Nicolau Breyner
Nicolau Breyner, quase 70 anos. Há 50 anos que o palco é uma espécie de casa. Um espectáculo no auditório do Casino de Lisboa, de 20 a 25 de Abril, põe-no a olhar para si próprio.
Em casa, a propósito do espectáculo, falou-se de porque é que foi bilingue em italiano, da atracção por personagens decadentes, do que acontece na vida de um homem quando tem cancro na próstata, do lugar da ópera na definição de um futuro. E de como tudo isso fez dele quem ele é e aparece no personagem que o público vê.
Eu show Nico, em versão uncut.
A entrevista aconteceu em casa. Nicolau Breyner é um anarca sentimental que tem “muito o sentido da família”. Home, sweet home, é “o sítio onde me sinto melhor”. Foi um homem de muitas mulheres que foi pai quando já não pensava que isso pudesse acontecer. Foi um bom vivant que deixou de beber aos 50 anos e passou a acordar de madrugada. Foi um homem de negócios que fundou uma máquina de fazer telenovelas e que conheceu a ruína aos quase 60 anos. Foi a segunda ruína da sua vida. A primeira é a de uma vida que não parece a dele. Uma vida de grandes senhores da terra, no Alentejo.
Na entrevista ouve-se o bater das cortinas de renda nas janelas, sente-se o cheiro do Verão, vê-se uma velha criada de bengala. Coisas que fazem parte da memória de Nicolau Breyner. Do Nico, como é chamado, excepto pela mulher para quem, carinhosamente, é o Niquinho. É um Mello Breyner que nunca pensou ser actor. É um artista que não gosta de se ver por ser muito auto-crítico e não ser dado ao “onanismo”. (A expressão é dele).
A casa é realmente a casa. A mulher põe a mesa, a filha chega e vai dizer bom dia, é preciso ir comprar champô e entregar um envelope a não sei onde. Tarefas domésticas, de todos os dias. De certo modo, na vida de Nicolau Breyner uma entrevista é também uma coisa de todos os dias. Há muitos anos que está habituado ao sucesso, à exposição pública. Isso diminui a timidez dele? Sim, timidez. E no meio dessa agitação quotidiana, havia a entrevista, no sofá da sala, com os olhares dos antepassados a espreitar dos quadros da parede. Uma entrevista que seria a primeira de cinco, nesse dia.
O pretexto é o espectáculo comemorativo dos 50 anos de carreira. One man show, ele estará sozinho em palco, a olhar para si próprio. Com aguda ironia.
Na entrevista, olhou-se sem contemplações.
Este ano faz 70 anos. Chegou à fase em que diz tudo o que lhe apetece. É uma conquista?
Quase tudo. Não tenho o direito de dizer coisas que firam outras pessoas. Se for preciso mentir, desde que isso não cause mal a outros, claro que minto. A velhice não é boa, temos de nos habituar a viver com ela. Mas temos alguns direitos adquiridos, e um deles é esse, dizer o que pensamos.
Já não há nada a perder?
Mais do que isso, há um prazer em dizer aquilo que se sente. Tenho de me fazer ouvir.
Quando é sentiu que estava a envelhecer?
Isso é que é grave: não sinto que estou a envelhecer. É gravíssimo. Estes meus 50 anos de carreira fizeram-me reflectir sobre a idade e sobre o envelhecimento. Claro que fisicamente ficamos diferentes. Profissionalmente não noto diferença. Há tempos que não escrevia coisas de humor e agora estou a escrever. Estou a trabalhar em três ou quatro coisas ao mesmo tempo. Faço-o tranquilamente, sem esmorecimento. Produzo muito mais, muito melhor. Ainda vou ao ginásio (sempre trabalhei com pesos muito pesados e continuo a fazê-lo). Depois há as outras coisas: já tenho de tomar remédios, o que há cinco anos não fazia sentido.
Que impacto é que o cancro teve em si? Acelerou a sua noção de envelhecimento?
O que o cancro me deu foi a certeza de que isto ia acabar mais cedo ou mais tarde. Acelerou a sensação de que a vida tem um fim. Já não há a noção de imortalidade que temos aos 30, 40 anos. O fim está mais próximo do que estava há 10 anos. No primeiro momento é terrível, é uma espécie de pontapé na cabeça.
Como é que foi?
Um amigo viu umas análises minhas e disse-me que tinha um problema muito grave. Percebi logo o que era. Nunca tinha feito uma análise na vida. Tirando o cancro, sou o gajo mais saudável do mundo. Aliás, cancro, já não tenho. Tenho um coração, uns pulmões, uns ossos, tudo óptimo. As análises vieram e a Mafalda [a mulher] abriu-as; depois ficou no pânico de me dizer que as tinha aberto. Um dia, na praia, estávamos felicíssimos, chegou ao pé de mim a chorar e disse: “Não me vai perdoar, mas abri as análises”. E foi assim.
O facto de ser um cancro na próstata, que potencialmente afecta a virilidade, quando se tem a sua idade, um casamento de quatro anos e uma mulher muito mais nova, foi um fantasma?
É verdade. São fantasmas que temos de exorcizar. E lutar para que não seja assim, tomar todos os cuidados para que tudo volte à normalidade.
Tem essa imagem de quem não se vai abaixo.
Tenho a imagem e sou assim, não me vou abaixo. Duas coisas: sou católico, tenho fé. Não sou neo-católico por necessidade, sempre fui. Depois tenho uma família óptima e uma mulher que me apoiou tremendamente. E tenho a sorte de ter imenso trabalho.
Terapia ocupacional.
Completamente. Não tenho a sensação de quebra, em nada. Fiz quimioterapia e nunca tive enjoos, vómitos. Tenho um organismo de antes da guerra [risos], é material muito mais forte.
Olhando para trás, para a sua vida toda, o que é que o deitou abaixo? E o que é que o fez tão resistente?
Nasce-se resistente. Outra coisa, que é uma couraça, é o meu sentido de humor. O humor com que vejo a vida e o quanto me divirto a viver. Divirto-me a ir tomar um café ao “Chefe”, aqui na Lapa, a ver uma porcaria qualquer na televisão, a ler um livro, a rir com os meus amigos, a fazer as cenas mais dramáticas numa novela.
Que momentos dramáticos foram os da sua vida? Que fracturas são as suas?
Nunca pensei nisso. A morte dos meus pais, do meu avô, que adorava. Algumas traições perturbantes, de amigos. Crises económicas, uma em especial, quando deixei a NBP. A minha vinda de Serpa, com nove anos. Na altura não tinha consciência, mas mudou completamente a minha vida. Vinha do exterior, do campo, dos cavalos, com um grande conforto financeiro. Quando os meus pais perdem tudo, vimos para Lisboa.
Dê-me mais detalhadamente o quadro da sua infância. O que é que significou essa ruína?
Foi muito mitigada pela família. Nasci com uma mãe e um pai espantosos. Tive uma irmã mais nova, que morreu com um ano. Lembro-me vagamente, tinha dois anos e tal quando ela morreu.
Lembra-se de assistir à dor na casa?
Não. Lembro-me dos olhos dela; eram verdes, muito grandes. Chamava-se Madalena. Tinha os olhos do meu pai e o cabelo preto da minha mãe. Morreu com uma gastroenterite, que passado uns meses se teria curado com sulfamidas. Estávamos de férias, na praia. Claro que deve ter sido fracturante.
Sobretudo pelo impacto que provocou nos seus pais, e pela maneira como lidaram consigo a seguir.
A minha mãe, depois, centrou-se muito em mim. Foi assim até ao fim da vida. Tive de lutar muito com isso. No seu extremo amor por mim, atabafava-me um bocado. Já era homem, com 60 anos, e dizia-me para ter cuidado a atravessar a rua. Era o único filho e a sua única companhia. No último ano fui viver com ela, porque percebi que duraria pouco. Ainda bem que fui, foi muito bom poder acompanhá-la.
Ia com ela à “Mexicana”, na Praça de Londres, às cinco da tarde? Corresponde a uma geografia e a um determinado quadro social.
Exactamente. A minha mãe marcou-me muito.
Usa o nome de família dela.
Sou João Nicolau de Mello Breyner Moreira Lopes. No colégio todos me chamavam por Breyner e Nicolau, que era um nome que não existia. E depois, Nico. Ficou assim.
A infância, em Serpa. Eram os senhores da terra.
Uma casa muito grande, com dois andares. Um monte, dos Pereiros, que era do meu avô. As empregadas, que nessa altura se chamavam criadas. Uma criada muito velha, a Bia, que tinha ido para casa dos meus bisavós para brincar quando o meu avô nasceu (ia-se buscar uma filha de uma empregada para brincar com os meninos). Era uma personagem espantosa, a verdadeira dona da casa. Está num jazigo da nossa família, em Serpa. Ainda me criou a mim até aos oito anos. Um dia sentou-se no quintalão, onde havia um poço, e enchi-lhe a cabeça de água, para a pentear, no Inverno. Ficou constipada. A minha Bia adorava que lhe fizesse estas coisas.
Era excessivamente mimado?
A minha mãe e o meu pai educaram-me muito bem. Fiz uma vez uma birra à minha mãe, e subi as escadas a levar estalos até lá acima. Além disso, a minha vida em Lisboa, quando perdemos tudo, tornou-se difícil. Tinha todas as condições para ter sido mimado, mas não fui. No Verão íamos para a praia de Monte Gordo ou para a Caparica. Os dias passavam-se entre a escola, com a D. Branca, que ia lá a casa dar aulas…
Uma preceptora à antiga?
Sim. Mais tarde ia eu a casa dela. E depois, o professor Gaspar. Isto passava-se naquela moleza do Alentejo. Há uma imagem que me fica, descia a rua onde vivíamos, subia a Rua dos Fidalgos, e as tias, de várias janelas, falavam connosco. Ao longe via uma janela entreaberta, com aquelas cortinas pesadas de renda a esvoaçar. E o cheiro do Alentejo, das estevas, o cheiro a Verão... Detesto o Inverno. Muitas vezes digo da vida: “Quantos verões me faltam?”. Adorava morrer num daqueles dias chuvosos, feios, com vento, para não ter pena.
De repente, tudo se transforma.
Venho para Lisboa, uma cidade hostil, vivia num andar. Os carros e os eléctricos fascinavam-me. O meu pai era professor de Filosofia, formou-se em Itália, num colégio particular, caro, em Roma. Estudou como se fosse para padre. Nunca foi um beato; católico, sim. Daí que até aos 14 anos eu fosse bilingue. O meu pai falava comigo em italiano, por brincadeira. O meu pai veio para Portugal, e depois para o Serpa, com o meu tio Luís, irmão dele, também professor, onde queriam fazer um grande colégio de rapazes. É lá que conhece a minha mãe. Casam. O meu pai adopta o Alentejo, era a pessoa mais alentejana que conheci. Nasci lá e tive pouco contacto com a família do meu pai.
O que é que desencadeou a mudança súbita de vida?
O meu avô era um grande lavrador, e de repente, graças a uma coisa que não vale a pena contar, perdeu quase tudo o que tinha. Viemos todos juntos para Lisboa. Depois as pessoas foram desaparecendo. O primeiro foi o meu avô, só viveu cinco anos em Lisboa (digo sempre que desistiu de viver quando veio para cá). De seguida a minha bisavó materna. Depois o meu pai, a minha avó e a minha mãe, que já morreu com 80 e muitos anos.
Então percebeu cedo que se morria, e que se morria de tristeza.
Cedíssimo, sim. Eu e o meu avô fazíamos anos no mesmo dia, 30 de Julho. Era ligado à terra, aos cavalos. Também pintava muito bem e era um contador de histórias espantoso. Viajava imenso com o meu avô em histórias que ele me contava.
No Alentejo, nunca lhe ocorreu que podia estar do outro lado? Era o menino, e não era o filho da empregada que ia brincar com o menino.
Sempre me ocorreu. Vivo perturbado todos os dias, e sempre que abro um jornal, com a total injustiça social. Cada vez que me acontece alguma coisa boa materialmente – ganhar mais dinheiro – há sempre em mim um sentimento de vergonha. Penso nas pessoas que naquele momento não sabem se têm dinheiro para almoçar e para dar almoço aos filhos.
Quem é que o ensinou a olhar para os outros com esse cuidado?
Tem a ver com o Alentejo, com as pessoas menos protegidas. O meu avô várias vezes tirou as botas para as dar aos pobres, e aparecia descalço em casa. Tinha outras, como é lógico. Fui educado assim. Não sou rico, trabalho como uma besta para poder viver com o conforto que quero. Mas tenho uma maneira de me relacionar com as pessoas. Não renego as minhas origens. Se me dissessem para todos deixarmos de ter tanto, para mais pessoas terem, estava plenamente de acordo. Cada vez que vejo certos rendimentos fico alucinado. Por exemplo, sou incapaz de gastar muito dinheiro em roupa, e não é forretice. Odeio lojas, odeio consumismo, reclamo contra tudo. Ontem tive de ir comprar um fato por causa do espectáculo e achei um roubo!
Viveu a vida toda com o pânico de que voltasse a acontecer a ruína, que conheceu em criança?
Já me aconteceu, há uns anos. Do porquê, não vou falar. Tinha perto de 60 anos, tinha duas filhas, e as coisas ficaram muito feias para mim. Não foi pânico porque entro pouco em pânico, mas é uma sensação terrível. Não é o não ter que me assusta, é se as pessoas que dependem de mim não tiverem. Conheço os dois lados. Tenho uma grande sorte, conheço quase tudo.
O seu fascínio pelos losers, pelas personagens decadentes, tem a ver com esta história?
Conheci muitos.
Quem é que foi o loser da sua histórias?
Loser pode parecer uma coisa depreciativa. A decadência passou muito perto da minha família. O meu pai era o meu herói. Quando a família teve o grande débâcle [desastre] foi ele que tomou as rédeas. Fê-la viver e ser sustentável. E fez-me estudar. Foi sempre ele, até à morte. Morreu com um cancro no estômago, ainda não tinha 60 anos. Na família já estou a bater todos os homens, que morrem cedo.
Nunca lhe passou pela cabeça, nem no momento da sua ruína, matar-se?
Nunca. Não sei se sou demasiado cobarde ou demasiado valente para não me suicidar, mas não tenho o perfil do suicida. Tenho esta necessidade de viver várias vidas, mas isso não. Sou um louco muito saudável.
Toda essa vida parece a de outra pessoa. A vida artística é um exercício esquizofrénico?
É. É tudo isso, com uma grande história em Lisboa, com copos, com não sei quantos casamentos, tudo isso faz parte de mim. Não sou uma coisa, sou várias coisas. Nunca sou de nenhum lugar, sou de muitos lugares.
O que é que ainda tem desse que era há 50 anos?
O entusiasmo. A necessidade de inovar e começar coisas novas. O amor à vida. O sentido da beleza. A vontade de sonhar, que ainda não passou. Se é que tenho qualidades, essa é uma delas. Quando tomo conta de um projecto que me agrade, sou outra vez um miúdo de 20 anos.
O que é que perdeu, o que é que já não há desse que era há 50 anos?
Há menos capacidade para acreditar nas pessoas. Desconfio totalmente do ser humano. Há um maior comodismo, um desacreditar na política, há uma preocupação maior. Não quero saber se o PIB subiu ou desceu, quero saber se as pessoas têm condições para viver, se quando estão doentes vão ao hospital e são tratados, se quando têm uma querela com uma entidade os advogados as tratam [como tratam aqueles que têm mais dinheiro do que elas]. A perversidade devia ser esta: um departamento pago pelo Estado, só com grandes advogados, em causas contra o Estado! Sou um anarquista. O Francisco Lucas Pires disse-me que era um anarquista de direita. Por acaso sou mais um homem de centro. Neste momento sou um apátrida político. A lei é uma coisa que me irrita. Sempre que me dizem que sou obrigado a fazer alguma coisa, a minha vontade é fazer logo o contrário. Gobiernos, yo soy contra!”, à mexicana. O Estado são pessoas de má fé, de um modo geral, em todo o mundo. São empresas que tiram o mais que podem e dão o menos que podem. No fundo, resume-se a isto.
Nem parece que estou a falar com um ex-candidato à Câmara de Serpa.
Está. A política para mim só existe assim. Tenho vergonha enquanto ser humano, enquanto cidadão, de coisas que vejo. O meu desacreditar é tão grande que já não estou a falar só de Portugal. Isto passa-se em todo o mundo, de outras maneiras. É promíscuo, é porco. Somos cada vez mais números e cada vez menos seres humanos.
Espantou-o que as pessoas não tivessem votado em si o suficiente para o elegerem presidente da Câmara?
Falhei por 1200 votos, o que foi muito bom. Era apoiado por um partido que ainda hoje não tem implantação nenhuma no Alentejo, o CDS/PP, e tinha contra mim um adversário fortíssimo, de quem sou amigo, o João Rocha, que nessa altura já tinha muitos anos de câmara, apoiado pelo Partido Comunista. Esteve quase a ser, mas não foi. A minha visão não me permite ser ministro, secretário de Estado ou deputado. Ser presidente da Câmara é diferente, é a única maneira de agir directamente com as pessoas.
Era um regresso à sua terra.
Melhor ainda. Não quereria ser presidente da Câmara de uma terra que não fosse a minha. O que disse foi que podia fazer coisas por aquela terra. Não fiz e nunca mais tive ambições políticas. Há muitos anos foi-me oferecido um lugar que não aceitei, como não aceitaria agora. Fui sondado para secretário de Estado da Cultura.
Porque é que recusou?
Não me ponham atrás de uma secretária, dou em doido. Na câmara é diferente, vão-se ver as coisas, com os nossos olhos. Não tenho perfil, digo tudo o que penso, seria uma desgraça total. Meteria vários Governos em sarilhos de certeza.
Nem sequer se deixou convencer pela vaidade?
Não sou uma pessoa vaidosa. Sou orgulhoso. Faço as coisas com orgulho e gosto. Quando dizem que a nossa profissão é 30 por cento de talento e 70 por cento de trabalho, é ao contrário. Doa a quem doer. E provo. São 75 por cento de talento e 25 por cento de trabalho. Os 75 foram-me dados por Deus, não tenho por que ser orgulhoso. É-se orgulhoso do que fazemos, do que produzimos.
Como é que deu em artista?
Não dei. Não sabia, mas já era. A minha mãe e o meu avô pintavam muito bem, o meu tio Domingos cantava muito bem. O avô do meu pai, que era um filantropo da zona do Porto, fez um conservatório de música. Tudo isto, (esses genes perdidos de várias gerações), veio calhar em mim, deu naquilo que sou. A música tem uma razão: os meus pais eram melómanos e a minha mãe tinha o curso superior de piano. Com 20 e tal anos, ouvia osBeatles e os Rolling Stones, mas gostava mesmo era de música clássica. Um dia comecei a cantar e as pessoas disseram que tinha uma voz muito boa. A minha mãe incentivou-me, mas quando disse que queria ser profissional fez marcha atrás.
Porquê? Não era suficientemente digno?
Na altura era diferente.
Por causa do estigma da homossexualidade?
Não. Ser artista ou saltimbanco era parecido. Não era socialmente bem aceite. Ela e o meu pai fizeram uma resistência muito inteligente, e um dia perceberam que não era possível. Quando tinha 19 anos o meu pai chamou-me e conversámos. O meu pai, nessa altura, era inspector da Junta Nacional de Emigração e viajava imenso; conheceu a bordo de um barco, da Argentina para cá, o José Mujica, um grande cantor que depois foi para frade. Quando chegou cá, apresentou-mo. Ele ouviu-me cantar e disse-nos: “Acho que faz mal se não cantar, a sua voz é uma bênção de Deus”.
O que queria era ser cantor de ópera?
Sim. Nunca tinha pensado ser actor. O meu pai disse que a ópera era uma arte cénica e que tinha de ir para o Conservatório para aprender teatro e juntar as duas coisas. Comecei a perceber que não tinha coragem para manter aquela disciplina… A vida de um cantor de ópera é como a de um bailarino. O que se come, o que se bebe, o sol que não se apanha. Não era isso que queria aos 20 anos. Entretanto o Conservatório começou a tomar conta de mim, e cá estou.
Quando é que se lembra de ter cantado pela primeira vez, mesmo que em casa?
Tinha uns 12 anos.
Cantava por cima dos discos de vinil?
Sim.A professora da Juventude Musical entusiasmou-me a ir para Itália, onde fiz alguns workshops.Estive lá três meses, tinha 17 anos. E em Portugal não havia condições para se cantar ópera.
A estroinice era irresistível?
Era.
O que é que foi um deslumbramento para si? A descoberta do sexo, da noite?
O sexo, descobri-o muito cedo. Foi a noite, os copos, os amigos. Sempre tive vários grupos de amigos, muito ecléticos. Um grupo dos meus amigos de família, um grupo da malta do teatro e da noite, um grupo dos toiros e dos forcados, outro da malta do rugby.
O rugby é desporto de menino bem.
Nessa altura os forcados também eram. Mas tenho grandes amigos em todas as classes sociais, se é que isso existe.
Até aos 20 anos era fisicamente muito violento. Em todas essas coisas há uma ponta de marialvismo. Porque é que era assim?
Tinha 80 quilos e não era gordo, era maciço, fazia muito desporto. Penso que era “bem” ser-se violento.
Como assim?
A noite em Lisboa tinha aquelas cenas, sempre macacas: andava-se à pancada com as mãos e com os pés, agora é com pistolas e com facas. Faz parte de uma afirmação de virilidade, juventude. É como começar a fumar e deixar crescer o bigode.
E é também uma sensação de pertença a um grupo.
Claro! Porque é que existe o futebol? Nunca me senti rejeitado em nenhum grupo, bem pelo contrário.
Sempre foi o líder? Isso deve-se a quê, à não-timidez?
Aí é que está o seu engano: sou tímido. Ainda hoje, para atravessar um café, vou de cabeça baixa. O meu humor, a minha constante brincadeira, eram uma maneira de vencer a timidez. Nunca tentei perceber o que é a minha timidez. Se entrar num sítio onde não conheço ninguém, e sei que as pessoas me conhecem, ainda fico à espera que venham falar comigo.
É muito sedutor. É um desejo de conquistar aquela plateia, de seduzir aquele grupo?
A fama precede-nos. Quando se chega a um sítio as pessoas sabem quem sou e estão à espera que faça exactamente aquilo.
E passa a ser o boneco de si mesmo.
Não me sinto um boneco, não sou diferente. Faço porque me apetece ser assim, não é um esforço. É raro ter um dia completo de neura, mas nessa altura não falo e tenho mau feitio.
Voltando aos 20 anos. Começou logo a ter sucesso? Isso fez-lhe bem?
Fiz sucesso aos 20, mas também fiz uma tarimba longa. Aprendi com os melhores, lentamente. Não havia aquela coisa do viu, chegou e venceu. Chegaste, viste, e aguenta aí que depois vencerás. Estive anos a fazer papéis de quatro frases. Só comecei a ser muito conhecido em 1975, 76.
Com o “Senhor feliz, senhor contente”?
Sim. E comecei nos anos 60.
Que vida era a sua nesses anos de transição, de amadurecimento?
No Conservatório inventei um sistema engraçado. Dormia até ao meio-dia, ia para o Conservatório, depois ia à faculdade, deitava-me às seis da tarde e levantava-me à meia-noite. Fiz anos seguidos esta vida. No teatro fiz uma vida muito desregrada, deitava-me às cinco, seis da manhã. Começo a fazer televisão e cinema, e inverto a minha vida aos 40 e tal anos. Quando construí o estúdio [da NBP] tinha que estar lá muito cedo; nesse momento acordo às cinco e meia da manhã, todos os dias. É assim há muitos anos. Às 11 horas da noite estou a morrer de sono.
Nesses anos, bebia?
Muito, tudo. Fazia parte. E depois dava as cenas de pancada. Tudo estava ligado. Deixei de beber quando percebi que estava a ficar um bocadinho dependente da bebida – dependências, não. Comecei a cortar, e aos 50 anos cortei completamente. Bebo de vez em quando um copo de vinho.
Já era muito bem sucedido junto das mulheres?
Era. [risos] Mas até aos 16, 17 anos era tímido. Depois é que isso começa. Raramente dei o primeiro passo sem ter a certeza de que ia acontecer. Por orgulho – não queria ser rejeitado.
Se tivesse ficado no Alentejo, na sua condição social, o natural seria que a iniciação sexual fosse feita com uma empregada.
E foi. Tinha 13 ou 14 e já estava em Lisboa. Tudo bate certo na vida das pessoas. Não sabemos descodificar os sinais mas eles estão lá.
Não é surpreendente que trate a sua mulher por você. Bate certo com o que está para trás. É uma forma de relação, é uma música que se adquire e que depois se reproduz.
Claro que sim. [A mulher põe a mesa para o almoço na sala contígua] Trato-a muitas vezes por você, Mafalda. Gosta de me tratar a mim por você, e quer que eu a trate por tu. Mas isso tem uma razão de ser: conhecia-a quando ela tinha 12 anos.
Que idade tem a Mafalda?
Tem 42. Sou amigo do pai e da mãe dela. Ela habituou-se a tratar-me por Niquinho. Comprava-lhe gelados!
Há aí alguma incestuosidade...
Se calhar há. Fui aos dois casamentos dela, como convidado. O pai da Mafalda tem menos quatro anos do que eu e lembro-me perfeitamente de ele ter dito que tinha tido uma filha.
Porque é que tem sempre mulheres muito mais novas?
Não faço a mínima ideia. Nem sempre foi assim. [A minha primeira mulher] era um ano mais velha. As outras: algumas não eram muito mais novas, mas eram mais novas, sim.
Elixir da juventude?
Bem no fundo existe isso, também.
É uma resistência à velhice?
Às vezes tenho uma grande dificuldade de comunicação com pessoas da minha idade. Temos maneiras diferentes de pensar.
Teve filhos com quase 50 anos. Não há prendimento maior do que os filhos. Foi por isso?
Nunca fiz nada para ter ou não ter filhos. Não foi planeado. Um dia apareceram e foram muito bem-vindas. Vivemos muito perto, elas entram e saem muito. A Mariana está a viver comigo, já fez 18 anos. A Constança está em casa da mãe, mas não estamos distantes nunca. Não há obrigatoriedades, os afectos são voluntários.
Não quis constituir família e ter a família tradicional, reproduzindo a sua família de origem?
Mas quis. Tive vários casamentos e consequentes divórcios. Sempre quis ter uma relação estável e boa. Não aconteceu por vários motivos, normalmente por minha causa. Sempre quis ter aquilo que tenho agora: uma família estruturada. Tenho muito o sentido da família, o sítio onde me sinto melhor é a minha casa.
Antes de 1965, antes do sucesso: estava a ganhar tarimba para ser o quê?
Para continuar a ser actor. Para chegar onde estavam aqueles que naquele momento trabalhavam comigo, a Laura Alves, o Raul [Solnado], o Ribeirinho. A Laura foi uma grande amiga e professora (os cursos ensinam pouco). Representar é uma coisa que me dá prazer. Viver outra vida dá-me prazer.
Como é que aparece o fundador da NBP, o realizador e actor principal da Vila Faia? Habituámo-nos a vê-lo como um líder. Foi uma determinação sua ou aconteceu?
As lideranças têm de ser reconhecidas pelos outros. Não é líder quem quer, mas quem os outros elegem como líder. Adoro começar projectos. Não quer dizer que um ano depois já não esteja farto. Na NBP éramos três sócios, em partes iguais, mas dois eram patrões e eu era o chefe.
É mais chefe que patrão?
Não sei ser patrão. Ou sei, mas um patrão pouco rentável para a empresa.
É verdade que tem uma total incapacidade para lidar com dinheiro? Como é que nunca aprendeu isso?
Completamente. Vem tudo nos códigos genéticos: o meu avô perdeu uma fortuna da mesma maneira que perdi outra.
Percebeu a replicação desse quadro quando estava a passar por ele?
Quando estava iminente pensei nisso. A certa altura tornou-se inevitável. Quis lutar mas já não pude, já não tinha armas. E foi o que aconteceu com o meu avô. Mas ele nem tentou lutar, porque o desgosto da traição foi tremendo. Quando tudo aconteceu, durante muito tempo o que mais me magoava era ter sido atraiçoado por uma pessoa em quem confiava. Era quase mais importante do que o resto.
O que é que aprendeu?
Não aprendi, solidifiquei a minha convicção de que, infelizmente, muitas vezes, o ser humano não é fiável. E temos de usar a cabeça – a maior parte do tempo uso o coração. Até quando trabalho, sou mais coração do que cabeça. Sou um actor intuitivo. E quando dirijo não sou um realizador de estudo.
Que parte disso que viveu usa enquanto material de trabalho? Um actor é as suas emoções, a sua vida. É um cliché ou é verdade?
Eu sou. Um actor pode ser bom ou mau sendo cerebral ou emotivo. Quando estou a dirigir, se um actor me dá aquilo que quero, se me está a transmitir uma emoção, se me está a contar uma história, não quero saber como chegou a isso. Só conta que ele me emocione, me surpreenda. Quem me disse isto foi o Ribeirinho. Tinha péssimo feitio, mas tinha um relacionamento espantoso com ele. Ceávamos muitas vezes juntos. Tive o prazer e a honra de ser dirigido por ele na primeira peça que fiz no Conservatório. Mais tarde fiz uma peça dirigida e escrita por ele, fiz peças com ele, escrevi revista com ele e depois dirigi-o numa peça. Todos o tratavam por Mestre Ribeiro, eu tratava-o por Mestre Chico.
Neste espectáculo comemorativo dos seus 50 anos de carreira, vai evocar os seus personagens mais famosos? A sua vida? Vai fazer um exercício de auto-ironia?
Mais a minha vida e a auto-ironia. Não é uma história da minha vida, não é uma coisa lamecha e saudosista. Aparecem imagens para brincar com o que fiz. Depois é um olhar sobre a minha disfunção total com tudo o que é tecnologia, o choque geracional, o gozo com os papéis das novelas, a política.
É verdade que diz, sobre o que faz em televisão: “Para fazer é um preço, para ver é outro”?
Digo isso sempre! Digo isso na cara dos gajos que escreveram a novela. “Para ver, tinham que me pagar o dobro!”.
Porque é mau? Porque não gosta de se ver?
Não. Mesmo um belíssimo filme, tenho muita dificuldade em ver todo, encontro sempre defeitos. Vejo se houver uma questão técnica. Sou muito auto-crítico. Esse sentido onanístico não faz sentido para mim.
Quando olha para si enquanto João Godunha, o seu personagem na novela Vila Faia, não tem a noção de que está a olhar para uma pessoa diferente?
Tenho. Fiz muita coisa, e não me lembro de metade. Não fazia a mínima ideia de que tinha feito 50 filmes. Há dias telefonaram-me da RTP a dizer que o levantamento das minhas coisas era uma confusão, não tinham chegado a metade e já tinham 70 páginas!
Foi fazer, fazer, fazer porque era preciso ganhar dinheiro?
Sim. Como faço hoje, porque é preciso ganhar dinheiro. Mas fiz sempre tudo com a maior alegria, boa disposição e empenho.
Mesmo quando não é bom? Consegue extrair alegria daí?
Sim, sim. Mesmo quando não são tão boas, tenho a obrigação de fazer o meu melhor para que as pessoas gostem. Não sou um artista que possa viver só da arte, tenho de viver do público. Não posso dar-me ao luxo de fazer uma coisa de que o público não goste.
Quando realizou, pegou num livro do Dinis Machado, melhor, do Dennis McShade.
Exactamente. Uma das personagens chama-se McShade, em homenagem a ele, ao meu querido Dinis. Vou fazer outro filme em Setembro e tenho mais dois para fazer. Gosto muito de realizar. Dei entrevistas ao Século Ilustrado e à Flama em que dizia que o que queria realmente era o cinema.
Tem um personagem preferido?
Não. É como perguntar a um pai de que filho é que gosta mais. De todos extraí qualquer coisa de bom, que me agradou e deixou saudades. Às vezes alguma coisa era má, mas a malta com quem trabalhei era óptima, ou o catering era muito bom. [riso]. Quando estou a dirigir escolho o catering. Não sou comilão, mas chateia-me comer mal.
Publicado originalmente no Público em 2010