiram provocar o horror à política. A democracia deixou de atender o telefone. As instituições deixam muito a desejar e a legitimidade foi chão que deu uvas. Quem respeita os tribunais? Quem respeita o parlamento? O que é isso do Eurogrupo?
Oficialmente saímos da crise. À esquerda e sobretudo à direita, disse-se que Portugal tinha vivido acima das possibilidades e que era preciso aprender a viver de outra maneira. O que é que significa este aprender?
As sondagens continuam a dar 70% das intenções de voto aos partidos do centrão, que nos trouxeram até aqui. Não aprendemos nada.
Continuemos o diagnóstico/retrato dos portugueses e do país: o que é que não fizemos nestes quatro anos e devíamos ter feito?
Devíamos ter aproveitado para abrir os olhos e embora haja poucos músculos envolvidos nessa operação, parece mais difícil do que correr a Maratona. Com maiúscula, para saudar os gregos sem lhes cobrar mais juros por isso. Depois do famoso ajustamento e de um processo de novilíngua durante o qual, por exemplo, “despedimento” passou a ser chamado de “requalificação”, olhamos para as próximas legislativas com a desconfiança de sempre e sem capacidade de fazer uma espécie de corte epistemológico. Ou de partir uma janela, porque agora vamos sempre temer que os representantes nacionais do senhor Schauble nos venham exigir o pagamento irrevogável do vidro quebrado.
Quando José Saramago recebeu o prémio Nobel da literatura, isso coincidiu com os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O discurso do escritor português reflectiu essa coincidência. Que direito lhe parece mais ameaçado, posto em causa, que urge fazer cumprir?
O discurso de José Saramago continua desgraçadamente actual. É mais fácil chegar a Plutão, que é mais longe e até já deixou de ser um planeta, do que chegar a quem partilha o mínimo de ADN connosco. A única vantagem que vejo nisto é que não há mercados financeiros, nem papel comercial, nem dívidas à Segurança Social, nem sequer swaps. Para já só há calhaus e um coração gelado. Infelizmente, é o que basta para fundar um banco.
“Caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento, no sol de quase Dezembro, eu vou...”, canta Caetano Veloso. Já não vamos sem lenço, sem documento. Levamos atrás o quê?
Neste momento levamos dívida. Pública e privada. De todas as cores e feitios. Dívida a dois anos, dívida a dez anos, dívida que não se pode pagar, mas, cantando e rindo, continuamos a fingir que sim. Até ao dia em que não haverá quem possa comprar automóveis Audi, electrodomésticos Siemens, ovinhos Kinder. Aí sim, os alarmes vão disparar e poderemos dar graças por não sermos a Polónia.
Férias de Verão: dê-me uma recordação das férias de quando era criança. São um dos seus maiores tesouros?
Considero a memória um tesouro, mesmo que o seu brilho seja baço. Sem querer dramatizar, que criança pode apreciar nevoeiros até ao meio-dia, areias negras, água gelada do mar e procissões na praia, feitas de andores que metem respeito e temor a grandes e pequenos banhistas? Das férias passadas entre Braga e a Apúlia, retiro como fogacho de felicidade as canções do Nel Monteiro ao sabor da camioneta. Cada um tem a sofisticação e a Terra do Nunca que merece.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2015
Cristina Branco é cantora. Vive entre Portugal e a Holanda. Tem uma cara portuguesa. Júlio Pomar pintou-a para ilustrar a República. Tanto canta Zeca Afonso como Joni Mitchell. O fado é a sua casa-mãe.
Atravessamos um deserto em que todos sabemos o nome do ministro das Finanças alemão ou grego. Antes de mais: considera que é um deserto? Ou seja, um tempo esvaziado de ideologias, onde a política foi engolida pela finança. Onde fica o oásis?
Sim, um deserto, uma construção de pseudo-perfeição. As guerras fazem-se com números, a tortura com ameaças ao cidadão e à sua construção do quotidiano. O oásis está na mente que, por enquanto, continua a ser livre.
Portugal vai ter duas eleições nos próximos meses. Discute os cenários, coligações, candidatos de uma e outra? Discute política? Que espaço é que ela ocupa no seu dia a dia? Os seus amigos: diria que estão mais alheados da vida pública, mais participativos depois dos anos de crise?
Discuto, em casa, em família. Fala-se muito, mas quando me manifesto fora de casa sinto, infelizmente, que tenho que ser cautelosa. Tenho que calcular a quem me dirijo e como vão ser interpretadas as minhas opiniões.
Cautela? Pode ser mais explícita?
Digo cautela, sim. Não me manifesto em redes sociais, por exemplo, porque ouço dizer (e vejo) a agressão gratuita que se instalou só porque alguém tem uma opinião. As redes estão a formatar o indivíduo para o “direitinho”, a felicidade imanente. O “horror” pode ser, mas tem que vir de fora, de algum lado que una as massas numa causa humanitária.
Eu manifestei o meu desagrado, um dia, e não sei se como mulher se como cantora, claramente essa opinião prejudicou-me.
Como é que explicaria a um jovem que vai votar pela primeira vez, e que quer perceber o essencial, as diferenças entre a esquerda e a direita? O eixo que as divide está onde? Ou, na prática, não o vê e tudo conflui no centrão?
Estou nessa fase. O meu filho mais velho tem 12 anos e tenta perceber. Eu lá vou tentando explicar, tentando definir as linhas gerais de uns e outros. Mas, na prática, sei que o que ele vê. E na voragem de viver e perceber tudo o mais depressa possível –para seguir caminho – vê apenas uma grande interrogação desapaixonada. Usa frequente a frase: “Afinal, este é de quem?”. Como num jogo de futebol... O Martim não está assim tão longe da realidade.
“Caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento, no sol de quase Dezembro, eu vou...”, canta Caetano Veloso. Já não vamos sem lenço, sem documento. Levamos atrás o quê?
Meia dúzia de fotografias que nos lembrem de onde viemos. Os livros que nos marcaram e ajudaram a decidir quem queríamos ser. E o desejo, a paixão pelo começar de novo.
O futuro passou a ser uma ameaça, evitar o perigo uma divisa. É mesmo assim? Quando foi a última vez que usou a palavra esperança?
Quando penso na geração que está a despontar para a vida agora, e para as vindouras, penso realmente (e com muita tristeza) que o futuro joga contra eles. Nós tivemos muito mais oportunidades, apesar de tudo. De crescimento. E penso que a minha geração (e a anterior) lhes amputou o futuro. Porém, esperança é ainda uma palavra que uso muito. Acredito, e talvez tenha fé, que o gene Bom dos homens prevaleça.
Quando José Saramago recebeu o prémio Nobel da literatura, isso coincidiu com os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O discurso do escritor português reflectiu essa coincidência. Que direito lhe parece mais ameaçado, posto em causa, que urge fazer cumprir?
O direito à expressão! Será que somos realmente livres de dizer o que pensamos? Ou, para conseguirmos edificar, temos que perder o livre arbítrio?
“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo” – Fernando Pessoa. Pode falar-me de alguns dos sonhos do seu mundo? De certo modo estou a perguntar pelo que o faz seguir um caminho, investir num sonho, promessas e decepções.
Esta é a história da vida: sonhar. Sonhar porque é próprio da humanidade sonhar. Eu, até há uns anos, achava que não havia lugar para o sonho porque a minha realidade era tudo isso! Aconteciam-me coisas que nem sequer conseguiria sonhar. Depois veio a vida como ela é. Sem rede. Quando tive que engolir lágrimas, desaforos e defender o meu reduto. Veio o tempo de aprender com erros, de perceber o que é a amizade, do fundo do ser. E aqui, sim, exposta à vida, permito-me sonhar de verdade .
Outro verso de Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. O problema é que viver é preciso. Quais são as dificuldades concretas do viver que acha mais preocupantes em Portugal? O que é que o toca mais?
São tantas as frentes que se torna difícil enumerar o que mais me choca ou toca. Certamente a fome. Pensar que há pais que não conseguem dar o básico aos seus filhos, magoa-me como cidadã, como mãe. Não deveria um Governo de uma nação garantir um Estado Social, defender os seus cidadãos como primeira instância?
Oficialmente saímos da crise. Com cautelas, uma parte da população recuperou hábitos anteriores à chegada da Troika. À esquerda ou à direita, disse-se que Portugal tinha vivido acima das suas possibilidades e que era preciso aprender a viver de outra maneira. Pessoalmente, aprendeu? E o país, aprendeu? O que é que significa este aprender?
O que é viver acima das possibilidades? Os portugueses estagnaram de vergonha (também) por lhes terem chamado preguiçosos. A meu ver serviu apenas para amedrontar. Serviu de ariete contra quem ainda trabalha e faz o que pode por se manter à tona. Aprenderam o quê? Que lição foi essa? Ensinaram-nos a confiar nas instituições?
Matilde Campilho disse que a poesia não salva a vida, mas que pode salvar o instante. O que é que salva o seu instante?
Um abraço apertado que me dê confiança.
Férias de Verão: dê-me uma recordação das férias de quando era criança. São um dos seus maiores tesouros?
Tenho inúmeras. O Verão determinou sempre o meu crescimento. Senti sempre que passado esse tempo eu era outra. Maior, mais desperta, esclarecida. O Verão dos dias compridos de praia, das leituras e de ficar invisível a ouvir a família contar histórias. Não por me esconder, mas por ser silenciosa – até os outros se esquecerem de que estava ali.
Pode fazer um curto auto-retrato?
Tenho 42 anos, 18 de trabalho, os dentes todos, saúde de ferro e uma vontade férrea de continuar a Ser.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2015
André e. Teodósio é encenador, dramaturgo, actor. Faz parte da tropa fandanga do Teatro Praga. Estudou música. Tanto lê Walter Benjamin como ouve Gisela João. Vive em Lisboa numa bairro popular.
Vamos aos gregos: diz o guerreiro Aquiles ao rei Agamémnon, na “Ilíada”: “Ah, como te vestes de vergonha, zeloso do teu proveito”. Os portugueses não confiam nas instituições? Que parte ocupa neste divórcio a acusação ou suspeição de que os políticos são corruptos (demasiado zelosos do seu proveito…)?
Nunca devemos ser positivos e afirmar que “agora é que batemos no fundo!”. Porque temos aprendido com a História que tudo pode ser ainda pior. A política, em conjunto com a economia, tornou-se numa das disciplinas dominante. Mas existem muitas outras ferramentas para além das escolhas-à-força que os cidadãos utilizam para a redefinição das suas vidas na esfera pública. E também elas se tornarão um dia ditaduras invisíveis…
Oficialmente saímos da crise. À esquerda e sobretudo à direita, disse-se que Portugal tinha vivido acima das suas possibilidades e que era preciso aprender a viver de outra maneira. Aprendeu?
Não há respostas definitivas. Só há processo. Neste sentido, os espíritos críticos tanto estão sempre a aprender como a entrar em crise com o espartilho gramatical.
“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo” – Fernando Pessoa. Pode falar-me de alguns dos sonhos do seu mundo?
O meu sonho consiste em deixar em paz, actividade que implica um trabalho constante e que não me deixa em paz! Eis alguns exemplos: não pisar flores, não atropelar pombos nem conversas, não produzir lixo como luxo ou contribuir para poluição sonora, não submeter o mundo a categorias, não deixar a luz acesa (ainda que as dos iluminados!), não implicar e travar o real que aparece sob todas as formas e modos.
Outro verso de Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. O problema é que viver é preciso. Quais são as dificuldades concretas do viver que acha mais preocupantes em Portugal?
“Não se nasce português, fica-se português” – eis uma frase que aprendi com o João César Monteiro e que descreve na perfeição a dificuldade que encontra quem deseja ultrapassar todas as barreiras. A mim interessa-me o esforço conjunto em busca de outros modos de agir fora da esfera correlacionista e antropocêntrica.
Atravessamos um deserto em que todos sabemos o nome do ministro das Finanças alemão ou grego. Antes de mais: considera que é um deserto? Ou seja, um tempo esvaziado de ideologias, onde a política foi engolida pela finança. Onde fica o oásis?
Pequena parábola: “no deserto do real”, o oásis estará sempre tapado por um camelo. Se conseguires chegar ao oásis, dando a volta ao camelo, das duas uma: ou te cai um coco na cabeça da palmeira ou o azul que tomavas por água é afinal um saco. Não tenho visto terceira hipótese. Convém mesmo mudar de ambiente…
Demasiada conversa e negociação? Selvajaria e domínio dos mais fortes sobre os mais fracos? É tempo de quê?
Alterofilismo [em vez de halterofilismo]: fortalecer alterando a filiação.
O que se aprende nos livros, no cinema, na arte é muito diferente do que se aprende na vida? Pode exemplificar?
Aprendi muito a pensar com obras de arte, mas ensinei-as a viver. As obras de arte são espelhos… quanto mais investimento de sentido lhes dermos mais intensificada será a sua experiência. Eis, em suma, a definição de verdade: o ideal tornado real.
Há 40 anos tivemos um Verão Quente, com o país a rasgar-se. Que sequelas temos dessa fractura ideológica?
Neto e filho de realidades díspares resultantes dos acontecimentos desses dias, cresci a conviver com múltiplas narrativas. O que mais me interessa é que sou filho varão desses Verões e tento honrar o que me coube em sorte.
O que é que não fizemos nestes quatro anos e devíamos ter feito? Refiro-me às grandes reformas falhadas.
Acabar com a ideia de nação. Acabar com a ideia de nacionalidade.
Quando José Saramago recebeu o prémio Nobel da literatura, isso coincidiu com os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O discurso do escritor português reflectiu essa coincidência. Que direito lhe parece mais ameaçado, posto em causa, que urge fazer cumprir?
O da liberdade de género, raça, etnia, espécie.
Se pudesse escrever uma carta a alguém, gritar alguma coisa (um insulto, uma advertência, um conselho, uma declaração) seria o quê e a quem? Pode ser a um político. Pode ser ao mundo. Pode ser mesmo a quem quiser.
Escrevo uma carta aos meus pais e ao meu amor. Aos primeiros, a pedir desculpa por ainda não ter conseguido mudar o mundo (fazendo justiça aos sacrifícios por que passaram para partilhar comigo alguns dos seus ideais éticos). E ao segundo, a oferecer os meus serviços de alienação temporária.
Discute política?
Dada a minha formação bélica, estou sempre a discutir a cada segundo. Mas há uma altura em que tenho de o materializar para além da minha biopolítica: Livre, livre estou e quero estar.
Como é que explicaria a um jovem, que quer perceber o essencial, as diferenças entre a esquerda e a direita?
Esquerda: Penso logo existo.
Direita: Existo logo penso.
Eu: O eu que pensa e o eu que existem não são o mesmo.
Matilde Campilho disse que a poesia não salva a vida, mas que pode salvar o instante. O que é que salva o seu instante?
Eu acho que a poesia pode salvar vidas, nem que seja quando vamos comprar um livro e o edifício de onde saímos explode. (Fiz um espectáculo com a Monica Calle que claramente salvou a vida de uma pessoa que por acidente ali foi parar.) O meu instante também é constantemente salvo por todas as guinadas, derrapagens e acidentes que vão acontecendo na condução da minha vida. Os meus segundos estão sempre ocupados porque sou um condutor instável.
Férias de Verão: dê-me uma recordação das férias de quando era criança. São um dos seus maiores tesouros?
Beira Baixa com os avós entre tanques de água fria e livros do Emílio Salgari. Cacela com os pais mais maravilhosos e loucos e todas as coisas do mundo (não tenho adjectivos suficientes para os descrever). Um irmão entalado numa cama dobrável e eu feito super-homem a lançar-me de uma tripla escadaria daquele que era o palácio da minha infância. As nossas férias foram sempre de abrir cabeças.
Pode fazer um curto auto-retrato?
Nariz grande, dentes tortos, caixa-de-óculos, hipocondríaco, mobilidade desconexa, paramenta anacrónica, cabeça de vento. Em suma: uma abstracção.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2015
Ana Vidigal é artista plástica. A pintura, a colagem e a memória do que se passa em casa e na infância estão no centro da sua obra.
Um verso de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. O problema é que viver é preciso. Quais são as dificuldades concretas do viver que acha mais preocupantes em Portugal?
O que acho preocupante em Portugal no ano de 2015 é que aqueles que beneficiaram de duas das melhores coisas da Revolução de Abril (a mobilidade social e o Estado Social) estejam agora no poder a desmantelar todas essas conquistas, impedindo, assim, que as gerações mais novas beneficiem do que eles beneficiaram e os fez chegar onde chegaram. E isso limita tudo e qualquer avanço, quer cultural quer económico.
Há 40 anos tivemos um Verão Quente, com o país a rasgar-se. Empresas e propriedades nacionalizadas, empresários a fugir para o Brasil. Que sequelas temos dessa fractura ideológica?
Eu tinha 15 anos e lembro-me muito bem do Verão Quente. Não foram só os empresários que fugiram para o Brasil. E se uns “fugiram”, outros, tal como agora, foram à procura de trabalho. Havia poucos profissionais liberais (não esquecer que só a classe mais elevada estudava e tinha acesso ao curso geral dos liceus e universidade). Muitos ficaram sem trabalho.
O que lembra do Verão de 75?
Esse verão foi passado, como sempre, na Praia Grande, em “clima democrático”. Cruzavam-se à beira mar o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Marcello Caetano, Rui Patrício, e o recém chegado, exilado político, Mário Soares. No resto do país reinava a histeria. Em Almada, a 18 de Agosto, o primeiro ministro Vasco Gonçalves, num discurso acalorado (dizem as más línguas que a BBC o passou sem som, tal era a coreografia facial) exortava as massas contra o “grande capital”, os burgueses e a propriedade privada.
Nós, adolescentes, entre “amores de praia que se enterram na areia”, jogávamos ao prego, usávamos creme Nívea e óleo Johnson e lamentávamos os privilégios perdidos. Ninguém sabia da existência do buraco do ozono. E ninguém imaginava um JSD alucinado como primeiro ministro 40 anos depois.
Também há 40 anos, o país recebeu 700 mil retornados, Angola, Moçambique e Cabo Verde tornaram-se independentes. Viveu a situação de perto?
Estive no Aeroporto da Portela nesse Verão. Famílias inteiras, vindas das ex-colónias, viviam no aeroporto. O que mais me impressionou foi o cheiro. Malas amontoadas e pessoas desesperadas. Com um ar alucinado alguém procurava uma mala onde tinha o seu diploma de enfermeiro. Dizia: “Tenho de a encontrar, tenho de a encontrar”. As pessoas comiam e dormiam em cima de cobertores. A melhor aluna da minha turma do 7º ano era retornada. Morava numa casa ocupada, em frente ao Museu de Arte Antiga. A dividir os quartos havia cordas e lençóis. No Vale do Jamor viviam os timorenses.
Acha o discurso: “Eles são todos iguais!” uma consequência banal do estado a que isto chegou? Ou considera que é grave e abre espaço a populismos?
Demonstra muita falta de informação e como consequência abre espaço a populismos. É grave.
Oficialmente saímos da crise. Com cautelas, uma parte da população recuperou hábitos anteriores à chegada da Troika. À esquerda e sobretudo à direita, disse-se que Portugal tinha vivido acima das suas possibilidades e que era preciso aprender a viver de outra maneira. Aprendeu?
Viver acima das possibilidades? Sempre achei essa afirmação ridícula. As pessoas vivem a tentar suprimir as suas necessidades. E mesmo que isso fosse verdade, seria justificado por dezenas de anos de políticas paupérrimas ao nível da educação, da cultura e da saúde e de uma geração morta e estropiada numa guerra colonial. Eu não aprendo nada com as crises, nem quero.
Continuemos o diagnóstico/retrato dos portugueses e do país: o que é que não fizemos nestes quatro anos e devíamos ter feito? Refiro-me às grandes reformas falhadas.
“Falam de tudo. Da moral, do comportamento, dos sentimentos, das reacções, dos medos, das imperfeições, dos erros, das criancices, ranzinzisses, chatices, mesmices, grandezas, feitos, espantos. Sobretudo falam do comportamento e falam porque supõem saber. Mas não sabem, porque jamais foram capazes de sentir como o outro sente. Se sentissem não falariam.” (Nelson Rodrigues)
Se pudesse escrever uma carta a alguém, gritar alguma coisa (um insulto, uma advertência, um conselho, uma declaração) seria o quê e a quem?
“Liberté, Egalité, Fraternité”. Para quem me quiser ouvir.
Portugal vai ter duas eleições nos próximos meses. Os seus amigos: diria que estão mais alheados da vida pública, mais participativos depois dos anos de crise?
Tenho amigos em vários quadrantes políticos. Os meus amigos votam. Eu só peço é que sejam coerentes entre o que votam e o que fazem na vida. Não discuto política com os incoerentes.
Como é que explicaria a um jovem, que quer perceber o essencial, as diferenças entre a esquerda e a direita?
Concordam com adopção de crianças por casais do mesmo sexo? Concordam com a IVG por vontade da mulher SEM a obrigatoriedade de consultas prévias de “aconselhamento”? Se concordam, NÃO votem na direita. A direita neo-liberal que nos governa cheira a naftalina no que toca aos direitos LGBT e das mulheres. Nada pode ser dado como adquirido e é preciso votar na esquerda para garantir aquilo que tanto nos custou a alcançar.
O futuro passou a ser uma ameaça, evitar o perigo uma divisa. É mesmo assim? Quando foi a última vez que usou a palavra esperança?
O futuro nunca é uma ameaça. O futuro é este instante, daqui a bocadinho.
Matilde Campilho disse que a poesia não salva a vida, mas que pode salvar o instante. O que é que salva o seu instante?
A Irene.
Férias de Verão: dê-me uma recordação das férias de quando era criança. São um dos seus maiores tesouros?
O meu melhor tesouro é sempre o momento presente. No entanto, foram tempos muito bons. Três meses de férias na praia. Com o mar gelado e agitado. Lembro-me dos afogados. Acho que primeira imagem da morte que tenho é a de um corpo deitado na areia. Todos os anos íamos comprar chapéus de palha com uma fita azul escura numa chapelaria da rua das Janelas Verdes. Em Setembro a fita estava toda manchada, com veios brancos, como o mármore. Era do sal das cabeças molhadas. Lembro-me das minhas avós nas tardes do casino e da maquineta dos amendoins. Do banheiro com as pernas muito castanhas, dos toldos, do Sr. Franklin do café e do Sr. Alves da farmácia. Éramos besuntados depois da praia com Caladril que parecia gelado de morango.
Pode fazer um curto auto-retrato?
Oh, isso daria um curto... circuito.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2015