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Anabela Mota Ribeiro

António Pinto Ribeiro

24.11.15

António Pinto Ribeiro é ensaísta e programador cultural.

 

“Meu canto se renova/ E recomeço a busca/ De um país liberto/ De uma vida limpa/ E de um tempo justo”. Sophia de Mello Breyner. Quer comentar?

É preciso uma enorme cautela quando se propõe que uma obra de ficção sirva para explicar uma realidade ou seja a tradução directa de uma situação social. O universo da poesia, e em particular a da Sophia de Mello Breyner, está para lá da realidade imediata. Não a recusa, mas apela a uma transcendência e a uma intemporalidade que vai para além do imediato, do panfletário e do opinativo. De resto, infelizmente, para a maioria da população portuguesa este poema pouco dirá.

 

Porquê?

Dirá a alguns, é certo, mas a outros nada dirá porque não lhes foi dado o acesso aos mecanismos da sua interpretação. A outros, a poesia poucos lhes importa e creio que, para muitos outros, estes versos valem menos que umas férias em Cancun ou um programa de entretenimento das televisões. Ainda assim acreditemos que estes versos ficam como uma zona de claridade.

 

Será um novo ciclo, o que aí vem? Como inventar a disposição da folha branca, do dia inaugural, inteiro e limpo (para continuar com Sophia)? Parecemos esgotados, desmobilizados.

Não creio ser possível uma resposta definitiva à pergunta. Os ciclos históricos não são possíveis de classificar em cima dos acontecimentos, e muito menos de os prever. Acresce que os ciclos, a existirem, não têm o mesmo valor e o mesmo impacto para toda a gente de igual modo. Um ciclo de enriquecimento de uns corresponde a um ciclo de empobrecimento de muitos outros. É uma enorme falácia anunciar crescimento económico ou liberdade como um atributo de um país como se este fosse constituído por uma única classe ou grupo homogéneo. Este tipo de anúncios constituem instrumentos de propaganda do poder e a sua abstracção faz parte da linguagem de controlo.

 

De que chão podemos partir, quando olhamos para a realidade recente?

O que se pode dizer com alguma segurança é que há três décadas se iniciou em Portugal (como no mundo inteiro) um processo histórico de exclusão de uma parte da humanidade à justiça, à liberdade e à possibilidade de ser criadora e produtiva. Dizia o filósofo Achille Mbembe que com as políticas da direita neo-liberal uma parte do mundo foi neo-colonizada e nessa parte dos novos colonizados, seja na Europa, África ou Ásia, a maioria da população está a ser sujeita a um processo de desumanização, a um processo em que todos serão considerados e tratados como foram os negros no esclavagismo: na Ásia, os trabalhadores das indústrias deslocalizadas da Europa e dos EUA; no Mediterrâneo, os refugiados; na Europa, os intelectuais e os trabalhadores precários; em Portugal, todos estes e em particular os desempregados.

Simultaneamente, uma casta (que já nada tem a ver com a figura caricata do capitalista obeso e de charuto) auto-regenera-se através de associação e de partilha dos lucros do capital.

 

Como se caracteriza esta casta? Está a falar de quem?

Desta casta oriunda do mundo financeiro que se organiza e protege com os seus arquitectos do espectáculo, os seus banqueiros, os seus empresários da comunicação social, as suas fundações, os seus deputados, as administrações dos clubes de futebol ditando que hoje só uma religião vale: o capitalismo.

 

Quais são os grandes desafios da próxima legislatura? Pagar a dívida, resolver o problema da justiça, dar alento ao quotidiano das pessoas?

Não é possível determinar ciclos com balizas tão precisas. A vida – de uma pessoa ou de um país – decorre de variáveis externas pouco controláveis. Colocando o futuro do país sujeito a prioridades de contornos muito partidários, perde-se o essencial. O que era importante era que houvesse intérpretes.

 

Intérpretes?

Intérpretes da crise que explodiu em 2008, intérpretes da instauração de um clima de medo e de desânimo entre a maioria dos portugueses, intérpretes de como muita classe média desprovida do seu poder de consumo – e recuperando uma categoria marxista – se comporta ideologicamente como o “lunpemproletariado”, disposta a tudo vender, até a dignidade, para obter um mínimo de consumo.

Houve alguns intérpretes que iniciaram este processo como Stiglitz, Varoufakis, Ricardo Paes Mamede, Byung-Chul Han, mas a estes a propaganda do poder tratou de imediato de os desautorizar: representam uma alternativa ao pensamento único instaurado na Europa.

 

Para além dos números, o que mudou na sociedade portuguesa nos últimos anos? Mais medo, mais contenção, mais apatia?

Os números são já em si uma abstracção que não se interioriza com dor ou com alegria. Na verdade, a pergunta – sem qualquer desrespeito – faz parte do fluxo contínuo da linguagem dos media que deles se serve para produzir informação. As perguntas terão de ser outras.

 

Que novas perguntas?

As que produzam conhecimento e admitam outra linguagem porque a alternativa está no uso de outra linguagem. Hoje por exemplo impôs-se aos intelectuais o uso de uma terminologia abstractizante (deflação, sub-prime, recuperação económica, empreendedorismo, etc.), que nomeia um universo desumano. Aos intelectuais o que se pede é que nomeiem os nomes dos sem-abrigo, o terror das depressões produzidas pela emigração e o desemprego, o dinheiro da corrupção, as técnicas de redacção de notícias com efeitos previstos, que nomeiem a carne, a solidão, o medo, o abandono.

 

Impôs-se uma terminologia nova e, sobretudo, um ângulo afunilado a partir do qual se lê a realidade. É isso?

Dou-lhe um outro exemplo: aquilo que se designa como mercados de mercado nada têm. Os mercados acontecem no espaço público onde são visíveis e têm nome os negociantes. Nestes mercados existem trocas baseadas no que é mais proveitoso para os que negoceiam. E há lá mais situação secreta, sem rosto, com interesses invisíveis, com negociadores travestizados, do que os mercados financeiros?!

 

Foram quatro anos em que as pessoas e o país empobreceram, a dívida aumentou, o número de emigrantes chegou quase ao meio milhão, o tecido social se alterou. Mas o impensável não há muitos meses aconteceu e Passos Coelho e Paulo Portas obtiveram mais votos do que Costa. Estes resultados são uma legitimação das políticas dos últimos quatro anos? 

Numa situação em que a conquista e a manutenção do poder assenta no sistema partidário o resultado destas eleições sugere que os mecanismos de instauração da amnésia e do medo funcionaram. Sugere que muitas pessoas desistiram ou não acreditam neste sistema e se abstiveram. Que muitas votaram por medo e muitas outras votaram por revolta. E, claro, que outras votaram para defender os seus interesses. Nesta campanha também foi claro o papel que os media tiveram.

 

Como é que os média intervieram?

Desde Luhmann que sabemos que a objectividade na informação é relativa, que não existe impessoalidade nem no poder nem nos media. A forma como muitos jornais e televisões se colocaram como parceiros da coligação PSD-CDS foram determinantes para o resultado das eleições. Para que a transparência seja possível é fulcral que nas campanhas eleitorais os media anunciem nos seus editorais que partidos ou personalidades apoiam.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Outubro de 2015 

 

 

 

 

 

Mariana Vieira da Silva

24.11.15

Mariana Vieira da Silva é socióloga. Está a fazer um doutoramento em Políticas Públicas no ISCTE. É membro da direcção do gabinete de estudos do PS e membro da comissão política.

 

Um verso de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. O problema é que viver é preciso. Quais são as dificuldades concretas do viver que acha mais preocupantes em Portugal?

Toca-me o que julgo ser, não a dificuldade mais concreta, mas a mais gravosa: esta sensação de que uma parte significativa dos portugueses, quando olha para o seu futuro, tem dificuldade em imaginar, e em ambicionar, uma vida melhor do que a vida que tem. Esta concepção de que o progresso não nos trará crescentes níveis de mobilidade social é destrutiva. Alimenta populismos, sedimenta o alheamento face à democracia e instituições e banaliza esta ideia de que, no fundo, não merecemos mais.

 

Há 40 anos tivemos um Verão Quente, com o país a rasgar-se. Que lhe contaram os seus pais sobre esse tempo?

Nasci quatro anos depois do 25 de Abril, e os meus pais eram militantes do Movimento de Esquerda Socialista (MES). Aqueles anos, na minha memória afectiva, reconstruída a partir das histórias familiares, são anos muito mais marcados pelas ideias de liberdade e participação, por essa coisa magnífica de se desenharem programas políticos alternativos, de se fazerem listas às eleições, de se estar horas à espera de votar do que por qualquer rasgar. Anos de tantas possibilidades, depois de décadas de impossíveis. O Sérgio Godinho antecipou, em 1972, o que se seguiria: “E a sede de uma espera só se estanca na torrente”.

 

Vamos aos gregos: diz o guerreiro Aquiles ao rei Agamémnon, na “Ilíada”: “Ah, como te vestes de vergonha, zeloso do teu proveito”. Os portugueses estão divorciados dos políticos? Que parte ocupa neste divórcio a acusação ou suspeição de que são corruptos (demasiado zelosos do seu proveito...)?

Os portugueses vivem pior do que viviam há quatro anos, e há quatro anos viviam pior do que viviam em 2008. A democracia, o Estado de direito, a confiança nas instituições não se constroem no vazio. A minha geração, mas principalmente a dos que hoje têm menos de 30 anos, é a primeira que vive sem a expectativa de que vai viver melhor que a dos seus pais, sem a certeza de poder proporcionar aos filhos as mesmas oportunidades que a geração dos meus pais pôde proporcionar aos seus filhos. Todos estes factores ajudam a criar a ideia de que os políticos são todos iguais, ou que não fizeram nada por nós.

 

Na sua opinião, não são todos iguais. Dizer que são abre portas a populismos?

Podemos continuar a acumular sucessivas medidas para reforçar a transparência e moralização, pelo exemplo, da classe política. Mas estamos sempre a tentar vazar a cheia com um balde de praia. E estaremos a criar um caminho repleto de perigos: o de que um destes dias ninguém queira, podendo escolher, ser político.

 

À esquerda e sobretudo à direita, disse-se que Portugal tinha vivido acima das suas possibilidades e que era preciso aprender a viver de outra maneira.

A maioria actual chegou ao poder com um discurso, que considero mistificador e simplista, sobre as razões que nos trouxeram à actual crise: o famoso “vivemos acima das nossas possibilidades”, colectiva e individualmente. E governou em função desse discurso, ampliando-o. Uma parte da sociedade portuguesa assumiu-o [como verdadeiro]. Aprender, aprendemos sempre. Aprendemos que respostas construídas a partir de diagnósticos errados vão originar sempre soluções erradas. E aprendemos também – e este talvez seja um dos poucos ganhos – a questionar, como nunca antes havíamos feito, os programas, as promessas feitas nas eleições.

 

O que é que não fizemos nestes quatro anos e devíamos ter feito? Refiro-me às grandes reformas falhadas.

Mais do que grandes reformas falhadas julgo que podemos identificar dois erros fundamentais. Foi aprofundada uma tendência para desenhar políticas públicas com base em diagnósticos incorrectos ou em mitos. Estes mitos vão sendo alimentados recorrendo quase sempre a uma ideia de “culpa”, mas também baseados na ideia de que a má gestão é um exclusivo do Estado.

 

O segundo erro.

Esta voragem de destruição das políticas do passado. Esta obsessão fez com que interrompêssemos políticas públicas fundamentais, como as de aposta na ciência e na educação, ou a reforma dos cuidados de saúde primários.

Temos que ser capazes de construir objectivos comuns que sirvam de base às políticas públicas, e temos que saber baseá-los em informação, em conhecimento, em experiência.

 

Atravessamos um deserto em que todos sabemos o nome do ministro das Finanças alemão ou grego. Antes de mais: considera que é um deserto?

A política em boa parte foi engolida pela finança, mas isso não significa que vivamos um tempo despojado de ideologias. Pelo contrário. Há uma ideologia que se revelou mais forte, que ganhou força para que o seu discurso passe como se retratasse o curso natural das coisas. Como se fosse um discurso neutro e puramente técnico. Não é.

 

Demasiada conversa e negociação? Selvajaria e domínio dos mais fortes sobre os mais fracos? É tempo de quê?

Defendo, radicalmente, que nunca há demasiada negociação. O presidente Obama foi há poucos dias ao Daily Show e o que nos apresentou foi um curso acelerado sobre como a política se constrói a partir dessa ideia de conversa e negociação. Avanços. Que, passo a passo, têm a capacidade de transformar o sistema de saúde americano ou controlar o programa nuclear iraniano.

É um pouco dessa cultura que nos falta.

 

O futuro passou a ser uma ameaça, evitar o perigo uma divisa. É mesmo assim? Quando foi a última vez que usou a palavra esperança?

Uso a palavra esperança com frequência, porque a vontade de que as coisas mudem para melhor vai suplantando o pessimismo que resulta da realidade à nossa volta. A palavra que nos vai faltando é alternativa. Precisamos de alternativas mais convencionais, mais revolucionárias, mais de esquerda, mais de direita, mais ou menos progressistas.

 

Férias de Verão: dê-me uma recordação das férias de quando era criança. São um dos seus maiores tesouros?

As férias de Verão intermináveis que ouço descrever a tantas pessoas são um mistério insondável para mim. Fui nadadora de competição e, desde muito pequena, treinava até ao final de Julho, duas vezes por dia, para tirar partido das férias escolares e preparar os campeonatos nacionais. Aqueles treinos às 7.00 da manhã na piscina dos Olivais são dos meus maiores tesouros (gelados).

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2015