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Anabela Mota Ribeiro

Mia Couto

30.04.16

“Mulheres de Cinza” é o livro primeiro de uma trilogia moçambicana. No centro da narrativa está Gungunhana e os dias do fim do império de Gaza, derrotados por Mouzinho de Albuquerque em 1895. É uma recreação ficcionada de um período recente, que nos faz pensar sobre a identidade e a memória. Ainda somos esses? – perguntamos nós, pergunta Mia Couto, o escritor, o biólogo. É um livro de fronteira que começa assim: “A estrada é uma espada. A sua lâmina rasga o corpo da terra. Não tarda que a nossa nação seja um emaranhado de cicatrizes...”.

 

Existem vários passados? Fala-se do passado como coisa acabada, e no singular. Ao perguntar se existem vários passados, abro a porta à ficção, e sobretudo à interpretação.

Essa castração é quase um “historicídio”, um matar uma parte da história. Tem a ver com a nossa posição como sujeitos da História. Começou muito atrás. Os passados que não convêm, que renovam grandes medos e fantasmas, são anulados. Esta é uma operação que vai sendo feita sempre. E quanto mais recente, maior é a necessidade de que essa extirpação seja eficiente. Tem que ser um corte mais radical.

 

Porquê? E extirpar para quê?

Porque se percebe que somos muito do que fomos. Somos quem já fomos. E essa carga que vem do grande, grande passado... Fomos caçadores-colectores. Devemos mais a essa cultura do que devemos ao Homero e ao Aristóteles.

 

Nessa recusa, estamos a negar ou a criar distância em relação à nossa condição animal?

Temos medo. Temos medo do “não humano” que está dentro de nós. É uma coisa absurda, devia haver uma estátua a esse nosso antepassado comum, esse Homo Erectus, ou ao primeiro Homo Sapiens, em cada cidade. Seria uma grande homenagem à paz.

 

Isso parece uma graça. Explique porque é que não é simplesmente uma graça.

Porque esse homem, essa mulher, deu origem a esta grande saga. Inventámos a espiritualidade, a religiosidade, o sentido cooperativo, os códigos simbólicos. Mas essas grandes coisas que nos fazem ser quem somos hoje estão lá atrás. Estão lá atrás e não nasceram na escrita – mesmo que esta visão tenha sido imposta com a ajuda da escrita. E depois até com a ajuda da ciência. Houve um momento em que a ciência foi cúmplice dessa anulação dos outros saberes que estão dentro de nós. Esses saberes estão ligados a esse passado que nunca passou. Há um lado nosso que é profundamente supersticioso, que está disponível para outras linguagens, para o que é o oculto.

 

E que é domesticado pela racionalidade?

É. É preciso que nos esqueçamos. A fabricação do esquecimento é uma coisa fantástica.

 

Parece um contra-senso. Se estamos a fabricar esquecimento não estamos a esquecer deveras.

Exacto. É uma mentira, uma falsidade. [riso] Esta divisão que fizeram entre sentir e pensar: é admissível que alguém sinta que há uma voz, um espírito, que há uma coisa invisível. Mas pensar que isso seja assim, é grave. A ideia de que a intuição é uma coisa e de que o raciocínio é outra coisa, de que a intuição é feminina e o pensar é masculino...

 

Estamos ainda assentes nessa divisão, nessa leitura maniqueísta do mundo?

Sim. A grande verdade vem do que está escrito. Esta história que quis construir, por exemplo: tive que caminhar com um pé nas fontes orais, um pé na fonte escrita. Mas porque é que uma é mais verdadeira que a outra? Não é. Esta escrita, que é riquíssima e profundamente contraditória, também ela tem os seus segredos, não é uma coisa só. Verifica-se que ali há várias versões e foi preciso escolher uma delas.

 

Refere-se às diferentes leituras de um acontecimento ou personagem histórica. Já lá vamos, ao livro.

Aceitamos que se tenha feito connosco, e que se faça continuamente connosco, essa grande mentira que é pensar que o mundo é só um, que o tempo é só um, que o passado é só um. Ficamos muito aflitos e ansiosos quando nos dizem que num regime há só um partido, que há só uma única voz na opinião pública. E fazemos bem! Essa é uma coisa que não podemos aceitar. Mas silenciosamente e desapercebidamente aceitamos que o mundo seja uno.

 

Voltando ao princípio da entrevista, aos passados ao invés de passado. Vozes ao invés de voz. Quando decidiu trabalhar o Gungunhana, um período essencial da história da construção do seu país, ia disponível para esta pluralidade de vozes e de passados? Ou foi no processo da escrita, de pesquisa que se surpreendeu com uma imensidão de passados e de vozes, superior àquela que tinha previsto?

Não só ia preparado como tinha essa intenção. A intenção era dizer, usando a expressão brasileira: “Gente, há muitos passados, não tenhamos medo disso”. É melhor convivermos com essa pluralidade de fantasmas do que sermos surpreendidos quando eles nos baterem à porta.

Quando falei ao novo presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, deste projecto, disse-lhe: “Estou com alguma preocupação. Este país ainda é muito sujeito a estas manipulações na base étnica, na base desses passados que foram muitos, e que são aproveitados politicamente por forças”. E ele respondeu: “Mais vale acordarmos os fantasmas do que sermos acordados por eles”.

 

Foi um encorajamento.

Foi. Num país que é tão recente, é complicado aceitarmos essa complexidade e essa diversidade. Tem que pensar: “Sou a Anabela, não sou uma das Anabelas que está dentro de mim”. Um país é a mesma coisa. Tem que se escolher amnésias, lembranças. Não serei responsável nem quero contribuir para esse processo, mas quero dizer que não tenhamos medo. Há muitos passados – eles convivem bem entre eles.

 

Quais foram os fantasmas acordados?

Fui mais surpreendido pelo lado português. Portugal está noutra condição histórica. Portugal é uma nação [antiga] e todos os seus mitos têm séculos. Ninguém está interessado se o D. Dinis ou o D. Afonso Henriques foram ou não foram exactamente assim.

Surpreenderam-me as diferentes propostas de leitura, as diferentes versões, as fracções dentro do discurso português. Não havia uma coisa chamada Portugal e a intervenção portuguesa [em África], havia muitas coisas dentro disso.

 

Conte um pouco deste processo. Porquê Gungunhana?

Porque o Gungunhana corporiza muito disto, a construção de mentiras de um e do outro lado. O Gungunhana é quase uma personagem de Shakespeare. É profundamente trágico. [Intuí] que entre aquilo que realmente era e aquilo que se via nele havia distâncias enormes. Substanciava aquela ideia do selvagem africano, do grande chefe.

 

E de força hercúlea. É um aspecto importante.

Sim. Tinha um grande poder, um exército de quase 100 mil homens. Os portugueses – lá – tinham focos de presença efémeros, frágeis. E até um certo momento, Portugal estava ali por estar. Moçambique não tinha grande interesse. Até que surge a pressão da Conferência de Berlim [1884/85] e as potências europeias exigem a Portugal: “Ou estão, e têm que dar prova, ou então deixa de ser vosso”. Portugal tem esse imperativo, surge Mouzinho de Albuquerque… Mouzinho é aquele que representa essa força de ou vai ou racha. Quando decidiu fazer o que fez, não sabia que esse império, o do Gungunhana, já estava na derrocada final. Se fosse meses antes, tinha sido uma coisa suicida.

 

Quais são os grandes elementos do carisma de Gungunhana e de Mouzinho? São pessoas de quem falamos mais de 100 anos depois, não só porque encabeçaram movimentos e lideraram 100 mil tropas. Esteve a viver com eles durante meses: o que é que era tão marcante?

Eram carismáticos, tinham uma personagem magnética, por razões opostas. O Gungunhana teve uma estratégia de poder, que passou por aquilo que era o lado espiritual, religioso. Trouxe os grandes feiticeiros, os médiuns, e do norte, onde depois constituiu a sua sede, e onde estavam os vandaus, que também eram tidos como [detentores de] grandes poderes espirituais, e fez uma estratégia de poder. Por assimilação, e, quando era preciso, por guerra. Transformou-se num homem que sabia gerir muito bem o lado simbólico do poder e o lado efectivo, militar, de apropriação de riqueza.

O Mouzinho era um homem ensimesmado. Todos o descrevem como bonito, seco. A sua presença era marcante. Encantava as mulheres. Os homens ficavam entre o receoso e de certa maneira atraídos por aquela força que emanava dele.

 

A força vinha de onde?

Da certeza que tinha, e um certo desprezo pelo medo. Era um bocado desprezo pela própria vida. Às vezes anotava nas suas confissões, no seu diário, que alguém tinha morrido, e dizia: “Pena não ter sido eu”. Ali, [nessas notas], já está um personagem a libertar-se sem que precisemos de trabalhar muito.

 

As fontes que usou e onde leu essas anotações íntimas, foram mais que tudo quais?

Foram variadíssimas. Há muita coisa sobre um e outro.

 

Em Portugal e em Moçambique? E os registos são coincidentes?

Os historiadores moçambicanos tiveram que vir buscar aqui o que está escrito pelos portugueses. Não podiam falsear isso. Mas é claro que têm outras leituras. Os historiadores moçambicanos vão buscar fontes inglesas, que têm outra interpretação. As fontes da oralidade em Moçambique também são muito curiosas. Sobre o Mouzinho não há muita memória, mas sobre o Gungunhana, sim.

 

Ainda hoje?

Sim. Entre o ódio absoluto daqueles que foram massacrados, e uma certa admiração pelo grande poder unificador deste homem.

 

Ficou pendurada a pergunta pelos fantasmas que foram acordados. Falou na tensão racial que podia ser despertada por se falar nisto.

A literatura pode fazer este trabalho, o de devolver a ideia de que há muitos passados e de que todos têm um pouco de verdade. A tentação de trabalhar racialmente ou etnicamente esse outro tempo fica esbatida. O que interessa à literatura são as pequenas histórias que sobraram da grande narrativa, da narrativa solene da História com H maiúsculo. Essas pequenas histórias são fantásticas. Vários soldados portugueses apaixonaram-se por mulheres africanas, criaram famílias. Tinham de lutar contra África e, ao mesmo tempo, não conseguiam fazer isso porque já eram uma parte de África.

 

Quer apontar um caso relevante?

O intendente-geral, uma espécie de ministro dos Negócios Estrangeiros, casou-se com uma mulher africana, da qual teve filhos. Essa é a razão (no livro isso é sugerido) pela qual passa a merecer alguma desconfiança dos superiores hierárquicos. “Como é que um homem destes pode representar completamente Portugal? Tem que estar dividido.”

Por outro lado, esses prisioneiros africanos que vieram deportados para os Açores, tiveram filhos. Filhos e netos que agora são portugueses. O lado dos encontros que não foram registados é muito feliz.

 

A dilaceração íntima, essa divisão do humano na sua pequenez, na sua fragilidade, à margem da grande História, da factualidade, foi o que lhe interessou trabalhar no livro?

Também. [Volto ao Gungunhana]: era preciso criar uma mistificação de grandeza à volta de um imperador que já não era ninguém, que estava oco. Portugal precisava de uma grande vitória e por isso teve que engrandecer este homem. Um grande imperador africano tem que ter várias mulheres. E tinha, 300. Ele não sabia bem quantas [risos]. Trouxeram sete, que desfilaram aqui, na Avenida da Liberdade. E foi muito curioso: elas foram apupadas. Em Moçambique, em quase toda a África, quando se apupa, é uma saudação amigável. Então elas acenavam sorridentes pensando que aquilo era uma saudação. Esses equívocos interessam-me mais do que o lado oficial da História.

 

Como é que aprendeu esta História quando andava na escola?

Aprendi à maneira colonial. Os bons eram os portugueses, que salvaram o império. E os maus eram os africanos. Aprendi com o mesmo texto que aprendeu a geração de 50.

 

Quando é que esta visão do colonizador e do colonizado, estas diferentes leituras de um passado recente, foi posta em causa – por si? Quando é que começou a ser notória essa multiplicidade de leituras?

Quando tenho a consciência das coisas. Tinha 14, 15 anos quando na minha casa se começou a falar nisso. Tive muita sorte porque o meu pai era um homem que tinha distância crítica sobre as coisas. O meu pai saiu de Portugal por razões políticas, era um homem que sabia que Moçambique ia ficar independente e que tinha outra história. Lutou por isso. Para mim era lógico que havia dois universos que, para se casarem, tinham que se apresentar de um e do outro lado da mesa. Mas a minha casa era um bocado de Portugal. Bastava passar a porta e do outro lado da rua tinha outra versão do mundo.

 

Era uma casa de brancos. Fazia uma grande diferença na leitura desta realidade?

Enorme. Não era só uma casa, era um bairro, uma cidade de brancos. Nos últimos anos já havia algumas zonas de mestiçagem, mas era uma cidade de brancos. Porque os meus pais não eram ricos, eu vivia na zona limite. Uma zona de pântano, que não foi objecto de um plano urbanístico como foi Maputo (na altura, Lourenço Marques), Nampula. Foi construída de maneira um bocado caótica. Mas sempre vivi com esta condição fantástica de que África começava logo ali, ao pé da porta.

 

Viver numa zona de transição: o que é que lhe trouxe?

Aprendi muito cedo, aos cinco, seis anos, uma das duas línguas que se falavam naquela cidade. E escutava histórias de um lado e do outro. Dentro de casa, a minha mãe era uma grande contadora de histórias. Recebia esta ideia de que havia um lugar do outro lado do mundo, um lugar longe, um lugar da saudade, da melancolia. Por outro lado, havia aquela grande força, cheia de vitalidade, com monstros, que convocava muito um outro imaginário.

 

Voltamos a falar de dois polos, duas grelhas de leitura do mundo. Um mundo organizado, com um discurso assente no racional, e outro que apela ao fantástico, à intuição, a qualquer coisa que não sabemos onde vai dar. Faz-lhe sentido?

Faz. Desde que a gente perceba que esses dois mundos não estão separados pela rua, que eles existem dentro de nós. Nós oprimimos, fazemos com que seja esquecido esse universo. E ficamos mais pobres. A poesia é autorizada porque está mais ou menos domesticada, está classificada. Pode ser imaginativa – e a imaginação é um parente pobre do pensamento. É isso que se diz. Em minha casa, eu era filho de um poeta. Dizia-se: “Este, coitado, é um sonhador”. Como se sonhar não fosse uma maneira de pensar.

 

Sobretudo é como se o sonho e a poesia fossem coisas secundárias em relação àquilo que deve ser, ao que é válido.

Exacto. [O outro lado diz respeito ao que] é rentável, ao que cria imediatamente riqueza, ao que é comprovado cientificamente.

 

Ouvi-o há dias dizer que é preciso encontrar novas palavras. Novas palavras que digam uma história recente. Que digam quem é que somos. Usamos um vocabulário que está gasto. Ou precisamos, pelo menos, de uma nova combinação para as palavras, para dizer “um país em construção”, “um sujeito em construção”.

Às vezes pensa-se que isso é uma coisa literária, que essa coisa da recriação do vocabulário é uma coisa que compete aos que escrevem, aos poetas. É uma pena que se pense assim. Quem usa a língua como uma coisa funcional tem grande dificuldade em usufruir da grande riqueza que é o pensar, o dizer, o ser dito pela língua. Não tem a ver só com a parte do vocabulário de que dispomos, tem a ver com a maneira como nos sentimos produtores da nossa própria língua. Ensinam-nos a ser usuários e somos completamente sufocados pelo medo de errar, pela gramática. Mas às vezes, para dizer certas coisas, só é possível se nos distanciarmos e tivermos uma relação mais inventiva.

 

É uma maneira de sair da caixa, do espartilho, da ordem.

O que somos só é possível que aconteça se conseguirmos marcar uma impressão digital no que se escreve e no que se diz. Esqueci-me de uma coisa numa estação de Biologia e pedi, por SMS, para me confirmarem que a tinha deixado lá. E as mensagens todas diziam: “Sim, essas suas coisas ficaram no arrumário”.

 

Arrumário?

É fantástico! Impensadamente usamos a palavra armário, mas armário é uma coisa que está ligada com armas. Apetece muito mais que seja um arrumário, onde se arrumam as coisas. Uma das pessoas mandou uma mensagem muito engraçada: “O meu crédito de telefone acabou, só ficou zero”. O zero é uma coisa que está lá, que fica, que existe. É uma coisa quase metafísica.

Conto outra história, que aconteceu comigo. Dois homens estão sentados num muro e perguntam-lhes: “O que é que estás a fazer?”. “Nada”. “E tu?”. “Eu estou a ajudar o meu amigo.” É uma coisa muito solidária, alguém que ajuda o outro a fazer o nada.

 

Na sociedade em que vivemos existe uma obsessão com o fazer, com o sucesso, com a apresentação de resultados. Com qualquer coisa que é visível para o fora. Gostava de o ouvir sobre a importância do nada, do tédio. Dessa espécie de vazio que é precisa (também) como efeito regenerador.

Sem dúvida. Não faço o elogio ingénuo de que esse outro mundo, muito rural, moçambicano, está certo. É óbvio que o que é certo é termos tudo, é termos um pé nos vários sítios. Mas na minha própria história, quando olho para mim, fui uma criança “hiperinactiva” [risos]. Ficava nessa dormência, nessa coisa que não se percebia se era vigília, se era sono, se era sonho. E parece-me que isso foi essencial para mim.

 

De que modo?

Foi essencial para poder estudar alguma coisa que era o que me interessava: esse lado mais íntimo dos seres. Mesmo que fosse tudo inventado. Não importa se fui escritor: sou uma pessoa muito feliz porque tenho esse tipo de competências que foram criadas por uma coisa que nenhuma escola me deu. E, por distracção ou por incompetência, fui capaz de as desenvolver. Tem a ver com a habilidade de sermos felizes.

 

A habilidade de sermos felizes é uma coisa dificílima. Está a falar de qualquer coisa que é a busca mais essencial das pessoas, e que é muitas vezes canalizada para o sucesso. Mas a felicidade pode não morar aí.

Pode não morar aí. Já dei aulas a futuros arquitectos; eles perceberam que eu não ia dizer nada que fosse importante do ponto de vista do saber. Eu ia só sugerir que há uma outra maneira de aprender, que é estar atento a coisas a que não nos ensinaram a estar atentos. Devemos olhar sempre para uma construção qualquer, um ninho, uma árvore, uma flor, e perceber que lógica é que está aqui. Esta criatura está a dizer-me qualquer coisa.

Há um mestre que há milhões de anos está fazendo desenhos nisto a que chamamos natureza. Se quisermos chamar-lhe Deus, também podemos chamar. Está a fazer esboços e rascunhos. Vai deitando fora, reescreve, desenha. Se se perceber que lógica está ali presente, temos um mestre que nos dá aula todos os dias – e de graça. Se olho para a árvore e percebo que a sua forma tem uma razão de ser, se percebo as relações entre água, entre chão, entre a árvore, a luz, passo a ser uma pessoa menos solitária.

 

Como é que uma pessoa tem disponibilidade para ver uma flor, e tempo? Uma das coisas que marcam os nossos dias é a aceleração. E a fragmentação. Urge parar a roda. Mas isso não nos parece possível.

É muito difícil. Devo muito ao facto de viver naquele lugar, onde, durante muito tempo, as pessoas não eram convocadas para essas urgências nem para essa fragmentação. As pessoas vão verificar que estes formatos de comunicação não as preenchem. Deixou de haver futuro, o passado é uma mentira. É preciso reaprender o gosto de estar com o outro profundamente, de ser o outro. Se me conta uma história que é sua e que só você pode contar, fico preso.

 

Fica/ ficamos cativos, cativados.

Sim. E todos precisamos disso. É uma coisa genética. Creio que as pessoas vão aprender isso. E não é preciso uma grande escola, basta que lhes aconteça duas, três vezes, em que esse encantamento que morava na infância seja trazido para outro momento. Vão ficar viciadas nisso.

 

Esse encantamento da infância, hoje encontra-o numa boa história?

Sem dúvida. A questão não é ter tempo, é estar disponível para encontrar esse momento. Porque as pessoas estão aqui à nossa volta, não estão no Facebook, podem ser tocadas.

 

Falamos disto e não estamos a falar de política, do momento que Moçambique atravessa...

Ainda bem.

 

Mas essa é uma dimensão fundamental. Foi inclusive uma dimensão fundamental na sua vida, num determinado período em que politicamente esteve empenhado. Outra das tendências modernas é a de segmentar os discursos. Falamos desta disponibilidade para ouvir o outro, para ver a flor, como se fosse uma coisa etérea, só acessível a alguns e por instantes. Outra coisa é a vida concreta, a da política, a da economia, a da guerra, do conflito. Como é que elas coexistem?

Ficamos prisioneiros de um olhar, de um discurso. Aquele discurso da informação, da televisão, do jornal, que nos entrega um mundo que não é verdadeiro. Que não é só aquele. Pensamos que sabemos – o que é pior do que não saber – o que é a Síria e este drama dos refugiados. A importância que damos a isso é a importância que damos ao discurso da política. Esquecemos que hoje a política é o que ela pode ser – muito pouco. Que os políticos podem governar cada vez menos. Que existem outras forças que comandam muito mais. E que essas não as vemos, não sabemos quem está lá.

 

São os tais abstractos mercados?

São. Vejo isso no mundo dos livros. Quando comecei a publicar havia mais gente. Agora os formatos de lançamento, os mecanismos de distribuição, o como é que um livro pode aparecer, como é que um autor pode aparecer, é comandado por uma coisa que se chama o mercado, que tomou posse de tudo isto.

 

O mercado formatou muito mais a vida – em suma, é isso.

Sim, toda a nossa vida. Falámos há bocadinho da língua, da linguagem: chamamos recurso natural à Terra. Dizemos “recursos humanos”. As empresas têm directores de recursos humanos, as pessoas são recursos e achamos normal. Não nos interrogamos como é que estamos, nós próprios, a ser reprodutores de uma coisa que nos empacotou.

Esta ausência de grandes soluções, de grandes causas, vai reaproximar-nos. Temos que estar junto de pessoas. Temos que inventar uma resposta que construa o sentido humano da vizinhança, da proximidade. De chorarmos e cantarmos juntos. Os partidos, os sindicatos, esse formato faleceu. Agora estamos todos perante este grande medo, esta grande ausência. Como vamos fazer? O que é que vamos fazer?

 

Como é que rompemos isto? Estamos com este medo, a aflição, o sistema parece exaurido. Ao mesmo tempo estamos embrenhados nele. E quando ouvimos um discurso como o seu dizemos que seria bom, mas que é idílico.

Talvez eu seja o menos mentiroso. Tenho ideias mas não tenho ideais [risos]. Idealistas também são os grandes políticos que vêm propor grandes soluções. Há pequenas soluções e a grande solução seria repensarmos, mais do que a política, esta civilização, o fundamento desta civilização. Já estamos a ser avisados de que há grandes coisas que fizemos, e que estragámos, que poderão ser irreversíveis.

 

Isso é o biólogo – que é – a falar.

Não é só o biólogo. Interessa-me salvar a nossa relação connosco, com os outros. Interessa-me que se perceba que em vez de a Terra ser um recurso, nós somos família, somos parte dela.

 

Voltemos ao livro, para terminar. Olha-o como um lugar de fronteira? O seu amigo e escritor angolano José Eduardo Agualusa disse que “Mulheres de Cinza” é um livro claramente diferente dos anteriores.

É verdade. Aqui há uma coisa que é nova: mais do que nos outros livros, interessa-me a história e não a linguagem. É como se esta história fosse ela própria uma linguagem. Como se esses personagens estivessem já do lado da ficção. E estão, de facto. São criações. Parecem mais verdadeiros, mas são também objecto de grande suspeição da minha parte. Sempre estive na fronteira entre aquilo a que se pode chamar poesia-prosa. Interessa-me caminhar entre universos. Entre o meu lado europeu e o meu lado africano, entre a escrita e a oralidade. Entre diferentes olhares religiosos do mundo. Nisso não mudei.

 

Quer escolher um verbo para terminar? Caminhar, sonhar, escrever, viver?

Vou-me citar. Inventei uma palavra: “brincriar”. É isso que faço. E que todos fazemos.

 

Remete logo para a infância.

Para uma infância que não passa. Quem cria brinca. E quem brinca cria sempre. Matamos muito. Como fizemos aquele “historicídio”, matámos também a infância da nossa espécie. Matámos esses tempos de infância. É [um tempo] francamente desvalorizado. Pergunta-se à criança o que é que ela quer ser quando for grande. Ninguém pergunta o que é que ela quer ser naquele momento enquanto criança. Não é só a criança que está a ser desrespeitada, toda a infância é desrespeitada quando perguntamos uma coisa dessas. E já não sabemos perguntar outras coisas.

 

Então, o que é que quer ser quando for criança?

Acho que acaba aqui a entrevista. [riso]

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Outubro de 2015

 

 

 

Elisa Ferreira (2015)

13.04.16

Elisa Ferreira é a coordenadora do grupo socialista no Parlamento Europeu. As suas áreas de trabalho têm sido Pacto de Estabilidade e Crescimento, banca e fiscalidade. A semana passada, em Lisboa, disse que é altura de os ministros das Finanças saírem de cena. E deixou no ar uma interrogação: a Europa pode viver sem haver nenhuma relação entre a imoralidade e a legalidade?

É formada em Economia pela Universidade do Porto, doutorou-se na Universidade de Reading, no Reino Unido. Foi ministra do Ambiente e do Planeamento, entre 1995 e 2002. É deputada do parlamento europeu desde 2004. Nasceu em 1955.

 

Se fosse ministra das Finanças, seria solidária com Varoufakis, com os gregos? Como é que olharia para aquilo que ele tem defendido?

Olharia de uma forma diferente daquela que a imprensa reporta como sendo a maneira como o governo português está a olhar. Os gregos são a ilustração de alguns exageros da receita que foi seguida na Europa, e que se distanciou muito do que era o projecto europeu.

Quando partimos para a moeda única, ninguém sabia como é que ia funcionar. Partimos sabendo que juntar debaixo da mesma moeda – abdicando voluntariamente dos instrumentos normais de gestão da economia –, países com níveis de dinâmica económica tão distintos, e com estruturas económicas tão distintas, continha sérios riscos.

 

Confiámos demasiado que ia correr bem, apesar dessas diferenças?

Havia muita confiança entre os países membros que eventuais falhas na arquitectura da moeda única podiam ser corrigidas pela vontade política de que o processo tivesse sucesso. Esta lógica original foi desaparecendo. Era a altura em que se dizia: “Tem que se promover a convergência nominal e a convergência real da economia, a competitividade”. Criámos alguns instrumentos para o mercado interno, reforçámos os fundos de coesão. Mas para a moeda única, a coisa foi pouco cuidada.

 

Está a falar de um período em que havia um predomínio de um desígnio político. Depois, o que parece acontecer é uma subversão desse princípio primordial, e um detrimento da política em relação à economia, e sobretudo à finança.

É verdade. Isto era um projecto político assente numa base económica. Neste momento parece um projecto económico. A política será uma segunda escolha.

 

O que é que foi determinante para a alteração da matriz?

Esta alteração foi acontecendo, também, em consequência de duas ou três mudanças. Uma foi a globalização. De facto, organizar uma área económica com uma concorrência tão brutal – e ainda bem que ela existe, trouxe muita gente para fora da pobreza extrema – do lado da Ásia, da América Latina, de alguns países africanos, tornou o mundo um espaço único.

 

A Europa não estava preparada para este embate?

A Europa tinha-se concentrado excessivamente no mercado interno, nos ganhos que adviriam de reforçar a concorrência no interior da zona. E continua a considerar que, dos grandes blocos mundiais, a Europa é aquele que menos clareza tem na definição dos seus interesses ofensivos e defensivos em termos globais.

 

Não tem essa clareza porque continua a apostar num jogo directo de toma lá, dá cá? Estou a pensar nisto: Portugal importa indústria alemã, a Alemanha cresce, Portugal fica sobreendividado entretanto.

O sobreendividamento do sul da Europa permitiu que a crise de perda de competitividade destes países fosse disfarçada através de crédito. No fim dos anos 90 havia taxas de juro elevadíssimas, e passou-se para taxas muito baixas, uma inflação relativamente contida, e um acesso hiper facilitado ao crédito. Em particular ao crédito de consumo e de habitação, que é o mais simples, o menos exigente para a banca comercial. Vivemos um período de empolamento, de riqueza sem substância. Cidadãos e empresas usaram o endividamento. Mas isto acabou por ser um balão de oxigénio que estimulou a economia daqueles que continuaram a produzir, a exportar. Se olhar para o nosso parque automóvel, percebe quais eram as marcas predominantes no mercado.

 

Eram alemãs.

Para já não falar de grandes encomendas de Estado, de que os submarinos são apenas a superfície. Há países que continuaram a proteger e a manter a sua base produtiva. Honra seja feita à Alemanha, que foi inteligente e conseguiu manter essa base produtiva, reforçá-la, fazer uma ligação muito estreita entre a banca alemã e o fornecimento de crédito e indústria. Muito do crédito favoreceu, dentro da Europa, aqueles que continuaram a produzir, em particular aquele arco do centro da Europa e norte da Europa.

 

É arriscado dizer que Schäuble e Merkel, e a política que defendem, mandam mais sobre a Europa do que muitos governos, democraticamente eleitos, de cada um dos países? Estes são reféns de tratados que assinaram e do dinheiro de que precisam. Ou é empolado este poder desmesurado da Alemanha?

Não. Há forças internacionais que se cruzam em cima dos interesses dos Estados. Há outros elementos que também mudaram muito: o poder dos mercados financeiros face aos sectores mais tradicionais que conhecíamos. Na área dos serviços criou-se a tal indústria financeira brutal. Há elementos que fazem com que se distancie – e os cidadãos cada dia sentem mais isto – aquilo que é o exercício do seu poder democrático, e o impacto que esse exercício tem nas políticas que são aplicadas.

Mas a Europa continua a ser um grande elemento de protecção. É muito mais fácil gerir as relações com o Brasil ou com a China debaixo de um grupo forte como é a União Europeia do que individualmente.

 

Apesar das disparidades entre países, do alargamento da Zona Euro, da crise do projecto europeu...

Disparidades em termos de dinâmica económica e em termos de poder político. O problema da Alemanha é que, talvez sem uma intenção específica de liderança, e sem consciência da responsabilidade que o seu poder traz, acabou por ser o grande ganhador destes processos.

 

Não foi um processo consciente?

Foi um processo consciente de defesa dos seus próprios interesses. O problema é que o seu poder é tão avassalador que, quando a Alemanha define o que é que interessa, arrasta toda a Europa atrás dela. As políticas comuns, que são aparentemente iguais para todos: não significa que afectem da mesma maneira os diferentes espaços em que incidem. Isto é um factor de perpetuação dos desequilíbrios.

 

Então, vamos chegar onde? Alguns países, os que não conseguem cumprir metas orçamentais ou pagar a dívida, são expulsos da zona euro porque não têm capacidade para aguentar o ritmo? Este cenário é mais provável do que o fim do euro como o entendemos?

É muito difícil antecipar o futuro. Mas há condições para progredir. Antes de mais que se faça uma leitura técnica de como é que funciona uma moeda única. E que tenhamos a inteligência de nos sentarmos à volta de uma mesa e pararmos com este absurdo de considerar que uns são culpados e outros são virtuosos.

 

As regras, que datam de há 25 anos, quando a moeda única foi desenhada, deixaram de ser válidas?

As regras são [válidas], o modelo é que ficou incompleto. Quando a Europa define que abre as portas às importações chinesas sem levantar qualquer problema em termos ambientais, está a tomar uma decisão. Perdem os produtores daqueles produtos, na Europa, foram obrigados a fazer requalificações ambientais, a cumprir uma série de regras. E ganham os importadores, que importam a preço muito mais reduzido. Quando definimos o posicionamento em relação aos nossos parceiros internacionais, estamos internamente a dizer quem ganha e quem perde.

 

Aí já estamos a falar de quem define o nosso posicionamento, em função de que interesses.

A capacidade de lobby da Alemanha, e de imposição de agenda: se a Alemanha disser que nas nossas relações com a China tal produto não pode entrar, porque tem um interesse defensivo, isso passa a ser a norma da União Europeia.

Isto é um lado da História.

Do outro: a Grécia, não tem áreas onde precisa de fazer reformas estruturais? Sim. A Grécia estar durante quatro anos debaixo de uma troika, e a troika não ter imposto nenhuma das mudanças que ela precisava de fazer, e ter causado uma destruição interna como esta a que estamos a assistir, leva-me a pensar que o ajustamento que lhe foi imposto não foi o correcto. Não admito que digam que a Grécia não fez nada. Não se perde 26% do PIB em quatro anos quando não se faz nada.

 

O desemprego é de 25%, o desemprego jovem é de 50%.

O que me choca é a inutilidade desse esforço.

 

Apostou-se na contenção de contas públicas. Não é o mesmo que reformas estruturais.

Não. A contenção das contas públicas feita pela troika foi excessivamente concentrada em valores nominais do défice. Descurou a dívida, que foi a origem do nosso problema.

 

Está agora a falar de Portugal ou da Grécia?

De todo o pacote. Queremo-nos isolar uns dos outros.

 

“Queremos” – quem?, Pedro Passos Coelho, o Governo português?

Portugal não é a Grécia, a Irlanda não era Portugal. A Espanha não é a Grécia nem Portugal. A Itália não é a Espanha. Este é um dos problemas, há uma abordagem moralista e não uma abordagem económica do que se está a passar. Há uma culpa associada ao que correu mal.

 

Não há culpa?, e não é importante apurar a culpa?

Essa culpa existe, mas não é na dimensão que o mainstream identifica.

 

No caso português, há uma culpa, sobretudo imputada aos governos socialistas, pelo sobreendividamento e pelo défice brutal. Portugal foi dos países que mais se endividaram nos últimos anos. Mas quase ninguém diz que a culpa é inteiramente portuguesa. Mesmo os mais críticos, sabem que os problemas resultam, também, das condições internacionais.

Resulta do facto de, na estrutura que temos na moeda única, a dívida ter crescido nos países menos competitivos sem limite e sem controlo.

 

Disse que as regras da moeda única eram as mesmas mas que o modelo tinha ficado incompleto. Incompleto ou demasiado imperfeito?

Neste momento é demasiado imperfeito. Não vai poder continuar a funcionar assim. A questão é se queremos completá-lo ou não. Mas se o quisermos completar temos que ter vontade política. Se continuar assim, mesmo que esta crise seja ultrapassada, vai voltar a romper lá à frente.

 

Em que sentido podemos evoluir?

Uma possibilidade é evoluir para um nível quase federal. Nesse caso, há aspectos que têm que ser clarificados: o que é que fica ao nível federal, o que é que fica ao nível nacional. E a consciência de que temos que ter um orçamento sólido.

 

A crise explodiu nos Estados Unidos em 2008 e a Reserva Federal imprimiu dinheiro; dessa maneira relançou com maior rapidez a economia. Na Europa, sendo uma coisa diferente, só há poucas semanas tivemos a bazuca de Mario Draghi. Só há pouco tivemos, do Banco Central Europeu, um estímulo há muito pedido.

Em 2008, 2009, no Parlamento Europeu, fizemos um relatório pedindo à União Europeia que fizesse uma estratégia de relançamento da economia. A Comissão disse-nos que não tinha margem para o fazer. (O orçamento europeu vale 1% do PIB da União Europeia. Qualquer governo federal tem 20 a 30% do PIB no orçamento federal.) A primeira recomendação que a Comissão Europeia deu aos diferentes Estados membros foi: “Avancem com políticas expansionistas”. Os países mais frágeis, que não tinham uma dívida pública muito elevada – como Portugal –, aumentaram a sua exposição aos credores. Até que a coisa atingiu um ponto em que, na Grécia, os credores começaram a dizer: “Esta dívida é insuportável. O facto de estar no Euro não significa que todas as dívidas sejam pagas igualmente”. Seja ela alemã ou grega. Na prática, a Europa reagiu não agindo. Reagiu tarde, pouco e mal. E de forma descoordenada.

 

Voltemos à Grécia. A questão no imediato é a renegociação da dívida, mas o que o Syriza está a discutir é um novo modelo económico, social e político, em que a forte tributação deixa de ser sobre o trabalho para passar a ser sobre o capital. Neste momento, o que parece haver na Europa é uma lógica de funcionamento em que capital está contra trabalho, o trabalho está contra capital. Qual deles é que privilegiamos?

É uma questão fundamental que se divide em duas. Uma é a curtíssimo prazo e é um braço-de-ferro. A Alemanha e os países considerados credores impuseram uma receita, a da troika, que assenta em fazer um ajustamento. Não se pode fazer uma desvalorização na moeda, porque é única, então faz-se uma desvalorização interna dos salários, dos rendimentos, das pensões, independentemente dos limites políticos e sociais a esse esmagamento. No caso da Grécia passou-se o limiar do aceitável.

 

As palavras usados pelo novo governo grego são de crise humanitária.

Os credores são insensíveis a essas questões. Este braço-de-ferro, do lado dos credores, corresponde a dizer: “Votaram contra a troika, contra esta agenda, e não podemos compensar o crime da desobediência, a rebeldia, porque senão os outros vão fazer o mesmo”.

 

A Irlanda até já disse que também quer.

É o fim do modelo da austeridade. Por outro lado é preciso termos consciência de que isto não é um problema da Grécia. Nem é um problema de Portugal. É um problema de todos os países que foram perdendo competitividade durante o funcionamento do Euro. E quando veio a crise, foram os elos mais fracos. Todo este mal-estar, que resulta de a única receita ser austeridade e ajustamento, leva a que as pessoas comecem a desacreditar da política e da democracia – a desacreditar da Europa. Os gregos revoltam-se e aparecem com um porta-voz que deve ser escutado. Estamos a esquecer-nos de que o maior partido da oposição em França é o de Marine Le Pen.

 

Basta olhar para as eleições europeias do ano passado e para o sinal que elas deram, nomeadamente para a subida dos partidos anti-Europa.

O Podemos está como um dos grandes partidos. Era um movimento cívico. Não se pode deixar de ouvir. É demasiado perigoso. Os títulos que aparecem na imprensa alemã são populistas. “Os preguiçosos, pediram-nos dinheiro e não nos querem pagar”. Temos 125 milhões de pessoas em toda a Europa que estão numa situação de quase pobreza.

O problema que estava a colocar, [da tributação dos rendimentos do capital e do trabalho], é sério. O cidadão comum sente que está completamente esmagado de obrigações fiscais e vê passar por cima da sua cabeça massas brutais de dinheiro em busca de paraísos fiscais. O que acontece na Europa é que a matéria da fiscalidade, embora estejamos a harmonizar tudo, estranhamente, manteve-se autónoma. Cada país pode bloquear, porque a regra da unanimidade é que funciona, qualquer iniciativa de convergência fiscal dentro da Europa. Convivemos aqui com paraísos fiscais ao nosso lado.

 

Isso pode traduzir-se em fracturas sociais muito graves.

Já se está a traduzir. Há aqui uma agenda para refazer se ainda acreditamos que vale a pensa salvar o projecto europeu.

 

Este vai ser um ano de eleições. Se fosse ministra das Finanças do PS – estou a insistir na finanças porque parece que neste momento as finanças são mais determinantes do que qualquer outra pasta, apesar de a sua área ser a economia –, defenderia uma alteração de medidas tomadas nos últimos anos? Por exemplo, em relação à reforma do IRC, privatizações?

Em primeiro lugar, não me vou pôr nesse lugar, não sou candidata. Em segundo lugar, não rejeito dois conceitos que foram centrais à política seguida neste período. Uma é que é preciso reformas estruturais. E outra é que é preciso ter um cuidado enorme com a dívida e o défice. Preocupa-me mais a dívida.

 

Porquê?

Concordo com estes elementos, mas interpreto-os de uma forma diferente. O défice, vejo-o como uma variável que pode oscilar e tem que tender para o desaparecimento. A dívida: é preciso conter as contas públicas e fazer reformas estruturais. As reformas estruturais não são desmantelar o mercado de trabalho. Não são precarizar o mercado de trabalho. Não são esmagar salários por sistema na função pública.

Quanto mais privatizarmos sectores importantes, mais qualidade temos que ter na função pública. Não podemos depender todos dos mesmos gabinetes de advogados, uns pelo lado do Estado, outros pelo lado dos privados, e depois andar a ver quem é que paga mais. Estamos a desqualificar e a descredibilizar a função pública e ao mesmo tempo a privatizar sectores fundamentais.

 

Criou-se a ideia de que o Estado é despesista, é corrupto, é ineficiente. Que aquilo que se deve fazer é deslocar o que o Estado não é capaz de fazer para a mão de privados.

Infelizmente a história recente, portuguesa, internacional, veio mostrar que esse discurso precisa de ser revisto. O caso do BES ou da PT arrumam com isso. Querem desacreditar o Estado, reduzem o Estado. O Estado é que é o culpado. Essas generalizações acabam por ser perigosas. Em sectores estratégicos, como o sector eléctrico, devíamos ter lutado por manter uma presença. Uma golden share ou um poder especial de defesa do interesse público, que frequentemente entra em conflito com o interesse privado, é um factor essencial de estabilidade numa sociedade, e de sobrevivência de um país.

 

A mesma coisa em relação à TAP? Na sua opinião, em tudo aquilo que são sectores estratégicos, mesmo que se proceda a uma privatização, o Estado deve continuar…

... a ter um poder. Só não privatizámos a Caixa Geral de Depósitos porque à última hora a coisa não correu bem. Se privatizarmos o sector da água, da electricidade, os transportes, no fim, que poder temos nós?

 

Está a dizer que isso não são anéis, são dedos.

São. O Estado tem de manter um poder sobre esses sectores, de salvaguarda da componente de serviço público. Relativamente à TAP, a proximidade do período eleitoral não recomenda de modo nenhum que se faça uma privatização. A solidariedade europeia tem que se exercer garantindo aos países que há dimensões humanas mínimas que ficam garantidas. Que há sectores estratégicos que não ficam a saque dos credores. Lamento que não tenha sido nada disto que a Europa conseguiu transmitir nestes anos.

 

Qual acha que devia ser o eixo principal da política do PS em relação à economia e às finanças?

Em síntese, reconciliar uma estratégia de crescimento com o equilíbrio das contas públicas. Isto significa arranjar aliados europeus para que a agenda europeia nos permita esse espaço de respiração.

 

Quem é que podem ser os nossos aliados?

Eles existem ao nível dos grupos políticos. O grupo dos socialistas tem tentado começar a construir essa agenda. Jean-Claude Juncker não é do meu grupo político, mas foi apoiado. É um europeísta convicto, um homem experiente que não tem medo da Sra. Merkel. A agenda do Juncker está a tentar abrir espaço, merece ser apoiada. As suas iniciativas de flexibilizar as regras do pacto, ou a interpretação das regras do pacto, permitem fazer um ajustamento do défice da dívida mais consentâneo com o ciclo económico. Há uma outra dimensão: ter Mario Draghi à frente do BCE é muito diferente de ter Jean-Claude Trichet. É um homem com muito mais abertura e coragem. Se hoje temos a dívida soberana nos mercados internacionais muito mais baixa, foi porque ele, no Verão de 2012, disse: “Vou intervir no mercado e acabar com estes jogos”.

 

Começámos por falar de finanças e do quase desaparecimento da política, e acabamos a falar de economia.

Sim. Durante a crise os ministros das Finanças foram chamados ao primeiro plano, e ficaram lá. As finanças são necessárias, mas não são o suficiente para que os cidadãos se identifiquem com os políticos. Quase não há primeiros-ministros. Quando reúnem os chefes de Estado e do Governo, antes reúnem os ministros das Finanças. Os primeiros-ministros acabam por ser quase porta-vozes do que dizem os ministros das Finanças.

 

O facto de todos sabermos hoje o nome do ministro das Finanças grego ou alemão, diz qualquer coisa. Há dez anos não saberíamos.

Os ministros das Finanças têm que sair do palco e têm que entrar os ministros da Economia, do Emprego, da Saúde, da Educação. Temos que ter outra agenda. Basta de ministros das Finanças!, isto subverte o que é a Europa. É também por isto que os europeus não vêem nenhum desígnio à sua frente. Não há futuro, há o défice do próximo ano.

 

Recentemente, a propósito dos Swiss Leaks, dizia que enquanto se permitem paraísos fiscais, vão buscar dinheiro ao bolso dos contribuintes...

Não é aceitável.

 

Começa-se por onde?

A Europa é a maior praça financeira mundial. Tem obrigação de fazer alguma coisa, dar o exemplo. Se, neste momento em que estamos a fazer um acordo com os Estados Unidos, de comércio livre, reforçarmos o diálogo em matéria de regulação do sistema financeiro, se estes dois blocos levarem a sério esta agenda, é evidente que isto tem um impacto enorme na regulação global.

 

A agenda tem de ser concertada. De outro modo, o dinheiro voa para o vizinho do lado.

Também se dizia em relação à regulação dos bancos: se pusermos um imposto sobre as transacções financeiras, há inúmeras reacções e bloqueios com o argumento de que as transacções vão ser todas feitas fora da Europa. Mas faz sentido que compre uma sopa e pague IVA e que compre um produto financeiro e não pague nada? Os produtos financeiros são comprados e vendidos em milésimos de segundo, e nada paga nada. Se são essas transacções arriscadas que se vão deslocar para o extremo Oriente, não sei se devemos ficar preocupados. Há aqui um sentido de justiça. O cidadão comum não tem o grau de ignorância relativamente a estes assuntos que tinha nos anos 60. Há uma questão de legitimidade na cobrança dos impostos. Só quem está fixo e depende do salário, e as pequenas empresas, é que pagam?

 

Há disparidades brutais de país para país em relação a aspectos muito significativos.

O mais chocante não é que haja diferenças entre os Estados Unidos e a Europa. É que na Europa o cálculo da matéria colectável, para empresas iguais, seja feito de forma diferente de país para país. Alguns países jogam em criar diferenças que lhes permitam capturar… todos sabemos: capturar as sedes dessas empresas.

 

Estão na Holanda as sedes das nossas maiores empresas.

O que complica a questão é que, dada a circunstância de tudo ter de ser, nessa matéria, aprovado por unanimidade na Europa, essas práticas não são ilegais. Se ouvir o que diz o Jean-Claude Juncker, ou o que dizem alguns empresários, isso é boa gestão. É legal. E a Europa pode viver sem haver nenhuma relação entre a imoralidade e a legalidade?

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015

 

 

Jorge Miranda

02.04.16

Jorge Miranda escreveu as suas memórias da Assembleia Constituinte, de que foi deputado. “Da Revolução à Constituição” olha para dois anos em que tudo mudou de lugar, há 40 anos.

O professor da Faculdade de Direito fala sobre a Constituição que nasceu da revolução, do ambiente da altura, das reformas que foram feitas, do âmago que se mantém. E fala sobre a acção do Tribunal Constitucional, a violação do segredo de justiça, a presunção de inocência.

Entrevista no seu gabinete, depois de uma aula.

 

A Constituição de 1976 tem um cunho ideológico. Podia não ter depois de 48 anos de ditadura?

Não há nenhuma Constituição que não tenha um cunho ideológico. Qualquer Constituição assenta numa certa ideia de Direito. A Constituição de 1976 tem o cunho ideológico resultante do compromisso que houve entre os partidos democráticos ligados à democracia pluralista representativa de tipo ocidental, ao Estado de direito democrático, às tendências socialistas da época. Desde o socialismo personalista do então PPD ao socialismo democrático do PS, ao socialismo marxista-leninista do PCP. Numa assembleia em que não havia nenhum partido com maioria absoluta, e em que havia várias correntes em presença, só era possível fazer a Constituição com um compromisso entre essas várias ideologias.

 

Então todas as constituições são resultado do seu ambiente político e da sua época, reflectem essa ideia do que um Estado deve ser, do que um país deve ser. E a de 1976 reflectia um desejo ou uma necessidade de compromisso.

Havia também uma necessidade de compromisso porque o país tinha saído de uma ditadura de 48 anos. O mundo estava em grande efervescência ideológica, e isso não podia deixar de se projectar em Portugal. O Maio francês, a luta nos Estados Unidos contra a guerra do Vietname, as correntes marxistas. Dentro da Igreja Católica, as consequências do Concílio Vaticano II. Com a revolução regressaram milhares de pessoas que tinham vivido os acontecimentos franceses e outros dos anos 60 e 70.

Nenhuma Constituição é feita numa torre de marfim.

 

Há no seu livro transcrições de diálogos mantidos por si e por Vital Moreira na Assembleia. Numa passagem fala-se da Constituição dos revolucionários e na Constituição dos contra-revolucionários. Aquela não era de todo feita numa torre de marfim. Ao contrário, era feita no terreno.

Era feita na luta. No interior da Assembleia, em que havia um contraste entre os partidos que chamo democráticos e os partidos marxistas-leninistas, que pretendiam instaurar em Portugal um regime comunista.

A luta mais grave era no exterior. A Assembleia Constituinte começou a trabalhar em 2 de Junho de 1975, e até Novembro de 1975 era uma ilha numa cidade de Lisboa dominada por forças de esquerda, extrema-esquerda, revolucionárias, que não queriam em Portugal um Estado de direito de tipo ocidental. Queriam em Portugal o socialismo original. Ou não original, mas que acabaria por desembocar em algo de parecido com Cuba (a Cuba da Europa) ou com a Polónia.

 

Isso não era próprio do processo revolucionário? Quando olhamos para o dia 25 de Abril, existe o grande sonho. O 1º de Maio simboliza o êxtase colectivo. Mas a seguir começa a luta: “Qual é que é o meu 25 de Abril, e qual é que é o teu 25 de Abril”.

Ainda antes do 1º de Maio começa uma luta pelo poder, entre várias facções militares, e também entre facções político-partidárias. Luta pelo poder que vai sendo agravada à medida que os tempos vão passando. Dizia-se que Portugal era uma panela de pressão e que se tirou a tampa, saiu tudo cá para fora. Era inevitável, depois de 48 anos de repressão. As pessoas respiraram. Muitas vezes respiraram sem ter em conta o dia seguinte, mas respiraram. Por outro lado houve a descolonização, provocando o regresso de centenas de milhares de portugueses de África. Houve também as tentativas de conquista do poder, o general Spínola, o Vasco Gonçalves. E depois as facções político-partidárias que havia e que se foram infiltrando nas Forças Armadas.

 

Luta é a palavra daquele tempo.

A luta começou no dia 25 de Abril. Ou até começou antes porque se sabe que o programa do Movimento das Forças Armadas resultou de um compromisso entre o movimento e o general Spínola.

O processo revolucionário vai desencadear-se sobretudo a partir do 11 de Março. Com as nacionalizações, a reforma agrária, ocupações, o problema das eleições (se se realizam ou não), a ocupação da República, da Rádio Renascença, as manifestações e contra-manifestações.

 

Se olharmos para a descolonização, para a vinda de quase um milhão de pessoas, e para a maneira como foram admiravelmente integrados… Bom, admirável é um advérbio meu. Não sei se concorda.

Concordo. É uma diferença muito grande entre o modo como recebemos os portugueses que vieram de África e o modo como os franceses receberam os pieds-noirs da Argélia.

 

Entre as grandes fracturas dos dois primeiros anos, o que é que acha que foi mais extraordinário? Ou foi a revolução em si mesma?

O mais extraordinário foi o sequestro da Assembleia Constituinte. Foi o auge do processo revolucionário. Quando uma assembleia, eleita por sufrágio directo, universal, secreto, conforme o programa das Forças Armadas, num certo dia é cercada por dezenas de milhares de manifestantes, e as pessoas não podem sair...

 

O que é que se lembra de ter pensado e sentido, nessa altura do sequestro?

Senti uma grande preocupação. Mas também uma enorme humilhação. Eu e as pessoas que lá estavam. Eu, deputado eleito pelo povo, estar impedido de sair, impedido de receber alimentos, ser obrigado a passar a noite lá. Depois sair no meio de manifestantes, em fila indiana, até meio da Rua de São Bento – foi um vexame enorme. Não à minha pessoa, mas a mim enquanto representante do povo.

 

Como se fosse a democracia a ser vexada?

Uma humilhação tremenda à democracia.

 

Nunca perdoou isso ao PC e aos comunistas?

Não é uma questão de perdoar ou deixar de perdoar, é um facto histórico que não pode ser esquecido. Os deputados do Partido Comunista, pelo contrário, saíram aclamados, de braço erguido.

 

Esse foi, a seu ver, o acontecimento mais negativo desses dois primeiros anos.

Claro que houve também outros acontecimentos dramáticos, o 28 de Setembro, com as barricadas. O 11 de Março, com a assembleia selvagem. O 25 de Novembro com a ocupação de bases, e as lutas na Calçada da Ajuda, onde morreram três pessoas. Mas porque vivi isso, foi o mais dramático. O mais positivo foi a votação final de aprovação da Constituição. Representou a vitória da democracia, da Assembleia Constituinte.

 

No ano passado, nos 40 anos do 25 de Abril, Pacheco Pereira deu uma entrevista com uma afirmação muito polémica ao jornal i, na qual dizia que a democracia nasceu também dos excessos do PREC. Que foi naqueles anos turbulentos, também, que se fez a democracia.

Historicamente não há dúvida de que foi assim. Agora, não quer dizer que a democracia seja a filha do PREC. A democracia é filha do 25 de Abril, do programa do Movimento das Forças Armadas. É esse que restaura as liberdades, liberta os presos, permite o regresso dos exilados, convoca a assembleia, permite partidos.

O PREC talvez fosse historicamente inevitável.

 

Talvez, ou era mesmo inevitável?

Não quero fazer a afirmação. Talvez fosse historicamente inevitável tendo em conta as condições que disse. Mas o PREC põe em risco a democracia.

 

Havia uma coisa comum a todos nesse tempo da Constituinte: o sonho. Cita no seu livro o verso famoso de Sophia de Mello Breyner, “Esta é a madrugada que eu esperava/ o dia inicial, inteiro e limpo/ onde emergimos da noite e do silêncio”.

Reconheço que todos tinham um ideal. Desde o CDS até ao PCP, até à UDP. Acredito que as pessoas estavam motivadas por uma visão de um Portugal melhor.

 

E havia essa ideia de que se podia fazer tudo, de que estavam na folha em branco e era possível desenhar o país?

Talvez nos primeiros momentos tivesse havido essa impressão, mas a partir de certa altura comecei a sentir que não era possível fazer tudo.

 

Quando?

A partir do verão de 1974. Com o problema da descolonização, com os problemas a nível militar, com a situação externa de Portugal, com a crise económica – o problema do petróleo já vinha de 1973 –, não era possível fazer tudo.

 

Era preciso ser comedido?

Era preciso haver conta, peso e medida. Era preciso ter um sentido de progressividade. [O contrário] poderia até provocar o retorno de uma extrema-direita. Muita gente com quem falei não tinha esta noção. Comecei a ficar preocupado quando vi que a situação económica estava muito má. As universidades estavam paralisadas, o sistema de ensino estava em queda, em ruptura. No plano social havia conflitos muitas vezes provocados por forças partidárias. E havia verdadeiros assaltos aos sindicatos, às autarquias locais. Havia forças que estavam a tentar tomar o poder rapidamente. E que o país já não aguentaria. Isso podia levar a uma situação de conflito, como levou.

 

Era muito jovem. Eram todos muito jovens. E quando se é muito jovem tem-se a ideia de que se pode mudar o mundo, e que os projectos podem ser puramente executados. Depois existe um confronto com a realidade e uma necessidade de adaptação. Foi uma grande aprendizagem para si, nesse sentido?

Foi. Até no puro plano da democracia e do parlamento, dos partidos, da visão que tinha do jogo das eleições. Pensava que era só por ideais que as pessoas iam para os partidos, para o parlamento ou para as eleições. (Deve dizer-se que na Assembleia Constituinte os deputados mostraram uma grande independência, tomaram posições de acordo com as suas ideias.) Poucos anos depois comecei a sentir que os partidos eram máquinas de poder. E que havia interesses de vária ordem que estavam infiltrando-se na vida política.

 

Quando é que para si o sonho do 25 de Abril começou a ser desvirtuado?

O sonho do 25 de Abril no sentido do sonho de uma liberdade, de uma democracia, esse nunca foi desvirtuado. Apesar de todas as dificuldades, de tudo o que temos passado, ainda temos essa liberdade, essa democracia. Não aquela democracia pura que ambicionava. Uma democracia de ideais, que talvez não exista. Talvez devido à minha educação jurídica, muito assente em determinadas normas que seriam cumpridas, num certo conjunto de valores, numa dedicação profunda à causa pública. A partir de certa altura senti que não era bem assim. E depois também lutas pessoais, que tinha dificuldade em compreender. No próprio PPD. Estive sempre à margem, causavam-se grande incómodo.

Nunca teve ambição de fazer uma carreira política?

Nunca tive.

 

Esteve sempre muito próximo do PPD.

Estive muito próximo do PPD porque tinha estado muito próximo do Sá Carneiro antes do 25 de Abril.

 

Por via do catolicismo?

Não. Por via da revisão constitucional de 1971. Conheci Sá Carneiro quando houve um encontro da Ala Liberal, com o Rui Machete, para discutirmos o projecto de revisão constitucional que a Ala Liberal ia apresentar.

 

Achei que também o catolicismo fosse um substrato da vossa relação.

Não foi. Foi a actividade dele na Assembleia que me aproximou dele, que me criou uma grande admiração por ele. Senti-me social-democrata desde muito jovem, e era importante criar um partido de gente jovem, gente com 20 anos.

 

Em que ano nasceu?

Em 1941. Tinha 33 anos nessa altura. Eram pessoas à volta dessa idade. Era empolgante.

 

Do outro lado da barricada, Francisco Salgado Zenha, era uma pessoa com quem se dava?

Era meu parente por afinidade, sobrinho de um tio-avô meu. Tenho por ele uma grande admiração. Mas nessa altura não tive contactos com ele porque ele esteve no Governo. Admirei-me muito com o artigo que escreveu em Janeiro de 1975, contra a unicidade sindical. Foi um ponto de viragem muito importante, esse artigo no Diário de Notícias. Mas conheci muita gente do PS, a começar por Mário Soares.

 

A Constituição foi o elemento organizador que resultou da revolução, e que definiu as traves mestras do que iríamos ser. Na sua opinião, e porque é uma Constituição compromissória, herdou elementos espúrios que não devia ter herdado?

A Constituição começa por afirmar a dignidade da pessoa humana. É um ponto fundamental, a trave mestra da Constituição. Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular. A parte I é de direitos e deveres fundamentais. O Partido Comunista pretendia que fosse a organização económica, mas os outros partidos quiseram que começasse pelos direitos e deveres fundamentais. E dentro dos direitos e deveres fundamentais começamos pelos direitos, liberdades e garantias. Depois estão os direitos sociais. Há um catálogo de direitos sociais que não tem paralelo em nenhuma Constituição europeia.

 

Essa é a essência da Constituição?

Sim. Depois, temos a organização do poder político assente em eleições, liberdade, partidos. Depois o controlo da constitucionalidade. E depois a organização económica. É sobretudo na organização económica que o elemento compromissor é mais forte. Vai apontar para uma transição para o socialismo, mas ao mesmo tempo garante a propriedade privada e a iniciativa privada.

 

A direita olhou/olha com desagrado para o caminhar para o socialismo.

Não é uma Constituição que aponte só para a pura estatização. É certo que ficou a regra de caminhar para o socialismo, a irreversibilidade das nacionalizações. Há certas formas marcadamente ideológicas, mas facilmente desapareceram nas revisões constitucionais, logo a seguir. Não afectaram a essência da Constituição. Sempre defendi isto. Logo em 1978 publiquei um livro sobre a Constituição, em que fazia a distinção entre a forma e o conteúdo. A forma tinha elementos com os quais não concordava, contra os quais o partido votou logo contra.

 

Fala disso no livro. Usa a palavra “mácula”.

Máculas ideológicas que não adiantavam nada. Não traziam nenhuma solução. Só serviram para dar argumentos àqueles que queriam atacar a Constituição. Isso aconteceu.

 

Fizeram-se reformas significativas em 82 e 89. A Constituição que temos hoje, no essencial, serve? A essência que vem de 1976 mantém-se, ou precisaríamos de fazer uma grande renovação ajustada aos tempos que vivemos?

Não. A Constituição é a mesma. A essência da Constituição está nos direitos fundamentais, na ideia na dignidade da pessoa humana e na vontade popular. E depois em todo o sistema de protecção dos direitos fundamentais, Estado de direito, independência dos tribunais... Isso permanece intocado.

A nossa Constituição foi fonte para outras constituições, a espanhola, de 1978, a brasileira, de 1988. Países africanos, e até da Europa oriental, depois da queda do muro de Berlim.

 

É uma Constituição de que nos podemos orgulhar, de que o senhor se orgulha?

Não é a questão de me orgulhar ou não. É uma Constituição que não é algo de estranho no mundo actual, bem pelo contrário. Mas não há dúvida de que pode ser aperfeiçoada. Apresentei em 1980 um projecto de revisão constitucional. Em 1996 e 2008 também fiz projectos de revisão constitucional.

 

E têm que ver sobretudo com que matérias?

Com a organização do poder político. Em matéria de direitos fundamentais pode haver uma ou outra correcção, uma ou outra clarificação, que me pode interessar mais como jurista. Também não é na fiscalização da constitucionalidade [que ela precisa ser revista]. Deveria pensar-se em aperfeiçoar o sistema em alguns aspectos.

 

Se fala da fiscalização da constitucionalidade, isso leva-me a pensar no Tribunal Constitucional e na sua acção nos últimos anos, que foi apontada pela esquerda como um garante do que está na Constituição, e pela direita como um instrumento de poder.

Sou muitas vezes muito crítico em relação ao Tribunal Constitucional, mas acho que não tem sido um travão em relação às principais medidas do Governo. Deixou passar a Contribuição de Solidariedade, muitos cortes de pensões, de salários. Outros não. Tem havido algum equilíbrio. Não se pode dizer que haja uma oposição sistemática do TC às medidas de austeridade que têm sido adoptadas. Nem que haja um lavar de mãos do TC.

Há muitas coisas que o TC decidiu e a meu ver decidiu bem. Por exemplo, em 2014 considerou inconstitucional a chamada Contribuição de Sustentabilidade. Mas já tinha deixado passar a Contribuição de Solidariedade. A meu ver, há aí uma contradição; mas uma era transitória, a outra era definitiva. Nem sempre a argumentação é satisfatória.

 

Acha que procuram sobretudo um equilíbrio?

Se analisarmos com cuidado os principais acórdãos do TC, podemos encontrar um certo equilíbrio, uma certa oscilação. Nem sempre encontramos grande coerência, mas dizer que há um bloqueio, que há um governo de juízes, é injusto. Se compararmos isso com o que foi o Supremo Tribunal dos Estados Unidos nos primeiros anos, em que as medidas que o presidente Roosevelt queria fazer aprovar eram sistematicamente postas em causa pelo Tribunal Federal, é uma diferença enorme.

Entre os constitucionalistas há bastantes divisões. Até aqui na faculdade [de Direito]. A minha oposição endurada é de crítica em algumas coisas e de aceitação de outras.

 

Há ainda os que acham que a questão não é tanto a acção do TC, é a Constituição ela mesma. Que o TC não pode senão defender o que está na Constituição.

Como já tem sido reconhecido, até por adversários, o TC, quando tem declarado inconstitucionais certas medidas legislativas, tem feito recurso ou apelo a princípios que são fundamentais de um Estado de direito em qualquer parte da Europa e do Ocidente. O princípio da igualdade, da proporcionalidade, da protecção da confiança. Claro que sendo princípio tem sempre um carácter mais geral. A aplicação, a interpretação dos princípios não é a mesma coisa que a aplicação de uma regra precisa, que diz que não se deve fazer isto ou aquilo.

De resto, na Europa, houve sete Tribunais Constitucionais que foram chamados a pronunciar-se sobre questões de inconstitucionalidade nesta crise económica. E desses sete houve cinco que se pronunciaram no sentido da inconstitucionalidade. E houve até um, o TC da Letónia, que se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade e depois o governo da Letónia teve que renegociar com a União Europeia. E sem esquecer o TC alemão, que tem sujeitado o governo alemão, e indirectamente por via dele a União Europeia, a uma série de constrangimentos enormes em nome da soberania, do princípio da independência ou de certos princípios do Direito constitucional alemão.

 

Disse que achava que a Constituição podia ser melhorada em aspectos relacionados com a organização política. Pode concretizar?

Um ponto em que tenho estado a pensar tem que ver com o mandato do presidente da República. A ideia de que devia ser um só mandato, não haver reeleição. Isso daria maior independência ao presidente.

 

E caminhar para um sistema presidencialista?

Não. Está bem o sistema presidencial como o temos. Depende muito do perfil do presidente, das maiorias que haja ou não no parlamento, mas o sistema no essencial tem funcionado bem. Se compararmos este sistema com o que foi o parlamentarismo no tempo da primeira República, ou com o presidencialismo na América Latina, que no fundo é um super presidencialismo, ou com o semi-presidencialismo francês, que é também um super presidencialismo… O presidencialismo em rigor só funciona nos Estados Unidos. E funciona com o chamado checks and balances, pesos e contrapesos. O presidente dos Estados Unidos tem muito menos poder do que o presidente da França.

 

Considera que em Portugal seria preciso que o presidente tivesse mais intervenção, mais poder?

Depende da circunstância e do perfil de cada pessoa. Mas há competências que o presidente devia ter. Nomeação de dois juízes do TC. Só devido à zanga que houve em 1980, 82, entre o PSD, o PS e o Presidente Eanes, é que, ao contrário do que constava dos projectos de revisão constitucional, o presidente da República não tem poder de nomeação dos juízes do TC.

Também acho muito mal que haja juízes de carreira eleitos pelo parlamento. Os juízes são propostos por partidos. Embora tenha de ser aceite por outro partido, quando o juiz aceita ser proposto pelo partido A, aparece identificado com o partido A. Haver juízes de carreira eleitos na base de propostas partidárias é muito negativo para a assembleia. É certo que, tem que se render homenagem, os juízes, uma vez eleitos, comportam-se com independência. A instituição prevalece sobre a forma de designação.

 

Como é que vê esta falta de confiança que se sente na política e na justiça?

É consequência de muitos erros que foram praticados. E muitas vezes de deficiências, não no sistema político mas no sistema financeiro. O caso dos bancos, as supervisões. Chega a ser dramático ver, ouvir a comissão parlamentar de inquérito ao caso do BES. Sente-se ali qualquer coisa que mina também, muito, a confiança das pessoas.

Mas o Portugal de 2015 é muito melhor, em todos os aspectos, do que o Portugal de há 40 anos. Temos um sistema de saúde que não funcionará maravilhosamente mas funciona razoavelmente. Há dez vezes mais alunos universitários. O analfabetismo praticamente desapareceu. A mortalidade infantil praticamente desapareceu. Conseguimos, apesar das guerras, ter com os partidos africanos de língua portuguesa, relações mais amigáveis do que a França e a Inglaterra têm com os países que foram ex-colónias. Conseguimos a independência de Timor. A minha tendência é para ser optimista.

 

No ano passado, nos 40 anos do 25 de Abril, nas sondagens que foram feitas, uma delas coordenada pelo ICS, dizia-se que os portugueses achavam que o grande falhanço destes 40 anos de democracia tinha sido a justiça, apontada como a área que funciona pior.

Isso é injusto. Tem havido problemas, sem dúvida, atrasos de processos, mas há uma coisa que se pode dizer: os juízes, que não são muito bem pagos…

 

Mas ganham mais do que um professor universitário.

Ganham. Mas estão em dedicação exclusiva e nós não. Não digo que não haja defeitos, mas apesar de tudo têm cumprido a sua missão. Há sistemas que têm funcionado pior. O sistema do poder local tem funcionado pior, tem sido um centro de grande clientelismo, da corrupçãozinha, de alguns tiranetezinhos.

 

Neste estudo do ICS, as pessoas não se referiam apenas aos aspectos quantitativos da justiça, ao número de anos que o processo demora, ao dinheiro que é ali investido, mas a uma percepção de que a justiça é iníqua, que tratava de maneira desigual os cidadãos.

Não tenho essa ideia. Não concordo.

 

Estamos a fazer uma deriva justicialista com estes grandes casos? Só se fala de justiça.

Isso é positivo, mostra que a justiça funciona. Estamos numa república democrática, ninguém está acima da lei. Também pode ser negativo por corresponder a uma certa banalização e popularização daquilo que deve estar a funcionar de acordo com regras de segredo, de respeito pelos direitos das pessoas.

 

Imagino que para um professor da faculdade de Direito esta contínua violação do segredo de justiça seja uma coisa intoxicante.

É uma coisa horrível. É uma violação de direitos fundamentais. Reconheço que será difícil evitar, mas é lamentável a todos os títulos.

 

Há a ideia de que as coisas estão a mexer e ninguém é poupado, mas as pessoas não têm o traço fino de um professor de Direito, não percebem que há princípios que não podem ser violados sob pena de porem em causa o funcionamento do Estado de direito. Gostava de o ouvir sobre isso.

Um caso típico que me causa preocupação é a lista dos pedófilos. Não ponho em causa as boas intenções que haja, e a gravidade que a pedofilia tem. Mas a justiça funcionou, as pessoas foram acusadas, foram condenadas, cumpriram as penas e acabou. Há um cadastro que fica. A ideia de uma lista que pode ser consultada expõe as pessoas depois de [estas] terem cumprido penas. A justiça penal visa a re-socialização, a reintegração na sociedade, e não a marcação com um ferrete na testa de quem quer que seja. Isto choca-me.

Em relação a crime de enriquecimento injustificado, sou favorável à previsão desse crime, mas tem que ser com extremo cuidado para garantir a presunção da inocência.

 

A presunção da inocência que está nas ruas da amargura em Portugal, em todos os casos, há muitos anos...

Aí, a comunicação social tem alguma responsabilidade.

 

A informação vem de algum lado. Alguém a sopra.

É evidente, os jornalistas não inventam. Mas dão excessivo relevo a coisas que talvez não o merecessem. Às vezes cai-se num certo sensacionalismo.

 

A violação do segredo de justiça e a ausência de presunção de inocência, que são dois pilares do Estado de direito, e que vemos devassadas permanentemente, são graves?

São situações muito graves. Tem de haver, em relação ao segredo de justiça, um controlo muito mais apertado (no Ministério Público, na Polícia Judiciária) e a aplicação de medidas disciplinares a quem quer que, dentro do sistema de justiça, viole o sistema de justiça. Tem que haver o máximo de rigor no funcionamento do sistema.

Isso está ligado à presunção de inocência. Uma pessoa presume-se inocente até à sentença. A opinião pública, pessoas menos preparadas e até pessoas preparadas, quando vêem alguém acusado, tendem logo a condenar. Às vezes um simples furto num supermercado. Isto também passa por uma educação cívica. Ninguém está livre de amanhã ser acusado injustamente disto ou daquilo e ser condenado em praça pública.

 

Conversa de café: “Mas acreditas na inocência de José Sócrates?”. “Não se trata de discutir a inocência ou a culpa de José Sócrates. O que temos que discutir, para já, é se estão a ser cumpridos os procedimentos que nos permitem perceber, no final, se aquela pessoa é culpada ou inocente.” “Mas isso é olhar para um bibelot quando está um elefante na sala”. Concorda com isto?

Quer nesse caso, quer em todos os outros, têm que ser cumpridos os procedimentos – rigorosamente.

 

Independentemente da culpabilidade ou inocência?

À partida, a presunção é de inocência. Há uma investigação, há medidas de coação que são adoptadas face aos resultados da investigação, mas só no fim é que se sabe. Tem que haver o máximo de rigor nos procedimentos para se chegar a uma certeza de que a pessoa é culpada ou não. Não se pode deixar aquilo que se chama “dúvida razoável” nas pessoas. Sobretudo uma decisão de condenação, tem que assentar numa certeza. Não é uma questão de crença, é uma questão de cumprimento das regras. Em relação a essa pessoa [Sócrates] ou a outra pessoa. Numa República não há privilegiados nem discriminados. Num estado de Direito todos são iguais perante a lei. Portanto, os procedimentos têm de ser iguais para todos, com o mesmo rigor.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015