Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Anabela Mota Ribeiro

Dia do Pai

18.03.16

Houve um tempo em que estes homens e mulheres foram, sobretudo, os filhos dos seus pais. Aprenderam com eles, cresceram com eles, quiserem ser como eles. Amaram-nos, rebelaram-se. Procuraram neles a confirmação de quem eram. Vincaram as diferenças entre um e outro. Permaneceram ligados até ao fim, ou distanciaram-me. Ou foram afastados pela vida e pela morte.

Falar do Pai é falar de uma parte de nós. De como nos fizemos, de quem somos. Em entrevista ao Jornal de Negócios, na série que conduzo, são incontáveis as referências à figura do Pai. São quase sempre, pela presença ou pela ausência, essenciais para perceber quem são aqueles que tenho à frente e que tento revelar aos leitores.

Reler as entrevistas e recuperar partes delas é uma confirmação disso mesmo.

Optei por compor um mosaico a partir de excertos de diferentes entrevistados, recuperar histórias, evocações, uma teia de relações. A descontextualização é forçosa, mas tentei que o espírito da conversa se mantivesse. A selecção é abrangente, mas deixa, mesmo assim, muitos nomes de fora. Pela simples razão de a figura da Mãe ser mais forte em alguns casos, ou porque a referência era aos Pais e não apenas a um dos progenitores.

E agora, vamos conhecer um pouco os pais destes filhos…

 

André Gonçalves Pereira

O meu pai nasceu em Goa, porque o meu avô, que era juiz e passou a advogado, se casou com uma senhora goesa. Mas veio muito cedo para Portugal – não havia Direito em Goa.

Como era professor universitário, ligava grande importância às classificações.

O meu pai teria gostado mais de ser professor da Faculdade de Direito do que de Económicas, como foi. Nessa altura, ser professor da Faculdade de Direito era mais importante do que é hoje. O motivo que me levou a estudar foi o desejo de agradar ao meu pai e a vaidade de querer aparecer como um bom aluno.

Acontecia uma coisa curiosa que só vim a compreender muitos anos depois: quando andávamos pelo país e pelo estrangeiro, estava sempre a encontrar antigos alunos, que o iam cumprimentar. Era muito sensível a isso.

 

André Jordan

O meu pai era brilhante, e muito aventureiro. Não gostava de falar no passado. Vivia sempre o presente e o futuro. Tinha muita iniciativa, mas era pouco persistente. Os negócios dele eram muito complicados. Envolviam grandes capitais e pessoas muito proeminentes. De modo que havia sempre situações de tensão que eu, desde muito novo, fui recrutado para amainar. Era um grande sedutor, e tinha muitas viúvas...

 

António de Almeida

Eu era presidente da União de Bancos, saía de Lisboa ou do Porto e ia à casa de saúde de Viseu [onde o meu pai estava internado]. Fazer-lhe a barba era um modo de pedir perdão. Por exemplo, um dos sonhos do meu pai era ir a Paris. Gostava de ver o túmulo de Napoleão, a Torre Eiffel. A União de Bancos Portugueses tinha um banco em Paris, fui a Paris centenas de vezes… O meu pai morreu sem eu ter tido a generosidade de sacrificar um fim de semana para lhe dar esse prazer. Aquele gesto de pegar no pincel, pôr-lhe o sabão na cara e fazer-lhe a barba, nas últimas semanas de vida, pretende redimir-me de uma falta de companhia.

O meu pai, do ponto de vista material, não me deixou nada. Tenho uma fotografia dele quando tocava música na banda do Clube Ferroviário de Moçambique com as medalhas que ganhou. Mas recebi dele a coragem de um homem que, sendo caiador em Celorico, em 1937, quando eu nasci, disse: “O nosso filho vai ficar igual a nós, tenho que sair”. E meteu-se num barco e foi para Angola e depois Moçambique.

 

Artur Santos Silva

O meu Pai era o meu herói.

Era um advogado de sucesso, mas o princípio da vida foi difícil. Vivia com algumas limitações, (como toda a gente). Comprou o primeiro automóvel e tirou carta só aos 45 anos.

A sua vida profissional foi muito afectada por ter sido preso várias vezes. Não houve nenhum importante acontecimento político a que não tenha estado ligado.

Nunca me passou pela cabeça estar ligado a um banco, quando entrei em Direito. Fui fazer o curso de Direito e pensava vir a trabalhar com o meu pai.

 

Bagão Félix

O pai é uma figura de autoridade que nos fascina sempre. A relação de autoridade, quando mais não seja pela omissão ou silêncio, é muito paternal, mais do que maternal. Mas estou a referir-me à infância nos anos 50, no século passado…

 

Campos e Cunha

A minha vida foi toda marcada pelo facto de o meu pai ter sido militar. Não era um militar típico, deu-me sempre uma grande liberdade. A única coisa que me impôs foi não ir para o Colégio Militar – para onde foram vários amigos meus, porque receava que eu, mais tarde, fosse para a Academia Militar.

Sempre me transmitiu valores de austeridade.

Esteve no coração da revolução, antes e depois. Era o elo de ligação, basicamente, entre os homens do 25 de Abril e Costa Gomes – de quem foi chefe de gabinete. Ele confiava muito em mim, sempre me tratou como um adulto. Fui talvez a pessoa mais nova em Portugal que soube que o 25 de Abril ia acontecer. Porque ele disse-me. Não disse que seria no dia 25 de Abril porque isso nem ele sabia. Mas estava para embarcar para Angola no dia 5 de Maio e confidenciou-me: “Já não vou embarcar para Angola, porque dentro de dias vai haver uma revolução”.

Muitas vezes queria saber a minha opinião. Por exemplo: quase todos os discursos do Costa Gomes foram escritos pelo meu pai. Eu era a pessoa que os lia. “Olha, está aqui o discurso, vê lá o que achas”. Umas vezes terá aceitado as minhas sugestões, outras não.

Julgo que tinha confiança em mim. Sabia que eu não falava sobre as coisas.

Foi uma coisa que o meu pai me transmitiu: que tenho obrigação de dizer aquilo que penso, e dizê-lo publicamente.

 

Carlos Moreira da Silva

Eu era um aluno medíocre. Nas férias da Páscoa, chumbei por faltas. Por jogar ao bilhar e futebol - coisas bem mais interessantes [do que estudar]... E tive sete negativas em nove disciplinas. O meu pai pôs-me a trabalhar numa fábrica de um tio meu, de curtumes. Trabalhei desde a Páscoa até ao dia 30 de Setembro. Não houve terceiro período nem férias. Tinha 12 anos. Ao sábado, trabalhava-se até ao meio-dia, nas fábricas, e eu pegava no dinheiro que recebia, 13 escudos, chegava a casa e dava-o ao meu pai. Ele devolveu-mo, um tempo mais tarde. Quando achei que tinha acabado o castigo é que foi violento: fui para um colégio interno, em Oliveira de Azeméis.

Tive uma educação muito rígida, que não funcionou mal.

 

Diogo Vaz Guedes

Os meus pais separaram-se cedo, em 1968 ou 69, e eu não via muito o meu pai. Sempre tivemos uma relação especial, uma relação de amigos. Eu era muito responsável e precoce, e por vezes tive o papel de pai e ele o papel de filho.

Outro dos adultos marcantes, foi o meu padrasto, que trato por pai. Posso dizer que tenho dois pais.

Mesmo que a gente não se veja muito, ele está, ele está. Mas faz falta aos meus filhos terem um avô mais presente. Ele não foi um pai muito presente e sei que isso me fez falta. O que faz falta aos meus filhos, faz falta a mim, o que é um presente bom para os meus filhos, é um presente bom para mim.

 

Elisa Ferreira

O meu pai tinha um grande orgulho em mim, quase uma vaidade, que procurava esconder. O orgulho expressava-se do seguinte modo: depositava em mim uma enorme confiança e sabia do que eu era capaz. Por exemplo, mandava-me às finanças pagar impostos e tratar assuntos burocráticos. Eu ficava toda vaidosa quando a seguir dava conta do recado!

Essa confiança absoluta era para mim uma grande fonte de auto-estima.

 

Horácio Roque

O meu pai era um homem de prestígio na região. Basta dizer que depois da escola, ia almoçar a casa do padre. Produzia-se cereal, vinho, azeite, havia os animais que trabalhavam a terra, cabras, ovelhas, muitas galinhas, muitos coelhos. Todos os anos se vendia uma parte da produção. E vendia-se resina.

Nos últimos sete anos em que o meu pai explorou a casa, cobri-lhe o défice. Ele devia algum dinheiro, 60 ou 70 contos. Sugeri-lhe que se vendesse uma parte da terra e se pagasse aquele valor. E o meu pai começou a chorar. As lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo. Dizia: «Vocês são todos iguais»… A vontade de manter aquilo que construiu ao longo da vida era tão grande que era incapaz de se desfazer do que quer que fosse. Achava, ainda, que aquilo seria o futuro dos filhos! Embora nenhum deles estivesse lá. Apercebi-me de que seria uma humilhação tremenda vender uma parte da terra.

Foi a única vez que o vi chorar.

Paguei todas as dívidas. O meu pai tinha imenso orgulho em mim e contava a toda a gente do meu gesto.

 

João Rendeiro

O meu pai é já um velhinho, tem 90 anos e fala sobretudo de quando me levava ao circo a comer cachorros.

Já não temos grandes conversas.

 

Joao Talone

O meu pai marca. Temos o mesmo nome, começa logo por aí…Marca os sítios onde está, as pessoas com quem trabalhou, as pessoas com quem vive. Obviamente marcou os filhos todos.

Sou muito amigo do engenheiro Jardim Gonçalves. Você diz que era como se fosse meu pai... Era uma espécie de irmão mais velho.

Conheci-o por causa do meu pai. O engenheiro Jardim costumava convidar os administradores vivos do Banco Português do Atlântico para um almoço; era o seu conselho consultivo. O meu pai fazia parte desse grupo.

O meu pai, quando aprendíamos a ler, convidava-nos a ir lanchar a uma casa de chá. Íamos engravatados.

 

Joe Berardo

Nessa altura havia senhas para açúcar, senhas para tudo. Era duro. Eu era um privilegiado porque o meu pai trabalhava no Madeira Wine, tinha uma relação boa com os ingleses. O meu pai ia levar a bordo os vinhos que os ingleses escolhiam; e trazia sempre para nós coisas boas, queijo. E isso era muito bem vindo.

Há uns que nascem com os genes da mãe, outros com os genes do pai. Eu nasci com os genes da minha mãe. Era uma mulher culta. Sabia ler e escrever – o meu pai, não. Era ela que lia para o meu pai. O meu pai era bom a fazer contas em letra romana! Nunca percebi como é que uma pessoa aprende a letra romana e não aprende a ler...

 

Jorge Armindo

Por razões que têm a ver com a grande prudência que caracterizou o meu pai, fui para Escola Técnica. O meu pai quis que eu tirasse um curso que me permitisse trabalhar, (no caso de não poder tirar um curso superior). Uma enxada, como ele próprio dizia.

Sempre percebi que o meu pai gostava muito de mim. Por exemplo, se estivesse com febre, se tivesse a mínima coisa, a minha mãe já não dormia com o meu pai: era eu que dormia com o meu pai. Era aí que o meu pai era o homem que realmente é: humano.

 

José Penedos

O meu pai, que foi um velho combatente da Guerra Civil espanhola, usava todo o tempo livre que tinha para me falar disso. Obviamente marcou-me para a vida: sou um leitor compulsivo, sobretudo de temas ligados à Guerra Civil de Espanha.

Senti o peso da vida do meu pai, que merecia ter tido mais. Era inteligente, na minha avaliação era culto, muito lido, muito corajoso. Eu tinha de procurar fazer mais e, de alguma maneira, vingar um destino negativo que o empurrou para uma vida que não estimava enormemente.

Perdi o meu pai há 20 anos. Foi uma perda muito traumática, eu tinha 40 anos.

 

Maria Cândida Rocha e Silva

O pai era muito importante. Mesmo quando estava em casa, já velhinho, tinha as minhas dúvidas e falava com ele. E o facto de ser obrigada a expor a situação, o meu problema, só isso já era uma ajuda. Dizia, quando era miúda, que tinha uma paizite aguda.

A mãe teve a preocupação de se pôr na sombra do meu pai. Queria que tivéssemos no meu pai a figura principal.

Vivia em África e [o meu marido e eu] viemos passar férias; o meu pai disse-me: “Deves ficar, porque África vai ter um fim mau”. Vivia em África, achava que o meu pai não tinha razão. Mas era como se fosse Deus a falar. Não entendemos as atitudes de Deus, mas é Deus. Fiquei.

 

Maria José Nogueira Pinto

Eu não assinava nada. Tinha 19 anos, era estudante. Era “a Zé”. Depois, a minha mãe também se chama Maria José... Encontrei ali a minha identidade: esta que tenho até agora. O meu pai ficou zangadito com aquilo... Usar este nome [Nogueira Pinto] também significa que me passei para aquele lado...

 

Marques Mendes

… E talvez tenha sido influenciado pelo meu pai, que já fazia política antes do 25 de Abril.

Até aos 18 anos, fui muito mais ligado ao meu pai [do que à minha mãe]. E mais parecido com o meu pai. O meu pai é introvertido, culto, um homem de carácter, excelente profissional, muito sereno e tranquilo; é muito difícil encontrá-lo a dar um murro na mesa. Exerce uma autoridade natural. Eu ia com o meu pai ao café com dez, 11, 12 anos. Quando comecei a minha vida política, já conhecia o país de lés-a-lés, graças ao futebol e ao meu pai - foi dirigente desportivo muitos anos, lá no clube da terra.

 

Murteira Nabo

A minha mãe era de uma família relativamente rica, proprietários de terras e ganadeiros, e o meu pai era um trabalhador rural. O meu pai era um homem bonito, tinha mota, usava bigode, mas um trabalhador rural.

Quando acabei o curso da Escola Comercial quis continuar, em Lisboa e no Porto, e o meu pai disse: “Fazes mal, era melhor ficares aqui, alguém tem que continuar esta coisa...”. Levava-me todas as manhãs quando ia comprar coisas, gado, cereais...

Aconteceram coisas extraordinárias na minha vida no ano de 68.

É o ano em que o Salazar cai da cadeira. É o ano em que entro na Marconi. É o ano em que caso. É o ano em que o meu pai morre. E é o ano da revolução em França.

 

Pedro Norton

A questão de seguir um percurso completamente diferente nunca se chegou verdadeiramente a colocar. Porque se calhar nunca a coloquei. Fazendo uma análise a posteriori, na prática, acabei por seguir o óbvio, que era o exemplo do meu pai. O meu pai toda a vida foi gestor.

Do meu pai, herdei sobretudo a coisa mais importante: um quadro de valores. E dentro desse quadro, alguma exigência comigo próprio, que depois tem tradução na vida profissional. Sou um gestor muito diferente daquilo que o meu pai foi; nesse sentido não acho que exista uma reprodução do que quer que seja

 

Pires de Lima

Lembro-me de ter dito ao meu pai, primeiro, e depois ao meu avô, que não iria para Direito – não tendo eu a mínima ideia do que é que iria ser. O meu pai, muito ao estilo dele, escondeu a decepção e disse: “Óptimo. O importante é que sejas bom naquilo que decidires vir a ser, e acima de tudo, que sejas útil”.

O meu pai, do ponto de vista do carácter, do desapego ao poder e material, é uma referência moral muito forte para mim.

 

Rodrigo Costa

O meu pai, enquanto estudava, foi aprendiz de um tio nosso na fábrica de cerâmica. Aprendeu a arte da pintura à moda antiga – trabalhando com o mestre. Mais tarde decidiu ir para o seminário, depois decidiu sair, depois foi para a tropa. O seu percurso fez-se na área das viagens. Reformou-se aos 60 e tal anos e voltou a pintar. Uma coisa que me marcou muito foi a sua obsessão pela honestidade. Honestidade é a palavra certa; porque não se trata, apenas, de não roubar ou de falta de transparência. É uma obsessão em ser sério, e que toda a gente entenda que somos sérios.

O orgulho que eu tenho nele é o orgulho que ele terá em mim. Somos pessoas simples e não há essa preocupação de saber o que é que o outro sente nessas matérias.

 

Rui Machete

O meu pai marcou-me de uma maneira muito particular. Desapareceu cedo e tinha uma personalidade que adivinhei mais do que conheci, e que é particularmente rica.

Era médico em Setúbal. Morreu com um ataque cardíaco.

A ideia de tirar um curso rapidamente e bem foi importante como resposta ao apoio que tive de um conjunto de amigos do meu pai. Deram-me uma bolsa que nos permitiu, a mim e à minha mãe, viver sem problemas.

 

Rui Moreira

Tínhamos interesses parecidos, conversas longas, silêncios longos. Quando queria falar em privado comigo, falava em alemão – quando havia gente à volta, se íamos ao restaurante... Engraçado: tratava-o por tu em alemão e por você em português. Não sei explicar porquê.

Eu tinha um enorme receio de desapontar o meu pai. A minha vida ficou muito marcada por isso em diversos aspectos.

Era aquele género de pai terrível porque não ralhava nem batia: mostrava o seu desapontamento. Olhava para mim com uma cara triste: “O menino está a desapontar-me”.

Sabia partilhar os seus afectos – invulgaríssimo na geração dele e num homem. Houve uma altura em que percebi que ele estava muito doente. O meu receio era que o meu pai morresse sem eu lhe poder dizer o que é que sentia.

O meu pai era também irreverente, a família era irreverente. Era um modo irreverente de ser. Os meus pais achavam normal que, se nos dessem uma ordem, questionássemos a razão de ser da ordem. “Hoje os meninos vão para a cama mais cedo”. Eu achava-me no direito de perguntar: “Porquê?”.

 

Simonetta Luz Afonso

O meu pai era um jovem artista que foi viajar pela Europa antes da Segunda Guerra Mundial para contactar com a arte europeia. Esteve alguns meses em Florença onde conheceu a minha mãe. Morreu há dez anos, a minha mãe há 20, e eu nunca tive coragem de ler as cartas. Só há pouco tempo, talvez há uns seis meses, achei que devia lê-las. E... são quase história! Não se tratou, apenas, de ler as cartas daquelas duas pessoas, que conheci muito bem e por quem tinha muito afecto; era também a história de uma época.

Ah, mas tive um pai que adorei. Íamos apanhar borboletas com um camaroeiro nos meses que passávamos na praia. Uma vez apanhámos uma febre da carraça os dois... Ensinou-me a nadar. Andávamos a pé. Apanhávamos mexilhões nas rochas das Azenhas do Mar. Andávamos de burro. Íamos às feiras. Era um lado muito físico, sim, só mais tarde foi intelectual. Fazia-me o baloiço. Fazia-me imensos retratos, em várias épocas da minha vida.

 

Teodora Cardoso

O meu pai trabalhava no comércio. Não tinham dinheiro para me deixar. Eu sabia que tinha de singrar pelos meus meios.

Os meus pais morreram cedo. Eram muito mais velhos do que o normal. Quando eu nasci o meu pai tinha 57 anos, já, e a minha mãe 42. Casaram pouco antes, para o meu pai era um segundo casamento.

Levei muito tempo a antipatizar com o meu nome. Tem a vantagem de a pessoa ficar imediatamente conhecida. Foi um professor de alemão que me explicou o que o meu nome quer dizer: “presente dos deuses”. É um nome simpático para os pais darem aos filhos! Não sei se os pais pensaram nisso, mas talvez tenham.

 

Vasco Vieira de Almeida

Ainda hoje penso no meu pai quase todos os dias (morreu em 62).

Foi uma relação profundamente afectiva. Meu pai era monárquico e liberal. Eu era um marxista ortodoxo. Hoje sou marxista, mas não sou ortodoxo. Ele tinha uma capacidade de previsão, de conhecimento das pessoas, de evolução histórica. Tínhamos grandes discussões que ele incentivava. Não era uma relação de obediência nem de subalternidade. Olhando para trás acho hoje que eu tinha uma posição enfatuada, arrogante e estúpida. Falávamos em pé de igualdade, porque era assim que ele queria que fosse.

Meu pai era intelectualmente invulgar. Foi o homem mais culto e inteligente que conheci. Mas era ao mesmo tempo uma pessoa simples e de enorme bondade. Eu costumava dizer que ele tinha nascido sem pecado original.

Nunca fui para a escola primária. Meu pai achava que o ensino primário em Portugal era mau e fez um livrinho de francês com 20 e tal páginas, um de matemática com umas 30, um de gramática portuguesa igualmente pequeno, e eu e o meu irmão, durante quatro anos, aprendemos em casa com ele. A aprendizagem era permanente, porque independentemente disto ao jantar podia acontecer explicar-nos quem era o Goethe ou o Balzac

O Ortega y Gasset foi apresentado ao meu pai e perguntou: “Es usted un profesor decano?”, o meu pai respondeu: “Não, não sou de cano, sou de ar livre!”.

A influência do meu pai nunca constituiu um peso na minha vida, nunca me limitou. Pelo contrário, foi sempre libertadora. O seu exemplo, tudo o que me ensinou, a forma de reagir perante as situações, foi o que me permitiu sempre ter asas próprias. Nunca me pus sequer o problema de dizer: “O que é que posso ser, com este pai?”. Meu pai foi o meu pai, a minha vida é a minha vida. Sou aquilo que quero ser, excepto que nunca poderei chegar ao que ele foi, ponto final. 

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios