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Anabela Mota Ribeiro

Gonçalo M. Tavares (2006)

30.11.15

No dia seguinte ao nosso encontro vi-o casualmente na rua, com a barba muito espessa e uns calções que lhe davam pelo joelho. E imaginei que se dirigia à piscina, onde agora nada. A casa é perto daquela rua e do café onde nos encontrámos para conversar sobre o mundo que ele habita. Ou os mundos. Mas antes disso: este rapaz que segue pela rua para ir nadar à beira de casa é tido, consensualmente, como um dos melhores escritores da sua geração.

É um autor prolixo. E entre o muito que escreve e publica, há uma colecção a que vulgarmente se chama “livros pretos”. Na verdade, o título genérico é “O bairro”, e da série fazem parte “A máquina de Joseph Walser”, «Um homem: Klaus Klump» ou o muito premiado «Jerusalém».

Os personagens destes livros habitam um mesmo universo, um mesmo bairro, e em cada livro recuperamo-los sob luzes de diferentes intensidades.

Gonçalo M. Tavares é um homem do seu bairro, seja ele qual for. Todas as manhãs percorre caminhos e rotinas, fita pessoas, cruza enredos. Não exactamente para transferir esses mundos para os seus livros, porque esses já lá estão. É vagamente inverosímil que tudo isso esteja já escrito, independentemente do bairro. Mas é mesmo assim.

Houve um tempo, uma década, em que Gonçalo se levantava pontualmente às cinco da manhã. Quando eram dez e muitos acordavam para o pequeno almoço, ele tinha a noção de estar exaurido, e de ter o dia justificado (salvo) por causa do que escrevera.

Desses anos resultaram incontáveis páginas que começaram a ser publicadas nem há cinco anos. O mítico baú Gonçalo M. Tavares existe deveras. Ele conta: «Grande parte dos livros foram escritos antes de qualquer deles ser publicado. Entre os 20 e os 30 anos. Felizmente há distância entre o momento que faço e o momento que publico. Quando decido editá-lo olho para ele como um leitor que ainda pode cortar, e não como alguém que o escreveu. Sou de um desprendimento enorme! Posso cortar cem páginas! É uma espécie de pós-morte: agora vou pô-los no mundos dos vivos e eles seguem o seu trajecto». Mas logo a seguir confessa que cortar texto é violento, é como arrancar um bocadinho de si próprio. E que só é possível se houver tempo de intervalo.

Sobre que são os seus livros? Depende dos livros, depende do mundo. Na véspera de o ver, aliás, eu começara por perguntar quantos mundos tem ele dentro de si. «Todas as pessoas têm vários. O que talvez não seja tão comum é expressar cada um destes mundos literariamente. Todos me pertencem. Todos os tons pertencem à minha identidade».

A sua identidade, os seus livros, são mais pesados ou mais lúdicos. São mundos fragmentados, mas, ao mesmo tempo, incrivelmente coesos e sólidos. Se forem mais lúdicos, e de descompressão, pertencem à série dos “senhores”: «O senhor Valery», «O senhor Brecht» ou «O senhor Calvino». Mas há também peças de teatro, poesia, ficções curtas, textos referentes a autores da sua biblioteca.

O senhor Gonçalo M. Tavares é um homem labiríntico. Há nele uma afabilidade que desconcerta e contrasta com o negrume dos livros pretos, por exemplo. E saber que tem três filhos e que gosta de ensinar Epistemologia aos seus alunos na universidade, faz-me perguntar como convivem estes mundos. Mas ele não vê nisto nada de extraordinário. Sempre foi popular entre os amigos da escola, passou a infância na rua, jogou futebol, andou ao soco. Depois fechou-se. Aos 18 anos equacionou dedicar a vida à matemática pura – há, curiosamente, nos seus livros, um racionalismo que contrasta com o tom lamechas dominante. Gonçalo queria que em cada frase houvesse uma ideia, e que esta fosse esculpida, até resplandecer na sua máxima pureza. A sua prosa é de uma economia e fulgurância notáveis.

Porque escreve ele, então? «É difícil pensar o que é que me levou aos 20 anos a fazer esse regime. Mas a escrita é uma maneira de pôr no mundo qualquer coisa que explicita o incómodo. O incómodo é como uma pessoa estar com uma roupa dois números abaixo. Não estar bem. Em vez de gritar ou bater, escrevo livros. É estranho, mas o acto de escrever, não o domino. Sento-me e não sei porque é que aparece aquilo, não programo. É um livro instintivo, quase inconsciente. Esta é uma fase. A de corte surge depois de um intervalo. E esta, ao contrário, é totalmente lúcida».

Muito antes de ser escritor, foi leitor. Criou um bunker onde punha quatro ou cinco horas por dia: «Ninguém vai tocar nestas horas. São para mim! Usei-as para ler e escrever. São quase uma necessidade fisiológica».

Comove-se com Camus ou Clarice Lispector. Mas Séneca talvez seja o que tem mais rente aos dias. Agradam-lhe as coisas que lhe escapam, que não domina - «Estas são as que não sei ainda». Por vezes, na rua, é interpelado. «O que me tira deste mundo da escrita é a biografia, são os cruzamentos com pessoas».

Cruzou-se comigo num café perto de casa. A seguir ia nadar. No dia seguinte vi-o e pareceu-me uma figura iconoclasta. Tem 36 anos, cerca de 20 livros editados.

 

 

Publicado originalmente na revista das Selecções do Reader's Digest em 2006

 

 

Vítor Pomar

29.11.15

Vítor Pomar é artista plástico. Vê o mundo como quem se vê ao espelho. Cria (pinta, fotografa, cria, enfim) a partir do seu mundo, isto é, do mundo. O uno é a mais essencial das suas premissas. Nas páginas seguintes, e sobretudo nas paredes revestidas pelas suas fotografias, é possível aceder ao seu universo. Àquilo que o compõe, vivifica, dá sentido. Para a decifração da sua obra, é forçoso conhecer o seu glossário privado, folhear a bibliografia que lhe é mais preciosa. No fim da entrevista, comemos melão biológico, falámos das propriedades do Aloe Vera, revisitámos as imagens que compõem esta exposição. «I love my photos» é uma expressão do seu mundo. E uma exortação à felicidade e à procura incessante. Nasceu em Lisboa em 1949. 

 

Há uma frase recorrente em si: «Ver o mundo como quem se vê ao espelho». O que quer dizer?

Todos os místicos, de todas as escolas, dizem: «I am Thou» (eu sou tu). A dualidade não existe. Sou a consciência não-dual do universo. Se olho para o mundo, estou a ver-me a mim. Há uma definição do ser humano que fui construindo: «O homem é um saco de pele mal cheiroso»; e a que acrescentei: «Com hipertrofia do sistema nervoso central, a um passo de se reconhecer como consciência (não-dual) do universo». Pode-se inferir daqui todo um modo de vida: aquilo que faço ao outro, estou a fazer a mim próprio. Fundamentalmente é essa a grande liberdade do ego: o ego esventrado.

 

Esventrado?

Denunciado e liberto do ego. Não por cortar braços nem pernas, mas por reconhecê-lo como ilusório, como inexistente. O ego é um ditador, está sempre a dizer: «Gosto disto, não gosto daquilo». Se conseguirmos virar a consciência sobre ela própria e confrontarmo-nos com os fantasmas, vemos que eles se desfazem, que não têm existência própria.


Qual é o lugar da consciência? E o que é a consciência, se nos queremos libertar desse ego omnipotente e omnipresente...

A definição de consciência que se dá é «clear ligth of bliss», luz clara de gozo. Libertamo-nos de uma coisa que não existe, de uma ilusão. É um peso que sai de cima, uma alegria a que se toma o gosto. É preciso ter cuidado com estas coisas, para não serem forçadas, para virem do interior, para serem uma libertação e não uma amputação. Se nos identificamos com o corpo estamos tramados! Não resolvemos os problemas fundamentais do sofrimento, ficamos sempre aquém da satisfação. Com o envelhecimento e a morte é a maior das angústias: então vamos acabar?

 

Não sei como situar esse desligamento do corpo. Sobretudo se penso que se envolve corporalmente com as telas, quando pinta. E as fotografias desta exposição redigem uma história de pessoas, contam com a sua presença física.

São manifestações, ornamentos. No ocidente perdemos uma ligação entre o físico e o espiritual porque recusámos a introspecção como método válido de investigação. Ficámos limitados à prisão da racionalidade. A linguagem e a razão são níveis muito grosseiros da mente. A mente um bocadinho mais subtil é não-verbal. A obra de arte tem origem num nível não-verbal, não-dual.

 

Num lugar de pura existência, e sensível?

Situemo-nos no intervalo entre pensamentos. Além de nos identificarmos com o corpo, identificamo-nos com o pensamento, as sensações, as emoções. A chave é reconhecer que isso não é ruído puro e simples, mas formas que a natureza profunda toma. A actividade mental é muito difícil de desmantelar, por isso é que se pratica meditação.

 

Pode ser entendida como um acesso a esse reduto onde o Eu está mais intimamente consigo?

Em que reconhecemos a natureza da mente, relativizamos a natureza dos fenómenos.

 

Mais do domínio do dionisíaco e menos do apolíneo, no sentido nietzscheano.

Por esses lados. O zen é uma percepção directa da realidade.

 

Sem intermediação da palavra, dos conceitos?

Voilá. Para isso é preciso fazer espaço, criar uma atitude mental que permite essa surpresa e necessariamente perplexidade. Esse tipo de percepção está presente no Pessoa.

 

Mas Pessoa está pejado de palavras e de angústias!

Sim, mas são anotações. É a sua maneira de procurar resolver os problemas existenciais. É por isso que há muitos literatos que não gostam do Pessoa, porque aquilo não é coisa que se apresente, não é obra. Ele não quis fazer obra. Ele tinha determinadas questões que se punha. Por que é que os melhores poetas e pintores japoneses são mestres do zen? Eles não estão centrados em fazer uma obra, estão centrados na vivência. Subitamente há a rãzinha que salta, e o estado mental em que se estava permite esse encantamento, que é tão raro na nossa vida.

 

Mas isto levanta duas questões: qual deve ser a predisposição da mente para que seja permeável à surpresa; e que coisas são susceptíveis de provocar surpresa.

O estado mental é do tipo introspectivo, em que a mente, sem se fechar ao exterior, está atenta a ela própria. Qual é a importância do espaço entre os pensamentos? Primeiro há a tal iniciação que permite ao discípulo o acesso a essa brecha. Depois a brecha alarga e percebe-se que os pensamentos são uma espécie de bolhas na água que vêm à superfície e se auto-resolvem. A consciência equipara-se a um espaço luminoso, sem perímetro, sem centro.

 

O que é que lhe causa sofrimento?

Uma postura incorrecta em relação à existência.

 

O sofrimento é uma incorrecção? É sintomático de um desequilíbrio.

Todos os problemas são falsos, toda a dor é uma informação que chega ao cérebro, pensa noutra coisa e não dói.

 

Ocorre-me a palavra leveza.

Tem a ver com um não-esforço. Essas coisas têm de vir ter connosco, não se podem agarrar. Tem de haver mais uma receptividade do que uma vontade de possuir.

 

Mercê da experiência mística, a noção de tempo é em si muito particular. João Fernandes, num texto a propósito da sua obra, falava da busca da permanência numa mudança constante.

O tempo é um dado da dualidade.

 

A sua vida é errática. Mas é, também, de permanência, e de procura do elemento.

Sinto-me um maratonista, especialista da corrida de longa distância. Penso muito na imagem do fio e das pérolas: cada momento tem o seu brilho, o seu encanto, mas se não há fio condutor, o colar não se forma. Não podemos estar encantados com cada momento se não houver uma visão mais ampla da existência. Anda à volta disso, do conceito de vacuidade, que não é vacuidade, mas uma plenitude.

 

Plenitude porque conseguiu libertar-se de toda a tralha e permanecer no essencial?

Interessa-me referir-me aos conceitos que reconheço como úteis.

 

Fale-me ainda do tempo.

Para sair disso tem que se perceber que há o sistema dual que se nos impõe. Por exemplo, custou-me imenso integrar todos os compromissos que existem desde o momento em que se utiliza um automóvel. A quantidade de cascas de cebolas, de identidades, que transportamos connosco é incrível! Somos utentes, atravessamos uma passadeira e somos peões, somos homens ou mulheres, temos esta idade ou aquela... Tudo isso é ruído, é lixo.

 

O que é o essencial?

O essencial é o conhecimento de si próprio.

 

É um enunciado socrático.

No ocidente essa frase é socrática e é aceite. Fica-se muitas vezes por aí, não se sabe o que fazer com isso, nem onde é que isso vai dar. De facto, «somos um saco de pele malcheiroso»! Se nos esfregamos um bocadinho começamos a sangrar, se não nos esfregamos suficientemente começamos a criar bicho e a cheirar mal por todos os lados. É muito estreita esta margem.

 

As premissas são a errância e o tempo. O que é que resulta desse percurso errático, o que é que vai sendo assimilado e o que é que vai sendo estirpado? A série «I love my photos», que compõe esta exposição, tem uma aparência “não-cronológica”: ou seja, o ambiente das fotografias de há vinte anos não difere substancialmente do destes dias.

Aos vinte e um anos saí de Portugal, na altura em que me calhou a mim ir fazer uma guerra, e cheguei à Holanda. E demorei mais vinte e um anos a chegar a Bodhgaya, o local da iluminação do Buda, na Índia. Eu digo para os meus botões: e se tivesse chegado aos vinte e um anos a Bodhgaya? Tinha-me deixado fascinar por todo aquele aparato, mas não tinha relação com a cultura ocidental, com as artes e o processo criativo, como tenho hoje. Estou sentado, aparentemente, nestas duas cadeiras, e reconheço que o processo criativo tem uma qualidade que é corroborada pelos ensinamentos a que tive acesso.

 

A fotografia, a pintura, os filmes são anotações diarísticas? A sua obra corresponde ao seu olhar interior transportado para a realidade exterior?

Tenho dificuldade em ouvir isso. Uma antologia é como se fosse uma contabilização dos acontecimentos. Não é nada disso que se trata. O que me inspira hoje é, por exemplo, relacionar a prática da fotografia com o haiku japonês. O haiku não é uma coisa muito elaborada...

 

É a máxima depuração.

Não é no aspecto da depuração, é espontâneo. Temos a tendência, no ocidente, de depurar as coisas, polir. A descoberta da simplicidade é muito delicada, rara, e evolui nesse sentido com a idade. Em vez de a mente se tornar mais opaca, evolui-se nesse sentido. Não se pode desejar muito mais.

 

Aspirar à máxima simplicidade...

É um indicador. É aquela técnica do palito a ver se o bolo está cozido. Precisamos de indicadores indirectos, não podemos observar directamente.

 

A exposição obedece a três vectores...

A espontaneidade, a intuição, a simplicidade. Podem-se pôr num altar. Muita calma porque não são coisas que se fabriquem. O nosso olhar é perscrutante, inquiridor. Não sabemos o que é um olhar receptivo, e olhar é uma coisa que vem de fora para dentro.

 

Como é que organizou aqueles três vectores: interior/exterior, as mulheres e os homens.

O título actual é «I love my photos».

 

Quer dizer «I love my world»? As fotos são uma expressão do seu mundo.

É a tal inclusão da vida como prática. O profissionalismo de produzir uma obra tem o valor que tem, mas a mim, muito obrigado, não me apetece profissionalizar-me. Quero guardar uma frescura que não passa por aí, cada um come do que gosta! O central é a maneira de estar, (embora possa ser muito desajeitado!), o que me motiva e me orienta é isso, mais do que a produção da obra. A obra é o corolário.

 

A arte é aquela que revela a vida como arte?

É a tal visão que integra tudo, não fica nada fora e não é no sentido de espartilhar, mas no sentido holístico.

 

Holístico é um termo essencial em si.

É capaz de ser. Os termos no Ocidente são muito limitados. Há que não nos agarrarmos às palavras, procurar entender qual é o sentido que se lhes procura dar. Uma vez praticado isso, naturalmente há obra, há anotações.

 

A concepção é holística. Mas há coisas mais importantes que outras, há umas que emergem.

Opções, prioridades extremamente rigorosas, claro.

 

Então, como é que aquelas três foram apontadas, fixadas?

É uma maneira de estruturar aquela massa de trabalho. O nível a que chamo “inner-outer” (olhar para o exterior como uma visão interior, olhar para o interior como uma manifestação ou ornamento da natureza da mente), é o que se passa numa grande quantidade de fotografias que tenho feito. Depois há «the godess»; que é o arquétipo que tem na mulher manifestações particulares, inúmeras, constantes. E depois há os senhores, «the gents»; há muitos retratos meus, muitos retratos de grupos, coisas que vão acontecendo.

 

É uma peça interminável, pode ser sempre continuada.

Sim, mas agora interessa-me fazer este trabalho, concluir este body of work. Estou a pensar fazer uma versão vídeo, tanto pode ser num ecrã só, como em três ecrãs. É um sonho, uma estrutura que tenho vontade de utilizar: conseguir fazer uma série de pinturas que se podem ver em qualquer ordem.

 

Parafraseando Godard, há um princípio, meio e fim, mas não forçosamente por esta ordem... Existe a primeira fotografia, a última fotografia ou a ordem pode ser completamente baralhada?

É mais circular, é um tempo circular, que não conhecemos muito bem, mas que é mais real do que o tempo linear. Não há pontos de partida nem pontos de chegada.

 

Cada fracção condensa todas as outras?

No zen, o objectivo é cada passo, cada momento. O momento é uma pura plenitude, e tudo o resto são fabricações, são perda de rumo. Não há um percurso, mas há uma sucessão de momentos. É como a projecção de um filme: não vemos as imagens separadas, temos a ilusão do movimento. A percepção da existência é um bocado assim.

 

Se cada instante é uma pérola, o fio que une todas as pérolas é a sua vida?

Penso que seria mais esta visão holística. Habito um quadro de referências que é mais amplo do que arte. O mundo da arte é muito limitado.

 

Podemos sempre perguntar-nos para que serve a arte.

Serve como reflexo desta prática. O que é que diferencia o artista do místico? É que o místico não precisa de produzir objectos.

 

A sua produção artística foi interrompida durante catorze anos. Não teve necessidade de produzir?

Tive necessidade de parar.

 

Quando retoma a sua produção, intensifica o uso da cor, que era praticamente inexistente na pintura, e integra as pessoas nas fotografias, por oposição ao período em que assistíamos à intimidade do seu olhar depositado sobre a paisagem.

Sim, há esse gozo, esse conhecimento, esse reflexo também das pessoas.

 

O gozo é todo o processo, toda a trepidação que se desenrola no seu campo de batalha?

O campo de batalha é a própria existência. É ter uma postura correcta, em vez de me deixar encurralar em infernos mentais -  são os piores. Essencialmente nós somos o grande gozo, «clear ligth of bliss». Bliss não é traduzido por gozo, mas acho que fica muito bem assim. É uma coisa que nos constitui e que não perdemos. A chave é o reconhecer. Ou se está lá ou andamos às aranhas.

 

Em resposta a um questionário, apontou como lema de vida «no fear, no hope».

É uma definição de iluminação. Olhamos para as coisas e vemo-las como elas são. É pura fé. Não há dúvidas, não há medos, não há esperança. É a plenitude.

 

 

 

Ler Dom Quixote

28.11.15
E foi há 400 anos que se publicou a segunda parte de Dom Quixote.

No Ler no Chiado vamos falar do cavaleiro de fina estampa e triste figura.

Com António Mega Ferreira, que está a lançar "O essencial sobre Dom Quixote", o escritor espanhol José Manuel Fajardo e o crítico literário José Mário Silva (que, além do mais, está a ler o livro com os filhos, de 10 e 8 anos).

Dia 3 de Dezembro, 18,30h, na Bertrand do Chiado. Eu modero.

 

 

Ricardo Arroja

26.11.15

Ricardo Arroja é economista e consultor de empresas. Formado pela Faculdade de Economia do Porto, é membro da direcção nacional da Ordem dos Economistas. Em 2012 publicou o livro “As Contas Politicamente Incorrectas da Economia Portuguesa”. Escreve no blog O Insurgente, aparece regularmente nos média. Nasceu em 1978.

 

Assistimos à erupção de casos violência no país. Vizinhos desavindos, maridos a matar mulheres, pessoas a perder a paciência. Muita gente pobre. No fio - como se dizia de um tecido puído. Vai rebentar? Que rebentamento? 

Acho que não. Nota-se uma grande desesperança em muitos estratos da população portuguesa, porque o desemprego ainda é muito alto, porque as perspectivas de trabalho são limitadas. Mas depois há as prioridades do dia-a-dia: contas para pagar, e famílias para cuidar. E assim, a esmagadora maioria dos portugueses não tem tempo para se dar ao luxo de estados de alma mais ou menos revolucionários. Porventura, também não teria vontade.

 

Não?

Não esqueçamos: a população portuguesa está relativamente envelhecida. As revoluções são os jovens que as fazem, e os nossos jovens têm do mundo uma visão global, que não está confinada a este pequeno rectângulo.

 

Desemprego, Sócrates, a enorme disparidade na leitura dos números: estes são os grandes temas desta campanha eleitoral? Quais deveriam ser, na sua opinião, os grandes temas em discussão?

A Segurança Social será de longe o assunto mais importante nos próximos anos. É certo que nas últimas semanas o assunto tem vindo a ganhar algum protagonismo na campanha eleitoral, mas encontra-se ainda muito aquém da profundidade que se exigiria. Quanto aos outros temas, nada ouvi de especialmente relevante quanto à Justiça em Portugal, e às questões de fundo que a afectam, o que me parece escandaloso em face do descrédito em que esta vive.

 

Como é que Portugal pode ser mais competitivo, crescer mais, acumular mais capital? O mais provável é que não haja resposta para isto. Mas isso é aceitar que somos um país que não se governa nem se deixa governar, como dizia Júlio César. Que emenda?

O problema é organizacional, e tem origem na fragilidade institucional do País. Enquanto os Portugueses não acreditarem firmemente na suas instituições, é difícil que Portugal possa existir como país que no longo prazo se governa e se deixa governar. As instituições públicas estão frequentemente reféns de partidos políticos que, por sua vez, monopolizam o exercício do poder democrático, sequestrando às vezes a própria democracia. Neste momento, a única instituição pela qual os portugueses têm consideração, e é mais temor do que consideração, é pela Autoridade Tributária! Numa segunda linha, e sob uma perspectiva diferente, o SNS reúne algum consenso, sobretudo entre as camadas menos favorecidas da população. Tirando isto, pouco mais sobra.

 

O colapso do BES e da PT: já integrámos o que aquilo foi? Com esta distância, acha que Carlos Costa fez bem em rachar o problema ao meio?

O governador do Banco de Portugal fez o que tinha de fazer quando aplicou a lei de resolução bancária ao BES. O Fundo de Resolução existe desde 2012. É falsa a ideia de que o Fundo de Resolução apareceu do nada em 2014 por obra e graça do Governo e do Banco de Portugal para absorver o BES! Foi com este tipo de intervenção que a União Europeia decidiu que se fariam resoluções bancárias, para evitar as nacionalizações do passado através das quais riscos privados passavam a riscos soberanos.

 

Recentemente, o banco bom anunciou um prejuízo de 252 milhões. Quem pagará, por fim?

Tendo fracassado o primeiro concurso de venda, há ilações a retirar, e alterações a efectuar à própria lei de resolução. Não podemos ainda garantir que o risco privado não passa a risco da República. O objectivo é que sejam os restantes bancos do sistema financeiro (incluindo a CGD) a suportar qualquer prejuízo que venha a materializar-se, mas ninguém pode garantir que assim venha a ser. O poder de lobby da banca não deve ser menosprezado.

Quem, na realidade, deu o golpe de misericórdia ao BES foi o Banco Central Europeu (e não o Banco de Portugal), ao excluí-lo de operações de financiamento. Ao fazê-lo (coisa que curiosamente o BCE nunca fez aos bancos gregos nos últimos meses...), traçou o destino do banco. Fez do BES um exemplo e uma cobaia. Nesta perspectiva, Mario Draghi e o nosso Vítor Constâncio é que foram os verdadeiros mandantes.

 

E quanto à PT, o que é que pensa?

Tratou-se essencialmente de um problema de má governação empresarial. Decisões imprudentes dos gestores. O grau de irresponsabilidade foi chocante, atendendo à dimensão e à relevância da empresa. Falharam os controlos internos e externos. Falhou também o mercado, que não conseguiu quantificar em tempo útil a exposição da PT ao Grupo Espírito Santo. E depois foi aquele triste espectáculo dos executivos da PT na comissão de inquérito. Ou porque nada sabiam, ou porque nada tinham feito. Foi um espectáculo lamentável, ao ponto de um deles ter literalmente gozado na cara dos deputados.

 

Uma esmagadora maioria dos portugueses perdeu parte dos salários, reformas, rendimento, conforto. Foram anos em que o pais efectivamente empobreceu? Qual é a sua definição de pobre na conjuntura actual?

Em Portugal, pobre é aquele que vive com o salário mínimo ou pouco mais. O país empobreceu – isso é indiscutível. Mas empobreceu na medida em que antes havia enriquecido de forma artificial, com crédito em excesso, com consumo a mais, com uma balança comercial muito negativa. Deste ponto de vista, temos hoje um país mais equilibrado. Esperançosamente, temos hoje uma base de partida mais saudável rumo a um futuro melhor. Já não vivemos acima das nossas possibilidades. Dito no jargão do economês, isto traduz-se em ter as contas externas equilibradas, evitando-se o recurso ao financiamento externo. Mas é um caminho penoso, prolongado no tempo, frustrante no dia-a-dia.

 

Vamos ter eleições legislativas e pouco depois as presidenciais. Não é claro quem vão ser os protagonistas políticos dos próximos anos. Ou é, para si?

O nosso sistema político é um condomínio fechado. Os partidos exercem o monopólio da política, e como tal, o sistema democrático encontra-se corrompido. As instituições públicas (incluindo as da Justiça) frequentemente deixam-se levar pelas agendas dos partidos, e quem não está filiado nos partidos (militantemente, ou indirectamente como pseudo independente) não tem hipótese de participar no exercício do poder democrático. Portanto, os próximos protagonistas políticos tenderão a ser “insiders” dos principais partidos em Portugal. Oxalá me engane.

 

Como fazer a renovação e reaproximar o cidadão da res publica? Quer propor algumas medidas?

Tornar possível que qualquer pessoa se pudesse candidatar à Assembleia da República, fazendo-o, se quisesse, fora da alçada de um partido. Traria renovada liberdade de pensamento, contribuindo para eliminar essa coisa estalinista da disciplina de voto. Traria também maior representatividade a um Parlamento em relação ao qual o comum dos mortais se sente cada vez mais distante (e não representado).

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Outubro de 2015 

 

Carla Hilário Quevedo

25.11.15

Carla Hilário Quevedo nasceu em Lisboa. É colunista do semanário SOL e do jornal i. É mestre em Estudos Clássicos pela Faculdade de Letras de Lisboa. Publicou recentemente o seu primeiro livro, “As Mulheres que Fizeram Roma”. É autora do blogue Bomba Inteligente.

  

Foram quatro anos em que as pessoas e o país empobreceram, a dívida aumentou, o número de emigrantes chegou quase ao meio milhão, o tecido social se alterou. Mas o impensável não há muitos meses aconteceu e Passos Coelho e Paulo Portas obtiveram mais votos do que Costa. Estes resultados são uma legitimação das políticas dos últimos quatro anos? 

O preço que a coligação pagou pelos anos de governo foi a perda da maioria absoluta. Porém, com a votação conseguida também ficou provado que muita gente aceitou a austeridade como medida inevitável e até necessária. Nunca saberemos se tínhamos alternativas a essa política, mas por outro lado a penúria que vivemos pode ter evitado um mal maior. O caso da Grécia foi um exemplo de como uma proposta disfarçada de alternativa pode levar ao desastre.

 

Foi a coligação que ganhou ou foi o PS que perdeu? Quem ganhou? O Bloco?

Ninguém ganhou nem perdeu completamente. As eleições mostraram que os extremismos tiram proveito das dificuldades vividas em tempos de crise. O Bloco de Esquerda duplicou o número de deputados. E mesmo que não tenha conseguido eleger nenhum deputado, o PNR duplicou o número de votos.

 

Faz sentido o que se ouviu, sobretudo nas redes sociais, vindo da esquerda: que o povo acordou com síndrome de Estocolmo (em que a vítima passa a ter simpatia pelo agressor) ou isto quer dizer que o PS não se renovou e continua a ser lido como o partido de Sócrates e da bancarrota? 

Dizer que o povo padece de Síndrome de Estocolmo é uma estupidez típica das redes sociais e daqueles que pensam que têm toda a razão a toda a hora e não têm dúvidas. O PS vive o mesmo momento difícil que é neste momento vivido por todos os partidos socialistas europeus. Não é o PS que tem de se renovar; é o conceito de socialismo que tem de se actualizar. O que significa um PS mais à esquerda ou mais à direita? Eu não sei. E acho que eles também não.

 

O PS foi o mais fragilizado da noite eleitoral? Dizer o PS é o mesmo que dizer António Costa? O problema principal do PS foi qual?, a campanha, o não se afirmar como alternativa, as fracturas internas, o peso do passado?

O PS não foi capaz de se mostrar aos eleitores como alternativa e as propostas que apresentou na campanha ou o aproximavam de uma esquerda radical ou pouco o distinguiam das propostas da coligação. António Costa acaba por ser a personificação das contradições do PS. Costa, para ganhar à esquerda, inventou-se a si próprio como um líder intransigente, quando afinal o que o levou à liderança foi ser um negociador sensato. Esta confusão teve um preço.  

 

Quais são as grandes qualidades de Passos? E de Portas?

Pedro Passos Coelho e Paulo Portas, depois da famosa crise política de 2013, provaram que podiam partilhar uma governação coerente, com objectivos claros, sem medo da impopularidade. Como candidatos nestas eleições tinham um guião eleitoral do qual nunca se desviaram: “Fizemos o que tínhamos a fazer, a troika foi-se embora, o FMI fechou o escritório e agora vamos abrandar a austeridade, sem deixar de cumprir os compromissos”. Não há ninguém que não perceba isto.  

 

O PS tem a possibilidade de fazer uma maioria estável com a esquerda? Ou instável? E pode fazer um compromisso eventual com a direita sem trair o seu eleitorado?

Trair o eleitorado seria o PS fazer uma coligação com o PCP e o Bloco. O PS prepara-se agora para viver o melhor dos mundos: pode aprovar leis com as quais concorda politicamente e abster-se daquelas que o prejudicam.

 

Qual é o cenário mais provável? Um acordo possível (solução a prazo) até à próxima hecatombe? Novas eleições para quando?

Haver novas eleições não vai depender só da vontade do Partido Socialista, mas da conjuntura económica europeia. Não estou a imaginar o PS a ter de gerir um país no meio de uma crise financeira europeia ou mundial. Por isso digo que está a viver o melhor dos mundos. Pode aproveitar o momento para encontrar uma identidade que o distinga do Bloco e do PCP e da coligação.

 

Este pode ser o começo de uma nova maneira de fazer política?

Pode. Não só para o PS, mas também para a coligação. Os governos minoritários não estão condenados a não cumprir mandatos. Têm é de trabalhar mais.

 

Como é que este novo quadro político vai contaminar as presidenciais?

Penso que não contamina mas clarifica a situação. Pode haver um candidato de esquerda com hipótese de ganhar e também pode haver um candidato à direita com as mesmas hipóteses.

 

A verdade é que a maior parte do eleitorado votou à esquerda. Sinal de quê? A Europa há muito virou à direita, como se sabe. É tempo de redefinição ideológica?

Em qualquer parte do mundo a esquerda e a direita estão em constante redefinição. Portugal é um dos poucos países onde ainda existe um Partido Comunista ortodoxo. Por outro lado, também é um dos poucos países na Europa em que a extrema-direita não está representada no Parlamento. Acho bem que continue assim. Para extremismo, o Bloco de Esquerda é suficiente. Os partidos do chamado “arco da governação” quase só se distinguem pela maneira como pagam as contas e não por conceitos fundamentais, como a liberdade, a democracia ou a propriedade privada. Mais do que uma “redefinição ideológica” tem de haver uma maior preocupação social e sentido de responsabilidade, não só pelos mais desfavorecidos, como pelos sectores mais frágeis da sociedade, como a maioria dos pensionistas, os doentes, velhos e jovens.

 

Quais são os grandes desafios da próxima legislatura? Pagar a dívida, resolver o problema da justiça, dar alento ao quotidiano das pessoas? Outras prioridades?

O mais importante na próxima legislatura será o entendimento e o compromisso entre o PS e a coligação para que, em conjunto, consigam pôr as coisas no seu lugar: reparar os danos sociais provocados pela crise; reforçar a independência da justiça; humanizar a carga fiscal; criar condições para haver emprego, dando prioridade à situação gravíssima das pessoas que estão em situações de desemprego há anos, e não perder tempo a discutir o sexo dos anjos.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Outubro de 2015

 

 

António Pinto Ribeiro

24.11.15

António Pinto Ribeiro é ensaísta e programador cultural.

 

“Meu canto se renova/ E recomeço a busca/ De um país liberto/ De uma vida limpa/ E de um tempo justo”. Sophia de Mello Breyner. Quer comentar?

É preciso uma enorme cautela quando se propõe que uma obra de ficção sirva para explicar uma realidade ou seja a tradução directa de uma situação social. O universo da poesia, e em particular a da Sophia de Mello Breyner, está para lá da realidade imediata. Não a recusa, mas apela a uma transcendência e a uma intemporalidade que vai para além do imediato, do panfletário e do opinativo. De resto, infelizmente, para a maioria da população portuguesa este poema pouco dirá.

 

Porquê?

Dirá a alguns, é certo, mas a outros nada dirá porque não lhes foi dado o acesso aos mecanismos da sua interpretação. A outros, a poesia poucos lhes importa e creio que, para muitos outros, estes versos valem menos que umas férias em Cancun ou um programa de entretenimento das televisões. Ainda assim acreditemos que estes versos ficam como uma zona de claridade.

 

Será um novo ciclo, o que aí vem? Como inventar a disposição da folha branca, do dia inaugural, inteiro e limpo (para continuar com Sophia)? Parecemos esgotados, desmobilizados.

Não creio ser possível uma resposta definitiva à pergunta. Os ciclos históricos não são possíveis de classificar em cima dos acontecimentos, e muito menos de os prever. Acresce que os ciclos, a existirem, não têm o mesmo valor e o mesmo impacto para toda a gente de igual modo. Um ciclo de enriquecimento de uns corresponde a um ciclo de empobrecimento de muitos outros. É uma enorme falácia anunciar crescimento económico ou liberdade como um atributo de um país como se este fosse constituído por uma única classe ou grupo homogéneo. Este tipo de anúncios constituem instrumentos de propaganda do poder e a sua abstracção faz parte da linguagem de controlo.

 

De que chão podemos partir, quando olhamos para a realidade recente?

O que se pode dizer com alguma segurança é que há três décadas se iniciou em Portugal (como no mundo inteiro) um processo histórico de exclusão de uma parte da humanidade à justiça, à liberdade e à possibilidade de ser criadora e produtiva. Dizia o filósofo Achille Mbembe que com as políticas da direita neo-liberal uma parte do mundo foi neo-colonizada e nessa parte dos novos colonizados, seja na Europa, África ou Ásia, a maioria da população está a ser sujeita a um processo de desumanização, a um processo em que todos serão considerados e tratados como foram os negros no esclavagismo: na Ásia, os trabalhadores das indústrias deslocalizadas da Europa e dos EUA; no Mediterrâneo, os refugiados; na Europa, os intelectuais e os trabalhadores precários; em Portugal, todos estes e em particular os desempregados.

Simultaneamente, uma casta (que já nada tem a ver com a figura caricata do capitalista obeso e de charuto) auto-regenera-se através de associação e de partilha dos lucros do capital.

 

Como se caracteriza esta casta? Está a falar de quem?

Desta casta oriunda do mundo financeiro que se organiza e protege com os seus arquitectos do espectáculo, os seus banqueiros, os seus empresários da comunicação social, as suas fundações, os seus deputados, as administrações dos clubes de futebol ditando que hoje só uma religião vale: o capitalismo.

 

Quais são os grandes desafios da próxima legislatura? Pagar a dívida, resolver o problema da justiça, dar alento ao quotidiano das pessoas?

Não é possível determinar ciclos com balizas tão precisas. A vida – de uma pessoa ou de um país – decorre de variáveis externas pouco controláveis. Colocando o futuro do país sujeito a prioridades de contornos muito partidários, perde-se o essencial. O que era importante era que houvesse intérpretes.

 

Intérpretes?

Intérpretes da crise que explodiu em 2008, intérpretes da instauração de um clima de medo e de desânimo entre a maioria dos portugueses, intérpretes de como muita classe média desprovida do seu poder de consumo – e recuperando uma categoria marxista – se comporta ideologicamente como o “lunpemproletariado”, disposta a tudo vender, até a dignidade, para obter um mínimo de consumo.

Houve alguns intérpretes que iniciaram este processo como Stiglitz, Varoufakis, Ricardo Paes Mamede, Byung-Chul Han, mas a estes a propaganda do poder tratou de imediato de os desautorizar: representam uma alternativa ao pensamento único instaurado na Europa.

 

Para além dos números, o que mudou na sociedade portuguesa nos últimos anos? Mais medo, mais contenção, mais apatia?

Os números são já em si uma abstracção que não se interioriza com dor ou com alegria. Na verdade, a pergunta – sem qualquer desrespeito – faz parte do fluxo contínuo da linguagem dos media que deles se serve para produzir informação. As perguntas terão de ser outras.

 

Que novas perguntas?

As que produzam conhecimento e admitam outra linguagem porque a alternativa está no uso de outra linguagem. Hoje por exemplo impôs-se aos intelectuais o uso de uma terminologia abstractizante (deflação, sub-prime, recuperação económica, empreendedorismo, etc.), que nomeia um universo desumano. Aos intelectuais o que se pede é que nomeiem os nomes dos sem-abrigo, o terror das depressões produzidas pela emigração e o desemprego, o dinheiro da corrupção, as técnicas de redacção de notícias com efeitos previstos, que nomeiem a carne, a solidão, o medo, o abandono.

 

Impôs-se uma terminologia nova e, sobretudo, um ângulo afunilado a partir do qual se lê a realidade. É isso?

Dou-lhe um outro exemplo: aquilo que se designa como mercados de mercado nada têm. Os mercados acontecem no espaço público onde são visíveis e têm nome os negociantes. Nestes mercados existem trocas baseadas no que é mais proveitoso para os que negoceiam. E há lá mais situação secreta, sem rosto, com interesses invisíveis, com negociadores travestizados, do que os mercados financeiros?!

 

Foram quatro anos em que as pessoas e o país empobreceram, a dívida aumentou, o número de emigrantes chegou quase ao meio milhão, o tecido social se alterou. Mas o impensável não há muitos meses aconteceu e Passos Coelho e Paulo Portas obtiveram mais votos do que Costa. Estes resultados são uma legitimação das políticas dos últimos quatro anos? 

Numa situação em que a conquista e a manutenção do poder assenta no sistema partidário o resultado destas eleições sugere que os mecanismos de instauração da amnésia e do medo funcionaram. Sugere que muitas pessoas desistiram ou não acreditam neste sistema e se abstiveram. Que muitas votaram por medo e muitas outras votaram por revolta. E, claro, que outras votaram para defender os seus interesses. Nesta campanha também foi claro o papel que os media tiveram.

 

Como é que os média intervieram?

Desde Luhmann que sabemos que a objectividade na informação é relativa, que não existe impessoalidade nem no poder nem nos media. A forma como muitos jornais e televisões se colocaram como parceiros da coligação PSD-CDS foram determinantes para o resultado das eleições. Para que a transparência seja possível é fulcral que nas campanhas eleitorais os media anunciem nos seus editorais que partidos ou personalidades apoiam.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Outubro de 2015 

 

 

 

 

 

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