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Anabela Mota Ribeiro

Maria Filomena Mónica (s/ eutanásia)

09.02.16

Escreve no seu livro, A Morte, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos: “Diante da morte, deverá prevalecer o princípio da autonomia individual ou a noção de que jamais é lícito dispor da vida humana?”. Esta é a grande equação quando se fala de eutanásia?

É. Para uma agnóstica como eu, a resposta [válida] é a primeira. Eu sou dona do meu corpo e quero ser eu a determinar que é que lhe acontece em fase terminal. Não é nem o padre, nem o médico, e muito menos um jurista. Nem sequer, em última análise, a minha família. Se puder falar e estiver lúcida, eu digo o que quero e espero que as pessoas que me estejam a tratar, quando eu estiver em sofrimento, quer físico quer psíquico, façam aquilo que lhes pedir. Para os crentes, tudo isto muda. Os católicos consideram que o corpo é o receptáculo sagrado da alma. Acho legítimo que os católicos tenham uma posição diferente da minha. O que não quero é que me imponham a posição deles.

 

É por vivermos num país que tem uma matriz católica que o assunto não está devidamente regulado?

Em parte, é. E em parte é por um pudor que não acho descabido. Os casos não podem ser analisados um a um, em toda a sua complexidade. Tem de haver algumas regras. Fazer uma lei destas é muito difícil. Eu sei que se pratica a eutanásia nos hospitais portugueses. Muitos ventiladores são desligados, sem dizerem nada a ninguém, por bons motivos. Será que não é melhor assim? Acho que não. Porque, de certa maneira, isto favorece os privilegiados. Os que têm um amigo médico ou que conhecem um enfermeiro que lhes dá uma injecção. E os que não conhecem ninguém e vão parar aos hospitais, e têm tantas dores? Tem de haver uma legislação que lhes permita ter a última decisão.

 

Mesmo quando se tem um amigo médico, está-se nas mãos desse médico, do critério desse médico.

Está. O que eu quero é chamar a atenção para a vontade do doente. E é ele que deve decidir. Quero saber se, se eu tiver um amigo que quer ir morrer à clínica Dignitas na Suíça, e se o acompanhar (têm sempre de ter alguém que os acompanha), se sou criminosa. Não acho justo que um gesto destes seja considerado um crime. Não acho justo poder ir parar à cadeia por, por amor, ter ajudado alguém a morrer. Bem sei que a natureza humana tem um lado ganancioso, mau. Há filhos que querem que os pais morram o mais depressa possível para herdar.

 

Ou para não terem trabalho a cuidar deles.

Por tudo isto, a lei tem de ser muito bem concebida. A lei holandesa é muito boa. Começa “by the grace of God, eu Beatriz, rainha da Holanda, determino esta lei”. Invoca Deus. E depois são dez páginas pormenorizadas. Basicamente, desde que nascem até à morte, os holandeses são acompanhados por um médico de família. Torna-se um amigo do doente, é capaz de respeitar a vontade do doente. Aqui, os médicos de família são alguém a quem se vai pedir um atestado para fazer ginástica, para medir a tensão. Nem ele me conhece, nem eu o conheço, e não estou para perder quatro horas no centro de saúde para ser atendida.

 

No livro diz que durante muito tempo opôs-se à eutanásia, e que o que a fez mudar de opinião foi pensar sobre a sua morte.

Aconteceu-me quando comecei a envelhecer e quando morreram dois amigos, o João Paulo Amorim e o meu cunhado Luís Pinto Coelho, e sobretudo a minha mãe. O Alzheimer é parcialmente hereditário, logo não é de excluir a hipótese de eu ter Alzheimer. É a doença pior que se pode ter. Não do ponto de vista físico, mas porque se perde qualquer contacto com as pessoas que nos rodeiam. Eu vi e sei que a minha mãe sofreu, porque me perguntou: “Eu estou a enlouquecer, não estou?”. Estava angustiadíssima. Há um momento em que se está com um pé na sanidade mental e outro já está fora da realidade. Os músculos acabam por se deteriorar. As pessoas não engolem a saliva, são entubadas ou ligadas a máquinas. É isso que eu não quero que aconteça comigo. Não quero deixar aos meus filhos ou ao meu marido o fardo de determinarem isso por mim. No caso da minha mãe, tiveram de ser os filhos a decidir. Ainda por cima não estavam de acordo sobre o que fazer; houve enormes discussões que nos feriram até hoje.

Em 2005, mesmo sem validade legal, fiz um testamento no qual digo: “Se me acontecer isto e isto, não quero ser ligada à máquina”.

 

Porque é que fez, mesmo sabendo que não tem validade legal?

Porque eles assim sabem o que eu quero. Coincidiu com o caso famoso da Terri Schiavo, há muitos anos ligada à máquina; o marido achava que estava um vegetal, os pais achavam que não. Acabou tudo em tribunal. Ninguém sabia o que a própria queria. Eu não sei o que é que a minha mãe queria. Não quero que os meus filhos pensem: “Não é horrível deixar a mãe morrer? Não seria melhor ligá-la a um ventilador?”. Não, não seria. A mãe não quer ser ligada a um ventilador.

 

Porquê?

Acho que um ser destituído de memória e de capacidade de comunicação tem vida, mas é uma vida vegetal, não é uma vida humana. Eu quero ter vida humana até ao fim.

 

A razão por que este tema é tão quente é a disputa religiosa?

Sim. Mas é também porque as pessoas não gostam de pensar que morrem. Eu, até aos 50 anos, sentia que era imortal. Sabemos que morremos, vagamente, mas só quando pessoas íntimas morrem é que percebemos que aquilo também nos vai acontecer. Houve amigos que não foram ao lançamento do livro e que me disseram: “Este é um tema lúgubre sobre o qual eu não quero pensar”. E não são religiosos.

 

 

 Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011