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Anabela Mota Ribeiro

Leonardo Padura

21.03.16

Leonardo Padura vai fazer 60 anos. Cuba é a sua Jerusalém, o seu território sagrado. É neste país de contradições e perplexidades que vive, por escolha. Viaja muito. É talvez o mais conhecido escritor cubano da actualidade. Esteve em Portugal para promover o livro mais recente. “Hereges” é um romance histórico, um policial que tem como protagonista o detective Mario Conde, um documento inspirado em factos verídicos. Em Cuba, a situação está hereje?

 

No começo do seu livro apresenta o significado da palavra herege, e especifica que em Cuba, quando uma situação está muito difícil, especialmente no aspecto político ou económico, se usa a expressão estar hereje. É uma expressão que os seus pais poderiam utilizar?

É uma expressão antiga, sim. Estar hereje significa que a coisa está mal.

 

O estar hereje dos seus pais tem um sentido diferente daquele que tem para si? Tem leituras diferentes em função das diferentes situações que se vivem em Cuba?

Creio que ao longo do séc. XX, Cuba – tal como Portugal ou Espanha – passaram por um processo de melhoria das condições de vida. Na geração dos meus pais aconteciam coisas que eram como histórias de telenovela brasileira!

 

Sim?

Sim. Por exemplo, a minha mãe teve sete irmãos. Quando a minha mãe tinha cinco anos, com um irmão de três e uma de dois, o meu avô paterno morreu e deixou a família na miséria. Viviam numa cidade no centro da ilha, chamada Cienfuegos, e mudaram-se para o bairro judeu de Havana. Conheço muito bem esse bairro. A minha mãe e o meu tio viveram muito tempo ali e contaram-me muitas coisas. Para eles a situação esteve muito hereje.

 

Em que ano nasceu a sua mãe?

Nasceu em 1927. Depois deu-se a crise de 1929, em Cuba houve um governo muito corrupto que levou a uma revolução frustrada. O meu pai nasceu em 1926, com condições diferentes, porque tinha uma família que manteve a sua integridade. O meu avô conseguiu que, apesar da pobreza, vivessem bem.

 

Ambos sabiam ler e escrever?

Sim. Em Cuba, o problema do analfabetismo era mais evidente nas zonas rurais, com os camponeses.

 

Mesmo antes da revolução de 1959, era normal as pessoas serem alfabetizadas?

Nas cidades, sim. Todos os meus tios aprenderam a ler e escrever. A minha mãe estudou até ao oitavo grau. Não pôde continuar por motivos económicos. Não havia dinheiro para um bacharelato. Eram famílias que, com muito esforço, nos dois casos, chegaram a ser de uma pequena burguesia. Donos de pequeno comércio, lojas de comida, de bebida. Para a minha geração foi diferente. Eu nasci em 1955, triunfava a revolução.

 

Viveu a utopia da revolução desde o seu nascimento, praticamente.

A grande utopia socialista era parte da vida normal das pessoas. A minha geração foi a primeira que teve acesso, de maneira quase universal, à universidade. Uns são matemáticos, outros são geógrafos, muitos são médicos. Iniciou-se um progresso intelectual e social, com uma certa melhoria das condições de vida, apesar das dificuldades económicas. Isso manteve-se de forma coerente até aos anos 90, quando desaparece a União Soviética. Nesse período deu-se uma enorme crise económica, desapareceu quase tudo de Cuba. Electricidade, transportes, comida, medicamentos. Vivemos uma situação muito hereje.

 

Com um sentido mais profundo do que o hereje dos anos anteriores.

Tínhamos uma piada, em Cuba, brincando com a nossa própria desgraça... “Na realidade não temos assim tantos problemas, são só três: o pequeno almoço, o almoço e o jantar!” [risos] Todos os dias. Mas as dificuldades desses anos foram importantes para o que aconteceu depois. É que como o Estado não tinha capacidade económica para sustentar a população, e num país onde tudo pertence ao Estado, criou-se uma distância grande entre o Estado e as pessoas. Em geral.

 

Um modo de dizer que o Estado são outros, não somos nós?

Para que compreenda: no caso dos escritores, especificamente. Em 1991/92, paralisou-se a indústria cultural em Cuba. Não havia dinheiro para produzir cinema, os teatros deixaram de ter electricidade, não havia papel para imprimir livros. E vínhamos de um modelo em que o Estado financiava o cinema, o teatro, a literatura, os jornais. Ao desaparecer, essa relação de grande proximidade entre as entidades criadoras e o Estado vai-se desfazendo. E esse espaço encheu-se de liberdade. Pudemos começar a procurar editoras fora de Cuba, a escrever sem pensar no editor cubano, que era um funcionário do Estado cubano.

 

Foi um começo de uma metamorfose?

Sim, começou a modificar a cultura do país. Começaram também a ser autorizadas, muito timidamente, pequenas empresas privadas. Nem se chamavam empresas. Eram trabalhadores por conta própria, independentes. Esse processo não parou. Começou a desaparecer aquele carácter homogéneo que a sociedade tinha nos anos 70 e 80. Nesse período, todos tínhamos sapatos, mas eram dois pares, todos iguais, uns para ir à escola e uns um pouco melhores para as festas. Mas eram todos iguais! Todos tínhamos dois pares de sapatos, três camisas e umas calças.

 

Como é que se comprava a roupa?

A roupa comprava-se com uma caderneta de racionamento. Houve um período em que as mulheres tinham que escolher uma de duas opções: ou compravam as cuecas ou os soutiens! [risos] Mas apenas uma das duas coisas. “Este ano, esta leva o cu ao léu, aquela as mamas”. Havia coisas, depois deixou de haver. E as pessoas tiveram que encontrar alternativas nos anos 90.

 

A necessidade, paradoxalmente, conduziu a uma certa liberdade? Era preciso encontrar uma solução.

Sim, [era preciso encontrar] uma estratégia de sobrevivência de outro tipo.

 

Que outros passos de abertura foram dados no pós-queda do muro?

Anteriormente era ilegal a circulação de dólares em Cuba; passou a ser legal. Nos anos 80, os escritores não podiam comercializar os nosso livros fora de Cuba, sem ser através de uma agência literária do Ministério da Cultura; passámos a poder fazê-lo. Começámos a ter, não todas as liberdades que queríamos ou que imaginámos que deveríamos ter, mas realmente maiores [do que as que tínhamos].

 

No decorrer desses anos, a desigualdade económica aumentou? Ou todos continuavam, no essencial, a ter o mesmo (que era pouquíssimo)?

Hoje em dia existe uma pequena parte da população que tem meios económicos muito superiores aos da maioria da população e há um sector, também minoritário, mas importante, que praticamente não tem nada. Vivem em bairros emergentes, construções muito precárias, quase favelas. Recentemente, uma jornalista disse-me que conhecia muito bem Cuba, que visitou ao longo de oito anos. Eu não disse nada, porque achei que podia ser ofensivo, mas conhecer Cuba, com uns euros no bolso, ficar três meses, não é conhecer a realidade de Cuba. Para conhecer é necessário viver, todos os dias. Encontrar as pessoas que vivem nesses bairros, nas periferias de Havana, que vêm do interior, sobretudo da região oriental, e que vivem do que aparece, de qualquer pequeno trabalho. Sem alternativa. Isto acontece, a sociedade cubana está a polarizar-se. Mas a maioria da população vive em condições médias, difíceis, sem ser de miséria.

 

Voltando atrás. A sua mãe mudou-se para o bairro judeu de Havana no mesmo período em que deflagrava a guerra na Europa?

Ela mudou-se para ali no mesmo período em que lá esteve Daniel Kaminsky [o personagem do meu livro]. Nos anos 30.

 

Então está a trabalhar, no seu imaginário, a história das suas raízes?

Sim. O bairro que a minha mãe conheceu, quando chegou a Havana, era muito pobre. A família vivia com o dinheiro que o meu tio, que teve que ir trabalhar como marinheiro, enviava de outros portos; e uma tia mais velha casou-se com um senhor que não era rico mas que ajudava a família.

 

Que contava a sua mãe sobre o judaísmo, sobre a presença de uma cultura diferente?

Não o via como diferente. Cuba formou-se com vagas de imigração muito distintas. Existiam judeus com os seus negócios. Existiam os negócios dos chineses, os negócios e sociedades de asturianos, catalães, galegos. Era um mundo tão diverso que praticamente nada parecia estranho.

 

Sem discriminação racial?

Havia discriminação racial, mas sobretudo discriminação económica. Não era igual ser galego e dono de um negócio e um galego que trabalhava no molhe a carregar sacas dos barcos. Não era o mesmo ser um judeu dono de uma pastelaria ou um judeu que anda na rua a vender gravatas. Num nível inferior estavam os negros. Havia negros de uma certa classe média, não muito elevada, que eram mestres, construtores, e outros numa classe mais baixa.

 

Esse detalhe é importante, porque a discriminação nazi na Segunda Guerra Mundial é baseada na raça. A discriminação pode ser económica, política, e neste caso há uma escolha e uma possibilidade de mudança. Quando se faz uma discriminação racial, o indivíduo não tem responsabilidade nisso nem o pode alterar. Isto muda tudo quando consideramos situações de discriminação.

Ainda que não se sinta discriminado em Cuba, o personagem de Daniel Kaminsky renuncia a ser judeu. Precisamente porque sabe que há algo que lhe foi imposto, que não foi sua decisão, que não pode alterar. Mas tenta alterar. Como? Tornando-se num cubano comum, normal. Vivendo a vida afastado dos preceitos judeus, da sinagoga, de todas as práticas que estão associadas e definem a cultura e religião judaicas.

 

O personagem e o caso inspiram-se num facto histórico: a tentativa do navio Saint Louis aportar em Cuba, em 1939, com cerca de 900 judeus a bordo, fugidos da Alemanha. O barco esteve vários dias ancorado, à espera de autorização para desembarcar. Que não chegou.

Em Cuba não existiu anti-semitismo. Por isso é que um episódio como o do navio Saint Louis, em que se impediu a entrada de 937 judeus, teve tanto impacto. Regressaram à Europa e metade morreu no Holocausto. Existiu discriminação, sobretudo económica e racial de negros. Mas estes judeus eram brancos. Isto é, poderiam integrar-se na sociedade branca, cubana, sem nenhum problema. E em alguns casos poderiam ser muito bem sucedidos. Existiam judeus muitos ricos, em Cuba, com grandes negócios.

 

Estes judeus que estavam no barco não tiveram possibilidade de escolha. Essa é a grande questão: o livre arbítrio. Quando se fala hoje de Cuba, quando se interroga a capacidade de fazer escolhas políticas, a decisão de ficar ou partir, tudo muda quando se tem a possibilidade de escolher. Pode falar sobre isso?

Acredito que uma das mudanças mais importantes que se operaram em Cuba nos últimos anos foi a eliminação da permissão de saída. Para poder emigrar, era preciso pedir uma autorização ao Departamento de Emigração Cubano, ao Governo. Sem o passaporte com essa autorização, não se podia viajar. A possibilidade de escolha, de ficar ou de ir, estava limitada por lei. Hoje esse problema desapareceu, mas surgiram outros, que por vezes se esquecem. Um cubano, para poder viajar para outros países, necessita de visto de entrada do outro país. E necessita de dinheiro para viajar.

 

É o mais difícil?

Não. É o menos importante. Porque pode ter um irmão ou amigo que lhe dá mil dólares para viajar, para sair. Mas, a possibilidade!, saber que uma pessoa leva duas fotografias, dois selos, que pede um passaporte e lho dão... Isso dá uma sensação de liberdade!

 

A sua expressão facial alterou-se quando falou em sensação de liberdade.

Claro, ter a possibilidade é muito importante, mesmo que existam outros problemas por resolver. E eu nunca tive problemas para viajar. No mundo artístico, sempre tivemos mais liberdade de movimentação. Desde 1988, quando comecei a viajar, nunca mais parei.

 

Portanto, a relação das pessoas com a escolha alterou-se.

Sim. A minha geração – e falo muito sobre isso nos meus livros – teve, em determinados momentos, muito pouca possibilidade de escolher. O menu que nos davam nos restaurantes só tinha três pratos. Num sentido figurado, queria tomar sumo de laranja e só havia limonada. Tínhamos pouca possibilidade de escolher o que queríamos fazer com as nossas vidas. Simultaneamente vivíamos num país que garantia algumas das coisas mais importantes, como a educação. Dependíamos da nossa inteligência para estudar.

 

Decidiu estudar Filologia. Porquê?

Eu queria estudar jornalismo e gostava muito de baseball. Quis ser jornalista desportivo. Mas nesse ano o curso de jornalismo estava fechado, por causa daquilo a que se chamava planificação socialista. Alguém tinha decidido que já existiam demasiados jornalistas em Cuba e não era necessário que se formassem mais pessoas nessa área. Quis então estudar História de Arte, que era o outro curso de que gostava, mas também estava encerrado. Fui para literatura, que era o mais próximo.

 

Ou seja, a sua escolha foi muito condicionada.

A minha possibilidade de escolher foi-se transformando pelo que era oferecido. O sistema educacional cubano acabou por me levar a estudar Filologia. O que poderia ter sido um conflito tornou-se numa enorme vontade. Creio que estava destinado a estudar literatura. Permitiu-me adquirir uma cultura e um conhecimento que talvez o curso de jornalismo não me tivesse dado, e com essa cultura e conhecimento pude fazer jornalismo.

 

Foi um jornalista de referência.

Sim. Quando se fala em jornalismo literário, de investigação, da renovação do jornalismo cubano, nos anos 80, o meu nome faz parte desse movimento.

 

Contudo, o problema da escolha esteve – e está – sempre presente. Há escolhas de valores, escolhas que não queria chamar de abstractas, mas que são menos concretas. E há outras que são escolhas imediatas, que influenciam muito a vida de todos os dias.

São escolhas que condicionam a vida das pessoas. Essas outras escolhas de que fala também foram muito complicadas. Houve momentos em que praticar uma religião em Cuba podia ser uma limitação. Porque o socialmente correcto dizia que um revolucionário não devia ser religioso, ou não devia ser homossexual. Ou se o pensamento político fosse diferente, tornava-se num dissidente.

 

Um herege, para voltar às palavras e ao título do livro.

Um herege. Nas margens ou fora da sociedade. Ter ideias ou atitudes diferentes podia ter consequências no percurso pessoal. Felizmente, muitos destes conceitos foram mudando. Nos últimos três, quatro anos surgiram histórias de pessoas que são dissidentes políticos, que agiram e intervieram de maneiras que, há vinte anos atrás, resultariam numa prisão de cinco ou dez anos. Agora são cinco ou dez horas na esquadra da polícia e depois são libertados. Entre dez anos e dez horas há uma grande diferença.

 

É um sinal de evolução política?

Sim. Para melhor, embora ainda não existam todos os espaços de expressão, de debate, para apresentação de posições distintas que deveriam existir.

 

Voltemos ao livro. O que significa ser herege numa primeira acepção? Depois, o que significava ser herege na Segunda Guerra Mundial ou em Cuba, onde a dissidência, como afirmou, tem consequências?

A heresia significa escapar da ortodoxia. A palavra foi-se carregando, negativamente, ao longo do tempo, muito por culpa do cristianismo. Até que ponto uma heresia pode ser castigada de uma maneira drástica? No livro, há um episódio com o personagem de Baruj (Benito) Spinoza, que foi considerado herege e condenado a uma separação total da comunidade. Na Segunda Guerra Mundial, significava ir para um campo de concentração. Na União Soviética, para um gulag. Nos Estados Unidos, nos anos do Macartismo, podia-se ser condenado ao ostracismo (quem fosse comunista não podia trabalhar em determinados sítios). No caso cubano, significava uma marginalização que podia durar anos.

 

“Hereges” está dividido em várias partes. Uma delas tem como protagonista, Elías (que é um nome com uma carga religiosa forte). O personagem tenta descobrir a história do seu pai. Leio no que escreve, sempre, uma preocupação com a memória e com as raízes.

Há pouco falávamos sobre uma coisa muito importante: nasci num bairro do mais normal que há em Havana, na zona sul da cidade, quase nos limites da zona urbana. Numa esquina havia uma mercearia de chineses, outra de um galego. Por nossa casa passava com alguma frequência um senhor libanês. Eu era colega de escola, brincava com os seus sobrinhos. O meu pai tinha-se tornado maçom, em1949, e em 1952 fundaram o edifício da loja do bairro, a um quarteirão da nossa casa. Quando eu nasci, nessa loja organizavam-se sessões todas as sextas feiras. Havia um senhor negro, médico, outro branco, advogado, um outro que parecia escocês que recolhia o lixo do bairro. Mas todas estas pessoas se tratavam por “irmão”, porque eram irmãos maçónicos, praticavam a fraternidade. A minha mãe é católica e sempre teve uma atitude muito solidária para com os outros. Nesse mundo, triunfou uma revolução socialista que dita que todos somos iguais. E eu, vivia entre maçons, católicos, libaneses, chineses, galegos, brancos, negros...

 

E porque é tão fundamental compreender as origens?

Creio que tem a ver com uma condição pessoal. Ontem fui à Fundação Saramago; a uns poucos metros, debaixo de terra, há ruínas romanas. Nós, como país, temos duzentos anos. Antes eram uns espanhóis, uns negros e uns poucos índios que viviam na mesma ilha. Misturavam-se ou não se misturavam, mas não era uma cultura diferenciada. Um português, com o apelido Gonçalves, pode saber até seis ou sete gerações de onde vem. O apelido Padura é basco. Como chegou a Cuba? Não sabemos. Eu, como a minha mãe, nem se sabe se somos negros ou brancos ou filipinos! Tudo parece indicar que o meu bisavô era filipino, daí o tom de pele e forma dos olhos.

 

O anúncio, em Dezembro, do restabelecimento do contacto entre Cuba e os Estados Unidos surpreendeu. Surpreendeu muitos os cubanos, surpreendeu toda a gente. Na vida de todos os dias, nas coisa normais, é visível uma diferença?

Não, não. A única coisa que aconteceu foi ao nível do diálogo.

 

As pessoas falam disso?

Não. Falam os governos. Reuniram e estabeleceram um processo, discutem o que deve acontecer primeiro, condições, isto e aquilo. Com as pessoas nada se alterou. Diz-se que quando chegarem os americanos talvez se resolvam alguns problemas. Mas no concreto, no quotidiano, não se alterou praticamente nada. Talvez exista já um número maior de turistas norte-americanos, não muito. Isso significa que trazem dinheiro e gastam, em instituições, restaurantes e hotéis privados. Onde deve existir já maior movimento é [nas relações] com empresas europeias, chinesas, latino-americanas, que, vendo a evolução dos acontecimentos e a possibilidade de o embargo se flexibilizar – porque ainda não foi levantado –, estão a iniciar a implementação de negócios em Cuba.

 

Como é a sua vida de todo os dias? Em que casa vive? Como se desloca? Com quem se relaciona? Onde compra a sua comida? Como acede à internet?

Eu pertenço a essa espécie rara de pessoas que vivem na mesma casa em que nasceram, no mesmo bairro no sul da cidade, chamado Mantilla. Nesse bairro nasceram o meu pai, o meu avô, o meu bisavô. A casa onde vivo foi construída em 1954, pelo meu pai. Eu e a minha mulher vivemos numa ampliação construída sobre essa casa. Trabalho ali, escrevo, dedico-me profissionalmente à literatura.

 

É uma maneira de dizer que se pode viver da literatura?, de escrever?

Não! É uma maneira de dizer que eu posso viver da literatura. A maior parte dos escritores não pode. E quando eu comecei, em 1995, não podia. Em 31 de Dezembro de 1995 deixei de trabalhar para a revista em que trabalhava, no dia 1 de Janeiro de 1996 tornei-me um trabalhador independente. Tínhamos quatrocentos dólares em casa, que me tinham pago por uma antologia de contos cubanos, no México. Naquela época, com esse dinheiro, podia viver um ano. Mas tive a sorte... Costumo dizer que há por aí uma nuvem em que Deus está sentado, a olhar, e que de vez em quando toca com o dedo, e que me tocou com o dedo... Na manhã de três de Janeiro, ligaram de Espanha. Tinha enviado um livro para um concurso e informaram-me que tinha ganho. Dois milhões de pesetas! Dezasseis mil dólares era uma fortuna!

 

A sua vida mudou.

Mudou. Um mês e meio depois ligou-me a minha editora de Espanha (creio que é a melhor, trabalhamos juntos há quase vinte anos)... Por isso posso viver da literatura. Mas não vivo só dos livros. Continuo a fazer algum jornalismo, escrevo guiões para cinema, dou conferências. Esta é a vida económica de um escritor.

 

O quotidiano: estava a contar como é.

Digo que vivo da literatura e para a literatura. Quando não estou a viajar, a responder a perguntas de jornalistas [risos], quando estou em casa, escrevo toda a manhã. Levanto-me cedo, às sete e meia já estou a trabalhar. Faço-o todos os dias, de segunda a domingo. Nesta casa onde vivemos, já não temos cães. Morreu há um ano e meio o último que tínhamos, com dezassete anos.

 

“O homem que gostava de cães” é um dos seus livros mais famosos. Tem por trama o assassinato de Trotsky por Ramón Mercader.

Sou um homem que gosta de cães! A minha esposa Lúcia trabalha, por vezes, comigo, outras vezes em coisas independentes, mas temos muitos projectos em comum, trabalhamos em casa.

 

Que moeda usam? Dólar, peso cubado, peso convertible (a moeda usada sobretudo pelos turistas)?

Usam-se pesos convertibles e pesos cubanos. O exercício matinal da Lúcia é uma caminhada de uma hora. Leva uma mochila e o porta-moedas e depois passa no mercado para comprar fruta, legumes. Outras coisas que consumimos levamos de Espanha, antes de regressar a Cuba. Azeite, atum, sardinhas, queijo. Levamos para consumo próprio ou para oferecer à família e amigos. Para muitos levo, periodicamente, uma garrafa de azeite.

 

Tem acesso à internet em casa?

Deram-me acesso. A maioria dos artistas tem acesso a uma conta de correio electrónico.

 

Que é diferente de ter acesso ao Google, por exemplo.

Sim. Mas por causa de uma censura a um artigo de jornal, ainda por cima absurda, a um artigo em que disse horrores sobre a minha equipa de baseball, puseram o acesso à internet em minha casa muito lento. Quase não consigo usar.

 

Tem automóvel?

Tenho. Desde 1997, com autorização de dois ministros. [riso] Há dois anos tentei comprar um novo, mas não tive autorização, porque iam alterar o sistema de venda e o carro que ia comprar, que antes custava 29000 dólares, passou a custar 180000. Estou a falar de um Hyundai. Um Toyota, com os preços anteriores, custava 50000 dólares, nos preços novos 220000.

 

Então tem o mesmo carro desde 1997.

Sim. E mantenho um velho Plymouth de 1958, do meu pai. Eu pago os arranjos, o meu irmão utiliza-o para pode ir com a minha mãe ao mercado, ao médico.

 

Tem dupla nacionalidade, viaja muito. Porque é que se manteve sempre em Cuba?

Porque sou de Cuba, sou um escritor cubano. Não posso ser outra coisa, tenho um sentido de pertença muito grande. Essa casa que o meu pai construiu, que eu ampliei, esse pátio onde enterrei todos os meus cães, desde o primeiro ao último... É a minha Jerusalém, o meu lugar sagrado. A minha mulher pergunta, às vezes, porque não compramos um apartamento no centro, agora que se pode. Nunca digo que não. Mas sei que não vamos viver lá. Temos as nossas mães connosco. Se tiro a minha mãe daquela casa, morre em uma semana.

 

Como é a sua mãe?

Tem 86 anos e, excepto quando está a ver televisão ou durante as três horas que dedica à leitura, não pára de falar! Tem uma colecção de vizinhas, amigas, do bairro, com quem passa o dia a falar. Veja bem, ela só tem a pensão do meu pai, 240 pesos, dez dólares. Como é que uma pessoa vive com dez dólares? O meu irmão mais velho vive em Miami e eu posso ajudá-la economicamente. Ela já não é conhecida com Alicia Fuentes, mas sim como Alicia Padura, porque a família Padura era conhecida no bairro. Esteve casada 60 anos com o meu pai. Eu vou fazer 60 anos.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015