Mia Couto
“Mulheres de Cinza” é o livro primeiro de uma trilogia moçambicana. No centro da narrativa está Gungunhana e os dias do fim do império de Gaza, derrotados por Mouzinho de Albuquerque em 1895. É uma recreação ficcionada de um período recente, que nos faz pensar sobre a identidade e a memória. Ainda somos esses? – perguntamos nós, pergunta Mia Couto, o escritor, o biólogo. É um livro de fronteira que começa assim: “A estrada é uma espada. A sua lâmina rasga o corpo da terra. Não tarda que a nossa nação seja um emaranhado de cicatrizes...”.
Existem vários passados? Fala-se do passado como coisa acabada, e no singular. Ao perguntar se existem vários passados, abro a porta à ficção, e sobretudo à interpretação.
Essa castração é quase um “historicídio”, um matar uma parte da história. Tem a ver com a nossa posição como sujeitos da História. Começou muito atrás. Os passados que não convêm, que renovam grandes medos e fantasmas, são anulados. Esta é uma operação que vai sendo feita sempre. E quanto mais recente, maior é a necessidade de que essa extirpação seja eficiente. Tem que ser um corte mais radical.
Porquê? E extirpar para quê?
Porque se percebe que somos muito do que fomos. Somos quem já fomos. E essa carga que vem do grande, grande passado... Fomos caçadores-colectores. Devemos mais a essa cultura do que devemos ao Homero e ao Aristóteles.
Nessa recusa, estamos a negar ou a criar distância em relação à nossa condição animal?
Temos medo. Temos medo do “não humano” que está dentro de nós. É uma coisa absurda, devia haver uma estátua a esse nosso antepassado comum, esse Homo Erectus, ou ao primeiro Homo Sapiens, em cada cidade. Seria uma grande homenagem à paz.
Isso parece uma graça. Explique porque é que não é simplesmente uma graça.
Porque esse homem, essa mulher, deu origem a esta grande saga. Inventámos a espiritualidade, a religiosidade, o sentido cooperativo, os códigos simbólicos. Mas essas grandes coisas que nos fazem ser quem somos hoje estão lá atrás. Estão lá atrás e não nasceram na escrita – mesmo que esta visão tenha sido imposta com a ajuda da escrita. E depois até com a ajuda da ciência. Houve um momento em que a ciência foi cúmplice dessa anulação dos outros saberes que estão dentro de nós. Esses saberes estão ligados a esse passado que nunca passou. Há um lado nosso que é profundamente supersticioso, que está disponível para outras linguagens, para o que é o oculto.
E que é domesticado pela racionalidade?
É. É preciso que nos esqueçamos. A fabricação do esquecimento é uma coisa fantástica.
Parece um contra-senso. Se estamos a fabricar esquecimento não estamos a esquecer deveras.
Exacto. É uma mentira, uma falsidade. [riso] Esta divisão que fizeram entre sentir e pensar: é admissível que alguém sinta que há uma voz, um espírito, que há uma coisa invisível. Mas pensar que isso seja assim, é grave. A ideia de que a intuição é uma coisa e de que o raciocínio é outra coisa, de que a intuição é feminina e o pensar é masculino...
Estamos ainda assentes nessa divisão, nessa leitura maniqueísta do mundo?
Sim. A grande verdade vem do que está escrito. Esta história que quis construir, por exemplo: tive que caminhar com um pé nas fontes orais, um pé na fonte escrita. Mas porque é que uma é mais verdadeira que a outra? Não é. Esta escrita, que é riquíssima e profundamente contraditória, também ela tem os seus segredos, não é uma coisa só. Verifica-se que ali há várias versões e foi preciso escolher uma delas.
Refere-se às diferentes leituras de um acontecimento ou personagem histórica. Já lá vamos, ao livro.
Aceitamos que se tenha feito connosco, e que se faça continuamente connosco, essa grande mentira que é pensar que o mundo é só um, que o tempo é só um, que o passado é só um. Ficamos muito aflitos e ansiosos quando nos dizem que num regime há só um partido, que há só uma única voz na opinião pública. E fazemos bem! Essa é uma coisa que não podemos aceitar. Mas silenciosamente e desapercebidamente aceitamos que o mundo seja uno.
Voltando ao princípio da entrevista, aos passados ao invés de passado. Vozes ao invés de voz. Quando decidiu trabalhar o Gungunhana, um período essencial da história da construção do seu país, ia disponível para esta pluralidade de vozes e de passados? Ou foi no processo da escrita, de pesquisa que se surpreendeu com uma imensidão de passados e de vozes, superior àquela que tinha previsto?
Não só ia preparado como tinha essa intenção. A intenção era dizer, usando a expressão brasileira: “Gente, há muitos passados, não tenhamos medo disso”. É melhor convivermos com essa pluralidade de fantasmas do que sermos surpreendidos quando eles nos baterem à porta.
Quando falei ao novo presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, deste projecto, disse-lhe: “Estou com alguma preocupação. Este país ainda é muito sujeito a estas manipulações na base étnica, na base desses passados que foram muitos, e que são aproveitados politicamente por forças”. E ele respondeu: “Mais vale acordarmos os fantasmas do que sermos acordados por eles”.
Foi um encorajamento.
Foi. Num país que é tão recente, é complicado aceitarmos essa complexidade e essa diversidade. Tem que pensar: “Sou a Anabela, não sou uma das Anabelas que está dentro de mim”. Um país é a mesma coisa. Tem que se escolher amnésias, lembranças. Não serei responsável nem quero contribuir para esse processo, mas quero dizer que não tenhamos medo. Há muitos passados – eles convivem bem entre eles.
Quais foram os fantasmas acordados?
Fui mais surpreendido pelo lado português. Portugal está noutra condição histórica. Portugal é uma nação [antiga] e todos os seus mitos têm séculos. Ninguém está interessado se o D. Dinis ou o D. Afonso Henriques foram ou não foram exactamente assim.
Surpreenderam-me as diferentes propostas de leitura, as diferentes versões, as fracções dentro do discurso português. Não havia uma coisa chamada Portugal e a intervenção portuguesa [em África], havia muitas coisas dentro disso.
Conte um pouco deste processo. Porquê Gungunhana?
Porque o Gungunhana corporiza muito disto, a construção de mentiras de um e do outro lado. O Gungunhana é quase uma personagem de Shakespeare. É profundamente trágico. [Intuí] que entre aquilo que realmente era e aquilo que se via nele havia distâncias enormes. Substanciava aquela ideia do selvagem africano, do grande chefe.
E de força hercúlea. É um aspecto importante.
Sim. Tinha um grande poder, um exército de quase 100 mil homens. Os portugueses – lá – tinham focos de presença efémeros, frágeis. E até um certo momento, Portugal estava ali por estar. Moçambique não tinha grande interesse. Até que surge a pressão da Conferência de Berlim [1884/85] e as potências europeias exigem a Portugal: “Ou estão, e têm que dar prova, ou então deixa de ser vosso”. Portugal tem esse imperativo, surge Mouzinho de Albuquerque… Mouzinho é aquele que representa essa força de ou vai ou racha. Quando decidiu fazer o que fez, não sabia que esse império, o do Gungunhana, já estava na derrocada final. Se fosse meses antes, tinha sido uma coisa suicida.
Quais são os grandes elementos do carisma de Gungunhana e de Mouzinho? São pessoas de quem falamos mais de 100 anos depois, não só porque encabeçaram movimentos e lideraram 100 mil tropas. Esteve a viver com eles durante meses: o que é que era tão marcante?
Eram carismáticos, tinham uma personagem magnética, por razões opostas. O Gungunhana teve uma estratégia de poder, que passou por aquilo que era o lado espiritual, religioso. Trouxe os grandes feiticeiros, os médiuns, e do norte, onde depois constituiu a sua sede, e onde estavam os vandaus, que também eram tidos como [detentores de] grandes poderes espirituais, e fez uma estratégia de poder. Por assimilação, e, quando era preciso, por guerra. Transformou-se num homem que sabia gerir muito bem o lado simbólico do poder e o lado efectivo, militar, de apropriação de riqueza.
O Mouzinho era um homem ensimesmado. Todos o descrevem como bonito, seco. A sua presença era marcante. Encantava as mulheres. Os homens ficavam entre o receoso e de certa maneira atraídos por aquela força que emanava dele.
A força vinha de onde?
Da certeza que tinha, e um certo desprezo pelo medo. Era um bocado desprezo pela própria vida. Às vezes anotava nas suas confissões, no seu diário, que alguém tinha morrido, e dizia: “Pena não ter sido eu”. Ali, [nessas notas], já está um personagem a libertar-se sem que precisemos de trabalhar muito.
As fontes que usou e onde leu essas anotações íntimas, foram mais que tudo quais?
Foram variadíssimas. Há muita coisa sobre um e outro.
Em Portugal e em Moçambique? E os registos são coincidentes?
Os historiadores moçambicanos tiveram que vir buscar aqui o que está escrito pelos portugueses. Não podiam falsear isso. Mas é claro que têm outras leituras. Os historiadores moçambicanos vão buscar fontes inglesas, que têm outra interpretação. As fontes da oralidade em Moçambique também são muito curiosas. Sobre o Mouzinho não há muita memória, mas sobre o Gungunhana, sim.
Ainda hoje?
Sim. Entre o ódio absoluto daqueles que foram massacrados, e uma certa admiração pelo grande poder unificador deste homem.
Ficou pendurada a pergunta pelos fantasmas que foram acordados. Falou na tensão racial que podia ser despertada por se falar nisto.
A literatura pode fazer este trabalho, o de devolver a ideia de que há muitos passados e de que todos têm um pouco de verdade. A tentação de trabalhar racialmente ou etnicamente esse outro tempo fica esbatida. O que interessa à literatura são as pequenas histórias que sobraram da grande narrativa, da narrativa solene da História com H maiúsculo. Essas pequenas histórias são fantásticas. Vários soldados portugueses apaixonaram-se por mulheres africanas, criaram famílias. Tinham de lutar contra África e, ao mesmo tempo, não conseguiam fazer isso porque já eram uma parte de África.
Quer apontar um caso relevante?
O intendente-geral, uma espécie de ministro dos Negócios Estrangeiros, casou-se com uma mulher africana, da qual teve filhos. Essa é a razão (no livro isso é sugerido) pela qual passa a merecer alguma desconfiança dos superiores hierárquicos. “Como é que um homem destes pode representar completamente Portugal? Tem que estar dividido.”
Por outro lado, esses prisioneiros africanos que vieram deportados para os Açores, tiveram filhos. Filhos e netos que agora são portugueses. O lado dos encontros que não foram registados é muito feliz.
A dilaceração íntima, essa divisão do humano na sua pequenez, na sua fragilidade, à margem da grande História, da factualidade, foi o que lhe interessou trabalhar no livro?
Também. [Volto ao Gungunhana]: era preciso criar uma mistificação de grandeza à volta de um imperador que já não era ninguém, que estava oco. Portugal precisava de uma grande vitória e por isso teve que engrandecer este homem. Um grande imperador africano tem que ter várias mulheres. E tinha, 300. Ele não sabia bem quantas [risos]. Trouxeram sete, que desfilaram aqui, na Avenida da Liberdade. E foi muito curioso: elas foram apupadas. Em Moçambique, em quase toda a África, quando se apupa, é uma saudação amigável. Então elas acenavam sorridentes pensando que aquilo era uma saudação. Esses equívocos interessam-me mais do que o lado oficial da História.
Como é que aprendeu esta História quando andava na escola?
Aprendi à maneira colonial. Os bons eram os portugueses, que salvaram o império. E os maus eram os africanos. Aprendi com o mesmo texto que aprendeu a geração de 50.
Quando é que esta visão do colonizador e do colonizado, estas diferentes leituras de um passado recente, foi posta em causa – por si? Quando é que começou a ser notória essa multiplicidade de leituras?
Quando tenho a consciência das coisas. Tinha 14, 15 anos quando na minha casa se começou a falar nisso. Tive muita sorte porque o meu pai era um homem que tinha distância crítica sobre as coisas. O meu pai saiu de Portugal por razões políticas, era um homem que sabia que Moçambique ia ficar independente e que tinha outra história. Lutou por isso. Para mim era lógico que havia dois universos que, para se casarem, tinham que se apresentar de um e do outro lado da mesa. Mas a minha casa era um bocado de Portugal. Bastava passar a porta e do outro lado da rua tinha outra versão do mundo.
Era uma casa de brancos. Fazia uma grande diferença na leitura desta realidade?
Enorme. Não era só uma casa, era um bairro, uma cidade de brancos. Nos últimos anos já havia algumas zonas de mestiçagem, mas era uma cidade de brancos. Porque os meus pais não eram ricos, eu vivia na zona limite. Uma zona de pântano, que não foi objecto de um plano urbanístico como foi Maputo (na altura, Lourenço Marques), Nampula. Foi construída de maneira um bocado caótica. Mas sempre vivi com esta condição fantástica de que África começava logo ali, ao pé da porta.
Viver numa zona de transição: o que é que lhe trouxe?
Aprendi muito cedo, aos cinco, seis anos, uma das duas línguas que se falavam naquela cidade. E escutava histórias de um lado e do outro. Dentro de casa, a minha mãe era uma grande contadora de histórias. Recebia esta ideia de que havia um lugar do outro lado do mundo, um lugar longe, um lugar da saudade, da melancolia. Por outro lado, havia aquela grande força, cheia de vitalidade, com monstros, que convocava muito um outro imaginário.
Voltamos a falar de dois polos, duas grelhas de leitura do mundo. Um mundo organizado, com um discurso assente no racional, e outro que apela ao fantástico, à intuição, a qualquer coisa que não sabemos onde vai dar. Faz-lhe sentido?
Faz. Desde que a gente perceba que esses dois mundos não estão separados pela rua, que eles existem dentro de nós. Nós oprimimos, fazemos com que seja esquecido esse universo. E ficamos mais pobres. A poesia é autorizada porque está mais ou menos domesticada, está classificada. Pode ser imaginativa – e a imaginação é um parente pobre do pensamento. É isso que se diz. Em minha casa, eu era filho de um poeta. Dizia-se: “Este, coitado, é um sonhador”. Como se sonhar não fosse uma maneira de pensar.
Sobretudo é como se o sonho e a poesia fossem coisas secundárias em relação àquilo que deve ser, ao que é válido.
Exacto. [O outro lado diz respeito ao que] é rentável, ao que cria imediatamente riqueza, ao que é comprovado cientificamente.
Ouvi-o há dias dizer que é preciso encontrar novas palavras. Novas palavras que digam uma história recente. Que digam quem é que somos. Usamos um vocabulário que está gasto. Ou precisamos, pelo menos, de uma nova combinação para as palavras, para dizer “um país em construção”, “um sujeito em construção”.
Às vezes pensa-se que isso é uma coisa literária, que essa coisa da recriação do vocabulário é uma coisa que compete aos que escrevem, aos poetas. É uma pena que se pense assim. Quem usa a língua como uma coisa funcional tem grande dificuldade em usufruir da grande riqueza que é o pensar, o dizer, o ser dito pela língua. Não tem a ver só com a parte do vocabulário de que dispomos, tem a ver com a maneira como nos sentimos produtores da nossa própria língua. Ensinam-nos a ser usuários e somos completamente sufocados pelo medo de errar, pela gramática. Mas às vezes, para dizer certas coisas, só é possível se nos distanciarmos e tivermos uma relação mais inventiva.
É uma maneira de sair da caixa, do espartilho, da ordem.
O que somos só é possível que aconteça se conseguirmos marcar uma impressão digital no que se escreve e no que se diz. Esqueci-me de uma coisa numa estação de Biologia e pedi, por SMS, para me confirmarem que a tinha deixado lá. E as mensagens todas diziam: “Sim, essas suas coisas ficaram no arrumário”.
Arrumário?
É fantástico! Impensadamente usamos a palavra armário, mas armário é uma coisa que está ligada com armas. Apetece muito mais que seja um arrumário, onde se arrumam as coisas. Uma das pessoas mandou uma mensagem muito engraçada: “O meu crédito de telefone acabou, só ficou zero”. O zero é uma coisa que está lá, que fica, que existe. É uma coisa quase metafísica.
Conto outra história, que aconteceu comigo. Dois homens estão sentados num muro e perguntam-lhes: “O que é que estás a fazer?”. “Nada”. “E tu?”. “Eu estou a ajudar o meu amigo.” É uma coisa muito solidária, alguém que ajuda o outro a fazer o nada.
Na sociedade em que vivemos existe uma obsessão com o fazer, com o sucesso, com a apresentação de resultados. Com qualquer coisa que é visível para o fora. Gostava de o ouvir sobre a importância do nada, do tédio. Dessa espécie de vazio que é precisa (também) como efeito regenerador.
Sem dúvida. Não faço o elogio ingénuo de que esse outro mundo, muito rural, moçambicano, está certo. É óbvio que o que é certo é termos tudo, é termos um pé nos vários sítios. Mas na minha própria história, quando olho para mim, fui uma criança “hiperinactiva” [risos]. Ficava nessa dormência, nessa coisa que não se percebia se era vigília, se era sono, se era sonho. E parece-me que isso foi essencial para mim.
De que modo?
Foi essencial para poder estudar alguma coisa que era o que me interessava: esse lado mais íntimo dos seres. Mesmo que fosse tudo inventado. Não importa se fui escritor: sou uma pessoa muito feliz porque tenho esse tipo de competências que foram criadas por uma coisa que nenhuma escola me deu. E, por distracção ou por incompetência, fui capaz de as desenvolver. Tem a ver com a habilidade de sermos felizes.
A habilidade de sermos felizes é uma coisa dificílima. Está a falar de qualquer coisa que é a busca mais essencial das pessoas, e que é muitas vezes canalizada para o sucesso. Mas a felicidade pode não morar aí.
Pode não morar aí. Já dei aulas a futuros arquitectos; eles perceberam que eu não ia dizer nada que fosse importante do ponto de vista do saber. Eu ia só sugerir que há uma outra maneira de aprender, que é estar atento a coisas a que não nos ensinaram a estar atentos. Devemos olhar sempre para uma construção qualquer, um ninho, uma árvore, uma flor, e perceber que lógica é que está aqui. Esta criatura está a dizer-me qualquer coisa.
Há um mestre que há milhões de anos está fazendo desenhos nisto a que chamamos natureza. Se quisermos chamar-lhe Deus, também podemos chamar. Está a fazer esboços e rascunhos. Vai deitando fora, reescreve, desenha. Se se perceber que lógica está ali presente, temos um mestre que nos dá aula todos os dias – e de graça. Se olho para a árvore e percebo que a sua forma tem uma razão de ser, se percebo as relações entre água, entre chão, entre a árvore, a luz, passo a ser uma pessoa menos solitária.
Como é que uma pessoa tem disponibilidade para ver uma flor, e tempo? Uma das coisas que marcam os nossos dias é a aceleração. E a fragmentação. Urge parar a roda. Mas isso não nos parece possível.
É muito difícil. Devo muito ao facto de viver naquele lugar, onde, durante muito tempo, as pessoas não eram convocadas para essas urgências nem para essa fragmentação. As pessoas vão verificar que estes formatos de comunicação não as preenchem. Deixou de haver futuro, o passado é uma mentira. É preciso reaprender o gosto de estar com o outro profundamente, de ser o outro. Se me conta uma história que é sua e que só você pode contar, fico preso.
Fica/ ficamos cativos, cativados.
Sim. E todos precisamos disso. É uma coisa genética. Creio que as pessoas vão aprender isso. E não é preciso uma grande escola, basta que lhes aconteça duas, três vezes, em que esse encantamento que morava na infância seja trazido para outro momento. Vão ficar viciadas nisso.
Esse encantamento da infância, hoje encontra-o numa boa história?
Sem dúvida. A questão não é ter tempo, é estar disponível para encontrar esse momento. Porque as pessoas estão aqui à nossa volta, não estão no Facebook, podem ser tocadas.
Falamos disto e não estamos a falar de política, do momento que Moçambique atravessa...
Ainda bem.
Mas essa é uma dimensão fundamental. Foi inclusive uma dimensão fundamental na sua vida, num determinado período em que politicamente esteve empenhado. Outra das tendências modernas é a de segmentar os discursos. Falamos desta disponibilidade para ouvir o outro, para ver a flor, como se fosse uma coisa etérea, só acessível a alguns e por instantes. Outra coisa é a vida concreta, a da política, a da economia, a da guerra, do conflito. Como é que elas coexistem?
Ficamos prisioneiros de um olhar, de um discurso. Aquele discurso da informação, da televisão, do jornal, que nos entrega um mundo que não é verdadeiro. Que não é só aquele. Pensamos que sabemos – o que é pior do que não saber – o que é a Síria e este drama dos refugiados. A importância que damos a isso é a importância que damos ao discurso da política. Esquecemos que hoje a política é o que ela pode ser – muito pouco. Que os políticos podem governar cada vez menos. Que existem outras forças que comandam muito mais. E que essas não as vemos, não sabemos quem está lá.
São os tais abstractos mercados?
São. Vejo isso no mundo dos livros. Quando comecei a publicar havia mais gente. Agora os formatos de lançamento, os mecanismos de distribuição, o como é que um livro pode aparecer, como é que um autor pode aparecer, é comandado por uma coisa que se chama o mercado, que tomou posse de tudo isto.
O mercado formatou muito mais a vida – em suma, é isso.
Sim, toda a nossa vida. Falámos há bocadinho da língua, da linguagem: chamamos recurso natural à Terra. Dizemos “recursos humanos”. As empresas têm directores de recursos humanos, as pessoas são recursos e achamos normal. Não nos interrogamos como é que estamos, nós próprios, a ser reprodutores de uma coisa que nos empacotou.
Esta ausência de grandes soluções, de grandes causas, vai reaproximar-nos. Temos que estar junto de pessoas. Temos que inventar uma resposta que construa o sentido humano da vizinhança, da proximidade. De chorarmos e cantarmos juntos. Os partidos, os sindicatos, esse formato faleceu. Agora estamos todos perante este grande medo, esta grande ausência. Como vamos fazer? O que é que vamos fazer?
Como é que rompemos isto? Estamos com este medo, a aflição, o sistema parece exaurido. Ao mesmo tempo estamos embrenhados nele. E quando ouvimos um discurso como o seu dizemos que seria bom, mas que é idílico.
Talvez eu seja o menos mentiroso. Tenho ideias mas não tenho ideais [risos]. Idealistas também são os grandes políticos que vêm propor grandes soluções. Há pequenas soluções e a grande solução seria repensarmos, mais do que a política, esta civilização, o fundamento desta civilização. Já estamos a ser avisados de que há grandes coisas que fizemos, e que estragámos, que poderão ser irreversíveis.
Isso é o biólogo – que é – a falar.
Não é só o biólogo. Interessa-me salvar a nossa relação connosco, com os outros. Interessa-me que se perceba que em vez de a Terra ser um recurso, nós somos família, somos parte dela.
Voltemos ao livro, para terminar. Olha-o como um lugar de fronteira? O seu amigo e escritor angolano José Eduardo Agualusa disse que “Mulheres de Cinza” é um livro claramente diferente dos anteriores.
É verdade. Aqui há uma coisa que é nova: mais do que nos outros livros, interessa-me a história e não a linguagem. É como se esta história fosse ela própria uma linguagem. Como se esses personagens estivessem já do lado da ficção. E estão, de facto. São criações. Parecem mais verdadeiros, mas são também objecto de grande suspeição da minha parte. Sempre estive na fronteira entre aquilo a que se pode chamar poesia-prosa. Interessa-me caminhar entre universos. Entre o meu lado europeu e o meu lado africano, entre a escrita e a oralidade. Entre diferentes olhares religiosos do mundo. Nisso não mudei.
Quer escolher um verbo para terminar? Caminhar, sonhar, escrever, viver?
Vou-me citar. Inventei uma palavra: “brincriar”. É isso que faço. E que todos fazemos.
Remete logo para a infância.
Para uma infância que não passa. Quem cria brinca. E quem brinca cria sempre. Matamos muito. Como fizemos aquele “historicídio”, matámos também a infância da nossa espécie. Matámos esses tempos de infância. É [um tempo] francamente desvalorizado. Pergunta-se à criança o que é que ela quer ser quando for grande. Ninguém pergunta o que é que ela quer ser naquele momento enquanto criança. Não é só a criança que está a ser desrespeitada, toda a infância é desrespeitada quando perguntamos uma coisa dessas. E já não sabemos perguntar outras coisas.
Então, o que é que quer ser quando for criança?
Acho que acaba aqui a entrevista. [riso]
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Outubro de 2015