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Anabela Mota Ribeiro

Ricardo Paes Mamede

12.11.15

Ricardo Paes Mamede é professor de Economia Política do ISCTE-IUL. É autor do livro “O Que Fazer Com Este País” e co-autor do blog “Ladrões de Bicicletas”. Nasceu em 1974. Resolveu estudar Economia para mudar o mundo. Hoje sabe que as expectativas eram excessivas, mas não se arrepende.

  

“Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya”, de Jorge de Sena: “Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós”. O que deseja para os seus filhos, para o país, no novo ciclo que se anuncia?

Quanto ao novo ciclo, já lá vamos. Para o país, desejo que tenha um futuro económico, social e ambientalmente sustentável. No curto prazo e no médio prazo isso significa reduzir de forma acentuada os elevadíssimos níveis de desemprego/subemprego. No longo prazo significa criar uma sociedade menos desigual, uma economia mais qualificada, um padrão de ocupação do território mais racional, bem como práticas de produção e consumo menos agressivas para o ambiente.

Para os meus filhos desejo que possam, no futuro, decidir viver em Portugal, se assim o entenderem, sem que para isso tenham de pagar um preço elevado.

 

Acredita deveras que será um novo ciclo? Parecemos exauridos. Como encontrar/alimentar a garra dos dias inaugurais? Estamos atados no “a gente vai levando”, de uma canção brasileira?

Poderá ter um cheirinho a novo ciclo caso deixemos de ter à frente do país um governo que acredita no retrocesso civilizacional como projecto para Portugal. Mas isto não chega para mudar de rumo. Portugal é hoje um país mais endividado, mais empobrecido, menos qualificado e com menos capacidade produtiva, sem que tenham sido resolvidos os problemas estruturais que estão na base do mau desempenho económico (uma estrutura produtiva frágil e um dos mais baixos níveis de educação do mundo desenvolvido). Para além disso, o país aceitou sujeitar-se a regras orçamentais que nos obrigam a prosseguir o caminho da austeridade financeira durante muitos anos. Sem que se alterem os constrangimentos externos, será muito difícil mudar verdadeiramente de ciclo.

 

Assistimos à erupção de casos violência no país. Vizinhos desavindos, maridos a matar mulheres, pessoas a perder a paciência. Muita gente pobre. No fio - como se dizia de um tecido puído. Vai rebentar? Que rebentamento?

Uma das coisas que hoje se sabe com grande segurança é que sociedades mais desiguais estão sujeitas a muitas mais tensões sociais, traduzindo-se em disfunções de vários tipos: doenças mentais, abuso de drogas, obesidade, baixo desempenho escolar, violência, insegurança, etc. Portugal é um dos países mais desiguais do mundo desenvolvido, tendo os anos de austeridade agravado este problema de acordo com todos os indicadores disponíveis. Isto não significa que haja um momento em que tudo rebenta. Vivemos uma crise prolongada de baixa intensidade há 15 anos – e as pessoas vão-se cansando de protestar, vão perdendo a esperança de assistir a grandes mudanças. Qualquer pequeno sinal de que as coisas não vão piorar muito mais já são bem-vindos. Dito isto, as dinâmica sociais são largamente imprevisíveis.

 

Desemprego, Sócrates, a enorme disparidade na leitura dos números: estes são os grandes temas desta campanha eleitoral? Quais deveriam ser, na sua opinião, os grandes temas em discussão?

Os grandes temas deveriam ser os principais constrangimentos que o país enfrenta: as desigualdades sociais, o perfil de especialização económica, a dívida pública e a dívida externa, o Tratado Orçamental, a ausência de instrumentos no seio da UE para lidar com estes desafios, a dependência energética do país. Estas são as questões que vão determinar o nosso futuro enquanto país, enquanto comunidade de destino partilhado. O problema é que os partidos do arco da governação não têm repostas para eles que não passem pela continuação da lógica da austeridade financeira e da perda de direitos laborais e sociais. Como não é uma resposta que dê muitos votos, optam por fazer uma campanha assente em casos mais ou menos relevantes.

 

Como é que Portugal pode ser mais competitivo, crescer mais, acumular mais capital? O mais provável é que não haja resposta para isto. Mas isso é aceitar que somos um país que não se governa nem se deixa governar, como dizia Júlio César. Que emenda?

A política económica em Portugal enfrenta três desafios fundamentais: reduzir a dívida pública, reduzir a dívida externa e relançar o crescimento e a criação de emprego. Mas estes três objectivos não podem ser prosseguidos todos ao mesmo tempo com o mesmo nível de prioridade.

 

Porquê?

Sem uma reestruturação profunda da dívida pública, a sua redução (ao ritmo previsto no Tratado Orçamental) implica prosseguir a austeridade, com efeitos nefastos sobre o crescimento e o emprego. Sem a possibilidade de desvalorização cambial, a redução da dívida externa implica prosseguir com a desvalorização dos salários e a desregulação do mercado de trabalho, o que não só contrai o mercado interno como diminui a base de receita fiscal (dificultando assim a redução da dívida pública). As instituições europeias insistem que Portugal deve dar prioridade ao reequilíbrio das finanças públicas e das contas externas porque isso é fundamental para credibilizar o euro. Mas o efeito desta opção sobre o crescimento é desastroso. Ou seja, o país está a deixar-se governar, não está a governar-se.

 

Quais são os grandes desafios da próxima legislatura? Pagar a dívida, resolver o problema da justiça, dar alento ao quotidiano das pessoas? Outras prioridades?

A prioridade deve ser uma: criar emprego. De acordo com o FMI, existem actualmente em Portugal cerca de 1 milhão e duzentas mil pessoas em idade de trabalhar que não conseguem encontrar um emprego em condições. Esta é não só uma das principais fontes de pobreza e de desigualdades sociais, mas também a principal fonte de delapidação das contas do Estado e da Segurança Social, e o principal factor de emigração, que tem vindo a acelerar os problemas do envelhecimento demográfico. Para criar emprego é preciso pôr a economia a crescer. E isso não será possível se não se puserem em causa as actuais regras orçamentais da UE e os termos de pagamento da dívida pública.

 

Uma esmagadora maioria dos portugueses perdeu parte dos salários, reformas, rendimento, conforto. Foram anos em que o país efectivamente empobreceu? Qual é a sua definição de pobre na conjuntura actual?

Cerca de metade das pessoas em Portugal tem rendimentos apenas suficientes para suprir as suas necessidades básicas, não conseguindo pagar o aquecimento da casa nos meses de inverno. Menos de 10% das famílias têm rendimentos que permitam fazer pelo menos uma semana de férias por ano fora de casa. Mais de um milhão de pessoas não consegue encontrar um emprego em condições, a maioria das quais não tem acesso a qualquer apoio público. Tudo isto são sinais de que a pobreza é uma realidade e um problema sério em Portugal.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Setembro de 2015