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Anabela Mota Ribeiro

Leonardo Padura

21.03.16

Leonardo Padura vai fazer 60 anos. Cuba é a sua Jerusalém, o seu território sagrado. É neste país de contradições e perplexidades que vive, por escolha. Viaja muito. É talvez o mais conhecido escritor cubano da actualidade. Esteve em Portugal para promover o livro mais recente. “Hereges” é um romance histórico, um policial que tem como protagonista o detective Mario Conde, um documento inspirado em factos verídicos. Em Cuba, a situação está hereje?

 

No começo do seu livro apresenta o significado da palavra herege, e especifica que em Cuba, quando uma situação está muito difícil, especialmente no aspecto político ou económico, se usa a expressão estar hereje. É uma expressão que os seus pais poderiam utilizar?

É uma expressão antiga, sim. Estar hereje significa que a coisa está mal.

 

O estar hereje dos seus pais tem um sentido diferente daquele que tem para si? Tem leituras diferentes em função das diferentes situações que se vivem em Cuba?

Creio que ao longo do séc. XX, Cuba – tal como Portugal ou Espanha – passaram por um processo de melhoria das condições de vida. Na geração dos meus pais aconteciam coisas que eram como histórias de telenovela brasileira!

 

Sim?

Sim. Por exemplo, a minha mãe teve sete irmãos. Quando a minha mãe tinha cinco anos, com um irmão de três e uma de dois, o meu avô paterno morreu e deixou a família na miséria. Viviam numa cidade no centro da ilha, chamada Cienfuegos, e mudaram-se para o bairro judeu de Havana. Conheço muito bem esse bairro. A minha mãe e o meu tio viveram muito tempo ali e contaram-me muitas coisas. Para eles a situação esteve muito hereje.

 

Em que ano nasceu a sua mãe?

Nasceu em 1927. Depois deu-se a crise de 1929, em Cuba houve um governo muito corrupto que levou a uma revolução frustrada. O meu pai nasceu em 1926, com condições diferentes, porque tinha uma família que manteve a sua integridade. O meu avô conseguiu que, apesar da pobreza, vivessem bem.

 

Ambos sabiam ler e escrever?

Sim. Em Cuba, o problema do analfabetismo era mais evidente nas zonas rurais, com os camponeses.

 

Mesmo antes da revolução de 1959, era normal as pessoas serem alfabetizadas?

Nas cidades, sim. Todos os meus tios aprenderam a ler e escrever. A minha mãe estudou até ao oitavo grau. Não pôde continuar por motivos económicos. Não havia dinheiro para um bacharelato. Eram famílias que, com muito esforço, nos dois casos, chegaram a ser de uma pequena burguesia. Donos de pequeno comércio, lojas de comida, de bebida. Para a minha geração foi diferente. Eu nasci em 1955, triunfava a revolução.

 

Viveu a utopia da revolução desde o seu nascimento, praticamente.

A grande utopia socialista era parte da vida normal das pessoas. A minha geração foi a primeira que teve acesso, de maneira quase universal, à universidade. Uns são matemáticos, outros são geógrafos, muitos são médicos. Iniciou-se um progresso intelectual e social, com uma certa melhoria das condições de vida, apesar das dificuldades económicas. Isso manteve-se de forma coerente até aos anos 90, quando desaparece a União Soviética. Nesse período deu-se uma enorme crise económica, desapareceu quase tudo de Cuba. Electricidade, transportes, comida, medicamentos. Vivemos uma situação muito hereje.

 

Com um sentido mais profundo do que o hereje dos anos anteriores.

Tínhamos uma piada, em Cuba, brincando com a nossa própria desgraça... “Na realidade não temos assim tantos problemas, são só três: o pequeno almoço, o almoço e o jantar!” [risos] Todos os dias. Mas as dificuldades desses anos foram importantes para o que aconteceu depois. É que como o Estado não tinha capacidade económica para sustentar a população, e num país onde tudo pertence ao Estado, criou-se uma distância grande entre o Estado e as pessoas. Em geral.

 

Um modo de dizer que o Estado são outros, não somos nós?

Para que compreenda: no caso dos escritores, especificamente. Em 1991/92, paralisou-se a indústria cultural em Cuba. Não havia dinheiro para produzir cinema, os teatros deixaram de ter electricidade, não havia papel para imprimir livros. E vínhamos de um modelo em que o Estado financiava o cinema, o teatro, a literatura, os jornais. Ao desaparecer, essa relação de grande proximidade entre as entidades criadoras e o Estado vai-se desfazendo. E esse espaço encheu-se de liberdade. Pudemos começar a procurar editoras fora de Cuba, a escrever sem pensar no editor cubano, que era um funcionário do Estado cubano.

 

Foi um começo de uma metamorfose?

Sim, começou a modificar a cultura do país. Começaram também a ser autorizadas, muito timidamente, pequenas empresas privadas. Nem se chamavam empresas. Eram trabalhadores por conta própria, independentes. Esse processo não parou. Começou a desaparecer aquele carácter homogéneo que a sociedade tinha nos anos 70 e 80. Nesse período, todos tínhamos sapatos, mas eram dois pares, todos iguais, uns para ir à escola e uns um pouco melhores para as festas. Mas eram todos iguais! Todos tínhamos dois pares de sapatos, três camisas e umas calças.

 

Como é que se comprava a roupa?

A roupa comprava-se com uma caderneta de racionamento. Houve um período em que as mulheres tinham que escolher uma de duas opções: ou compravam as cuecas ou os soutiens! [risos] Mas apenas uma das duas coisas. “Este ano, esta leva o cu ao léu, aquela as mamas”. Havia coisas, depois deixou de haver. E as pessoas tiveram que encontrar alternativas nos anos 90.

 

A necessidade, paradoxalmente, conduziu a uma certa liberdade? Era preciso encontrar uma solução.

Sim, [era preciso encontrar] uma estratégia de sobrevivência de outro tipo.

 

Que outros passos de abertura foram dados no pós-queda do muro?

Anteriormente era ilegal a circulação de dólares em Cuba; passou a ser legal. Nos anos 80, os escritores não podiam comercializar os nosso livros fora de Cuba, sem ser através de uma agência literária do Ministério da Cultura; passámos a poder fazê-lo. Começámos a ter, não todas as liberdades que queríamos ou que imaginámos que deveríamos ter, mas realmente maiores [do que as que tínhamos].

 

No decorrer desses anos, a desigualdade económica aumentou? Ou todos continuavam, no essencial, a ter o mesmo (que era pouquíssimo)?

Hoje em dia existe uma pequena parte da população que tem meios económicos muito superiores aos da maioria da população e há um sector, também minoritário, mas importante, que praticamente não tem nada. Vivem em bairros emergentes, construções muito precárias, quase favelas. Recentemente, uma jornalista disse-me que conhecia muito bem Cuba, que visitou ao longo de oito anos. Eu não disse nada, porque achei que podia ser ofensivo, mas conhecer Cuba, com uns euros no bolso, ficar três meses, não é conhecer a realidade de Cuba. Para conhecer é necessário viver, todos os dias. Encontrar as pessoas que vivem nesses bairros, nas periferias de Havana, que vêm do interior, sobretudo da região oriental, e que vivem do que aparece, de qualquer pequeno trabalho. Sem alternativa. Isto acontece, a sociedade cubana está a polarizar-se. Mas a maioria da população vive em condições médias, difíceis, sem ser de miséria.

 

Voltando atrás. A sua mãe mudou-se para o bairro judeu de Havana no mesmo período em que deflagrava a guerra na Europa?

Ela mudou-se para ali no mesmo período em que lá esteve Daniel Kaminsky [o personagem do meu livro]. Nos anos 30.

 

Então está a trabalhar, no seu imaginário, a história das suas raízes?

Sim. O bairro que a minha mãe conheceu, quando chegou a Havana, era muito pobre. A família vivia com o dinheiro que o meu tio, que teve que ir trabalhar como marinheiro, enviava de outros portos; e uma tia mais velha casou-se com um senhor que não era rico mas que ajudava a família.

 

Que contava a sua mãe sobre o judaísmo, sobre a presença de uma cultura diferente?

Não o via como diferente. Cuba formou-se com vagas de imigração muito distintas. Existiam judeus com os seus negócios. Existiam os negócios dos chineses, os negócios e sociedades de asturianos, catalães, galegos. Era um mundo tão diverso que praticamente nada parecia estranho.

 

Sem discriminação racial?

Havia discriminação racial, mas sobretudo discriminação económica. Não era igual ser galego e dono de um negócio e um galego que trabalhava no molhe a carregar sacas dos barcos. Não era o mesmo ser um judeu dono de uma pastelaria ou um judeu que anda na rua a vender gravatas. Num nível inferior estavam os negros. Havia negros de uma certa classe média, não muito elevada, que eram mestres, construtores, e outros numa classe mais baixa.

 

Esse detalhe é importante, porque a discriminação nazi na Segunda Guerra Mundial é baseada na raça. A discriminação pode ser económica, política, e neste caso há uma escolha e uma possibilidade de mudança. Quando se faz uma discriminação racial, o indivíduo não tem responsabilidade nisso nem o pode alterar. Isto muda tudo quando consideramos situações de discriminação.

Ainda que não se sinta discriminado em Cuba, o personagem de Daniel Kaminsky renuncia a ser judeu. Precisamente porque sabe que há algo que lhe foi imposto, que não foi sua decisão, que não pode alterar. Mas tenta alterar. Como? Tornando-se num cubano comum, normal. Vivendo a vida afastado dos preceitos judeus, da sinagoga, de todas as práticas que estão associadas e definem a cultura e religião judaicas.

 

O personagem e o caso inspiram-se num facto histórico: a tentativa do navio Saint Louis aportar em Cuba, em 1939, com cerca de 900 judeus a bordo, fugidos da Alemanha. O barco esteve vários dias ancorado, à espera de autorização para desembarcar. Que não chegou.

Em Cuba não existiu anti-semitismo. Por isso é que um episódio como o do navio Saint Louis, em que se impediu a entrada de 937 judeus, teve tanto impacto. Regressaram à Europa e metade morreu no Holocausto. Existiu discriminação, sobretudo económica e racial de negros. Mas estes judeus eram brancos. Isto é, poderiam integrar-se na sociedade branca, cubana, sem nenhum problema. E em alguns casos poderiam ser muito bem sucedidos. Existiam judeus muitos ricos, em Cuba, com grandes negócios.

 

Estes judeus que estavam no barco não tiveram possibilidade de escolha. Essa é a grande questão: o livre arbítrio. Quando se fala hoje de Cuba, quando se interroga a capacidade de fazer escolhas políticas, a decisão de ficar ou partir, tudo muda quando se tem a possibilidade de escolher. Pode falar sobre isso?

Acredito que uma das mudanças mais importantes que se operaram em Cuba nos últimos anos foi a eliminação da permissão de saída. Para poder emigrar, era preciso pedir uma autorização ao Departamento de Emigração Cubano, ao Governo. Sem o passaporte com essa autorização, não se podia viajar. A possibilidade de escolha, de ficar ou de ir, estava limitada por lei. Hoje esse problema desapareceu, mas surgiram outros, que por vezes se esquecem. Um cubano, para poder viajar para outros países, necessita de visto de entrada do outro país. E necessita de dinheiro para viajar.

 

É o mais difícil?

Não. É o menos importante. Porque pode ter um irmão ou amigo que lhe dá mil dólares para viajar, para sair. Mas, a possibilidade!, saber que uma pessoa leva duas fotografias, dois selos, que pede um passaporte e lho dão... Isso dá uma sensação de liberdade!

 

A sua expressão facial alterou-se quando falou em sensação de liberdade.

Claro, ter a possibilidade é muito importante, mesmo que existam outros problemas por resolver. E eu nunca tive problemas para viajar. No mundo artístico, sempre tivemos mais liberdade de movimentação. Desde 1988, quando comecei a viajar, nunca mais parei.

 

Portanto, a relação das pessoas com a escolha alterou-se.

Sim. A minha geração – e falo muito sobre isso nos meus livros – teve, em determinados momentos, muito pouca possibilidade de escolher. O menu que nos davam nos restaurantes só tinha três pratos. Num sentido figurado, queria tomar sumo de laranja e só havia limonada. Tínhamos pouca possibilidade de escolher o que queríamos fazer com as nossas vidas. Simultaneamente vivíamos num país que garantia algumas das coisas mais importantes, como a educação. Dependíamos da nossa inteligência para estudar.

 

Decidiu estudar Filologia. Porquê?

Eu queria estudar jornalismo e gostava muito de baseball. Quis ser jornalista desportivo. Mas nesse ano o curso de jornalismo estava fechado, por causa daquilo a que se chamava planificação socialista. Alguém tinha decidido que já existiam demasiados jornalistas em Cuba e não era necessário que se formassem mais pessoas nessa área. Quis então estudar História de Arte, que era o outro curso de que gostava, mas também estava encerrado. Fui para literatura, que era o mais próximo.

 

Ou seja, a sua escolha foi muito condicionada.

A minha possibilidade de escolher foi-se transformando pelo que era oferecido. O sistema educacional cubano acabou por me levar a estudar Filologia. O que poderia ter sido um conflito tornou-se numa enorme vontade. Creio que estava destinado a estudar literatura. Permitiu-me adquirir uma cultura e um conhecimento que talvez o curso de jornalismo não me tivesse dado, e com essa cultura e conhecimento pude fazer jornalismo.

 

Foi um jornalista de referência.

Sim. Quando se fala em jornalismo literário, de investigação, da renovação do jornalismo cubano, nos anos 80, o meu nome faz parte desse movimento.

 

Contudo, o problema da escolha esteve – e está – sempre presente. Há escolhas de valores, escolhas que não queria chamar de abstractas, mas que são menos concretas. E há outras que são escolhas imediatas, que influenciam muito a vida de todos os dias.

São escolhas que condicionam a vida das pessoas. Essas outras escolhas de que fala também foram muito complicadas. Houve momentos em que praticar uma religião em Cuba podia ser uma limitação. Porque o socialmente correcto dizia que um revolucionário não devia ser religioso, ou não devia ser homossexual. Ou se o pensamento político fosse diferente, tornava-se num dissidente.

 

Um herege, para voltar às palavras e ao título do livro.

Um herege. Nas margens ou fora da sociedade. Ter ideias ou atitudes diferentes podia ter consequências no percurso pessoal. Felizmente, muitos destes conceitos foram mudando. Nos últimos três, quatro anos surgiram histórias de pessoas que são dissidentes políticos, que agiram e intervieram de maneiras que, há vinte anos atrás, resultariam numa prisão de cinco ou dez anos. Agora são cinco ou dez horas na esquadra da polícia e depois são libertados. Entre dez anos e dez horas há uma grande diferença.

 

É um sinal de evolução política?

Sim. Para melhor, embora ainda não existam todos os espaços de expressão, de debate, para apresentação de posições distintas que deveriam existir.

 

Voltemos ao livro. O que significa ser herege numa primeira acepção? Depois, o que significava ser herege na Segunda Guerra Mundial ou em Cuba, onde a dissidência, como afirmou, tem consequências?

A heresia significa escapar da ortodoxia. A palavra foi-se carregando, negativamente, ao longo do tempo, muito por culpa do cristianismo. Até que ponto uma heresia pode ser castigada de uma maneira drástica? No livro, há um episódio com o personagem de Baruj (Benito) Spinoza, que foi considerado herege e condenado a uma separação total da comunidade. Na Segunda Guerra Mundial, significava ir para um campo de concentração. Na União Soviética, para um gulag. Nos Estados Unidos, nos anos do Macartismo, podia-se ser condenado ao ostracismo (quem fosse comunista não podia trabalhar em determinados sítios). No caso cubano, significava uma marginalização que podia durar anos.

 

“Hereges” está dividido em várias partes. Uma delas tem como protagonista, Elías (que é um nome com uma carga religiosa forte). O personagem tenta descobrir a história do seu pai. Leio no que escreve, sempre, uma preocupação com a memória e com as raízes.

Há pouco falávamos sobre uma coisa muito importante: nasci num bairro do mais normal que há em Havana, na zona sul da cidade, quase nos limites da zona urbana. Numa esquina havia uma mercearia de chineses, outra de um galego. Por nossa casa passava com alguma frequência um senhor libanês. Eu era colega de escola, brincava com os seus sobrinhos. O meu pai tinha-se tornado maçom, em1949, e em 1952 fundaram o edifício da loja do bairro, a um quarteirão da nossa casa. Quando eu nasci, nessa loja organizavam-se sessões todas as sextas feiras. Havia um senhor negro, médico, outro branco, advogado, um outro que parecia escocês que recolhia o lixo do bairro. Mas todas estas pessoas se tratavam por “irmão”, porque eram irmãos maçónicos, praticavam a fraternidade. A minha mãe é católica e sempre teve uma atitude muito solidária para com os outros. Nesse mundo, triunfou uma revolução socialista que dita que todos somos iguais. E eu, vivia entre maçons, católicos, libaneses, chineses, galegos, brancos, negros...

 

E porque é tão fundamental compreender as origens?

Creio que tem a ver com uma condição pessoal. Ontem fui à Fundação Saramago; a uns poucos metros, debaixo de terra, há ruínas romanas. Nós, como país, temos duzentos anos. Antes eram uns espanhóis, uns negros e uns poucos índios que viviam na mesma ilha. Misturavam-se ou não se misturavam, mas não era uma cultura diferenciada. Um português, com o apelido Gonçalves, pode saber até seis ou sete gerações de onde vem. O apelido Padura é basco. Como chegou a Cuba? Não sabemos. Eu, como a minha mãe, nem se sabe se somos negros ou brancos ou filipinos! Tudo parece indicar que o meu bisavô era filipino, daí o tom de pele e forma dos olhos.

 

O anúncio, em Dezembro, do restabelecimento do contacto entre Cuba e os Estados Unidos surpreendeu. Surpreendeu muitos os cubanos, surpreendeu toda a gente. Na vida de todos os dias, nas coisa normais, é visível uma diferença?

Não, não. A única coisa que aconteceu foi ao nível do diálogo.

 

As pessoas falam disso?

Não. Falam os governos. Reuniram e estabeleceram um processo, discutem o que deve acontecer primeiro, condições, isto e aquilo. Com as pessoas nada se alterou. Diz-se que quando chegarem os americanos talvez se resolvam alguns problemas. Mas no concreto, no quotidiano, não se alterou praticamente nada. Talvez exista já um número maior de turistas norte-americanos, não muito. Isso significa que trazem dinheiro e gastam, em instituições, restaurantes e hotéis privados. Onde deve existir já maior movimento é [nas relações] com empresas europeias, chinesas, latino-americanas, que, vendo a evolução dos acontecimentos e a possibilidade de o embargo se flexibilizar – porque ainda não foi levantado –, estão a iniciar a implementação de negócios em Cuba.

 

Como é a sua vida de todo os dias? Em que casa vive? Como se desloca? Com quem se relaciona? Onde compra a sua comida? Como acede à internet?

Eu pertenço a essa espécie rara de pessoas que vivem na mesma casa em que nasceram, no mesmo bairro no sul da cidade, chamado Mantilla. Nesse bairro nasceram o meu pai, o meu avô, o meu bisavô. A casa onde vivo foi construída em 1954, pelo meu pai. Eu e a minha mulher vivemos numa ampliação construída sobre essa casa. Trabalho ali, escrevo, dedico-me profissionalmente à literatura.

 

É uma maneira de dizer que se pode viver da literatura?, de escrever?

Não! É uma maneira de dizer que eu posso viver da literatura. A maior parte dos escritores não pode. E quando eu comecei, em 1995, não podia. Em 31 de Dezembro de 1995 deixei de trabalhar para a revista em que trabalhava, no dia 1 de Janeiro de 1996 tornei-me um trabalhador independente. Tínhamos quatrocentos dólares em casa, que me tinham pago por uma antologia de contos cubanos, no México. Naquela época, com esse dinheiro, podia viver um ano. Mas tive a sorte... Costumo dizer que há por aí uma nuvem em que Deus está sentado, a olhar, e que de vez em quando toca com o dedo, e que me tocou com o dedo... Na manhã de três de Janeiro, ligaram de Espanha. Tinha enviado um livro para um concurso e informaram-me que tinha ganho. Dois milhões de pesetas! Dezasseis mil dólares era uma fortuna!

 

A sua vida mudou.

Mudou. Um mês e meio depois ligou-me a minha editora de Espanha (creio que é a melhor, trabalhamos juntos há quase vinte anos)... Por isso posso viver da literatura. Mas não vivo só dos livros. Continuo a fazer algum jornalismo, escrevo guiões para cinema, dou conferências. Esta é a vida económica de um escritor.

 

O quotidiano: estava a contar como é.

Digo que vivo da literatura e para a literatura. Quando não estou a viajar, a responder a perguntas de jornalistas [risos], quando estou em casa, escrevo toda a manhã. Levanto-me cedo, às sete e meia já estou a trabalhar. Faço-o todos os dias, de segunda a domingo. Nesta casa onde vivemos, já não temos cães. Morreu há um ano e meio o último que tínhamos, com dezassete anos.

 

“O homem que gostava de cães” é um dos seus livros mais famosos. Tem por trama o assassinato de Trotsky por Ramón Mercader.

Sou um homem que gosta de cães! A minha esposa Lúcia trabalha, por vezes, comigo, outras vezes em coisas independentes, mas temos muitos projectos em comum, trabalhamos em casa.

 

Que moeda usam? Dólar, peso cubado, peso convertible (a moeda usada sobretudo pelos turistas)?

Usam-se pesos convertibles e pesos cubanos. O exercício matinal da Lúcia é uma caminhada de uma hora. Leva uma mochila e o porta-moedas e depois passa no mercado para comprar fruta, legumes. Outras coisas que consumimos levamos de Espanha, antes de regressar a Cuba. Azeite, atum, sardinhas, queijo. Levamos para consumo próprio ou para oferecer à família e amigos. Para muitos levo, periodicamente, uma garrafa de azeite.

 

Tem acesso à internet em casa?

Deram-me acesso. A maioria dos artistas tem acesso a uma conta de correio electrónico.

 

Que é diferente de ter acesso ao Google, por exemplo.

Sim. Mas por causa de uma censura a um artigo de jornal, ainda por cima absurda, a um artigo em que disse horrores sobre a minha equipa de baseball, puseram o acesso à internet em minha casa muito lento. Quase não consigo usar.

 

Tem automóvel?

Tenho. Desde 1997, com autorização de dois ministros. [riso] Há dois anos tentei comprar um novo, mas não tive autorização, porque iam alterar o sistema de venda e o carro que ia comprar, que antes custava 29000 dólares, passou a custar 180000. Estou a falar de um Hyundai. Um Toyota, com os preços anteriores, custava 50000 dólares, nos preços novos 220000.

 

Então tem o mesmo carro desde 1997.

Sim. E mantenho um velho Plymouth de 1958, do meu pai. Eu pago os arranjos, o meu irmão utiliza-o para pode ir com a minha mãe ao mercado, ao médico.

 

Tem dupla nacionalidade, viaja muito. Porque é que se manteve sempre em Cuba?

Porque sou de Cuba, sou um escritor cubano. Não posso ser outra coisa, tenho um sentido de pertença muito grande. Essa casa que o meu pai construiu, que eu ampliei, esse pátio onde enterrei todos os meus cães, desde o primeiro ao último... É a minha Jerusalém, o meu lugar sagrado. A minha mulher pergunta, às vezes, porque não compramos um apartamento no centro, agora que se pode. Nunca digo que não. Mas sei que não vamos viver lá. Temos as nossas mães connosco. Se tiro a minha mãe daquela casa, morre em uma semana.

 

Como é a sua mãe?

Tem 86 anos e, excepto quando está a ver televisão ou durante as três horas que dedica à leitura, não pára de falar! Tem uma colecção de vizinhas, amigas, do bairro, com quem passa o dia a falar. Veja bem, ela só tem a pensão do meu pai, 240 pesos, dez dólares. Como é que uma pessoa vive com dez dólares? O meu irmão mais velho vive em Miami e eu posso ajudá-la economicamente. Ela já não é conhecida com Alicia Fuentes, mas sim como Alicia Padura, porque a família Padura era conhecida no bairro. Esteve casada 60 anos com o meu pai. Eu vou fazer 60 anos.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015

 

 

Dia do Pai

18.03.16

Houve um tempo em que estes homens e mulheres foram, sobretudo, os filhos dos seus pais. Aprenderam com eles, cresceram com eles, quiserem ser como eles. Amaram-nos, rebelaram-se. Procuraram neles a confirmação de quem eram. Vincaram as diferenças entre um e outro. Permaneceram ligados até ao fim, ou distanciaram-me. Ou foram afastados pela vida e pela morte.

Falar do Pai é falar de uma parte de nós. De como nos fizemos, de quem somos. Em entrevista ao Jornal de Negócios, na série que conduzo, são incontáveis as referências à figura do Pai. São quase sempre, pela presença ou pela ausência, essenciais para perceber quem são aqueles que tenho à frente e que tento revelar aos leitores.

Reler as entrevistas e recuperar partes delas é uma confirmação disso mesmo.

Optei por compor um mosaico a partir de excertos de diferentes entrevistados, recuperar histórias, evocações, uma teia de relações. A descontextualização é forçosa, mas tentei que o espírito da conversa se mantivesse. A selecção é abrangente, mas deixa, mesmo assim, muitos nomes de fora. Pela simples razão de a figura da Mãe ser mais forte em alguns casos, ou porque a referência era aos Pais e não apenas a um dos progenitores.

E agora, vamos conhecer um pouco os pais destes filhos…

 

André Gonçalves Pereira

O meu pai nasceu em Goa, porque o meu avô, que era juiz e passou a advogado, se casou com uma senhora goesa. Mas veio muito cedo para Portugal – não havia Direito em Goa.

Como era professor universitário, ligava grande importância às classificações.

O meu pai teria gostado mais de ser professor da Faculdade de Direito do que de Económicas, como foi. Nessa altura, ser professor da Faculdade de Direito era mais importante do que é hoje. O motivo que me levou a estudar foi o desejo de agradar ao meu pai e a vaidade de querer aparecer como um bom aluno.

Acontecia uma coisa curiosa que só vim a compreender muitos anos depois: quando andávamos pelo país e pelo estrangeiro, estava sempre a encontrar antigos alunos, que o iam cumprimentar. Era muito sensível a isso.

 

André Jordan

O meu pai era brilhante, e muito aventureiro. Não gostava de falar no passado. Vivia sempre o presente e o futuro. Tinha muita iniciativa, mas era pouco persistente. Os negócios dele eram muito complicados. Envolviam grandes capitais e pessoas muito proeminentes. De modo que havia sempre situações de tensão que eu, desde muito novo, fui recrutado para amainar. Era um grande sedutor, e tinha muitas viúvas...

 

António de Almeida

Eu era presidente da União de Bancos, saía de Lisboa ou do Porto e ia à casa de saúde de Viseu [onde o meu pai estava internado]. Fazer-lhe a barba era um modo de pedir perdão. Por exemplo, um dos sonhos do meu pai era ir a Paris. Gostava de ver o túmulo de Napoleão, a Torre Eiffel. A União de Bancos Portugueses tinha um banco em Paris, fui a Paris centenas de vezes… O meu pai morreu sem eu ter tido a generosidade de sacrificar um fim de semana para lhe dar esse prazer. Aquele gesto de pegar no pincel, pôr-lhe o sabão na cara e fazer-lhe a barba, nas últimas semanas de vida, pretende redimir-me de uma falta de companhia.

O meu pai, do ponto de vista material, não me deixou nada. Tenho uma fotografia dele quando tocava música na banda do Clube Ferroviário de Moçambique com as medalhas que ganhou. Mas recebi dele a coragem de um homem que, sendo caiador em Celorico, em 1937, quando eu nasci, disse: “O nosso filho vai ficar igual a nós, tenho que sair”. E meteu-se num barco e foi para Angola e depois Moçambique.

 

Artur Santos Silva

O meu Pai era o meu herói.

Era um advogado de sucesso, mas o princípio da vida foi difícil. Vivia com algumas limitações, (como toda a gente). Comprou o primeiro automóvel e tirou carta só aos 45 anos.

A sua vida profissional foi muito afectada por ter sido preso várias vezes. Não houve nenhum importante acontecimento político a que não tenha estado ligado.

Nunca me passou pela cabeça estar ligado a um banco, quando entrei em Direito. Fui fazer o curso de Direito e pensava vir a trabalhar com o meu pai.

 

Bagão Félix

O pai é uma figura de autoridade que nos fascina sempre. A relação de autoridade, quando mais não seja pela omissão ou silêncio, é muito paternal, mais do que maternal. Mas estou a referir-me à infância nos anos 50, no século passado…

 

Campos e Cunha

A minha vida foi toda marcada pelo facto de o meu pai ter sido militar. Não era um militar típico, deu-me sempre uma grande liberdade. A única coisa que me impôs foi não ir para o Colégio Militar – para onde foram vários amigos meus, porque receava que eu, mais tarde, fosse para a Academia Militar.

Sempre me transmitiu valores de austeridade.

Esteve no coração da revolução, antes e depois. Era o elo de ligação, basicamente, entre os homens do 25 de Abril e Costa Gomes – de quem foi chefe de gabinete. Ele confiava muito em mim, sempre me tratou como um adulto. Fui talvez a pessoa mais nova em Portugal que soube que o 25 de Abril ia acontecer. Porque ele disse-me. Não disse que seria no dia 25 de Abril porque isso nem ele sabia. Mas estava para embarcar para Angola no dia 5 de Maio e confidenciou-me: “Já não vou embarcar para Angola, porque dentro de dias vai haver uma revolução”.

Muitas vezes queria saber a minha opinião. Por exemplo: quase todos os discursos do Costa Gomes foram escritos pelo meu pai. Eu era a pessoa que os lia. “Olha, está aqui o discurso, vê lá o que achas”. Umas vezes terá aceitado as minhas sugestões, outras não.

Julgo que tinha confiança em mim. Sabia que eu não falava sobre as coisas.

Foi uma coisa que o meu pai me transmitiu: que tenho obrigação de dizer aquilo que penso, e dizê-lo publicamente.

 

Carlos Moreira da Silva

Eu era um aluno medíocre. Nas férias da Páscoa, chumbei por faltas. Por jogar ao bilhar e futebol - coisas bem mais interessantes [do que estudar]... E tive sete negativas em nove disciplinas. O meu pai pôs-me a trabalhar numa fábrica de um tio meu, de curtumes. Trabalhei desde a Páscoa até ao dia 30 de Setembro. Não houve terceiro período nem férias. Tinha 12 anos. Ao sábado, trabalhava-se até ao meio-dia, nas fábricas, e eu pegava no dinheiro que recebia, 13 escudos, chegava a casa e dava-o ao meu pai. Ele devolveu-mo, um tempo mais tarde. Quando achei que tinha acabado o castigo é que foi violento: fui para um colégio interno, em Oliveira de Azeméis.

Tive uma educação muito rígida, que não funcionou mal.

 

Diogo Vaz Guedes

Os meus pais separaram-se cedo, em 1968 ou 69, e eu não via muito o meu pai. Sempre tivemos uma relação especial, uma relação de amigos. Eu era muito responsável e precoce, e por vezes tive o papel de pai e ele o papel de filho.

Outro dos adultos marcantes, foi o meu padrasto, que trato por pai. Posso dizer que tenho dois pais.

Mesmo que a gente não se veja muito, ele está, ele está. Mas faz falta aos meus filhos terem um avô mais presente. Ele não foi um pai muito presente e sei que isso me fez falta. O que faz falta aos meus filhos, faz falta a mim, o que é um presente bom para os meus filhos, é um presente bom para mim.

 

Elisa Ferreira

O meu pai tinha um grande orgulho em mim, quase uma vaidade, que procurava esconder. O orgulho expressava-se do seguinte modo: depositava em mim uma enorme confiança e sabia do que eu era capaz. Por exemplo, mandava-me às finanças pagar impostos e tratar assuntos burocráticos. Eu ficava toda vaidosa quando a seguir dava conta do recado!

Essa confiança absoluta era para mim uma grande fonte de auto-estima.

 

Horácio Roque

O meu pai era um homem de prestígio na região. Basta dizer que depois da escola, ia almoçar a casa do padre. Produzia-se cereal, vinho, azeite, havia os animais que trabalhavam a terra, cabras, ovelhas, muitas galinhas, muitos coelhos. Todos os anos se vendia uma parte da produção. E vendia-se resina.

Nos últimos sete anos em que o meu pai explorou a casa, cobri-lhe o défice. Ele devia algum dinheiro, 60 ou 70 contos. Sugeri-lhe que se vendesse uma parte da terra e se pagasse aquele valor. E o meu pai começou a chorar. As lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo. Dizia: «Vocês são todos iguais»… A vontade de manter aquilo que construiu ao longo da vida era tão grande que era incapaz de se desfazer do que quer que fosse. Achava, ainda, que aquilo seria o futuro dos filhos! Embora nenhum deles estivesse lá. Apercebi-me de que seria uma humilhação tremenda vender uma parte da terra.

Foi a única vez que o vi chorar.

Paguei todas as dívidas. O meu pai tinha imenso orgulho em mim e contava a toda a gente do meu gesto.

 

João Rendeiro

O meu pai é já um velhinho, tem 90 anos e fala sobretudo de quando me levava ao circo a comer cachorros.

Já não temos grandes conversas.

 

Joao Talone

O meu pai marca. Temos o mesmo nome, começa logo por aí…Marca os sítios onde está, as pessoas com quem trabalhou, as pessoas com quem vive. Obviamente marcou os filhos todos.

Sou muito amigo do engenheiro Jardim Gonçalves. Você diz que era como se fosse meu pai... Era uma espécie de irmão mais velho.

Conheci-o por causa do meu pai. O engenheiro Jardim costumava convidar os administradores vivos do Banco Português do Atlântico para um almoço; era o seu conselho consultivo. O meu pai fazia parte desse grupo.

O meu pai, quando aprendíamos a ler, convidava-nos a ir lanchar a uma casa de chá. Íamos engravatados.

 

Joe Berardo

Nessa altura havia senhas para açúcar, senhas para tudo. Era duro. Eu era um privilegiado porque o meu pai trabalhava no Madeira Wine, tinha uma relação boa com os ingleses. O meu pai ia levar a bordo os vinhos que os ingleses escolhiam; e trazia sempre para nós coisas boas, queijo. E isso era muito bem vindo.

Há uns que nascem com os genes da mãe, outros com os genes do pai. Eu nasci com os genes da minha mãe. Era uma mulher culta. Sabia ler e escrever – o meu pai, não. Era ela que lia para o meu pai. O meu pai era bom a fazer contas em letra romana! Nunca percebi como é que uma pessoa aprende a letra romana e não aprende a ler...

 

Jorge Armindo

Por razões que têm a ver com a grande prudência que caracterizou o meu pai, fui para Escola Técnica. O meu pai quis que eu tirasse um curso que me permitisse trabalhar, (no caso de não poder tirar um curso superior). Uma enxada, como ele próprio dizia.

Sempre percebi que o meu pai gostava muito de mim. Por exemplo, se estivesse com febre, se tivesse a mínima coisa, a minha mãe já não dormia com o meu pai: era eu que dormia com o meu pai. Era aí que o meu pai era o homem que realmente é: humano.

 

José Penedos

O meu pai, que foi um velho combatente da Guerra Civil espanhola, usava todo o tempo livre que tinha para me falar disso. Obviamente marcou-me para a vida: sou um leitor compulsivo, sobretudo de temas ligados à Guerra Civil de Espanha.

Senti o peso da vida do meu pai, que merecia ter tido mais. Era inteligente, na minha avaliação era culto, muito lido, muito corajoso. Eu tinha de procurar fazer mais e, de alguma maneira, vingar um destino negativo que o empurrou para uma vida que não estimava enormemente.

Perdi o meu pai há 20 anos. Foi uma perda muito traumática, eu tinha 40 anos.

 

Maria Cândida Rocha e Silva

O pai era muito importante. Mesmo quando estava em casa, já velhinho, tinha as minhas dúvidas e falava com ele. E o facto de ser obrigada a expor a situação, o meu problema, só isso já era uma ajuda. Dizia, quando era miúda, que tinha uma paizite aguda.

A mãe teve a preocupação de se pôr na sombra do meu pai. Queria que tivéssemos no meu pai a figura principal.

Vivia em África e [o meu marido e eu] viemos passar férias; o meu pai disse-me: “Deves ficar, porque África vai ter um fim mau”. Vivia em África, achava que o meu pai não tinha razão. Mas era como se fosse Deus a falar. Não entendemos as atitudes de Deus, mas é Deus. Fiquei.

 

Maria José Nogueira Pinto

Eu não assinava nada. Tinha 19 anos, era estudante. Era “a Zé”. Depois, a minha mãe também se chama Maria José... Encontrei ali a minha identidade: esta que tenho até agora. O meu pai ficou zangadito com aquilo... Usar este nome [Nogueira Pinto] também significa que me passei para aquele lado...

 

Marques Mendes

… E talvez tenha sido influenciado pelo meu pai, que já fazia política antes do 25 de Abril.

Até aos 18 anos, fui muito mais ligado ao meu pai [do que à minha mãe]. E mais parecido com o meu pai. O meu pai é introvertido, culto, um homem de carácter, excelente profissional, muito sereno e tranquilo; é muito difícil encontrá-lo a dar um murro na mesa. Exerce uma autoridade natural. Eu ia com o meu pai ao café com dez, 11, 12 anos. Quando comecei a minha vida política, já conhecia o país de lés-a-lés, graças ao futebol e ao meu pai - foi dirigente desportivo muitos anos, lá no clube da terra.

 

Murteira Nabo

A minha mãe era de uma família relativamente rica, proprietários de terras e ganadeiros, e o meu pai era um trabalhador rural. O meu pai era um homem bonito, tinha mota, usava bigode, mas um trabalhador rural.

Quando acabei o curso da Escola Comercial quis continuar, em Lisboa e no Porto, e o meu pai disse: “Fazes mal, era melhor ficares aqui, alguém tem que continuar esta coisa...”. Levava-me todas as manhãs quando ia comprar coisas, gado, cereais...

Aconteceram coisas extraordinárias na minha vida no ano de 68.

É o ano em que o Salazar cai da cadeira. É o ano em que entro na Marconi. É o ano em que caso. É o ano em que o meu pai morre. E é o ano da revolução em França.

 

Pedro Norton

A questão de seguir um percurso completamente diferente nunca se chegou verdadeiramente a colocar. Porque se calhar nunca a coloquei. Fazendo uma análise a posteriori, na prática, acabei por seguir o óbvio, que era o exemplo do meu pai. O meu pai toda a vida foi gestor.

Do meu pai, herdei sobretudo a coisa mais importante: um quadro de valores. E dentro desse quadro, alguma exigência comigo próprio, que depois tem tradução na vida profissional. Sou um gestor muito diferente daquilo que o meu pai foi; nesse sentido não acho que exista uma reprodução do que quer que seja

 

Pires de Lima

Lembro-me de ter dito ao meu pai, primeiro, e depois ao meu avô, que não iria para Direito – não tendo eu a mínima ideia do que é que iria ser. O meu pai, muito ao estilo dele, escondeu a decepção e disse: “Óptimo. O importante é que sejas bom naquilo que decidires vir a ser, e acima de tudo, que sejas útil”.

O meu pai, do ponto de vista do carácter, do desapego ao poder e material, é uma referência moral muito forte para mim.

 

Rodrigo Costa

O meu pai, enquanto estudava, foi aprendiz de um tio nosso na fábrica de cerâmica. Aprendeu a arte da pintura à moda antiga – trabalhando com o mestre. Mais tarde decidiu ir para o seminário, depois decidiu sair, depois foi para a tropa. O seu percurso fez-se na área das viagens. Reformou-se aos 60 e tal anos e voltou a pintar. Uma coisa que me marcou muito foi a sua obsessão pela honestidade. Honestidade é a palavra certa; porque não se trata, apenas, de não roubar ou de falta de transparência. É uma obsessão em ser sério, e que toda a gente entenda que somos sérios.

O orgulho que eu tenho nele é o orgulho que ele terá em mim. Somos pessoas simples e não há essa preocupação de saber o que é que o outro sente nessas matérias.

 

Rui Machete

O meu pai marcou-me de uma maneira muito particular. Desapareceu cedo e tinha uma personalidade que adivinhei mais do que conheci, e que é particularmente rica.

Era médico em Setúbal. Morreu com um ataque cardíaco.

A ideia de tirar um curso rapidamente e bem foi importante como resposta ao apoio que tive de um conjunto de amigos do meu pai. Deram-me uma bolsa que nos permitiu, a mim e à minha mãe, viver sem problemas.

 

Rui Moreira

Tínhamos interesses parecidos, conversas longas, silêncios longos. Quando queria falar em privado comigo, falava em alemão – quando havia gente à volta, se íamos ao restaurante... Engraçado: tratava-o por tu em alemão e por você em português. Não sei explicar porquê.

Eu tinha um enorme receio de desapontar o meu pai. A minha vida ficou muito marcada por isso em diversos aspectos.

Era aquele género de pai terrível porque não ralhava nem batia: mostrava o seu desapontamento. Olhava para mim com uma cara triste: “O menino está a desapontar-me”.

Sabia partilhar os seus afectos – invulgaríssimo na geração dele e num homem. Houve uma altura em que percebi que ele estava muito doente. O meu receio era que o meu pai morresse sem eu lhe poder dizer o que é que sentia.

O meu pai era também irreverente, a família era irreverente. Era um modo irreverente de ser. Os meus pais achavam normal que, se nos dessem uma ordem, questionássemos a razão de ser da ordem. “Hoje os meninos vão para a cama mais cedo”. Eu achava-me no direito de perguntar: “Porquê?”.

 

Simonetta Luz Afonso

O meu pai era um jovem artista que foi viajar pela Europa antes da Segunda Guerra Mundial para contactar com a arte europeia. Esteve alguns meses em Florença onde conheceu a minha mãe. Morreu há dez anos, a minha mãe há 20, e eu nunca tive coragem de ler as cartas. Só há pouco tempo, talvez há uns seis meses, achei que devia lê-las. E... são quase história! Não se tratou, apenas, de ler as cartas daquelas duas pessoas, que conheci muito bem e por quem tinha muito afecto; era também a história de uma época.

Ah, mas tive um pai que adorei. Íamos apanhar borboletas com um camaroeiro nos meses que passávamos na praia. Uma vez apanhámos uma febre da carraça os dois... Ensinou-me a nadar. Andávamos a pé. Apanhávamos mexilhões nas rochas das Azenhas do Mar. Andávamos de burro. Íamos às feiras. Era um lado muito físico, sim, só mais tarde foi intelectual. Fazia-me o baloiço. Fazia-me imensos retratos, em várias épocas da minha vida.

 

Teodora Cardoso

O meu pai trabalhava no comércio. Não tinham dinheiro para me deixar. Eu sabia que tinha de singrar pelos meus meios.

Os meus pais morreram cedo. Eram muito mais velhos do que o normal. Quando eu nasci o meu pai tinha 57 anos, já, e a minha mãe 42. Casaram pouco antes, para o meu pai era um segundo casamento.

Levei muito tempo a antipatizar com o meu nome. Tem a vantagem de a pessoa ficar imediatamente conhecida. Foi um professor de alemão que me explicou o que o meu nome quer dizer: “presente dos deuses”. É um nome simpático para os pais darem aos filhos! Não sei se os pais pensaram nisso, mas talvez tenham.

 

Vasco Vieira de Almeida

Ainda hoje penso no meu pai quase todos os dias (morreu em 62).

Foi uma relação profundamente afectiva. Meu pai era monárquico e liberal. Eu era um marxista ortodoxo. Hoje sou marxista, mas não sou ortodoxo. Ele tinha uma capacidade de previsão, de conhecimento das pessoas, de evolução histórica. Tínhamos grandes discussões que ele incentivava. Não era uma relação de obediência nem de subalternidade. Olhando para trás acho hoje que eu tinha uma posição enfatuada, arrogante e estúpida. Falávamos em pé de igualdade, porque era assim que ele queria que fosse.

Meu pai era intelectualmente invulgar. Foi o homem mais culto e inteligente que conheci. Mas era ao mesmo tempo uma pessoa simples e de enorme bondade. Eu costumava dizer que ele tinha nascido sem pecado original.

Nunca fui para a escola primária. Meu pai achava que o ensino primário em Portugal era mau e fez um livrinho de francês com 20 e tal páginas, um de matemática com umas 30, um de gramática portuguesa igualmente pequeno, e eu e o meu irmão, durante quatro anos, aprendemos em casa com ele. A aprendizagem era permanente, porque independentemente disto ao jantar podia acontecer explicar-nos quem era o Goethe ou o Balzac

O Ortega y Gasset foi apresentado ao meu pai e perguntou: “Es usted un profesor decano?”, o meu pai respondeu: “Não, não sou de cano, sou de ar livre!”.

A influência do meu pai nunca constituiu um peso na minha vida, nunca me limitou. Pelo contrário, foi sempre libertadora. O seu exemplo, tudo o que me ensinou, a forma de reagir perante as situações, foi o que me permitiu sempre ter asas próprias. Nunca me pus sequer o problema de dizer: “O que é que posso ser, com este pai?”. Meu pai foi o meu pai, a minha vida é a minha vida. Sou aquilo que quero ser, excepto que nunca poderei chegar ao que ele foi, ponto final. 

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios

 

Nicolau Breyner

14.03.16

Nicolau Breyner, quase 70 anos. Há 50 anos que o palco é uma espécie de casa. Um espectáculo no auditório do Casino de Lisboa, de 20 a 25 de Abril, põe-no a olhar para si próprio.

Em casa, a propósito do espectáculo, falou-se de porque é que foi bilingue em italiano, da atracção por personagens decadentes, do que acontece na vida de um homem quando tem cancro na próstata, do lugar da ópera na definição de um futuro. E de como tudo isso fez dele quem ele é e aparece no personagem que o público vê.

Eu show Nico, em versão uncut. 

A entrevista aconteceu em casa. Nicolau Breyner é um anarca sentimental que tem “muito o sentido da família”. Home, sweet home, é “o sítio onde me sinto melhor”. Foi um homem de muitas mulheres que foi pai quando já não pensava que isso pudesse acontecer. Foi um bom vivant que deixou de beber aos 50 anos e passou a acordar de madrugada. Foi um homem de negócios que fundou uma máquina de fazer telenovelas e que conheceu a ruína aos quase 60 anos. Foi a segunda ruína da sua vida. A primeira é a de uma vida que não parece a dele. Uma vida de grandes senhores da terra, no Alentejo.

Na entrevista ouve-se o bater das cortinas de renda nas janelas, sente-se o cheiro do Verão, vê-se uma velha criada de bengala. Coisas que fazem parte da memória de Nicolau Breyner. Do Nico, como é chamado, excepto pela mulher para quem, carinhosamente, é o Niquinho. É um Mello Breyner que nunca pensou ser actor. É um artista que não gosta de se ver por ser muito auto-crítico e não ser dado ao “onanismo”. (A expressão é dele).

A casa é realmente a casa. A mulher põe a mesa, a filha chega e vai dizer bom dia, é preciso ir comprar champô e entregar um envelope a não sei onde. Tarefas domésticas, de todos os dias. De certo modo, na vida de Nicolau Breyner uma entrevista é também uma coisa de todos os dias. Há muitos anos que está habituado ao sucesso, à exposição pública. Isso diminui a timidez dele? Sim, timidez. E no meio dessa agitação quotidiana, havia a entrevista, no sofá da sala, com os olhares dos antepassados a espreitar dos quadros da parede. Uma entrevista que seria a primeira de cinco, nesse dia.

O pretexto é o espectáculo comemorativo dos 50 anos de carreira. One man show, ele estará sozinho em palco, a olhar para si próprio. Com aguda ironia.

Na entrevista, olhou-se sem contemplações.

 

 

Este ano faz 70 anos. Chegou à fase em que diz tudo o que lhe apetece. É uma conquista?

Quase tudo. Não tenho o direito de dizer coisas que firam outras pessoas. Se for preciso mentir, desde que isso não cause mal a outros, claro que minto. A velhice não é boa, temos de nos habituar a viver com ela. Mas temos alguns direitos adquiridos, e um deles é esse, dizer o que pensamos.

 

Já não há nada a perder?

Mais do que isso, há um prazer em dizer aquilo que se sente. Tenho de me fazer ouvir.

 

Quando é sentiu que estava a envelhecer?

Isso é que é grave: não sinto que estou a envelhecer. É gravíssimo. Estes meus 50 anos de carreira fizeram-me reflectir sobre a idade e sobre o envelhecimento. Claro que fisicamente ficamos diferentes. Profissionalmente não noto diferença. Há tempos que não escrevia coisas de humor e agora estou a escrever. Estou a trabalhar em três ou quatro coisas ao mesmo tempo. Faço-o tranquilamente, sem esmorecimento. Produzo muito mais, muito melhor. Ainda vou ao ginásio (sempre trabalhei com pesos muito pesados e continuo a fazê-lo). Depois há as outras coisas: já tenho de tomar remédios, o que há cinco anos não fazia sentido.

 

Que impacto é que o cancro teve em si? Acelerou a sua noção de envelhecimento?

O que o cancro me deu foi a certeza de que isto ia acabar mais cedo ou mais tarde. Acelerou a sensação de que a vida tem um fim. Já não há a noção de imortalidade que temos aos 30, 40 anos. O fim está mais próximo do que estava há 10 anos. No primeiro momento é terrível, é uma espécie de pontapé na cabeça.

 

Como é que foi?

Um amigo viu umas análises minhas e disse-me que tinha um problema muito grave. Percebi logo o que era. Nunca tinha feito uma análise na vida. Tirando o cancro, sou o gajo mais saudável do mundo. Aliás, cancro, já não tenho. Tenho um coração, uns pulmões, uns ossos, tudo óptimo. As análises vieram e a Mafalda [a mulher] abriu-as; depois ficou no pânico de me dizer que as tinha aberto. Um dia, na praia, estávamos felicíssimos, chegou ao pé de mim a chorar e disse: “Não me vai perdoar, mas abri as análises”. E foi assim.

 

O facto de ser um cancro na próstata, que potencialmente afecta a virilidade, quando se tem a sua idade, um casamento de quatro anos e uma mulher muito mais nova, foi um fantasma?

É verdade. São fantasmas que temos de exorcizar. E lutar para que não seja assim, tomar todos os cuidados para que tudo volte à normalidade.

 

Tem essa imagem de quem não se vai abaixo.

Tenho a imagem e sou assim, não me vou abaixo. Duas coisas: sou católico, tenho fé. Não sou neo-católico por necessidade, sempre fui. Depois tenho uma família óptima e uma mulher que me apoiou tremendamente. E tenho a sorte de ter imenso trabalho.

 

Terapia ocupacional.

Completamente. Não tenho a sensação de quebra, em nada. Fiz quimioterapia e nunca tive enjoos, vómitos. Tenho um organismo de antes da guerra [risos], é material muito mais forte.

 

Olhando para trás, para a sua vida toda, o que é que o deitou abaixo? E o que é que o fez tão resistente?

Nasce-se resistente. Outra coisa, que é uma couraça, é o meu sentido de humor. O humor com que vejo a vida e o quanto me divirto a viver. Divirto-me a ir tomar um café ao “Chefe”, aqui na Lapa, a ver uma porcaria qualquer na televisão, a ler um livro, a rir com os meus amigos, a fazer as cenas mais dramáticas numa novela. 

 

Que momentos dramáticos foram os da sua vida? Que fracturas são as suas?

Nunca pensei nisso. A morte dos meus pais, do meu avô, que adorava. Algumas traições perturbantes, de amigos. Crises económicas, uma em especial, quando deixei a NBP. A minha vinda de Serpa, com nove anos. Na altura não tinha consciência, mas mudou completamente a minha vida. Vinha do exterior, do campo, dos cavalos, com um grande conforto financeiro. Quando os meus pais perdem tudo, vimos para Lisboa.

 

Dê-me mais detalhadamente o quadro da sua infância. O que é que significou essa ruína?

Foi muito mitigada pela família. Nasci com uma mãe e um pai espantosos. Tive uma irmã mais nova, que morreu com um ano. Lembro-me vagamente, tinha dois anos e tal quando ela morreu.

 

Lembra-se de assistir à dor na casa?

Não. Lembro-me dos olhos dela; eram verdes, muito grandes. Chamava-se Madalena. Tinha os olhos do meu pai e o cabelo preto da minha mãe. Morreu com uma gastroenterite, que passado uns meses se teria curado com sulfamidas. Estávamos de férias, na praia. Claro que deve ter sido fracturante.

 

Sobretudo pelo impacto que provocou nos seus pais, e pela maneira como lidaram consigo a seguir.

A minha mãe, depois, centrou-se muito em mim. Foi assim até ao fim da vida. Tive de lutar muito com isso. No seu extremo amor por mim, atabafava-me um bocado. Já era homem, com 60 anos, e dizia-me para ter cuidado a atravessar a rua. Era o único filho e a sua única companhia. No último ano fui viver com ela, porque percebi que duraria pouco. Ainda bem que fui, foi muito bom poder acompanhá-la.

 

Ia com ela à “Mexicana”, na Praça de Londres, às cinco da tarde? Corresponde a uma geografia e a um determinado quadro social.

Exactamente. A minha mãe marcou-me muito.

 

Usa o nome de família dela.

Sou João Nicolau de Mello Breyner Moreira Lopes. No colégio todos me chamavam por Breyner e Nicolau, que era um nome que não existia. E depois, Nico. Ficou assim.

 

A infância, em Serpa. Eram os senhores da terra.

Uma casa muito grande, com dois andares. Um monte, dos Pereiros, que era do meu avô. As empregadas, que nessa altura se chamavam criadas. Uma criada muito velha, a Bia, que tinha ido para casa dos meus bisavós para brincar quando o meu avô nasceu (ia-se buscar uma filha de uma empregada para brincar com os meninos). Era uma personagem espantosa, a verdadeira dona da casa. Está num jazigo da nossa família, em Serpa. Ainda me criou a mim até aos oito anos. Um dia sentou-se no quintalão, onde havia um poço, e enchi-lhe a cabeça de água, para a pentear, no Inverno. Ficou constipada. A minha Bia adorava que lhe fizesse estas coisas.

 

Era excessivamente mimado?

A minha mãe e o meu pai educaram-me muito bem. Fiz uma vez uma birra à minha mãe, e subi as escadas a levar estalos até lá acima. Além disso, a minha vida em Lisboa, quando perdemos tudo, tornou-se difícil. Tinha todas as condições para ter sido mimado, mas não fui. No Verão íamos para a praia de Monte Gordo ou para a Caparica. Os dias passavam-se entre a escola, com a D. Branca, que ia lá a casa dar aulas…

 

Uma preceptora à antiga?

Sim. Mais tarde ia eu a casa dela. E depois, o professor Gaspar. Isto passava-se naquela moleza do Alentejo. Há uma imagem que me fica, descia a rua onde vivíamos, subia a Rua dos Fidalgos, e as tias, de várias janelas, falavam connosco. Ao longe via uma janela entreaberta, com aquelas cortinas pesadas de renda a esvoaçar. E o cheiro do Alentejo, das estevas, o cheiro a Verão... Detesto o Inverno. Muitas vezes digo da vida: “Quantos verões me faltam?”. Adorava morrer num daqueles dias chuvosos, feios, com vento, para não ter pena.

 

De repente, tudo se transforma.

Venho para Lisboa, uma cidade hostil, vivia num andar. Os carros e os eléctricos fascinavam-me. O meu pai era professor de Filosofia, formou-se em Itália, num colégio particular, caro, em Roma. Estudou como se fosse para padre. Nunca foi um beato; católico, sim. Daí que até aos 14 anos eu fosse bilingue. O meu pai falava comigo em italiano, por brincadeira. O meu pai veio para Portugal, e depois para o Serpa, com o meu tio Luís, irmão dele, também professor, onde queriam fazer um grande colégio de rapazes. É lá que conhece a minha mãe. Casam. O meu pai adopta o Alentejo, era a pessoa mais alentejana que conheci. Nasci lá e tive pouco contacto com a família do meu pai.

 

O que é que desencadeou a mudança súbita de vida?

O meu avô era um grande lavrador, e de repente, graças a uma coisa que não vale a pena contar, perdeu quase tudo o que tinha. Viemos todos juntos para Lisboa. Depois as pessoas foram desaparecendo. O primeiro foi o meu avô, só viveu cinco anos em Lisboa (digo sempre que desistiu de viver quando veio para cá). De seguida a minha bisavó materna. Depois o meu pai, a minha avó e a minha mãe, que já morreu com 80 e muitos anos.

 

Então percebeu cedo que se morria, e que se morria de tristeza.

Cedíssimo, sim. Eu e o meu avô fazíamos anos no mesmo dia, 30 de Julho. Era ligado à terra, aos cavalos. Também pintava muito bem e era um contador de histórias espantoso. Viajava imenso com o meu avô em histórias que ele me contava.

 

No Alentejo, nunca lhe ocorreu que podia estar do outro lado? Era o menino, e não era o filho da empregada que ia brincar com o menino.

Sempre me ocorreu. Vivo perturbado todos os dias, e sempre que abro um jornal, com a total injustiça social. Cada vez que me acontece alguma coisa boa materialmente – ganhar mais dinheiro – há sempre em mim um sentimento de vergonha. Penso nas pessoas que naquele momento não sabem se têm dinheiro para almoçar e para dar almoço aos filhos.

 

Quem é que o ensinou a olhar para os outros com esse cuidado?

Tem a ver com o Alentejo, com as pessoas menos protegidas. O meu avô várias vezes tirou as botas para as dar aos pobres, e aparecia descalço em casa. Tinha outras, como é lógico. Fui educado assim. Não sou rico, trabalho como uma besta para poder viver com o conforto que quero. Mas tenho uma maneira de me relacionar com as pessoas. Não renego as minhas origens. Se me dissessem para todos deixarmos de ter tanto, para mais pessoas terem, estava plenamente de acordo. Cada vez que vejo certos rendimentos fico alucinado. Por exemplo, sou incapaz de gastar muito dinheiro em roupa, e não é forretice. Odeio lojas, odeio consumismo, reclamo contra tudo. Ontem tive de ir comprar um fato por causa do espectáculo e achei um roubo!

 

Viveu a vida toda com o pânico de que voltasse a acontecer a ruína, que conheceu em criança?

Já me aconteceu, há uns anos. Do porquê, não vou falar. Tinha perto de 60 anos, tinha duas filhas, e as coisas ficaram muito feias para mim. Não foi pânico porque entro pouco em pânico, mas é uma sensação terrível. Não é o não ter que me assusta, é se as pessoas que dependem de mim não tiverem. Conheço os dois lados. Tenho uma grande sorte, conheço quase tudo.

 

O seu fascínio pelos losers, pelas personagens decadentes, tem a ver com esta história?

Conheci muitos.

 

Quem é que foi o loser da sua histórias?

Loser pode parecer uma coisa depreciativa. A decadência passou muito perto da minha família. O meu pai era o meu herói. Quando a família teve o grande débâcle [desastre] foi ele que tomou as rédeas. Fê-la viver e ser sustentável. E fez-me estudar. Foi sempre ele, até à morte. Morreu com um cancro no estômago, ainda não tinha 60 anos. Na família já estou a bater todos os homens, que morrem cedo.

 

Nunca lhe passou pela cabeça, nem no momento da sua ruína, matar-se?

Nunca. Não sei se sou demasiado cobarde ou demasiado valente para não me suicidar, mas não tenho o perfil do suicida. Tenho esta necessidade de viver várias vidas, mas isso não. Sou um louco muito saudável.

 

Toda essa vida parece a de outra pessoa. A vida artística é um exercício esquizofrénico?

É. É tudo isso, com uma grande história em Lisboa, com copos, com não sei quantos casamentos, tudo isso faz parte de mim. Não sou uma coisa, sou várias coisas. Nunca sou de nenhum lugar, sou de muitos lugares.

 

O que é que ainda tem desse que era há 50 anos?

O entusiasmo. A necessidade de inovar e começar coisas novas. O amor à vida. O sentido da beleza. A vontade de sonhar, que ainda não passou. Se é que tenho qualidades, essa é uma delas. Quando tomo conta de um projecto que me agrade, sou outra vez um miúdo de 20 anos.

 

O que é que perdeu, o que é que já não há desse que era há 50 anos?

Há menos capacidade para acreditar nas pessoas. Desconfio totalmente do ser humano. Há um maior comodismo, um desacreditar na política, há uma preocupação maior. Não quero saber se o PIB subiu ou desceu, quero saber se as pessoas têm condições para viver, se quando estão doentes vão ao hospital e são tratados, se quando têm uma querela com uma entidade os advogados as tratam [como tratam aqueles que têm mais dinheiro do que elas]. A perversidade devia ser esta: um departamento pago pelo Estado, só com grandes advogados, em causas contra o Estado! Sou um anarquista. O Francisco Lucas Pires disse-me que era um anarquista de direita. Por acaso sou mais um homem de centro. Neste momento sou um apátrida político. A lei é uma coisa que me irrita. Sempre que me dizem que sou obrigado a fazer alguma coisa, a minha vontade é fazer logo o contrário. Gobiernos, yo soy contra!”, à mexicana. O Estado são pessoas de má fé, de um modo geral, em todo o mundo. São empresas que tiram o mais que podem e dão o menos que podem. No fundo, resume-se a isto.

 

Nem parece que estou a falar com um ex-candidato à Câmara de Serpa.

Está. A política para mim só existe assim. Tenho vergonha enquanto ser humano, enquanto cidadão, de coisas que vejo. O meu desacreditar é tão grande que já não estou a falar só de Portugal. Isto passa-se em todo o mundo, de outras maneiras. É promíscuo, é porco. Somos cada vez mais números e cada vez menos seres humanos.

 

Espantou-o que as pessoas não tivessem votado em si o suficiente para o elegerem presidente da Câmara?

Falhei por 1200 votos, o que foi muito bom. Era apoiado por um partido que ainda hoje não tem implantação nenhuma no Alentejo, o CDS/PP, e tinha contra mim um adversário fortíssimo, de quem sou amigo, o João Rocha, que nessa altura já tinha muitos anos de câmara, apoiado pelo Partido Comunista. Esteve quase a ser, mas não foi. A minha visão não me permite ser ministro, secretário de Estado ou deputado. Ser presidente da Câmara é diferente, é a única maneira de agir directamente com as pessoas.

 

Era um regresso à sua terra.

Melhor ainda. Não quereria ser presidente da Câmara de uma terra que não fosse a minha. O que disse foi que podia fazer coisas por aquela terra. Não fiz e nunca mais tive ambições políticas. Há muitos anos foi-me oferecido um lugar que não aceitei, como não aceitaria agora. Fui sondado para secretário de Estado da Cultura.

 

Porque é que recusou?

Não me ponham atrás de uma secretária, dou em doido. Na câmara é diferente, vão-se ver as coisas, com os nossos olhos. Não tenho perfil, digo tudo o que penso, seria uma desgraça total. Meteria vários Governos em sarilhos de certeza.

 

Nem sequer se deixou convencer pela vaidade?

Não sou uma pessoa vaidosa. Sou orgulhoso. Faço as coisas com orgulho e gosto. Quando dizem que a nossa profissão é 30 por cento de talento e 70 por cento de trabalho, é ao contrário. Doa a quem doer. E provo. São 75 por cento de talento e 25 por cento de trabalho. Os 75 foram-me dados por Deus, não tenho por que ser orgulhoso. É-se orgulhoso do que fazemos, do que produzimos.

 

Como é que deu em artista?

Não dei. Não sabia, mas já era. A minha mãe e o meu avô pintavam muito bem, o meu tio Domingos cantava muito bem. O avô do meu pai, que era um filantropo da zona do Porto, fez um conservatório de música. Tudo isto, (esses genes perdidos de várias gerações), veio calhar em mim, deu naquilo que sou. A música tem uma razão: os meus pais eram melómanos e a minha mãe tinha o curso superior de piano. Com 20 e tal anos, ouvia osBeatles e os Rolling Stones, mas gostava mesmo era de música clássica. Um dia comecei a cantar e as pessoas disseram que tinha uma voz muito boa. A minha mãe incentivou-me, mas quando disse que queria ser profissional fez marcha atrás.

 

Porquê? Não era suficientemente digno?
Na altura era diferente.

 

Por causa do estigma da homossexualidade?

Não. Ser artista ou saltimbanco era parecido. Não era socialmente bem aceite. Ela e o meu pai fizeram uma resistência muito inteligente, e um dia perceberam que não era possível. Quando tinha 19 anos o meu pai chamou-me e conversámos. O meu pai, nessa altura, era inspector da Junta Nacional de Emigração e viajava imenso; conheceu a bordo de um barco, da Argentina para cá, o José Mujica, um grande cantor que depois foi para frade. Quando chegou cá, apresentou-mo. Ele ouviu-me cantar e disse-nos: “Acho que faz mal se não cantar, a sua voz é uma bênção de Deus”.

 

O que queria era ser cantor de ópera?

Sim. Nunca tinha pensado ser actor. O meu pai disse que a ópera era uma arte cénica e que tinha de ir para o Conservatório para aprender teatro e juntar as duas coisas. Comecei a perceber que não tinha coragem para manter aquela disciplina… A vida de um cantor de ópera é como a de um bailarino. O que se come, o que se bebe, o sol que não se apanha. Não era isso que queria aos 20 anos. Entretanto o Conservatório começou a tomar conta de mim, e cá estou.

 

Quando é que se lembra de ter cantado pela primeira vez, mesmo que em casa?

Tinha uns 12 anos.

 

Cantava por cima dos discos de vinil?

Sim.A professora da Juventude Musical entusiasmou-me a ir para Itália, onde fiz alguns workshops.Estive lá três meses, tinha 17 anos. E em Portugal não havia condições para se cantar ópera.

 

A estroinice era irresistível?

Era.

 

O que é que foi um deslumbramento para si? A descoberta do sexo, da noite?

O sexo, descobri-o muito cedo. Foi a noite, os copos, os amigos. Sempre tive vários grupos de amigos, muito ecléticos. Um grupo dos meus amigos de família, um grupo da malta do teatro e da noite, um grupo dos toiros e dos forcados, outro da malta do rugby.

 

O rugby é desporto de menino bem.

Nessa altura os forcados também eram. Mas tenho grandes amigos em todas as classes sociais, se é que isso existe.

 

Até aos 20 anos era fisicamente muito violento. Em todas essas coisas há uma ponta de marialvismo. Porque é que era assim?

Tinha 80 quilos e não era gordo, era maciço, fazia muito desporto. Penso que era “bem” ser-se violento.

 

Como assim?

A noite em Lisboa tinha aquelas cenas, sempre macacas: andava-se à pancada com as mãos e com os pés, agora é com pistolas e com facas. Faz parte de uma afirmação de virilidade, juventude. É como começar a fumar e deixar crescer o bigode.

 

E é também uma sensação de pertença a um grupo.

Claro! Porque é que existe o futebol? Nunca me senti rejeitado em nenhum grupo, bem pelo contrário.

 

Sempre foi o líder? Isso deve-se a quê, à não-timidez?

Aí é que está o seu engano: sou tímido. Ainda hoje, para atravessar um café, vou de cabeça baixa. O meu humor, a minha constante brincadeira, eram uma maneira de vencer a timidez. Nunca tentei perceber o que é a minha timidez. Se entrar num sítio onde não conheço ninguém, e sei que as pessoas me conhecem, ainda fico à espera que venham falar comigo.

 

É muito sedutor. É um desejo de conquistar aquela plateia, de seduzir aquele grupo?

A fama precede-nos. Quando se chega a um sítio as pessoas sabem quem sou e estão à espera que faça exactamente aquilo.

 

E passa a ser o boneco de si mesmo.

Não me sinto um boneco, não sou diferente. Faço porque me apetece ser assim, não é um esforço. É raro ter um dia completo de neura, mas nessa altura não falo e tenho mau feitio.

 

Voltando aos 20 anos. Começou logo a ter sucesso? Isso fez-lhe bem?

Fiz sucesso aos 20, mas também fiz uma tarimba longa. Aprendi com os melhores, lentamente. Não havia aquela coisa do viu, chegou e venceu. Chegaste, viste, e aguenta aí que depois vencerás. Estive anos a fazer papéis de quatro frases. Só comecei a ser muito conhecido em 1975, 76.

 

Com o “Senhor feliz, senhor contente”?

Sim. E comecei nos anos 60.

 

Que vida era a sua nesses anos de transição, de amadurecimento?

No Conservatório inventei um sistema engraçado. Dormia até ao meio-dia, ia para o Conservatório, depois ia à faculdade, deitava-me às seis da tarde e levantava-me à meia-noite. Fiz anos seguidos esta vida. No teatro fiz uma vida muito desregrada, deitava-me às cinco, seis da manhã. Começo a fazer televisão e cinema, e inverto a minha vida aos 40 e tal anos. Quando construí o estúdio [da NBP] tinha que estar lá muito cedo; nesse momento acordo às cinco e meia da manhã, todos os dias. É assim há muitos anos. Às 11 horas da noite estou a morrer de sono.

 

Nesses anos, bebia?

Muito, tudo. Fazia parte. E depois dava as cenas de pancada. Tudo estava ligado. Deixei de beber quando percebi que estava a ficar um bocadinho dependente da bebida – dependências, não. Comecei a cortar, e aos 50 anos cortei completamente. Bebo de vez em quando um copo de vinho.

 

Já era muito bem sucedido junto das mulheres?

Era. [risos] Mas até aos 16, 17 anos era tímido. Depois é que isso começa. Raramente dei o primeiro passo sem ter a certeza de que ia acontecer. Por orgulho – não queria ser rejeitado.

 

Se tivesse ficado no Alentejo, na sua condição social, o natural seria que a iniciação sexual fosse feita com uma empregada.

E foi. Tinha 13 ou 14 e já estava em Lisboa. Tudo bate certo na vida das pessoas. Não sabemos descodificar os sinais mas eles estão lá.

 

Não é surpreendente que trate a sua mulher por você. Bate certo com o que está para trás. É uma forma de relação, é uma música que se adquire e que depois se reproduz.

Claro que sim. [A mulher põe a mesa para o almoço na sala contígua] Trato-a muitas vezes por você, Mafalda. Gosta de me tratar a mim por você, e quer que eu a trate por tu. Mas isso tem uma razão de ser: conhecia-a quando ela tinha 12 anos.

 

Que idade tem a Mafalda?

Tem 42. Sou amigo do pai e da mãe dela. Ela habituou-se a tratar-me por Niquinho. Comprava-lhe gelados!

 

Há aí alguma incestuosidade...

Se calhar há. Fui aos dois casamentos dela, como convidado. O pai da Mafalda tem menos quatro anos do que eu e lembro-me perfeitamente de ele ter dito que tinha tido uma filha.

 

Porque é que tem sempre mulheres muito mais novas?

Não faço a mínima ideia. Nem sempre foi assim. [A minha primeira mulher] era um ano mais velha. As outras: algumas não eram muito mais novas, mas eram mais novas, sim.

 

Elixir da juventude?

Bem no fundo existe isso, também.

 

É uma resistência à velhice?

Às vezes tenho uma grande dificuldade de comunicação com pessoas da minha idade. Temos maneiras diferentes de pensar. 

 

Teve filhos com quase 50 anos. Não há prendimento maior do que os filhos. Foi por isso?

Nunca fiz nada para ter ou não ter filhos. Não foi planeado. Um dia apareceram e foram muito bem-vindas. Vivemos muito perto, elas entram e saem muito. A Mariana está a viver comigo, já fez 18 anos. A Constança está em casa da mãe, mas não estamos distantes nunca. Não há obrigatoriedades, os afectos são voluntários.

 

Não quis constituir família e ter a família tradicional, reproduzindo a sua família de origem?

Mas quis. Tive vários casamentos e consequentes divórcios. Sempre quis ter uma relação estável e boa. Não aconteceu por vários motivos, normalmente por minha causa. Sempre quis ter aquilo que tenho agora: uma família estruturada. Tenho muito o sentido da família, o sítio onde me sinto melhor é a minha casa.

 

Antes de 1965, antes do sucesso: estava a ganhar tarimba para ser o quê?

Para continuar a ser actor. Para chegar onde estavam aqueles que naquele momento trabalhavam comigo, a Laura Alves, o Raul [Solnado], o Ribeirinho. A Laura foi uma grande amiga e professora (os cursos ensinam pouco). Representar é uma coisa que me dá prazer. Viver outra vida dá-me prazer.

 

Como é que aparece o fundador da NBP, o realizador e actor principal da Vila Faia? Habituámo-nos a vê-lo como um líder. Foi uma determinação sua ou aconteceu?

As lideranças têm de ser reconhecidas pelos outros. Não é líder quem quer, mas quem os outros elegem como líder. Adoro começar projectos. Não quer dizer que um ano depois já não esteja farto. Na NBP éramos três sócios, em partes iguais, mas dois eram patrões e eu era o chefe. 

 

É mais chefe que patrão?

Não sei ser patrão. Ou sei, mas um patrão pouco rentável para a empresa.

 

É verdade que tem uma total incapacidade para lidar com dinheiro? Como é que nunca aprendeu isso?

Completamente. Vem tudo nos códigos genéticos: o meu avô perdeu uma fortuna da mesma maneira que perdi outra.

 

Percebeu a replicação desse quadro quando estava a passar por ele?

Quando estava iminente pensei nisso. A certa altura tornou-se inevitável. Quis lutar mas já não pude, já não tinha armas. E foi o que aconteceu com o meu avô. Mas ele nem tentou lutar, porque o desgosto da traição foi tremendo. Quando tudo aconteceu, durante muito tempo o que mais me magoava era ter sido atraiçoado por uma pessoa em quem confiava. Era quase mais importante do que o resto.

 

O que é que aprendeu?

Não aprendi, solidifiquei a minha convicção de que, infelizmente, muitas vezes, o ser humano não é fiável. E temos de usar a cabeça – a maior parte do tempo uso o coração. Até quando trabalho, sou mais coração do que cabeça. Sou um actor intuitivo. E quando dirijo não sou um realizador de estudo.

 

Que parte disso que viveu usa enquanto material de trabalho? Um actor é as suas emoções, a sua vida. É um cliché ou é verdade?

Eu sou. Um actor pode ser bom ou mau sendo cerebral ou emotivo. Quando estou a dirigir, se um actor me dá aquilo que quero, se me está a transmitir uma emoção, se me está a contar uma história, não quero saber como chegou a isso. Só conta que ele me emocione, me surpreenda. Quem me disse isto foi o Ribeirinho. Tinha péssimo feitio, mas tinha um relacionamento espantoso com ele. Ceávamos muitas vezes juntos. Tive o prazer e a honra de ser dirigido por ele na primeira peça que fiz no Conservatório. Mais tarde fiz uma peça dirigida e escrita por ele, fiz peças com ele, escrevi revista com ele e depois dirigi-o numa peça. Todos o tratavam por Mestre Ribeiro, eu tratava-o por Mestre Chico.

 

Neste espectáculo comemorativo dos seus 50 anos de carreira, vai evocar os seus personagens mais famosos? A sua vida? Vai fazer um exercício de auto-ironia?

Mais a minha vida e a auto-ironia. Não é uma história da minha vida, não é uma coisa lamecha e saudosista. Aparecem imagens para brincar com o que fiz. Depois é um olhar sobre a minha disfunção total com tudo o que é tecnologia, o choque geracional, o gozo com os papéis das novelas, a política.

 

É verdade que diz, sobre o que faz em televisão: “Para fazer é um preço, para ver é outro”?

Digo isso sempre! Digo isso na cara dos gajos que escreveram a novela. “Para ver, tinham que me pagar o dobro!”.

 

Porque é mau? Porque não gosta de se ver?

Não. Mesmo um belíssimo filme, tenho muita dificuldade em ver todo, encontro sempre defeitos. Vejo se houver uma questão técnica. Sou muito auto-crítico. Esse sentido onanístico não faz sentido para mim.

 

Quando olha para si enquanto João Godunha, o seu personagem na novela Vila Faia, não tem a noção de que está a olhar para uma pessoa diferente?

Tenho. Fiz muita coisa, e não me lembro de metade. Não fazia a mínima ideia de que tinha feito 50 filmes. Há dias telefonaram-me da RTP a dizer que o levantamento das minhas coisas era uma confusão, não tinham chegado a metade e já tinham 70 páginas! 

 

Foi fazer, fazer, fazer porque era preciso ganhar dinheiro?

Sim. Como faço hoje, porque é preciso ganhar dinheiro. Mas fiz sempre tudo com a maior alegria, boa disposição e empenho.

 

Mesmo quando não é bom? Consegue extrair alegria daí?

Sim, sim. Mesmo quando não são tão boas, tenho a obrigação de fazer o meu melhor para que as pessoas gostem. Não sou um artista que possa viver só da arte, tenho de viver do público. Não posso dar-me ao luxo de fazer uma coisa de que o público não goste.

 

Quando realizou, pegou num livro do Dinis Machado, melhor, do Dennis McShade.

Exactamente. Uma das personagens chama-se McShade, em homenagem a ele, ao meu querido Dinis. Vou fazer outro filme em Setembro e tenho mais dois para fazer. Gosto muito de realizar. Dei entrevistas ao Século Ilustrado e à Flama em que dizia que o que queria realmente era o cinema.

 

Tem um personagem preferido?

Não. É como perguntar a um pai de que filho é que gosta mais. De todos extraí qualquer coisa de bom, que me agradou e deixou saudades. Às vezes alguma coisa era má, mas a malta com quem trabalhei era óptima, ou o catering era muito bom. [riso]. Quando estou a dirigir escolho o catering. Não sou comilão, mas chateia-me comer mal.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2010

 

 

 

Beatriz Batarda e Margarida Cardoso

07.03.16

O filme chama-se Yvone Kane, mas fala-se menos da heroína marxista que mobilizou a esperança, do mistério em torno do seu desaparecimento, do que de uma mãe e uma filha, Sara e Rita. É no corpo de Rita que Beatriz Batarda regressa a África, dirigida por Margarida Cardoso. A personagem torna ao lugar de onde provém, como uma figura incorpórea. Deambula atrás da história concreta de Yvone, desliza para dentro da sua história. Uma e outra são como lugares mal situados, para usar (e transformar) um verso de Daniel Faria.

Um filme a estrear é o pretexto para falar com uma actriz e uma realizadora que têm uma relação de amizade e um entendimento profissional precioso. A história de Beatriz Batarda e Margarida Cardoso começa em 1995, ou por aí, quando Beatriz era novinha e rosnava para um cão na curta-metragem Dois Dragões. Fizeram juntas A Costa dos Murmúrios em 2004 e agora Yvone Kane. O filme, rodado em 2012, com estreia marcada para 26 de Fevereiro, transporta-nos novamente para África, tem um recorte temporal impreciso, instala-nos no território habitual dos filmes de Margarida Cardoso. Numa estranheza em relação ao lugar onde estamos. Na interrogação, na procura, na identidade, na comunicação e na impossibilidade da comunicação.

Um filme a estrear é o pretexto para duas pessoas se encontrarem depois de muito tempo sem se verem, para a alegria. Beatriz Batarda sugere para local a Déjà Lu, a livraria solidária que abre no último dia de Fevereiro, na cidadela de Cascais. É uma das madrinhas da livraria. É um espaço que parece uma sala das nossas casas, com livros a serem arrumados, dois cadeirões junto à janela, um tapete de cores quentes. Não está ainda ninguém, a não ser a mentora do projecto, que trabalha na sala ao lado, e dois homens que finalizam as obras e usam a lixa sistematicamente.

Portanto, casa. O encontro é aí, numa sala que parece casa. De certa maneira, falando de África, da extensão infinita, do território, de quem somos, do fio intrincado das relações, de como suturamos as nossas feridas, não saímos de casa. Da casa que é a nossa cabeça e das coisas que verdadeiramente a ocupam.

Um filme a estrear é o pretexto para falarmos da vida que segue o seu curso, como um rio que tem força própria, que não há como parar. A não ser nos filmes. Onde se sustem a respiração para fazer uma introspecção necessária.  

Mas isto é a conversa séria da entrevista. Antes, durante as fotografias, o tom era mais brincalhão, mais leve, mais quotidiano. Quando começou a entrevista, baixou uma seriedade, uma gravidade, sobretudo em Beatriz. Foi como se entrássemos (entrassem) em cena. Era talvez uma forma de dizer que, falando de um filme, aquilo de que estamos a falar é da vida. Mais sério que isso não há.

  

(Querem ficar uma ao lado da outra, e não de esquina, como agora estão? Desse modo a Beatriz não está em contraluz, e podem ver-se.

Beatriz Batarda – [em tom brincalhão] Ela não precisa de me ver. Ela lê-me.)

 

Começamos, então. Pelo sentimento de pertença. A personagem interpretada pela Beatriz no Yvone Kane parece que não é de lugar nenhum. O sentido de pertença é, aliás, tema central nos filmes da Margarida.

Beatriz – O não sítio, o não pertencer a lado nenhum é o grande ponto comum entre mim e a Margarida. Tem a ver com a nossa história. No meu caso, resulta de ser de famílias misturadas, estrangeira e portuguesa. De ter tido um ensino em escolas estrangeiras. A minha cultura familiar é francófona; depois estive anos a viver em Inglaterra. Não tive propriamente um crescimento tradicional, português, católico. Nada disso. A origem é judaica.

 

Não tem memórias de uma menina bem comportada (para recorrer ao título de Simone de Beauvoir)? Bem comportada segundo os cânones do país, de um meio social, de um tempo.

Beatriz – Não é a questão de ser bem comportada ou mal comportada. É ter crescido com a sensação – embora me sinta muito bem em Portugal – de não ser propriamente portuguesa. De ser uma estrangeira em Portugal. Reconheço isto na relação que a Margarida tem com África.

Margarida – Fomos viver para África, onde estava o meu pai. Era militar da Força Aérea. Eu, a minha mãe, a minha irmã e a minha avó. Um grupo de mulheres. Começámos por ir para a Beira em 1966. A partir daí e até 1975 andámos sempre a mudar de lugar. Sempre me senti... não era só deslocada fisicamente, mas também nas referências culturais, em tudo. Colateralmente, sentia o vazio da minha mãe. Mais do que a ausência do meu pai. O meu pai estava muito ausente. Sentia a dificuldade da minha mãe de se ligar ao que quer que fosse.

 

O que quer dizer quando fala do vazio da sua mãe?

Margarida – Era a minha mãe afastada da família, e não termos nenhum lugar. Nem fisicamente. Não tínhamos muitos amigos. Quando voltei para Portugal, era o PREC, as convulsões. Mesmo dentro das famílias, toda a gente passava o tempo a discutir. Senti uma grande dificuldade em reconstituir – ainda hoje – essa história. Quando pergunto aos meus pais onde é que fiz a primeira classe, sabem algumas coisas, mas não tudo.

Beatriz – É um comboio que não tinhas apanhado.

 

Não consegue tracejar a sua infância, mesmo em coisas tão simples como o lugar onde aprendeu a ler?

Margarida – Nem tudo. Sobretudo as coisas mais específicas (em que escola foi?), a minha mãe já não se lembra.

 

Como a Beatriz e os seus filmes, está a falar de não ser de um lugar e de não saber bem de onde se é.

Margarida – Sempre me liguei muito a esta questão identitária. Não me sinto muito portuguesa, e sinto-me muito, muito portuguesa.

Beatriz – É como se estivéssemos sempre divididos, não é? E tivéssemos uma identidade própria.

Margarida – Sim. Mas muita gente compreende isto. No fundo, pode vir da forma como sentimos. Em relação ao Yvone Kane, há muita gente que se revê no filme, mesmo que o filme não seja claramente isso ou só isso, por causa dessa vertente identitária.

Beatriz – Quando perguntamos o que é a identidade... Para explicar o que quero dizer: uma mãe, de repente os filhos saem de casa, voam, e o cuidar deles é que era. A função devolve uma identidade. A nacionalidade (também) devolve uma identidade. Coisas parvas como: nunca comi bacalhau no Natal.

 

Comia o quê?

Beatriz – O nosso Natal, ainda hoje, é: sopa de cebola com queijo gratinado e torradinhas, à francesa. O prato a seguir é de herança judaica, vem do lado asquenazi: lombos de salmão com blinis. Às vezes fazíamos fondue ou raclette.

 

A sua mãe falava consigo em português ou francês? A ascendência francesa é do lado materno.

Beatriz – Depende. No dia a dia, em português. Nas ternuras ou na reprimenda, em francês. Portanto, nas coisas de intimidade, de grande intimidade, em francês. A minha avó, que era francesa, teve uma presença muito forte na minha vida. Até morrer. Quando nasci (nasci em Londres), houve um problema de saúde e tive que vir para Portugal sem a minha mãe, que ficou no hospital em Inglaterra. Fiquei aos cuidados da minha avó, vários meses.

Margarida – Eu também não comia bacalhau! Em Moçambique comia camarões e caranguejo. Não era só no Natal. Nos últimos anos em que estivemos lá, não havia mais nada.

Beatriz – E galinha?

Margarida – Galinha nem tanto.

 

Se perguntamos pela identidade, o que é que lhe ocorre imediatamente? Que definição tem para isso?

Beatriz – Não se resume a uma coisa culinária! [riso]

 

Por isso perguntei pela língua em que falava com a sua mãe. É fundamental a língua em que criamos um laço.

Margarida – Muitas vezes me digo: sei o que é ser português. Tenho a impressão que reconheço um português em qualquer lado. Mas tenho muitas dúvidas. Será que sei? Onde ancoro a minha identidade é nessa coisa da procura.

Beatriz – Também não sei o que é ser português. Por exemplo, no Noite Escura [de João Canijo], tive um papel muito português. Mas podia não ser português.

 

(Era Carla Boca de Aço, porque usava um aparelho nos dentes, de metal. Interpretava a filha dos proprietários de um bar de alterne. O filme partia do caso Mea Culpa.

Margarida – Tivemos um encontro nessa altura, no café Monumental. Estava à espera da Beatriz e vejo uma rapariga morena, com aparelho, a rir-se muito para mim. Disfarcei imenso. [gargalhada] Não a reconheci.)

Beatriz – Era um universo marginal. Agora vou fazer um papel de uma portuguesa de um bairro da margem sul. Estou aterrorizada. É toda uma cultura que [desconheço]. Não é por ser classe operária. Na Noite Escura ficou desmistificado o pavor de não conseguir sair do papel da burguesa.

 

Quando é que se começaram a questionar como não pertencentes a este espaço hegemónico, português, com determinados traços que se convencionou atribuir ao ser português?

Beatriz – Eu, foi quando comecei a representar. E a circular no meio artístico. Não havia pontes de ligação. Fui criando pontes de ligação. Com muita necessidade de me integrar, de criar referências de identificação. Passei por um período de algum pudor... Não era ter vergonha de ser quem era, nada disso. Mas tive muita preocupação em neutralizar o meu lado mais beto. Comecei a vestir-me de uma forma mais andrajosa. Há vinte anos era assim.

Margarida – A consciência de não pertença sempre me perseguiu. E uma certa nostalgia. Comecei a ter uma consciência forte disso, não exactamente nos temas dos filmes, mas na posição em que estou a olhar para as coisas. Sentindo-me sempre um pouco de fora. Nos documentários e na ficção. Na ficção, sem querer, os personagens que crio são todos assim. São pessoas que andam à procura de alguma coisa. Ou que estão completamente perdidos num território. Muitas vezes rejeitados por um território interior e exterior. Acabam todos, também, por ter um lado etéreo. Não consigo dar uma consistência muito realista aos personagens – porque não me interessa.

 

São como que fantasmas, todos?

Beatriz – Poéticos?

Margarida – Fantasmas. Porque sinto assim.

Beatriz – Sente-se muito isso neste filme porque o tema é à roda do luto e da perda. O contexto é muito pantanoso. O contexto visual e o contexto emocional. N’A Costa dos Murmúrios [2004], que é inspirado no livro da Lídia Jorge mas escrito pela Margarida, as personagens são igualmente etéreas. Não as acho fantasmagóricas. Não são almas penadas. São seres elevados. São seres que não são do concreto. A Rita, [minha personagem] neste filme, a frustração que se gera entre ela e o João [marido] passa por isso. Há uma ilusão de vida concreta, de vida construída, com o marido, a filha. Com a perda da miúda, essa ilusão desfaz-se. O choque da Rita é esse: é confrontar-se com a incapacidade de viver no concreto.

Margarida – O personagem da Beatriz é muito difícil neste filme. É um personagem que procura, que se desloca. Um pouco como era a Evita n’ A Costa dos Murmúrios.

Beatriz – Mas esse filme tinha mecanismos de acção. Este é mais depurado.

Margarida – Até a geografia e o tempo eram mais concretos n’ A Costa dos Murmúrios. Este filme, Yvone Kane, não tem uma identificação territorial precisa, tem um lado espectral...

 

Mas podemos tentar adivinhar. E projectamos, pela sua relação com Moçambique, as coordenadas. Vemos a personagem da mãe da Rita (a brasileira Irene Ravache), que ficou lá depois da independência e que tem cicatrizes desse período; vemos a Rita, que veio com o irmão para Portugal, e percebemos como são figuras que vagueiam.

Beatriz – Mas muito ricas. Cheias de camadas e de desencontros. E de feridas silenciosas. É um manancial. Não sei se conseguimos passar isso... Que eu senti, senti! [riso] Que se pensou, falou, fez escolhas nesse sentido, fez. As escolhas foram sempre a fugir das cenaças, das interjeições, a fugir disso como o diabo foge da cruz.

 

É um filme muito interior, contido, tenso. Com tudo a carburar cá dentro. Quando usou a palavra pantanoso, lembrei-me das roupas que mãe e filha usam e que marcam um forte contraste com as roupas naturalistas e coloridas que os africanos usam. As suas são de cores desbotadas, baças, pantanosas.

Beatriz – Há uma evolução na cor. A Rita vai ficando cada vez mais clara. Começa por ser cinzenta e acaba de branco.

Margarida – Foi uma coisa deliberada, claro. São sempre tons pastel. O não ter padrões. E roupa em várias camadas.

Beatriz – Camadas a esconder o corpo e a proteger. Só há um momento em que as cores de mãe e filha se aproximam: é quando a Rita se apercebe de que a mãe está doente. Ficam as duas com tons terra.

 

A relação mãe-filha é central no filme. Não percebi ainda bem o que queria dizer, no princípio da entrevista, quando falava do vazio da sua mãe.

Margarida – Quando falo do vazio da minha mãe falo de alguém que é completamente deslocada do meio, da família, e que vai parar a um sítio que não reconhece. E de eu ter vivido sempre muito próxima desse enorme desgosto. É mais essa dor que me marca, [que me transforma] numa pessoa que tem de tomar conta ou estar atenta. O personagem da Sara [a mãe], para mim: uma das coisas importantes é que houvesse um muro, que fosse uma pessoa que tivesse construído um muro contra várias coisas. É uma pessoa fria.

 

E arrogante. A freira responsável pelo hospital onde Sara trabalha como médica fala-lhe com franqueza dessa arrogância. Sara sabe que está doente e vai morrer, procura um pouco de paz. Viveu dedicada a uma causa. Outra personagem diz que ela era “Marx, Marx, Marx”.

Margarida – Já me perguntaram se eu achava que as pessoas que tinham lutado por ideologias obrigatoriamente rejeitavam a família, o lado mais íntimo... Acho que sim. Pelo menos no retrato que queria dar da Sara, que funciona como uma metáfora de um tempo, é assim. Era um tempo em que se acreditava. Hoje rimo-nos um bocado disso, mas se pensarmos bem essa foi a causa de muitos traumas e de coisas não tão boas. E houve uma apagar [da dimensão pessoal]. A Sara fez o melhor que pôde. [para Beatriz] Como o teu personagem diz: “Não há culpa, não há nada a fazer, foi assim”.

Beatriz – Essas opções deixam sequelas. Fez-se o melhor que se pôde, mas agora é preciso viver com o que fica.

Margarida – O filme é trespassado por essa ideia da não-comunicação, da dificuldade de os vários mundos se encontrarem. Isso passa-se entre os negros e os brancos, entre a mãe e a filha. Há uma enorme incompreensão e uma dificuldade em juntar coisas que não se podem juntar. Há coisas que nasceram de um tal absurdo que não se podem juntar. Nem vale a pena lutar. Não se vai reparar o que é irreparável.

 

Outra questão: como é que se vive no absurdo, no absurdo que resulta do absurdo.

Margarida – É difícil, mas acho que todos vivemos assim. Temos sempre perguntas a que não conseguimos responder. A única coisa é que conseguimos disfarçar. Arranjar um outro invólucro. A Sara diz [ao motorista-ajudante]: “Nunca fui a tua casa”. Ou seja, há mundos que não se cruzam. Ali, no universo que o filme retrata, onde a acção decorre, é tudo mais grave. Escolhi um território onde vejo isto em todo o lado. Vejo nas marcas arquitectónicas, vejo nas rachas, nas coisas em ruína. Tudo correu mal.

 

No meio de tudo que corre mal, há o milagre. O milagre de termos vontade de viver o dia seguinte, de nos encantarmos.

Margarida – Há uma certa luz no fim do filme. Disseram-me que é deprimente acabar um filme com uma cena em que enterram uma piscina.

 

É uma piscina de um hotel que dizem estar assombrada. Então, cobrem-na de areia.

Margarida – É uma forma de enterrar simbolicamente o passado.

Beatriz – Esse é que é o grande milagre. Fazer um “Querido, mudei a piscina”, tapar pequenos buracos, a plástica, é a grande mentira. O final do filme é muito mais redentor por ser tão honesto. Na vida tapamos, escondemos os nossos tiros. Os tiros da parede da piscina, os nossos buracos, feridas. E vivemos com aquilo. Ou reinventamos aquele espaço para ser outra coisa. [Enterrar a piscina] é reinventar aquele espaço para ser outra coisa. Não é fingir que não aconteceu nada. É ao contrário. É reconhecer que aquele sítio não pode voltar a ser o que era.

Margarida – É a mesma coisa que ter a coragem de deitar abaixo o que já não nos serve. Mas há um pormenor: o último plano do filme é a actriz sul africana, a Susan, a dizer-te adeus.

Beatriz – É um modo de dizer: até à vista. É a violência, a crueldade de constatar que aconteça o que acontecer, de facto, a vida continua. E esta violência, num filme da Margarida, é dita como se não fosse nada.

Margarida – A mãe continua a ver televisão [depois da conversa mais difícil que têm].

Beatriz – Vê televisão. Não desvia os olhos. Esta subtileza, esta forma de violência...

 

É uma violência surda.

Margarida – Só me interesso por isso. Só consigo interessar-me por esse eco.

Beatriz – É a Margarida a dizer-nos: caia o mundo, conte aqui a história mais desgraçada, e a vida segue. No filme, a Margarida desafia o tempo de um modo que a vida não permite – na extensão do luto. Os vários lutos. O luto da filha, o luto da nação, o luto da infância...

Margarida – O luto de não pertencer.

Beatriz – Desafia a vida – para que ela pare.

 

Este filme foi feito depois do seu luto, pela morte do seu marido, o pianista Bernardo Sassetti?

Beatriz – [abana com a cabeça]

 

Uma pessoa muda. A cara muda. Uma vez disse-me que percebeu que havia coisas que não podia representar em inglês, porque a ressonância emocional de mother e mãe é diferente. Representar um luto antes ou depois de o viver...

Beatriz – Já tinha vivido perdas. Nomeadamente do meu padrasto, que é uma pessoa de quem nunca falo. Foi o que me levou a fazer o primeiro filme com a Margarida, A Costa dos Murmúrios. Ele era militar e veio de África paraplégico. A minha mãe e ele apaixonaram-se e casaram-se quando eu tinha seis anos. Aquele universo de África e da guerra colonial, os crimes de guerra, tendo ele morrido não há muitos anos, foi uma coisa que buliu muito comigo. Vi imensos documentários sobre a guerra, fizemos uma pesquisa extensa. Se calhar, também por aí a Margarida e eu criámos grande empatia.

Essa perda, a perda de um ente querido, era uma coisa real e foi muito marcante. Eu tinha 20 anos. Na construção da perda da Rita não fui nunca fazer a fantasia da perda de uma das minhas filhas. Jamais!

 

Explique porquê.

Beatriz – Não era possível. Nem tinha qualquer interesse. Porque passava a ser a minha dor e não a dor do personagem. Para todos os efeitos eu quero fazer o personagem que a Margarida escreveu. Criei uma fantasia paralela, a fantasia de uma perda que corresponde à perda da história, para servir a Margarida e o filme da melhor maneira possível. [pequena pausa] Queres falar sobre o que aconteceu?

Margarida – Sim. Quando voltámos de África, ainda não tínhamos filmado o início do filme. É a altura em que acontece o acidente.

 

O afogamento da criança, com que o filme começa.

Margarida – Voltámos e aconteceu a morte do Bernardo [Maio 2012]. Tive que esperar um bocadinho. A Beatriz não se sentia capaz de fazer a cena. Tive que adaptar. O facto de aquela cena ter agora aquela forma, e não a forma que eu tinha imaginado, tem para mim um grande significado.

 

Como é que era?

Margarida – Tinha coisas mais explícitas. A Beatriz ainda tentava salvar a criança. Nadava, nadava. Não conseguia agarrá-la e por fim desistia. Tomada pelo cansaço, deixava-se ir. Para mim, isso funcionava como [imagem] da culpa de quem sobrevive. Ficou assim, e é impossível distanciar o filme de tudo o que se passou, de todas as relações que tivemos, antes, depois, durante.

Beatriz – Quando filmámos a Costa eu estava já casada com o Bernardo. O Bernardo fez a música para a Costa. Foi uma coisa muito íntima e circular. Neste filme esse círculo iria repetir-se.

Margarida – Por isso optei por não ter música no Yvone Kane. Tudo o que se passou na rodagem, a forma como as coisas aparecem ali materializadas, acabam por dar um tom ao filme. Está lá a nossa empatia. Um personagem como a Rita podia ser feito por ti, mas dificilmente podia ser feito – na minha cabeça – por outra pessoa. Esta relação de trabalho é particular, distinta.

 

Dirige muito?

Margarida – Os actores moçambicanos vão bem.

Beatriz – A Margarida obriga a repetir 50 vezes!

Margarida – Não faço trabalho psicológico com os actores. Sou alérgica a psicologismos. Quanto mais do zero se partir, melhor.

Beatriz – O psicologismo na representação é uma espécie de redução. É quando se começa a catalogar. “Ela comporta-se assim porque aconteceu assado.” Quando o actor começa a perguntar-se: porque é que vou daqui para ali?, é uma forma de, enquanto actor, se esquecer e que está a ser observado por uma câmara, por um público; por outro lado, reduz muito as possibilidades, o lado literário da representação. A Margarida às vezes cansa os actores que são mais metódicos. Cansa-os com a repetição.

Margarida – Até eles desistirem! Às vezes basta diminuir a fisicalidade.

Beatriz – E ficam limpos. Procura um registo depurado.

Margarida – A Irene, na apresentação do filme no Brasil, disse: “Aqui está uma directora que, na cena mais emocional do filme, foi capaz de esperar uma hora e meia para que as actrizes deixassem de chorar e [fosse possível] filmar de novo”! [riso]

 

Ficavam tanto tempo a chorar? Como assim?

Beatriz – Era tão difícil fazer aquilo. Acabávamos as duas em lágrimas. Estávamos a filmar há bastante tempo naquele gelo, naquela contenção emocional. Mas eu e a Irene somos as duas umas moles. Umas sentimentalonas. E ela é um doce. Filmámos aquela cena na cama em que ela se aninha na mãe, a mãe já doente. Há uma referência primeira e única à menina, que a avó nunca conheceu. A Rita pergunta: “Queres ver a fotografia?” “Não”. Bem, só de contar já me [emociono].

 

É um diálogo muito duro e impressionante. A avó diz que se não vir a fotografia da neta, ela não existe.

Beatriz – Eram duas frases. Acabava aquilo e desabava. Ficava com a cara às manchas. Não havia maquilhagem para disfarçar...

Margarida – Era tudo naturalista.

Beatriz – E a Margarida dizia [tom manso, quase surdo]: “Outra vez”. A Irene: “Mas como é que uma pessoa pode dizer estas coisas sem se comover?”. E a Margarida: “Não comove. Repete”.

 

Não falou da sua relação mãe-filha, ao contrário da Margarida.

Beatriz – Não usei os meus paralelismos pessoais porque a minha relação com a minha mãe não tem nada a ver com aquilo.

 

A sua mãe é psicanalista e este filme tem uma abordagem muito psicanalítica das relações. E também nos seus temas: as ruínas, o escavar, as várias camadas.

Beatriz – A minha mãe não é psicanalista, é terapeuta. Em relação ao filme, era tão claro para mim o que a Margarida queria daquela relação... O abandono em nome dos ideais. O amor altruísta da Sara que pensa: vou mandar os meus filhos para Portugal para terem uma vida melhor, mas eu não consigo sair porque já faço parte desta terra, das árvores e das raízes. Do ponto de vista de um filho, isto é um abandono. Do ponto de vista de um pai ou de uma mãe, isto é um gesto de amor. E é aí que está o desencontro.

Margarida – O que se passa numa relação mãe-filha... Nenhuma mãe faz nada bem, tudo bem.

Beatriz – Os filhos querem que elas sejam mães e as mães querem continuar a ser pessoas. As mães são mais do que mães: são pessoas.

Margarida – Esta relação funciona como uma metáfora das questões relacionais. Nunca se consegue preencher aquilo que os outros querem. É impossível! E tem que se viver com isso.

 

Tem que ver a desilusão, com a gestão da ilusão-desilusão?

Beatriz – Não sei se tem a ver com a desilusão. Acho que tem a ver com a aprendizagem de aceitar que se está sempre só. Só somos adultos (e às vezes isso não acontece, na maior parte dos casos isso nunca acontece) quando se compreende isto. Queremos que os nossos pais vivam para nós. A grande descoberta, que a Sara já tinha descoberto e a Rita só faz quando volta a África, é que estamos sempre sós. Por isso é que há perdão, também, da filha em relação à mãe.

 

Yvone Kane é uma guerrilheira transformada em heroína. Todos precisamos de heróis. É mais fácil encontrar um herói no mundo lá fora, político, e não alguém que está em casa.

Beatriz – Os de casa, desmistificamos mais cedo.

Margarida – O Sérgio, o personagem do jovem namorado da Yvone (que era uma heroína para quem o Estado tinha construído uma história, cristalizada), diz uma coisa à personagem da Beatriz. Ela vai à procura da verdade sobre a Yvone. Alguém lhe pergunta: “Está a escrever essa história para quem?”, e ela diz: “Para mim”. Todo o filme é isto: uma procura que não se sabe especificamente para que é...

 

É uma forma de andar para a frente?

Margarida – É a sobrevivência. O que o Sérgio diz: “Sabes que quando a Yvone morreu, eu atravessava um vale. E ia tão focado na minha sobrevivência que não senti um sinal, nada que me indicasse que ela estava a morrer. A vida é muito estranha, não é?”

O que é estranho é que todos vivemos com esta magia da vida, com aquilo que é criado pelo amor, pela amizade, mas no momento em que o outro desaparece... Essa ilusão [de proximidade, de sentirmos o outro dentro de nós] não existe. Estamos fechados dentro de nós e não vamos sentir nenhum sinal. Mas não quer dizer que não seja isso que nos faz viver.

Beatriz – Perguntava se o amadurecimento corresponde à aceitação do desencanto. Acho que não. O amadurecimento é perceber que não somos omnipotentes e que os verdadeiros heróis são aqueles que não são mitificados. São aqueles que são heróis e amados por serem como são. Uma coisa é mitificar as pessoas, outra é aceitar a vida como ela é. Absurda. Sem lógica. Não ficcionada.

 

Como é que se conheceram?

Margarida – Conhecemo-nos através de uma pessoa que já cá não está, a Rosi Burguete. Era uma produtora muito amiga da tua mãe. A Beatriz ainda era muito novinha. Estavas em Inglaterra e eu precisava de uma jovem actriz. Fizemos uma curta metragem antes d’ A Costa. Foi em 1995 ou 96. Tinhas 18 anos.

Beatriz – Então ainda não tinha ido para Londres. Fui em 1997.

Margarida – Tinhas o cabelo comprido e numa das vezes, quando voltaste, estava muito curtinho. Na curta estavas a rosnar para um cão. O cão olhava para ti e tu rosnavas!

  

Publicado originalmente no Público em 2015

 

Rui Moreira

04.03.16

É ainda o “jovem presidente da Associação Comercial do Porto”. É um homem rico que viveu com emoção e aflição não ter tido dinheiro no período revolucionário. É aquele que aprendeu a viver com frugalidade. É aquele que vive numa casa maravilhosa, Alvarez num canto, Julião Sarmento no outro, a piscina e os cães lá fora. É um menino bem a quem a vida correu muito bem.

Licenciou-se em Gestão de Empresas na Universidade de Greenwich. Foi o melhor do curso. Aos vinte e sete anos era um armador que não queria ser como Onassis. Queria que todos se tratassem por tu no escritório. O pai dizia-lhe, às vezes, “O menino está a desapontar-me”. Ele diz que tinha com ele uma relação de intimidade e cumplicidade, que são palavras raras, mais do que parece, numa relação pai/filho. Não desapontar o pai foi, durante anos, o seu propósito.

Depois adoeceu e tudo mudou. Um menino bem a quem a vida correu muito bem? Depende da perspectiva. Safou-se – como ele diz. Usa palavras caras e outras como safar-se com grande à vontade. À vontade social. E com o à vontade de quem lê muito.

Foi campeão de vela. Do seu currículo fazem parte condecorações e confrarias (membro de), clubes de que é sócio. Aparece todas as semanas na televisão a discutir futebol – coisa que, segundo um amigo, o desprestigia. Porque o faz? Ele responde na entrevista. Tem um cargo aqui e outro acolá. É fundador disto e daquilo. Tudo tem a patine do honorífico. Tem o conforto do dinheiro. Uma coisa que muda muito a maneira como se está.

Um menino bem a quem a vida correu. Corre. Uma formação sólida. Uma fortuna sólida há três gerações. Uma tranquilidade de quem está bem na sua pele – que não é fortuna pequena. Um menino que enriqueceu cedo e que decidiu fazer o que se imagina que se faria se saísse a lotaria: viajar, comprar, divertir-se.

Que vida viverá ele a seguir? Rui Moreira, 52 anos, divorciado, dois filhos (que é o que, para começar, consta do CV).   

 

Rui Moreira                                    

fotografia: Miguel Baltazar

 

 

Há na sua casa um lado dandy e gostava de começar por aqui…

Não serei tão dandy quanto o Miguel Veiga, mas se pensar nas pessoas com quem me entendo melhor, e no mundo com que me entendo melhor, é capaz de ser verdade. Há um aspecto vitoriano nisto. É uma forma de coleccionismo: procurar as peças de que se gosta e juntá-las de uma forma um pouco anárquica. Coleccionar coisas, coleccionar afectos. É uma questão estética, que se repercute na maneira como convivemos com outros, como nos ligamos aos outros. 

 

É, como o Miguel Veiga, ainda que pertencendo a diferentes gerações, um protótipo do menino bem do Porto. Como é que foi tendo consciência disto, de ser um homem do Porto?

De facto, sou de uma família tradicional burguesa do Porto – como o Miguel é. Só tive verdadeiramente a noção de ser um homem do Porto depois de ter vivido fora. Na forma como vejo o Porto e como me consigo identificar com um Porto que, se calhar, já não existe. A minha dúvida é se esta cidade de que falamos não é uma cidade imaginária. Fazemos parte de uma geração que acredita que o Porto é liberal, que é uma cidade com protagonismo, contestatária. No final dos anos 70, era mais cosmopolita do que Lisboa; hoje, perdeu cosmopolitismo. Ainda há alguma avant garde no Porto – nota-se nas galerias, na música – mas o traço dominante já não é esse.

 

Conte-me desse Porto vivido pelos seus pais e que passou para si, mais não fosse nas histórias que contavam, nas pessoas com quem se davam.

Havia dois Portos. Um Porto um pouco mais conservador, que a Agustina retrata, o Porto do Paulo Vallada, da Brasileira e da Baixa; e o Porto dos Santos Silva, dos Sá Carneiro. Era um Porto extremamente tolerante, que procurava. Lembro-me de ir ver com a minha avó uma peça de Ionesco no Teatro Experimental com actores nus em palco – o que, nos anos 60, era um pouco surpreendente. Eu na altura não achava surpreendente; hoje, quando revejo o quadro, rebobino o filme, acho extraordinário. Depois houve problemas, a PIDE foi lá, parece que só houve uma sessão.

 

A geração da sua avó é a mesma de Guilhermina Suggia ou da helenista Maria Helena Rocha Pereira – figuras marcantes do Porto.

Ou de uma Helena Sá e Costa, que foi professora de piano do meu pai. O pai do Artur Santos Silva. Eram pessoas muito inovadoras, surpreendentes. É esse Porto que, apesar de escrever sobre ele, não sei se existe.

 

Corre a história que fez fortuna com um negócio que o seu pai lhe passou para as mãos…

Não é verdade. É um mito urbano. O meu pai teve muitos anos um negócio: foi o homem da Molaflex. O meu avô era armador da marinha mercante; tinha uma fortuna sólida, era herdeiro de uma família tradicionalíssima do Porto; tinha estudado nos Estados Unidos e ficou lá. Foi professor na Universidade de Columbia. Veio para Portugal porque o meu bisavô – pai dele – o chamou na altura da Grande Depressão, a seguir a 1929. O meu avô nunca teve grande jeito para o negócio: não gostava, era professor universitário. Mandou o meu pai estudar Gestão para Inglaterra logo a seguir à [Segunda] Guerra, em 44 ou 45.

 

Para o seu avô era claro que o seu pai tinha de estudar lá fora, que essa ponte com o estrangeiro se fazia assim?

Isso foi sempre claro para nós. Quer eu quer os meus irmãos – somos oito – fomos estudar para o estrangeiro, (excepto um). O meu filho mais velho também se licenciou no estrangeiro. No meu caso, fui quase por obrigação, não me apetecia nada ir.

 

Já lá vamos… Estava a contar a história do seu pai e do seu avô.

O meu pai volta em 1948. Era casado com uma senhora alemã que tinha origem judia. Durante a guerra, o meu avô tinha conhecido um senhor, judeu, que ficou em Portugal e que falou com o meu pai: “Eu tenho uma patente, vocês têm meios para a desenvolver”. A patente era de colchões de molas. O negócio do meu pai foi a Molaflex até depois do 25 de Abril; acabou por vendê-lo em meados dos anos 80. Eu, quando vim de Inglaterra, resolvi que não queria trabalhar com o meu pai.

 

Quis fazer o quê?

O meu pai tinha uma pequena empresa de navegação, que tinha sido na origem do meu avô, e que tinha sido praticamente extinta pelo almirante Américo Thomaz, pelo célebre decreto 100. Essa empresa estava adormecida; o meu pai tinha dois sócios, o António Miranda e o João Mexia Alves. Achei que a navegação era uma coisa interessante. Porquê?

 

Era o seu avô.

Porque tinha sido do meu avô. Comprei a posição ao João Mexia Alves. Não herdei nada do meu pai. O meu pai foi meu sócio até morrer. Até eu vender o E.A. Moreira foi sempre meu sócio; tinha 40% da sociedade e manteve 40% até ao fim. Foi sempre um sleepy partner. Continuou com o seu negócio; o grande negócio da Molaflex eram componentes para a indústria automóvel. Eu, ganhei dinheiro na navegação. 

 

Não por acaso, quando regressou de Inglaterra não quis trabalhar com o seu pai e escolheu um negócio que o levava até ao seu avô…

A empresa de navegação tinha o nome do meu avô. Eu tinha seis ou sete anos quando ele morreu. Era uma pessoa muito marcante. Vivíamos todos na mesma casa, como se vivia no Porto: a minha avó, o meu avô, os amigos que por lá passavam, o meu tio, pai, mãe, os irmãos…

 

Onde era a casa?

Onde é o meu escritório, na avenida Montevideu. O meu gabinete é naquele que era o meu quarto de infância. Curioso, não é?

 

Quando é que deu o salto, e deixou de lhe fazer espécie trabalhar num espaço como esse?

Nunca me fez espécie. O meu pai foi preso a seguir ao 11 de Março de 75 – foi daqueles a quem disseram para fugir e que não fugiu, achou que não tinha feito mal nenhum e resolveu ficar. Tínhamos passado para uma casa mais moderna. Vivia lá um tio meu, solteirão. Uma vez fui visitar o pai a Caxias e ele disse: “Têm de montar algum negócio na casa de família senão ela vai ser ocupada”. E como eu estava a montar a navegação nessa altura…, foi uma maneira de a casa não ser ocupada. Durante anos foi estranho: na casa convivia o meu negócio, que eu geria, com uma data de gente nova, cabeluda, com camisas Levis Strauss, e o meu tio e as empregadas que serviam à mesa… O meu tio morreu cedo, num desastre de automóvel. O negócio foi crescendo e acabámos por ocupar a casa toda.

 

Ganhou uma distância emocional em relação à casa? Aquele passou a ser, simplesmente, o espaço onde trabalhava? Ainda hoje, se pensa nela, pensa-a como?

Os meus irmãos, à medida que foram montando os seus negócios, foram invadindo (no bom sentido) a casa. Fizemos um centro de negócios, compartilhamos a casa e mantivemos algumas salas como elas eram. A sala de jantar continua igual. Ainda tem algumas memórias nossas…

 

Parece consanguíneo…

Incestuoso? Talvez. Se mantenho uma relação incestuosa com a casa? É possível. Mas com a casa não é proibido. [risos]

 

É, no fundo, uma relação incestuosa com a memória da família.

Se calhar é uma forma de nos mantermos unidos. Preservar estas memórias obriga-nos a pensar que aquilo é a nossa casa.

 

Que ideia é essa que querem preservar e à volta da qual querem permanecer aglutinados?

Não acho que haja uma ideia, uma intenção.

 

Pode ser, simplesmente, em torno da memória do seu pai.

A minha mãe foi praticamente filha única (teve um irmão que morreu durante a guerra com tuberculose). O meu pai só teve um irmão, que não teve filhos e que morreu cedo. Crescemos numa família grande de famílias pequenas. Eu e os meus irmãos estamos a experimentar sermos muitos. Isto criou em nós um espírito de clã – que passou para os nossos filhos. Eu não tinha um primo mais velho que me protegesse. Se calhar foi isso.

 

Trouxe à conversa o nome Santos Silva. Nessa família, como na sua, tanto quanto sei, o diálogo fazia-se sobretudo com a geração anterior e menos com aqueles que fazem parte da mesma geração.

Sim. Como sou o mais velho, vivi numa casa em que não havia crianças. Vivi numa relação em que todos eram mais velhos. Vivi numa relação em que os adultos se preocupavam muito connosco. O meu tio, talvez por não ter filhos, era uma pessoa muito preocupada. As minhas duas avós ficaram viúvas muito cedo, e, cada uma à sua maneira, uma alemã e uma portuguesa, achavam que aquilo que aprendíamos era muito incompleto.

 

A sua avó alemã falava em alemão consigo? Foi por causa dela que foi para o colégio alemão?

Falava sempre. E o meu pai, quando queria falar em privado comigo, falava também em alemão – quando havia gente à volta, se íamos ao restaurante... Engraçado: tratava-o por tu em alemão e por você em português. Não sei explicar porquê.

 

Por causa da construção da língua?

Não forçosamente. Em alemão, como em português, há tu e há você. A mim, em alemão tratar-me-ia sempre por tu, em português dependia; normalmente tratava-me por tu.

 

Isto vinha a propósito de comprar uma empresa de navegação, que “desaguava” no seu avô…

Com o meu avô: [fazia parte do meu] imaginário, o meu avô ser muito velho e eu ser pequeno, e contar que teve de vender os seus últimos navios. Era um homem vencido, derrotado – por terem-no impedido de fazer uma coisa que ele achava que fazia bem. Tenho memória das grandes cheias do Porto em 1961/62, de ter ido ter com o meu avô ao Infante, e de ter vindo com ele e com o chauffer no Peugeot 403, de pararmos para ver os navios (alguns vinham soltos pela barra abaixo); e de ele ter dito assim: “Isto aos meus navios já não acontece”. Nunca mais me esquece. O meu pai, a partir daí, odiou negócios de navegação e nunca acreditou [neles]. Quando eu decidi que queria ser armador e ter navios, fez-lhe uma confusão enorme. Achava que tinha corrido muito mal à família. Era um negócio um pouco maldito.

 

Porque é que acreditou que não ia ser um vencido?, que podia quebrar essa maldição.

Nesse tempo em que o pai esteve preso, interrompi o curso na universidade. Depois retomei. Expliquei em Inglaterra o que se passava; ficaram muito admirados, não conseguiram perceber que num país europeu houvesse presos políticos. Vim para cá e onde senti que podia ser útil foi nesse escritório; a fábrica, entretanto, tinha sido intervencionada. Achei que aquilo tinha pernas para andar. Algumas pessoas que conheci em Inglaterra tinham negócios de navegação – mais ou menos por coincidência. Fui até à Noruega e Alemanha. Era um tempo extraordinário para a navegação porque foi o tempo dos contentores – em 75, em Portugal, não havia contentores.

 

Houve uma determinação sua. Onde radica?

Houve, sempre acreditei, e trabalhei imenso. No final dos anos 70, Portugal era uma terra de oportunidades. Porquê? Muito tinha sido nacionalizado, muita gente tinha fugido, os grandes grupos económicos ainda não eram tão omnipotentes e conseguia-se respirar.

 

Como é que ficaram as finanças da família com a revolução?

Muito mal. O que tínhamos em África, perdemos de um momento para o outro. Tínhamos uma grande empresa em Angola semelhante à Molaflex. Aqui, a empresa foi intervencionada. Os nossos bens foram congelados. Quando o meu pai regressa à liberdade em Novembro de 75 e volta à Molaflex, a empresa tinha sido estragada pelos senhores sargentos e capitães que lá tinham estado. Foi possível recuperar, mas, como muitas famílias, passámos uma fase de transição complicada.

 

Até onde é que isto mexeu com a sua vida?

É difícil repensar esse tempo. Ao voltar atrás temos a tendência de maquilhar o passado e a razão pela qual as coisas aconteceram. Em primeiro lugar, fui para Londres e logo a seguir o meu pai é preso; vivi com algumas dificuldades para acabar o curso. Habituei-me a uma vida frugal. Quando vim para cá, isso ajudou imenso. Em Londres tinha uma casa giríssima em Kings Road, na melhor zona de Londres, mas vivíamos três portugueses numa casa que tinha um quarto. Lavava pratos, trabalhava em bares, porque, de outra maneira, não dava. O pai deixou de mandar dinheiro, e pronto.

 

Isso foi tremendo para si?

Não. Foi óptimo. Tenho imensas saudades desse tempo de Londres,

 

O que é que se aprende quando não se tem dinheiro?

Para já é uma emoção não ter dinheiro: uma emoção que é uma aflição! Nós ficámos mesmo aflitos. Nunca corri o risco de passar fome, até porque sabia onde bater à porta. Estavam lá o Paulo Pimenta, da Riopele, estavam lá os Espírito Santo que o pai conhecia. As coisas a que estava habituado e que apareciam feitas – desde o pequeno-almoço, logo ao acordar – deixaram de ser assim. Eu só era responsável por mim, e foi uma sensação de enorme liberdade. A partir de agora não mandam caroço? Estava por minha conta. Eu, que nunca tinha fugido de casa, foi como se tivesse fugido de casa.

 

Até então, nunca tinha sido para si um peso ser rico?

Não. O que hoje se caracteriza por rico e o que era ser rico nos anos 60 é muito diferente. Hoje, a necessidade de consumir é quase opressiva; nessa altura não era. Nunca tive uma motorizada, o meu primeiro carro foi um Honda 600, que era o carro mais barato do mercado. A minha bicicleta passou para os meus irmãos todos, como passavam as camisolas. Era assim que se vivia.

 

Tiveram uma nanny, ou isso ficou na geração da sua avó? Uma miss, uma mademoiselle, uma fräulein.

Não tivemos nanny. Tínhamos duas criadas e uma cozinheira. Nas férias, a minha avó mandava vir uma parente da Alemanha para aperfeiçoar o nosso alemão. Fui aconselhado a sair na terceira classe do Colégio Alemão: fui considerado irreverente.

 

Quando pergunto pelo peso de ser rico, pergunto pela gratuitidade das relações. Pela noção de que há coisas que não se compram. Não sei como foi feita essa aprendizagem…

Já me perguntaram isso, mas não sei como se é moldado nessa circunstância. Não sei mesmo. A cidade do Porto era muito interclassista. Tínhamos contacto com pessoas que viviam com muitas dificuldades. Eu andei no liceu Dom Manuel II: andavam muitas pessoas no liceu para quem pagar as propinas era complicado. Vinha para a Foz de eléctrico e havia colegas que saíam uma paragem mais cedo para pagar um escudo e não pagar 12 tostões. Convivíamos com essas pessoas. Também no desporto; comecei a fazer vela na Mocidade Portuguesa, como quase toda a gente. Ensaiei jogar futebol e escondia o meu estatuto: não interessava mesmo!

 

Para jogar futebol, quanto mais rapaz de rua fosse, melhor. Tinha o desejo de ser um igual?

Não sei. Eu tinha um enorme receio de desapontar o meu pai. A minha vida ficou muito marcada por isso em diversos aspectos. Não era muito bom aluno, não era um filho dilecto das famílias alemãs do Porto, como era o meu irmão Tomás, um ano mais novo. Era aquele género de pai terrível porque não ralhava nem batia: mostrava o seu desapontamento. Acho que sou o mesmo com os meus filhos. Olhava para mim com uma cara triste: “O menino está a desapontar-me”. Foi também por isso que quis começar com o meu negócio, da mesma forma que ele tinha começado com o dele. 

 

O seu pai foi a pessoa que mais o marcou?

Talvez não. A pessoa que mais me marcou foi a minha avó materna, a portuguesa. Quando comecei a falhar na escola e a minha mãe ia tendo mais filhos, e ninguém percebeu que eu andava numa escola pública, um pouco à solta, obrigou-me a fazer as boas escolhas e interessou-me por coisas que me estavam a desinteressar: ler, ir a concertos de música clássica, exposições. Tirou-me dessa rua em que podia ter caído numa altura perigosa; muita gente da minha geração, por causa desse desacompanhamento, acabou na toxicodependência, nos excessos do álcool. Eu era bom à porrada, era mau…

 

Porquê essa rebeldia? À partida não havia necessidade disso…

Sei lá por quê. Não sou Freud e Freud também não tem certezas sobre isso [risos]. O meu pai era também irreverente, a família era irreverente. Era um modo irreverente de ser. Os meus pais achavam normal que, se nos dessem uma ordem, questionássemos a razão de ser da ordem. “Hoje os meninos vão para a cama mais cedo”. Eu achava-me no direito de perguntar: “Porquê?”. Se calhar queria estar sozinho com a mãe no sofá. Isto não era muito compatível com o mundo exterior em 1966/67, essas coisas não se discutiam. 

 

Disse que tinha com o seu pai uma relação de intimidade. Quase não se diz em público a palavra intimidade, há quase um pudor à volta dela.

Tínhamos interesses parecidos, conversas longas, silêncios longos. O meu pai sabia partilhar os seus afectos – invulgaríssimo na geração dele e num homem. Houve uma altura em que percebi que ele estava muito doente e que precisava de lhe dizer isto. O meu receio era que o meu pai morresse sem eu lhe poder dizer o que é que sentia. As barreiras sociais que temos e que nos inibem com os nossos pais são coisas que a gente tem que vencer. A intimidade é sentirmos que às vezes quase nem é preciso falar.

 

Quais foras as perdas da sua vida? As que o mudaram, que foram fracturantes.

O meu tio Mário, que morreu muito cedo, fez-me muita falta e fez muita falta ao meu pai. Houve um momento fracturante, que foi quando fiquei muito doente aos 27 anos. O meu filho mais velho tinha um ano, era nessa altura que os meus negócios estavam a correr melhor e estive a morrer. Tive uma insuficiência renal, terminal, aguda. Uma semana antes tinha jogado uma partida de râguebi, e de repente os meus rins deixaram de funcionar. Obrigou-me a fazer três anos de hemodiálise. Fiz depois um transplante e as coisas acabaram por correr bem. Foi um tempo que me causticou muito. Foi isso que me levou a projectar que, se me safasse, o mais depressa possível ia libertar-me de algumas coisas.

 

Quando se safou, o que é que mudou?

Vendi os meus negócios de navegação com 35 anos. “Eu não me vou matar a trabalhar”. Desde logo, isso. Para uma pessoa que faz um transplante a vida é muito mais efémera. Está lá a ameaça, a espada está presa por um fio mais fininho, pode cair a qualquer momento. Percebemos que somos mais frágeis. Eu achava que era um super-homem, que fazia desporto e que tinha jeito para os negócios.

 

Até aí, o que o fazia correr era o desejo de não desapontar o seu pai.

Levava uma vida frugal para poder investir tudo nos negócios. Vivia por cima da [cervejaria] Cufra, num T2, não tinha obras de arte, e tinha um negócio enorme! Só pensava em trabalhar, andava permanentemente a viajar pelo mundo.

 

Zero glamour? Não tinha a fantasia do Onassis e da Jackie O?  

Não. Não gostava desse género de atitude. Queria fazer um negócio com gente nova, um escritório onde toda a gente se tratava por tu e as pessoas andavam de jeans. O nosso escritório era completamente diferente. Quando vendi, já eram umas centenas de pessoas e entraram todos pela minha mão. Na maior parte dos casos, era primeiro emprego – era um dos truques para lhes criar motivação.

 

Nesse quadro de expansão nos negócios, a doença foi uma hecatombe.

Quando estas empresas começam a crescer, temos que fazer alianças e ter sócios. Fui sócio do Stanley Ho; era um sócio interessante, mas aos 32 anos não era fácil. Lembro-me que fiz um acordo com ele, e um dia ele entrou em incumprimento. Disse ao meu advogado em Hong Kong: “Vou processá-lo”. “O Stanley Ho não se processa, homem. Senta-se com ele e chega a um bom acordo. Você não tem estatuto para isso!” [risos] Comecei a perceber que era o momento de ou mergulhar completamente naquilo (ir para a bolsa, ter um CEO, ficar como presidente…) ou vender. Comecei a perder o gás e a vontade. Tive apenas que convencer o meu pai; mas foi fácil, ele não gostava do negócio. E foi rápido.

 

Vendeu sem dor?

Sem dor nenhuma. Nunca me arrependi de o ter vendido. Estava a começar a sentir-me escravo de mim próprio. 

 

Este que vive nesta casa é outro homem. Tudo o que aqui está, é evidente, resulta de escolhas cuidadosas. Na relação com a família também seria outro.

Tinha-me divorciado da minha primeira mulher e o meu filho ficou a viver comigo. Queria imenso construir com ele a relação de intimidade que o meu pai construiu comigo. Acho que consegui. Já nessa fase, digamos, pós-laboral, casei-me e tive outro filho que vive a meias comigo e com a Cristina. Tenho muito mais tempo para estar com a minha mãe, irmãos, amigos, para me dedicar às coisas de que gosto.

 

Quando vai ao Palácio da Bolsa e vê os retratos dos antigos presidentes, que emoção é que isso lhe convoca?

Nenhuma. Quando subo as escadas, lembro-me de ir lá com o meu avô e de ver o avô dele em mármore… Isso sim, subo e olho para os Fonseca Araújo que estão lá em cima (família da mãe do meu avô). Pergunto-me se estarão a achar que estou a fazer alguma coisa de jeitoso! [riso] Os outros, não me intimidam nada.

 

Já não há a pressão de ter de estar à altura…

Não. Não mandei fazer o retrato do meu antecessor, para ter a certeza de que, quem me suceda, não se sinta na obrigação de mandar fazer o meu quadro.

 

É um exercício de modéstia?

Não. Não acho que na Associação Comercial [do Porto] tenha feito nada de transcendente. Reconheço que fiz uma coisa que era difícil: voltar a pôr a Associação Comercial no mapa. Era um poder invisível. Quando aceitei o convite, avisei: o mal desta casa é ter falta de visibilidade, e os poderes invisíveis não funcionam, e os que funcionam não deviam funcionar. Ao abrir as portas do Palácio e ao fazer com que a Associação Comercial do Porto fosse mais influente, confesso que não esperava que o reconhecimento tivesse sido aquele que foi. Assusta-me, porque isso quer sempre dizer que à volta há pouco poder, que há poucas vozes a falar.

 

Acha que tem muito poder?

Não. Mas acho que a Associação Comercial do Porto é hoje um instrumento de poder. Tenho influência. Tinha muito mais poder quando tinha a empresa.

 

Tem 52 anos. Pensa viver uma terceira vida, considerando que a primeira é anterior à doença e a segunda a que tem entretanto?

Tenho pensado nisso. O meu filho mais novo tem 15 anos, daqui a dois anos irá estudar para Inglaterra; a minha função de pai exigirá menos tempo, ficarei sozinho. Por outro lado, posso ser corrido do Palácio da Bolsa todos os anos – as eleições são anuais. Não é muito provável. Mas vai chegar uma altura em que as coisas estão feitas. Se ficar, começo a ficar com os tiques do tempo. E a mensagem que tinha aos 44 anos é diferente da que tenho hoje. Na altura, eu era o jovem presidente da Associação Comercial do Porto.

 

Nos últimos dois anos, o seu nome é também aquele que veicula uma imagem diferente do Porto. Quer através das intervenções na imprensa escrita quer na televisão, falando de futebol. Contraria a imagem do Porto provinciano e fechado. Foi uma escolha consciente?

Foi. Não foi meramente intuitivo. Quando resolvi aceitar o convite para fazer um programa de futebol, era importante saber com quem ia fazê-lo. Saber que ia fazer com o António Pedro Vasconcelos tranquilizava-me imenso. O mais provável era ter dito que não. Ainda hoje há pessoas, como o meu amigo Helder Pacheco, que diz que cometo um enorme erro; acha que me desvalorizo todos os dias ao falar de futebol. Acho que ele não tem razão.

 

Porquê?

O Futebol Clube do Porto, podendo ser uma marca útil para a cidade, não o tem sido. Sendo uma estratégia de poder, guerrilheiro, teve o enorme problema de todos os guerrilheiros que chegam ao poder. Se quiser, é o problema dos Castro; tenho uma enorme admiração por eles, conheço Raul Castro pessoalmente. Mas esse espírito guerrilheiro, quando toma o poder, é muito perigoso nos seus métodos, continua a andar com a pistola a tiracolo. Acho que, de alguma maneira, isto ajudar a estereotipar o Porto-cidade.

 

É o Porto-carago.

Exactamente. E, volto ao princípio: pode ser uma fantasia nostálgica, mas achei que uma coisa não tinha que ver com a outra. Pode haver uma rudeza na cidade que sempre apreciei e ela pode conviver com uma parte urbana, com capacidade de dialogar, de saber estar, de receber bem, que era uma tradição do Porto. Fazer um programa de futebol na companhia certa era a melhor maneira de dar esse exemplo.  

 

Voltando ao princípio e à sua natureza dandy: tem umas belas cadeiras Mies van der Rohe, umas belas cadeiras Saarinen…, tudo é bem escolhido. É porque é um homem do mundo?

A casa da minha mãe também era assim.

 

Há opções estéticas. Tem ali um Ângelo de Sousa e não tem um Júlio Resende, que é também um artista do Porto.

São opções estéticas, são. Isso a gente vai cultivando. O meu avô era muito virado para as artes, a minha avó também. Essa busca sempre existiu. Mas houve uns anos em que não tive nem paciência nem tempo para isso.

 

Objectos destes faziam-lhe falta?

Não. Encontrava-os quando ia a casa da minha mãe, e em minha casa tinha uma serigrafia qualquer. 

 

Celebram, então, uma nova fase da sua vida, em que tem tempo e paciência. Entre os 35 e os 44 anos o que fez?

Diverti-me. Comecei a comprar coisas. Fiz viagens extraordinárias.

 

Sentiu a falta de um propósito?

Houve um tempo em que precisei de o não ter, e não tive. Fiz coisas loucas: tive uma discoteca no Porto. Impensável! Já era presidente da Associação Comercial do Porto e às vezes estava à porta do Pop! Isto foi um prazer infinito!

    

Dá-lhe gosto ser um personagem heterodoxo…

Pois, a tal irreverência do Colégio Alemão… O Colégio Alemão tinha razão!

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Janeiro de 2009

 

 

 

Mariana Mortágua

03.03.16

Mariana Mortágua tem 28 anos. Interrompeu um doutoramento em Inglaterra, numa universidade de esquerda, é claro, para ser deputada do Bloco de Esquerda. Licenciou-se e fez o mestrado em Economia no ISCTE. A razão pela qual é abordada na rua prende-se com a sua intervenção na comissão de inquérito parlamentar ao caso BES. Perguntam-lhe se Salgado vai preso... Ela prefere não tomar a parte pelo todo.

 

É tão segura quanto parece?

Depende das matérias. Quando fiz um trabalho sólido e aquilo que estou a dizer está assente nesse trabalho, quando tenho a certeza, sim.

 

É uma convicção que resulta do estudo, da preparação.

Sim. Também aprendi, na vida política, que quando estamos convictos de qualquer coisa, e sabemos que ela é verdadeira, temos de a dizer como a sentimos. Só isso dará a convicção que faz com que as pessoas percebam a mensagem. Caso contrário sou um autómato que debita argumentos. Isto é importante em política. Só servimos se a mensagem chegar a alguém e se as pessoas se sentirem representadas. Tenho direito a indignar-me com as mesmas coisas com que as pessoas se indignam.

 

Há a ideia de que parte dessa convicção com que as coisas são ditas é jogo político. É uma capa que se exibe para esgrimir discursos antagónicos.

Há a ideia de que no fim bebem todos copos juntos. Pode ser verdade. É um vício em gente que está há muitos, muitos anos na política, numa política muito gasta. Não acho que se aplique a todos os espectros do panorama partidário ou político. Não vejo ninguém no Bloco, ou eu própria, a inventar falsas convicções ou falsos sentidos de indignação para criar uma diferença. Isso é necessário num centro que luta para se distinguir. Aconteceu durante muitos anos entre PSD e PS.

 

A sua segurança, mas também a força das suas imagens, e o rigor da sua preparação tem sido destacado por muitos. De Ricardo Salgado ao canal Bloomberg. Como é em casa, quando lê estas notícias ou assiste a estas coisas?

Não é. Não vejo televisão. Uma pessoa vai-se habituando e faz parte do trabalho.

 

Duas imagens acerca do BES que usou: a do maestro do Titanic que continua a dirigir a orquestra enquanto o barco se afunda; ou quando disse que Ricardo Salgado passou de dono disto tudo a vítima disto tudo. Usou muitas mais. Qual é a mais expressiva do processo BES?

Não me lembro de todas. Muitas saem no momento, não vão preparadas. Lembro-me da do [Zeinal] Bava. Estava a pensar: “Isto é um bocado amadorismo. Devia arranjar forma de dizer isto”.

 

E a maneira que arranjou de dizer isso foi dizer com as letras todas.

Senão não vale a pena. Se é para dizer, é para dizer. As coisas saem. Depois de dizer apercebi-me de que teve um impacto maior [do que tinha imaginado]. Toda a gente chamava ao Salgado o dono disto tudo, pelo menos nas costas; transformar aquilo em vítima disto tudo, não me pareceu que fosse surpreendente. E foi.

 

O que a surpreende é a reverberação que isso tem, o tamanho da explosão?

Sim. Usamos muitas imagens quando estamos a confrontar pessoas. Isso ajuda no discurso. Algumas têm impacto, outras têm menos. A do maestro é uma boa imagem do que foi a construção do BES e do que é o desmoronar daquele império. É mesmo isso, um império construído e gerido por um maestro, com a ajuda de toda uma orquestra. Um maestro que às tantas perdeu a mão e começa a ter os violinos não-coordenados com as violas. No final do processo, por ter passado tantos anos a recusar-se a admitir que a sua orquestra já não estava afinada...

 

Tantos anos?

Ele estava falido há anos, se é que alguma vez esteve numa boa situação financeira. Parece aquelas crianças que fazem asneiras e se vão enredando num conjunto de mentiras para não admitir a asneira inicial que fizeram. O grupo nunca foi muito saudável, mas sempre que havia um buraquinho, em vez de se assumir e revelar nas contas que havia uma perda, foi-se tentando camuflar o processo para o nome nunca ficar prejudicado.

 

A partir de que data é que a situação começou a ficar grave (do ponto de vista do tapar o buraquinho aqui, esconder acolá)?

Em 2006, 2007, a ESI, que era a holding mãe, já estava falida. Já tinha capitais próprios negativos. A crise financeira veio agravar este processo. Desde o início que o Grupo Espírito Santo [tinha dificuldades]. É uma coisa que não conseguimos bem perceber: com que capitais é que recomeçam a reconstrução do império. Era muito capital alheio, muita dívida que conseguiram através dos contactos internacionais que tinham. As famílias, os bancos.

 

Isso foi assumido pelo próprio Ricardo Salgado.

Foi. Embora também interesse ao Ricardo Salgado dizer: “Começámos do nada porque o 25 de Abril nos tirou tudo”.

 

Mas é verdade, ou não? Quando voltaram tiveram de recomprar o banco recorrendo a dinheiro alheio.

Essa é uma das partes deste grupo. É um grupo muito endividado. Mas não é só o Espírito Santo. Salgado também disse isso: o sistema empresarial português está muito endividado. Ao lado disto há maus negócios, há incompetência na gestão. E depois sempre que havia um problema, um banco que ia à falência no Brasil, um banco mais pequeno, em vez de se fazer um processo liquidatário, ia-se buscar dinheiro à parte do grupo que estava a dar dinheiro para cobrir o prejuízo. Para que nunca ninguém soubesse que um banco com o nome Espírito Santo faliu ou teve um problema. Isto multiplicado por mil gera um processo que não se controla. Está sempre a explodir.

 

Havia a ilusão de que se encontraria sempre uma maneira de controlar.

Mas aí o maestro afunda com o barco.

 

O maestro não estava a ouvir o desafinanço dos violinos? Achava que aquilo era uma questão de tempo. E tinha uma ideia enviesada do grau de afinanço da sua orquestra. A ideia que transmitiu a toda a gente que trabalhou com ele durante este tempo foi: “Isto vai-se resolver, vem aí um novo aumento de capital”.

 

E veio.

Veio o aumento de capital ao BES. Mas o aumento de capital nunca chegou ao GES. Há anos que tentavam aumentar o capital da Rioforte e da ESI, e não conseguiam. É o problema da fraude em grandes holdings, que depois não têm nada a não ser dívidas e estruturas de dívida.

 

Há pouco, quando a ouvi falar do problema do sobreendividamento e dos erros de gestão, pensei que muitas empresas portuguesas têm estes problemas. O que diverge é a escala.

Sim. O maior erro que se pode fazer ao analisar o BES é achar que isto é culpa do Ricardo Salgado. Não faz sentido. Aí perdemos a análise estrutural do funcionamento da economia. É uma história para encher livros e para fazer documentários. Quem acha que o problema do BES era má gestão – também era má gestão –, olhe para a PT. Era uma empresa privatizada, não tinha uma gestão familiar, tinha uma gestão de CEO’s que ganharam prémios. E ainda assim a PT afundou-se numa sequência de más decisões que culminaram num investimento de 900 milhões na Rioforte, porque fazia parte deste esquema de financiamento através das suas relações accionistas com o BES. E quem diz a PT diz muitas outras empresas portuguesas. Há um problema de sobreendividamento e de estruturas sobreendividadas. Há um problema de uma economia que funciona muito pela parte financeira.

 

Como é que a economia funciona muito pela parte financeira?

A mais valia, o dinheiro e a receita, vêm de esquemas financeiros ou de planeamento fiscal, e não directamente de uma produção associada ao capitalismo dos anos 30 ou 40 ou 50. E isso é transversal ao sistema económico.

 

No fundo, falta massa, para usar uma linguagem que é muitas vezes a sua.

Falta massa no sentido de capital. Mas falta massa porque estas empresas andam a ser geridas, não com o objectivo de produzir e de criar emprego… não sei se alguma vez foi esse o objectivo de alguma capitalista…

 

O objectivo é o lucro, não? Qual é o mal de ser o lucro?

O mal é quando numa empresa como a PT, os accionistas tiram em lucro, para si, todo o dinheiro de que a PT precisaria para se capitalizar. Nos entretantos há accionistas a meterem essa massa ao bolso. A massa existe, as empresas produzem dinheiro.

 

Em Portugal, e nos últimos anos, parece que o sistema financeiro é uma espécie de ficção, desligado da dimensão económica.

Mas não está. Está profundamente ligado à dimensão económica.

 

“Ricardo Salgado não é o único culpado disto tudo”: é uma derivação possível da frase que usou? É todo um sistema que está em causa e implicado nisto? Separando o BES do GES, o poder político e o regulador entraram em cena para avalizar o aumento de capital. Diferentes planos estão aqui sobrepostos. Não é a finança de um lado, a política do outro, a regulação do outro.

Mas nunca será. A maior mentira que se pode dizer às pessoas é que a banca é independente do poder político, e que o poder político pode gerir um país e uma economia sem tocar na banca. Isso não existe.

 

Não existe em Portugal ou não existe em nenhum país?

Não existe no mundo. Se um banco vai à falência arrasta com ele a economia de um país. E nenhum governo pode estar alheio a esta possibilidade. Senão é um governo irresponsável.

 

A questão é controlar uma promiscuidade que não pode deixar de existir?

O BES era o banco do regime. Uma coisa é promiscuidade no poder político e no poder económico. Em Portugal é a história da nossa burguesia, da nossa elite. É a história do nosso país. Quem enriqueceu, enriqueceu à custa de rendas garantidas pelo Estado. [Começa com] os monopólios concedidos [nos períodos] da colonização, dos descobrimentos, e assim se manteve. São as grandes famílias que sobrevivem até hoje. E termina em coisas mais comezinhas como o António Vitorino, ou o [Jorge] Coelho, ou o [António] Mexia, que estiveram em governos, que fizeram leis, e a seguir foram facilitar negócios para os privados. A maior parte dos ministros, secretários de Estado, em cargos cruciais para as infra-estruturas, energia, economia, passam para empresas privadas dessas áreas.

Isto é a história do nosso país. E era a história do BES. Foi o banco que mais lucrou com PPP.

 

A propósito desses gestores, ou de outros quaisquer, há um período de nojo que têm que observar, após o que, não acha legítimo que vão fazer a sua vida?

Acho legítimo que vão fazer a sua vida. Não acho legítimo que um governante que esteve no governo e que criou rendas para a energia, agora ganhe um milhão de salário na EDP.

 

Mesmo que tenham passados anos entre a sua saída do governo e a sua entrada nessa empresa onde aufere desse rendimento?

Se tiverem passado 30 anos podemos conversar sobre esse facto. Se tiverem passado cinco, acho que não faz muita diferença. O que permite este regime de promiscuidade é haver empresas que dependem muito da regulação do Estado porque são monopólios naturais. E como são monopólios naturais, têm tendência para ter grandes lucros. Por serem muito influentes na economia, não deviam ser privadas. A PT, a EDP, a Galp, são empresas que têm demasiado poder.

A quem é que demos o poder de criar um apagão em Portugal? Quem é que gere toda a nossa electricidade? Isto tem ou não tem a ver com soberania? Não são só boas oportunidades de negócio que depois acabam por ser exploradas, são opções de fundo que têm a ver com a soberania. E com a recuperação económica.

 

Isso é uma questão ideológica.

Sim. Somos um dos cinco países do mundo que tem os correios privados. Nós, a Malásia, o Líbano...

 

Outra questão é a promiscuidade público-privada. E entre política e poder financeiro. Como controlar isso?

É muito difícil haver uma receita simples. Não há nenhum Estado que não tenha que ter relação com o privado. A não ser que acreditemos numa economia 100 por cento pública. A probabilidade é que uma economia 100 por cento pública vá ter os mesmos problemas que tem uma economia privada. Ninguém está a dizer que não tem que haver uma capacidade dos três sectores, o público, o privado e o outro, que está cada vez menos desenvolvido em Portugal, o cooperativo.

 

Que é que se pode fazer?

Podemos dotar o Estado de gabinetes de planeamento, jurídicos, financeiros, que façam com que o Estado consiga fazer estes negócios sem sair permanentemente numa situação de fraqueza – como saiu nas PPP ou como sai das privatizações. E evita um conjunto de conflitos de interesses. Como no caso da ANA ou da PT, em que o escritório de advogados que estava a assessorar a VINCI (no caso da ANA) era o mesmo que assessorava o Estado no caso da TAP. Há cinco ou seis escritórios de advogados que ficam com os negócios todos. São os mesmos, trabalham para o Estado uma vez, trabalham para o privado noutra, mas são sempre as mesmas pessoas. E quem diz escritórios de advogados diz assessores financeiros.

 

Como é que tão rapidamente, da crise para cá, as coisas mudaram? Mudanças substanciais. Não sei se tem essa convicção.

Tenho. A crise deu a desculpa para fazer isso. Há uma falência da social-democracia a nível europeu. Em 2007 e 2008, quando se dá uma crise financeira, quando é preciso salvar bancos, só há duas hipóteses: ou se entra pela austeridade, que é a forma, segundo a teoria económica mainstream, de sair de uma crise sem haver renegociação de dívida e sem imputar perdas aos credores e aos mercados financeiros – é fazer o ajustamento pelos salários e pelos rendimentos; ou, segunda opção, fazer o ajustamento pelos credores e pelos mercados financeiros, o que implica alterar as regras a nível europeu, pôr o Banco Central Europeu a comprar dívida pública...

 

Está a dizer que há decisões políticas que têm que ser tomadas e que são essas que têm que estar na génese de uma mudança.

Sim. Tudo são decisões políticas e perante a crise só há estas duas.

 

Há momentos em que parece que a economia e a finança engolem a política. Nos últimos anos, assistimos a um recuo da política?

Não há nenhum recuo da política. Há uma política que tem como política os mercados financeiros. Os tipos que estão à frente do BCE e que se dizem tecnocratas, pessoas isentas que são levadas pelas suas grandes competências técnicas, ideologicamente são liberais, ou dos mercados financeiros. Mario Draghi vem da área financeira.

 

Volto ao BES. Criou um blogue que se chama “Disto Tudo”, onde pretende usar “um português que se entenda”. Depois do estudo que resulta neste blogue, depois do estudo que resulta nas intervenções na comissão de inquérito, quem é que acha que são os grandes culpados disto tudo? É errado pensar nisto? No caso de ser errado, como explicar às pessoas que perderam as suas poupanças, ou que vêem o sistema a tremer, que não é legítimo procurar culpados para isto tudo?

É legítimo procurar culpados para isto tudo. As pessoas que foram enganadas por aquilo que acham que o Ricardo Salgado representa (a administração do BES e da família Espírito Santo), têm direito à sua indignação. E têm direito a querer justiça. As pessoas em Portugal estão um bocadinho sedentas dessa justiça.

 

Porque é que acha que é assim?

Há muito tempo que vêem um sistema muito enviesado. E não é enviesado porque a justiça não é parcial em relação a se se é rico ou pobre. [O enviesamento acontece] porque os ricos têm muito mais poder para lidar com a justiça, para ter grandes escritórios de advogados, para fugir ao fisco, para montar esquemas, para usar off shores, do que qualquer pobre que é apanhado num processo de Segurança Social com uma dívida, ou porque não pagou uma portagem. Esses têm sempre que pagar porque é o mais barato. Até fugir à justiça, até fugir ao fisco é um privilégio dos ricos em Portugal!

É natural que as pessoas personifiquem em Salgado o seu ódio contra o sistema. Essa justiça, quem pode fazer são os tribunais.

 

Assistimos a uma mistura de planos, o político e o judicial.

Cabe-nos, no parlamento, fazer uma avaliação política. Cabe-nos perceber o que é que há de sistémico por trás disto. Porque é que o primeiro-ministro, ainda não havia conclusões a tirar, a meio da comissão de inquérito, veio dizer: “Isto é um problema da gestão do BES”? A quem têm uma visão idealizada do funcionamento dos mercados, interessa que a culpa seja de uma pessoa. Afastámos Oliveira e Costa, e não mexemos nas regras do sistema. Afastámos Ricardo Salgado e não mexemos nas regras do sistema. Afastámos o senhor do BPP. E vai-se alimentando esta ideia de que o problema são homens maus e homens bons, mulheres boas e mulheres más. O problema é muito mais sistémico.

 

Fez um vídeo de campanha eleitoral do Bloco com uma roleta. Termina dizendo que o problema está no sistema financeiro descontrolado e não na falência de um banco ou de um projecto. Isto é a sua raiz política a interpretar as crises a que temos assistido.

É a minha raiz política se dissermos que não há nada que não seja político. É tão fácil dizer que é a minha raiz política como é a minha raiz de economia. Ou de pessoa racional e sensata que olha para o mundo que tem à volta e começa a perceber: “Isto é muita falência de banco nos últimos dez anos. Alguma coisa se passa no sistema financeiro”. Toda a gente vê a especulação. Toda a gente se sente indignada com o que os grandes bancos fazem, com o que lucram, com a forma como jogam com a vida das pessoas. Mas depois ninguém dá o passo a seguir. Como é que se controla este poder?

 

A regulação tem falhado?

Não é um problema de regulação. A regulação tem falhado, mas é mais um bode expiatório que se usa para dizer: “O sistema é perfeito, as regras são muito boas, os reguladores é que não fazem o seu trabalho”.

 

E não concorda com isso.

Não. A regulação, salvo raras excepções, é uma invenção muito útil para dizer: “Não faz mal privatizar os correios, vamos arranjar um regulador para a actividade postal. Não faz mal privatizar a Galp, vamos arranjar um regulador para os preços dos combustíveis”. É o substituto argumentativo. E para acalmar as massas quando a economia fica muito descontrolada. No caso financeiro há um problema que ninguém vai desmentir: os bancos estão sempre à frente dos reguladores.

 

Estão, como?

Como é que podemos exigir a um regulador que saiba o que se passa, se ao mesmo tempo que pomos uma regulação muito intrusiva, e muito disciplinada, criamos off shores, permitimos haver espaço onde não há relação nenhuma? Crio o regulador, mas ao lado crio livre circulação de capitais e a possibilidade de as pessoas tirarem o dinheirinho daqui e fazerem empresas nas Bahamas, onde não há regulador nenhum. Estamos a brincar? Isto é para inglês ver?

 

Numa primeira leitura, as pessoas não crêem que da comissão de inquérito resulte alguma coisa. Nem estão com o seu sentimento de injustiça resolvido.

Não é possível que fique tudo claro. O relatório poderá dar um bom contributo, ser um documento enxuto e factual sobre aquilo que se passou. É um grande contributo democrático e para a história económica, para que as pessoas não tenham ilusões sobre quem são os gestores, e para que tenham a oportunidade de os confrontar com aquilo que fizeram. Isso acalmou parte do sentimento de impunidade que havia. O que mais me perguntam na rua é o que é que vai acontecer ao Salgado – se vai preso.

 

Perguntam-lhe muito?

Sim. E não tenho o que dizer, a não ser: “Não sei, não sou eu quem pode tratar disso”. Parte do sentimento de desilusão das pessoas com a comissão de inquérito vem do facto de terem criado expectativas irrealistas.

Há um conjunto de pessoas que teriam passado entre os pingos da chuva se não fosse a comissão de inquérito. Nunca seriam confrontadas com aquilo que fizeram. Mas se o que as pessoas esperam da comissão de inquérito é ver gente presa, então não dá. Ainda bem que não podemos fazer isso, é correcto que não o possamos fazer. Podemos apurar factos e enviá-los para o Ministério Público, tirar responsabilidade políticas e acrescentar transparência ao processo.

 

Há uma dimensão familiar e pessoal nesta história do BES. Pensa nisso muitas vezes ou impõe-se uma distância, uma frieza, para conseguir lidar com o assunto? Deu por si a pensar que o Ricardo Salgado tem mulher, tem filhos, tem netos?

Dei. Pensei nisso quando dei por mim a discutir a questão do bem e do mal. O Salgado é uma má pessoa? Será que as pessoas quando fazem fraude agem por mal, tendo consciência? Será que são mau carácter? Quais são os limites disto? Será que toda a gente que contribuiu para aquela grande fraude sabia que estava a fazer mal? Será que era má pessoa, egoísta, fria, e só queria meter dinheiro ao bolso? Custa-me um bocadinho ver as coisas com esta simplicidade. Há-de haver muita gente que acreditava que estava a fazer um pequeno mal por um bem maior. Muita gente não se apercebeu, achava que era justificável. Todas estas tonalidades de cinzento, que estão entre a visão absoluta do mal e do bem, me levaram a pensar na forma como Ricardo Salgado agiu. E porque é que agiu.

 

E então?

Para ele era o seu grupo, estava a tentar salvá-lo e esse era o bem maior. E se calhar na cabeça dele salvar o grupo significava salvar os clientes do banco. E isso era o bem maior a proteger, mesmo que implicasse alguns males pelo caminho. Não digo que tenha sido exactamente assim, que não houvesse negócios que implicaram dinheiro em muitos bolsos, não apenas da família Espírito Santo. E isto não retira nenhum facto. É mais uma camada de análise do que leva as pessoas a fazerem o que fazem. Isso leva-nos a voltar à questão sistémica. Não dá para confiar no bom e no mau. Há pessoas muito boas que cometem erros, também, e fazem coisas más.

 

O que é que a deixou boquiaberta nas comissões? Algum momento ou alguma pessoa que a tenha surpreendido de facto.

O que espantou mais foi a forma como homens inteligentes preferiam uma estratégia que passava por passarem por não-inteligentes. “Não percebi a pergunta, não sei, não me lembro”.

 

É um artifício para construir a resposta, ganhar tempo.

Ou para não dar resposta nenhuma. É a estratégia do mal menor. Mais vale passar por…

 

... estúpido do que por um mentiroso?

Exacto. Mais vale passar por incapaz do que por mentiroso. Até porque o mentiroso tem consequências jurídicas.

A outra coisa que me surpreendeu é a qualidade das elites portuguesas. Toda a gente estava à espera que uma família de banqueiros tivesse dado origem a quadros altamente capazes e preparados. E depois a realidade é diferente.

 

Gosta de ser política?

Não me lembro de alguma vez ter sido outra coisa. Se sair do parlamento e for fazer activismo para os precários ou para as feministas, ou qualquer outro movimento social, continuarei a ser política. Parlamentar? É interessante sentir quando as pessoas se sentem representadas e nos dizem isso. Parece que faz tudo mais sentido. Estar por estar… A ideia que tenho é que há muita gente aqui que já nem se lembra porque é que começou a fazer política. Às vezes encara-se mais como uma profissão do que como uma função.

 

O que é que o seu pai, Camilo Mortágua, um revolucionário, lhe contou sobre o 25 de Abril? Qual foi a narrativa familiar sobre esse dia?

O meu pai não me contou nada sobre o 25 de Abril, o dia. Quando uma pessoa passa a infância a ouvir história desgarradas... São fragmentos que vão fazendo sentido à medida que o tempo avança. Torre Bela, Reforma Agrária... Não fazia ideia do que tinha sido o PREC até ter começado, miúda, com os meus amigos do Bloco, a falar sobre o PREC e a enquadrá-lo do ponto de vista ideológico e político.

Oiço a Grândola e não me é indiferente, oiço Zeca e não me é indiferente. O 25 de Abril é dia muito especial porque emocionalmente é importante para os meus pais e sempre foi celebrado com muita emoção.

 

A sua mãe também era revolucionária?

[riso] Os meus pais conheceram-se na Torre Bela. A minha mãe é muito mais nova. Sim, é uma pessoa de esquerda.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015