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Anabela Mota Ribeiro

Pedro Bidarra (2013)

14.01.16

Ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal? Como é o imenso Portugal de Pedro Bidarra?

Cansou-se de escrever que não somos mediterrânicos, mas atlânticos de água fria. E que se calhar é uma pena que os cataclismos em Portugal aconteçam com a periodicidade dos tremores de terra. Mas está noutra. Está mais velho e mais novo. É outro e é o mesmo. Deixou de ser publicitário. É escritor. Mudou de vida, começou outra vida. Porque já saber é estar mais perto da morte. Portugal pode mudar de vida?

Rolando Teixo, editado pela Guerra e Paz, é chamado pelo autor de romance vegetal. (Uma nota pessoal para dizer que é um dos melhores livros que li este ano. Maravilhosamente construído, inteligente, sensível como um cristal.)

 

 

Ampola Miraculosa, título genérico desta série de entrevistas, é de Alexandre O’Neill. Que história é essa de o ter substituído numa agência de publicidade?

Foi em 88 ou 89, quando fui trabalhar como copywriter. Precisava de dinheiro e era um trabalho criativo. Escrever anúncios: achei que era a coisa mais fácil do mundo. Fui para a [agência] EPG. O Botelho Moniz perguntou-me: “Sabe quem é que morreu aí? Foi o Alexandre O’Neill”. Levantei-me de um salto! Não tinha morrido ali, mas tinha trabalhado ali até ao fim. “Abra aí a gaveta.” Abri e tinha uma compilação de poemas assinados pelo próprio, livros. Fui substituí-lo.

 

Não teve vontade de roubar algum desses livros?

Ofereceram-mos logo. Fiquei com uma das primeiras recolhas do O’Neill assinada pelo próprio.

 

Passou por aí uma espécie de relação cósmica...

Foi, foi.

 

O O’Neill é um dos poetas que mais se debruçaram sobre Portugal. Tinha uma relação de amor ódio com a Pátria.

Como eu tenho.

 

O que é que o faz amar e o que é que o faz odiar Portugal?

É muito simples e está destilado. Já destilei esse pensamento, que é um pensamento de taxista. Gosto e amo o cheiro, e a cor, e o verde, e o mar, e os robalos, e a praia. E detesto a gente. Não são as pessoas. A parte das pessoas que é animal, que é como os robalos, os cães, os gatos, gosto. Aquela parte que é a nossa construção social cheia de convenções, cheia de gentinha, cheia de grupinhos, [não gosto]. É tudo muito conservador. Somos pequenos.

 

É por sermos pequenos ou é por não termos feito o luto do salazarismo?

Não, é por sermos pequenos, é da dimensão. Os nossos ricos são pouco ricos. Os nossos líderes são pouco líderes. Toda a gente aqui tem muito a perder porque tem muito pouco. Qualquer empresário – e conheci imensos enquanto trabalhei – tem muito a perder. Um Bill Gates, um daqueles gigantes que têm muito, podem arriscar. Aqui, mesmo os nossos artistas, muitos deles arriscam pouco. Têm medo do que os outros vão dizer. Estamos todos muito próximos.

 

Têm medo de ferir susceptibilidades?, dependem do cheque?, dependem da pertença a um grupo?

É de tudo. Encontrei… (Já posso dizer que tenho uma vida embora ache sempre que estou no princípio.

 

Abrindo um parêntesis: acha-se agora?

Não, achei sempre. Ainda estou a começar.) Voltando ao início: odeio a pequenez. Não é a pequenez das aldeias, é a pequenez do espírito. Estamos todos mais preocupados em conservar o pouco que temos do que arriscar o que temos para ter mais. A maior parte não diz o que pensa, está cheia de salamaleques, de vénias. Mesmo aqueles que é suposto serem abertos no meio artístico e cultural.

 

Está a sublinhar o meio artístico porque esse costuma ser o lugar da vanguarda?

Sim. Mas é tão igual, tão igual.

 

Na sua vida de publicitário viveu com os artistas e com as pessoas do dinheiro.

Os dois ao mesmo tempo. O dinheiro convoca as artes para falar, porque o dinheiro não sabe falar. Ou fala mal. Convoca os que sabem escrever, os directores de arte, os realizadores.

 

Estou a pensar naqueles que nos estão a ler e que têm dinheiro, a espernear e a dizer: “Posso não saber falar mas pago”.

Pois pagam. Mas não sabem [falar].

 

E acham, talvez, que esse é um poder superior. Poder comprar. Não têm mas mandam buscar.

E não é ao dinheiro que devemos a Renascença, e todas aquelas coisas boas? Li um dia um briefing que foi dado pela Liga dos Padeiros de Siena ao artista para fazer um altar. Era claramente o briefing do dinheiro. Briefings iguais àquele li eu durante anos na publicidade. “Quero isto assim, tem que ser maior do que o dos outros”.

 

Quando pensamos na Renascença, é verdade que sabemos o nome do Miguel Ângelo, mas também sabemos o dos Médici. Sabemos o nome do dinheiro e sabemos o nome da arte.

E agora continuamos a saber.

 

Sabemos o nome do Ricardo Salgado e do Pedro Bidarra que fez campanhas para o BES.

Por exemplo, lá está o Médici. [risos] Fiz algumas, agora já não faço.

 

O protagonista do seu livro – e já o vamos dissecar – era avesso ao risco e à transformação, apesar de acontecer nele uma profunda metamorfose. Porque é que as pessoas têm tanto medo de dar esse passo, de se pôr em risco?

Parece-me natural procurarmos o conforto, em casa, na família, no grupo. É biológico. Muitas vezes a procura do conforto implica que não arrisquemos. “Não vou arriscar, o risco pode não compensar”. Os desesperados arriscam muito mais. Não estando eles confortáveis, têm que arriscar à procura dessa zona de conforto. A nossa pequenez social: não temos poucos com muitíssimo, temos alguns com muito – não são tão poucos como isso. Também não temos o desconforto; vamos tendo cada vez mais pobres, mas não temos legiões de pobres, como há na América. Consigo encontrar pequenas zonas de conforto. O pessoal sente-se feliz de estar no Bairro Alto. Eu detesto. Oprime-me esta gente que vejo aqui, que é sempre a mesma, a palmada nas costas.

 

Desconfia?

Não. Parece, cada vez que me dão uma palmada nas costas, que me estão a dizer para não ir mais longe. “Estás bem onde estás”.

 

É uma frase terrível, dar uma palmada nas costas como quem diz “não vás mais longe”.

Mas é verdade.

 

E eu que elogiei o seu livro.

Mas não é a palmada nas costas de quem leu o livro, é a de quem não leu o livro. Já tinha acabado psicologicamente a outra vida, mas tinha um contrato que cumpri até ao fim de 2011. A pressão em 2011: “Não, deixa-te estar, és publicitário, não és outra coisa, deixa-te lá de merdas”. Deixem-me lá seguir o meu caminho! É isto que nos faz não ser livres. É um mundozinho que nos diz: “Estás arrumado”. Os mais novos arrumam-se também.

 

As pessoas que estão cada vez mais pobres têm coisas a perder; mas não vão para a rua (ou vão pouco), não partem montras, não incendeiam carros. Isso revela uma natureza mansa?

Escrevi um artigo no Dinheiro Vivo [no qual digo que] a grande convenção que nos define é sermos um país de brandos costumes. Mas houve coisas horríveis. No século XVI dois frades dominicanos incendiaram Lisboa e mataram milhares de judeus. O povo saltou, fez fogueiras. Durante a revolução republicana houve gente morta encostada às paredes. Volta e meia isto explode. Se calhar é com a frequência dos terramotos em Lisboa.

 

O que é que acha que vai ser preciso para se operar uma mudança em Portugal?

Não sei o que é que se pode fazer. Sei que não temos dinheiro, que estamos dependentes de credores e que chegámos a um ponto em que a gestão da coisa pública é incomportável. A maneira como se geriu durante os últimos anos – não estou a falar destes parvalhões –, décadas, foi incomportável. Temos ecrãs de televisão maiores e auto-estradas e bons hospitais. Temos um país até muito infra-estruturado e moderno à custa de investimento que foi trazido de fora. Mas oiço os que falam da esquerda e da direita e acho tudo uma irracionalidade! É tudo a falar sem verdade nenhuma. Há aqui um discurso que nos chama estúpidos a toda a hora. “Falem lá verdade”, que não há dinheiro para fazer isto e que a nossa energia criativa devia ser usada para fazer o que muitas famílias têm feito. “Como é que me vou reinventar? Como é que refaço a minha vida, como é que me organizo com os meus filhos e avós e pais para conseguir ter poupanças?”

 

O seu Rolando Teixo tem gravata cor-de-laranja Hermès, fato cinzento, casa no meio de Monsanto (e não importa que demore o dobro do tempo a chegar ao trabalho por viver ali). Há um modelo burguês, ou wanna be burguês, que nos contagiou. Não estou a dizer que as pessoas não deviam ter comprado casa (o crédito estava barato). Como é que vamos em carneirada e não questionamos as vidas que temos?

Porque somos católicos. Não somos luteranos. O D. Manuel tinha aqueles cortejos com elefantes e cavalos persas e rinocerontes. Resolveu fazer uns Jerónimos onde gastava por ano a renda toda da Índia. Não se precaveu, não investiu. Há uma coisa muito triste, e normal, quando uma pessoa está na periferia: quer ir para o centro. E a primeira coisa que faz antes de ir para o centro é tentar agir, vestir-se, viver como se lá pertencesse. Essa saloiice – “quando lá chegar já tenho que parecer que pertenço” – é o que nos faz desatar a comprar BMW e construir hospitais e fazer coisas que nos fazem parecer que estamos mais perto. Mas estamos numa periferia e vamos continuar a estar.

 

Na periferia da Europa e do mundo.

O mundo tem uma centralidade.

 

Neste momento dois centros, China e Estados Unidos.

A Califórnia continua a ser o centro.

 

A Califórnia? Qual é a sua teoria?

Não é a minha, é a do Jacques Attali. Um economista francês, um gajo que sabe de números. Fala de um mundo policêntrico onde sempre houve centros mercantis. Veneza, Bruges, Antuérpia, Amesterdão, Londres. Boston, Nova Iorque. E depois, Califórnia onde está a maior empresa do mundo, a Apple. Onde está a invenção e quase tudo o que é media. Embora o dinheiro também esteja em Nova Iorque, a Califórnia, desde os anos 70 ou 80 do século passado, é o centro do negócio. Parece que a coisa está sempre a ir para oeste. Parece que estamos sempre a ir atrás do sol.

Attali diz que os centros tiveram sempre um porto para facilitar o ir e vir das mercadorias. E sempre atraíram aquilo a que chama as classes criativas, onde inclui os advogados e os gajos do dinheiro, os comerciantes. Lisboa teve uma oportunidade, diz ele.

 

Quando?

Quando começou a decadência de Antuérpia, antes de Londres. Tinha um mercado, tinha o grande porto, tinha a agricultura à volta que podia sustentar isto. Mas expulsou as classes criativas. Expulsou os judeus, os homens de negócios. Mandámos embora a diferença.

 

Isto era a propósito do centro e da periferia e de não se questionar as convenções. A sua vida é o contrário disto. Teve várias vidas e fez um questionamento permanente de tudo. Porque é que não foi na carneirada?

Defeito [risos]. Culpa da minha mãe e do meu pai. Não faço ideia. Devo ter as minhas carneiradas. Poucas. Não sei porque é que tive a vida que tive, porque é que fiz as opções que fiz. Sempre senti em mim uma compulsão para andar atrás das coisas que admirava. Coisas que na maior parte das vezes são ligadas à arte, ao cinema, à música.

 

Estudou música.

Estudei durante a juventude, no Instituto Gregoriano. E fiz composição e História da Música, só porque era um universo fascinante e queria entendê-lo. Quando o entendi, abandonei e fui para outro. Estar sempre quieto a fazer o mesmo é ser arquivado. A ideia de deixar de aprender, de já ter feito tudo – “já sou isto” – é uma receita para pensar que posso morrer. “Já fiz, já só falta morrer” – dá-me angústias. E vou fazer outras coisas. Por isso é que digo que estou sempre a começar.

 

Então a sua mãe e o seu pai é que são os grandes obreiros deste rapaz curioso, que acha que estar arquivado é estar mais perto da morte.

E não é? Cheio de pó, enfiado numa gaveta.

 

O que é que tinha a perder ao arriscar? Essa é a pergunta que muitas pessoas fazem.

Perdi uma data de dinheiro ao arriscar. Ganhava uma fortuna e agora ganho nada. Escrevo um artigo por semana num jornal electrónico, não dá para a gasolina. Perdi o conforto do dinheiro, o conforto do salamaleque à minha volta, do respeito.

 

Deixar de ter a corte, custa? Muita gente diz que não, mas no fundo, no fundo, deixar de ter uns gajos a dizer: “Bidarra, és mesmo bom, só tu é que fazias isto”...

[Não custa] nada. Às vezes ainda dizem.

 

É um sentimento poderoso, esse.

É muito poderoso. Mas envergonha-me um bocadinho.

 

Agora está a fazer género.

Não estou, acredite. É pessoal, é a mãezinha e o paizinho. A minha casa nunca foi sítio de se elogiar os feitos. Fazer bem, estar bem feito era uma obrigação.

 

O que é que se elogiava?

Nada. A posteriori, passados anos, nota-se orgulho na minha mãe com as coisas que faço. O meu pai já morreu.

 

Ela leu o livro?

Leu. São casas e maneiras de ser. Saí dessa zona de conforto fazendo outra coisa, também porque aquela zona de conforto já me angustiava.

 

Porquê?

Fui lá parar não porque quisesse ser publicitário mas porque escrevia, percebia de televisão e broadcast. Enquanto o meu talento funcionou, e fui querido, fui feliz. Há um momento em que a pessoa cresce e fica conhecida, e começa a gerir porque as coisas têm que ser geridas. E até aí tudo bem porque consegui, com a ajuda do João Wengorovious e de muitas outras pessoas, criar um ambiente que produzia coisas criativas. Por volta de 2007, 2008 começámos todos a retrair; o país, o mundo. As crises financeiras. Começa tudo a ficar mais conservador.

Já não conseguia ser criativo, não porque não conseguisse criar ou escrever, mas porque não era isso que se esperava. O mercado esperava que eu, com a minha reputação, sancionasse coisas banais. Chega-se a um ponto em que não se espera o risco, não se espera a criatividade, a diferença – espera-se a banalidade.

 

O que se deseja é que não se levante a crista.

Exacto. Quando me perguntavam: “Porque é que saíste dali?”, a resposta é: porque já ninguém queria as minhas ideias. Não que me tratassem mal, tratavam-me lindamente. O salamaleque existia e tem qualquer coisa de agradável. O dinheiro tem coisas muito agradáveis. Mas verdadeiramente já não queriam aquilo que eu fazia. E não quererem aquilo que eu faço é não quererem aquilo que sou.

 

Não foi difícil dizer: “Isto acabou”?

Não, foi um alívio imenso. Não me custam as rupturas. Há alguma adrenalina.

 

Tinha o suficiente para estar um tempo…

Tinha e tenho.

 

Até encontrar novamente um caminho.

Um caminho já encontrei. Escrevo e vou continuar a escrever.

 

Nessa altura já sabia que era isso?

Já estava a escrever desde 2006. Já estava a fazer uma experiência que está escrita e que vou ter que publicar não sei como. É um livro de poemas feito por encomenda na Internet. Serviu para encontrar o ritmo. E como dizia um amigo meu, [serviu] para as palavras me encontrarem. Depois comecei a escrever com mais assiduidade very short stories no blogue Escrever é Triste.

 

Paremos já aqui: por que é que escrever é triste?

Isso é de um poema do Drummond de Andrade. É triste porque é um verbo que impede a conjugação dos outros todos. Se estamos a escrever, estamos em casa, e são horas para fazer duas páginas. É tempo que não se está a viver, a comer, a passear. É tempo em que não se está a fazer outros verbos. Mas estamos a escrever sobre isso, sobre gente que vive, que ama, que passeia.

Era uma coisa que estava interrompida. Eu escrevia antes de começar a trabalhar em publicidade.

 

Escrevia ficção?

Escrevia. Mas depois estava sem dinheiro, estava com fome, e tive que ir trabalhar.

 

“Estava com fome”. Será que está a dizer frases de efeito garantido?

Foi um mês de fome. Em 80 e tal tinha acabado Psicologia e estava a trabalhar como psicólogo. E desisti porque não gostava, não queria que fosse aquela a minha vida.

 

Já disse noutras entrevistas que ficava angustiado com os problemas dos outros.

Vivia numa casa na Mouraria, consegui manter uma avença como psicólogo em que praticamente não tinha que fazer nada e que me dava 30 contos; pagava 25 de renda. Fumava, comprava tabaco. A 15 dias do fim do mês praticamente só comia o pequeno-almoço. Fiquei magrito, com fome. Não tinha dinheiro para a gasolina, andava a pé. Depois ia a casa de amigos comer qualquer coisa. Ao fim de um mês, mês e meio daquilo achei que era ridículo andar com fome. E descobri que andavam à procura de um copywriter.

 

Não lhe ocorreu ir aos seus pais comer? Seria uma espécie de derrota?

Era longe, tinha que ir aos Olivais [risos]. Estou a brincar. Tinha saído de casa. Tinha saído mesmo. Quando digo que passei fome não é para o efeito, é para a conversa.

 

Vai dar ao mesmo.

Se calhar vai. Mas foi uma ruptura.

 

A ruptura agora era de “fome de infinito”, para ir ao poema? (Embora a Florbela Espanca não deva ser o seu género. É choramingas demais para si, não?

Eu sou lamechas. O livro tem ali uma parte… Piegas, não, não sou. Mas sou de lágrima fácil.

 

Não consigo imaginá-lo a chorar.

Porra! Basta pôr um andamento lento de um qualquer concerto de Mozart. Síndrome de Stendhal [síndrome da sobredose de beleza] Se calhar é depressão crónica e não sei [risos]. É uma das duas coisas.)

 

Nesta ruptura tinha fome de infinito, que é uma maneira pomposa e um pouco lamechas de dizer que já não o queriam.

Não queriam as coisas que eu fazia.

 

Tinha fome de quê?

De fazer aquilo que sempre fiz, ter ideias. Escrever e produzir texto, filme, o que for.

 

E a angústia? “E se não tenho talento para escrever, e se não consigo ser tão bom escritor quanto fui publicitário”? É uma coisa em que as pessoas pensam: “Agora que faço muito bem isto, vou fazer outra coisa”?

Não. Faço merda como toda a gente. E posso estar convencido, e tenho devaneios, mas tento, como fazia antes, escrever ou criar de ouvido. Escrevo como quem ouve. Escrevo de acordo com o meu critério, para eu ler. É o único critério que tenho. Se se vier a provar que esse critério é uma merda e que não vale a pena, paro para fazer outra coisa. Não vou fazer uma coisa que me torne infeliz. Houve partes duras a escrever isso, que me custaram.

 

Custa, o quê? Custa ouvir a música?

Custa o tempo, às vezes. As ideias não saem. A parte do trabalho mesmo.

 

A oficina.

Sim. Uma colega do blogue, que é especialista em clássicos, dizia que há três géneros de romancista: os que escrevem com o vocabulário, os que têm memória e os que têm ideias. “Tu és dos que têm ideias”. É a única coisa que tenho. Se as tenho porque é que não as hei-de pôr no papel? Vou ficar aqui diletantemente a falar com os amigos na mesa do café a dizer que tive uma ideia porreira? Já que existe, por que é que a deixo morrer?

 

É um livro sobre o tempo de agora e sobre a crise. Em Portugal estamos manietados e angustiados com o futuro e a sobrevivência, numa depressão colectiva. Estamos por isso falhos das ideias que nos fazem rasgar e avançar numa direcção?

Estamos muito falhos. Vivemos num mundo muito homeostático em que está sempre tudo a tentar manter uma temperatura morna. Mas há aqui uma data de micro-reestruturações no tecido social que estão a acontecer e que são interessantes. Onde parece que não estão a acontecer, ou dá essa ideia, é naquele mundo da conversa, dos jornalistas, políticos e funcionários públicos.

 

Uma parte substancial do país.

Porra! É imensa.

 

Diria que são pelo menos uns 60 por cento.

É o mundo que faz barulho e que nos deprime, ligada aos media, à política, à leitura, ao ecrã. Esta gente não está pobre, ainda. Mas é esta neura que está sempre a aparecer. A política é uma coisa que me anda a enfadar imenso. Parece que está tudo a falar para o canal. Há um emissor e era suposto que o receptor fosse um cidadão, mas ninguém está a falar para o cidadão.

 

Fala-se para a micro-comunidade?

É. Os produtores de informação estão a falar uns para os outros.

 

Isso agora tem uma força adicional, com as redes sociais e a televisão. A reverberação é sem fim.

É um eco.

 

Acha que estamos em mutação?

Estamos com certeza. Estamos a ficar pobres e vamos ficar pobres. Vamos ficar da nossa dimensão, que é pobre. Podíamos ficar pobres, não pobrezinhos e honrados, isso não vale a pena, mas pobrezinhos e espertos, e criativos. Era muito melhor se esta coisa forçada nos tornasse mais engenhosos.

 

Será que torna? Quando olhamos para crises do passado percebemos que nos tornaram mais pobres. Morreram uns, outros ficaram paralíticos, estropiados, outros emigraram. Operar uma mudança de raiz, não parece que tenha acontecido. É evidente que o país mudou muito nas últimas décadas, mas quando olhamos para o texto de Antero de Quental sobre as razões da decadência dos povos peninsulares, parece que ele se podia ajustar aos dias de hoje.

E ajusta-se. Eu não tenho esperança nenhuma nisto, no país, no futuro disto. Ou que seja um país muito diferente do que tem sido. A única coisa em que tenho fé, porque gosto, porque me faz sentir bem, é na natureza. Adoro o azul, é uma bênção, uma coisa magnífica. O azul até tem propriedades calmantes. Isto é um sítio para se estar, mas sair daqui qualquer coisa de extraordinário, não estou a ver. O [Vasco] Pulido Valente há anos que escreve sobre o século XIX no jornal. Está a repetir-se tudo, vão lá ler.

 

O perigo agora é se aparece um homem providencial, como já apareceu no passado?

Estamos no ponto em que já não temos respeito pela gente que lá está... É o mesmo sistema a produzir os mesmos resultados.

 

O livro não é senão sobre mudança. Nós, portugueses, podemos ser quem não somos? O Rolando pôde ser outro. Ou escolheu ser outro.

Sei lá. Aconteceram-lhe coisas. Depende do caleidoscópio com que cada um olha este livro. Há as famosas mudanças tipo I e tipo II. As mudanças tipo I são para manter as coisas. São as mudanças que nos mantêm e nos fazem entrar em loop e fazer as mesmas coisas. Depois há mudanças epistemológicas. Há meta-mudanças em que se é outra coisa, em que se tenta ser outra coisa, mudar o paradigma. Essas são as que me interessam. São as mudanças da criatividade. Quando inventa, quando se tem uma ideia que ninguém teve, ou se tenta fazer novo, é sempre contra as convenções. Há uma verdade grande em nós, na nossa natureza. E muitas vezes o estarmos no conforto, o lutarmos pelo conforto, é contra a saúde.

 

Não nos permite ouvir a nossa natureza?

É contra a saúde mental, física. É contra a saúde dos sistemas, das famílias.

 

Um dos capítulos: “O dia em que soube o que era”. Parece uma frase banal, mas sabemos realmente quem somos?

Não, não sabemos.

 

Como é que uma pessoa chega a esse âmago?

Alguns vão fazer psicoterapia [risos]. E pagam rios de dinheiro.

 

Fez ou não?

Fiz divã porque sou psicólogo, durante nove meses. Não tinha utilidade. Ou melhor, teve utilidade durante os nove meses que lá passei. Não me ajudava a tirar o teixo [alusão que só lendo o livro fica esclarecida, mas que corresponde a encontrar a sua natureza]. Ainda bem que fiz, foi giro. E foi mais uma experiência.

 

Então a maneira de encontrar o seu teixo foi a escrita.

Ao longo da vida têm-me andado sempre a nascer ramos.

 

Porquê o teixo? O personagem chama-se Rolando Teixo. Podia ser outra árvore qualquer.

É um lugar comum que fica bem ao escritor dizer, mas é verdade que os romances têm uma vida própria. Quando comecei a escrever sobre um homem que estava desempregado e que escondia isso da família – é uma situação que conheço –, quando comecei a estruturar [o romance], fui investigar sobre o jardim. Não sou botânico por isso fui ler e passear. No meio disto descobri o teixo, que tem aquelas bagas maravilhosas que são doces por fora e venenosas por dentro. Achei que o teixo era o texto [risos]. E o homem foi baptizado. O título de trabalho era Rotinas, Segredos e Jardins.

 

Rolando Teixo é muito melhor.

Muito melhor.

 

A árvore quase não tem tronco, e tem uma copa muito frondosa.

O teixo tem outra coisa: vive dois mil anos. Na Escócia e na Irlanda há exemplares que têm três mil e tal anos. Demoram muito a crescer. Começa por ser um arbusto e fica essa árvore enorme. São as árvores que os anglo-saxónicos usam nos cemitérios, nós usamos o cipreste. É o yew.

 

Uma das partes que mais me impressionam no livro é a do rapaz do Campo Santana que fala com as árvores. Quem é? É um rapaz que fica louco.

É um rapaz que cresce sozinho e que, além da mãe, só tem árvores com que falar. Do ponto de vista clínico podia ser um rapaz esquizofrénico, com alucinações. A coisa de a criança falar com outros mundos, ter acesso a outros mundos, é uma coisa de super-poderes. Todo o livro, que é um livro adulto, tem esta coisa infantil: se eu tivesse um super-poder, qual é que era?

 

Qual é que era?

O do Rolando é óbvio (não vou dizer para não estragar a quem não leu). O da criança é falar com as árvores.

 

Vamos declinando isso de uma maneira adulta, menos ambiciosa, menos fantasmagórica, na nossa profissão, na nossa vida. O publicitário pensa: qual é a melhor ideia do mundo? Qual é a palavra que salva? O que é que nos faz transcender a nossa condição e nos singulariza? Qual é o nosso super-poder?

Nunca encontrei ninguém que não tivesse qualquer coisa. Não sei o que é que nos singulariza. Sou observador, gosto de ver. Só tenho uma alergia a pessoas chatas e pretensiosas. Gosto de bandidos e de gente diferente. Gosto mesmo de canalhas e de gajos esquisitos. Gente que me pode complementar.

 

Curiosidade antropológica?

Não, não, é mesmo fascínio. Deve ser o meu lado feminino: as mulheres adoram bandidos.

 

As mulheres adoram malandros.

Às vezes é um malandro que se vem a perceber que é um bandido.

Não sei qual é a palavra. Neologismo fresquíssimo, inventadinho agora: “psico-luterano”. Sinto que há um dever de fazer aquilo que tem que ser feito. E custa-me, sou preguiçoso, gosto de procrastinar e ficar sem fazer nada e ler.

 

E o Portugalito?

Não é um ser.

 

É um ser colectivo.

É um sistema que aqui está. Como em todos os sistemas, uns crescem e prosperam, outros duplicam-se, outros definham e morrem. Quando estava na publicidade e trabalhava marcas e marketing escrevi uma data de coisas sobre isso. E tive ideias e falei com ministros, fiz apresentações. Desisti. Já dei para esse peditório. É uma convenção esta ideia de sermos um país mediterrânico. Já escrevi milhares de vezes que somos um país atlântico de água fria. Somos periféricos, devíamos afirmar-nos pela diferença e pelo que somos. Mas isso é contra a nossa natureza.

 

Como assim?

A nossa natureza é a do suburbano que quer ser como o gajo que está no meio da cidade. Vamos romper. Às vezes consegue-se, às vezes não. Também já escrevi que achava bem que nos voltássemos a juntar ao Brasil. Voltar a fazer um imenso Portugal.

 

“Ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal...” Chico Buarque.

No caso, tornar-se num imenso Brasil. Não consigo perder mais neurónios a pensar nisto. Vou escrever. Gosto de escrever sobre árvores e terra porque passo muito tempo na terra, no Guincho, a olhar o mar, com a Serra de Sintra atrás. A Catarina, a minha mulher, descobriu porque é que sou assim, porque é que não gosto do Bairro Alto: é porque cresci nos Olivais, que é um bocadinho a cidade-jardim do Corbusier.

 

Posso fazer uma pergunta pessoal? Tem uma mulher nova...

Nova e nova! [Catarina tem 40 anos]

 

Mudou de vida, mudou de emprego, no sentido em que deixou de fazer o que fazia e agora faz outra coisa. Está tudo ligado, não é?

Está. Deve estar, aconteceu tudo ao mesmo tempo, não há-de ser por acaso.

 

É um gajo novo?

[risos] Não, não sou. Por acaso estou mais velho, mais sensato. Não, não estou [risos]. Estou igual.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2013