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Anabela Mota Ribeiro

Jorge Miranda

02.04.16

Jorge Miranda escreveu as suas memórias da Assembleia Constituinte, de que foi deputado. “Da Revolução à Constituição” olha para dois anos em que tudo mudou de lugar, há 40 anos.

O professor da Faculdade de Direito fala sobre a Constituição que nasceu da revolução, do ambiente da altura, das reformas que foram feitas, do âmago que se mantém. E fala sobre a acção do Tribunal Constitucional, a violação do segredo de justiça, a presunção de inocência.

Entrevista no seu gabinete, depois de uma aula.

 

A Constituição de 1976 tem um cunho ideológico. Podia não ter depois de 48 anos de ditadura?

Não há nenhuma Constituição que não tenha um cunho ideológico. Qualquer Constituição assenta numa certa ideia de Direito. A Constituição de 1976 tem o cunho ideológico resultante do compromisso que houve entre os partidos democráticos ligados à democracia pluralista representativa de tipo ocidental, ao Estado de direito democrático, às tendências socialistas da época. Desde o socialismo personalista do então PPD ao socialismo democrático do PS, ao socialismo marxista-leninista do PCP. Numa assembleia em que não havia nenhum partido com maioria absoluta, e em que havia várias correntes em presença, só era possível fazer a Constituição com um compromisso entre essas várias ideologias.

 

Então todas as constituições são resultado do seu ambiente político e da sua época, reflectem essa ideia do que um Estado deve ser, do que um país deve ser. E a de 1976 reflectia um desejo ou uma necessidade de compromisso.

Havia também uma necessidade de compromisso porque o país tinha saído de uma ditadura de 48 anos. O mundo estava em grande efervescência ideológica, e isso não podia deixar de se projectar em Portugal. O Maio francês, a luta nos Estados Unidos contra a guerra do Vietname, as correntes marxistas. Dentro da Igreja Católica, as consequências do Concílio Vaticano II. Com a revolução regressaram milhares de pessoas que tinham vivido os acontecimentos franceses e outros dos anos 60 e 70.

Nenhuma Constituição é feita numa torre de marfim.

 

Há no seu livro transcrições de diálogos mantidos por si e por Vital Moreira na Assembleia. Numa passagem fala-se da Constituição dos revolucionários e na Constituição dos contra-revolucionários. Aquela não era de todo feita numa torre de marfim. Ao contrário, era feita no terreno.

Era feita na luta. No interior da Assembleia, em que havia um contraste entre os partidos que chamo democráticos e os partidos marxistas-leninistas, que pretendiam instaurar em Portugal um regime comunista.

A luta mais grave era no exterior. A Assembleia Constituinte começou a trabalhar em 2 de Junho de 1975, e até Novembro de 1975 era uma ilha numa cidade de Lisboa dominada por forças de esquerda, extrema-esquerda, revolucionárias, que não queriam em Portugal um Estado de direito de tipo ocidental. Queriam em Portugal o socialismo original. Ou não original, mas que acabaria por desembocar em algo de parecido com Cuba (a Cuba da Europa) ou com a Polónia.

 

Isso não era próprio do processo revolucionário? Quando olhamos para o dia 25 de Abril, existe o grande sonho. O 1º de Maio simboliza o êxtase colectivo. Mas a seguir começa a luta: “Qual é que é o meu 25 de Abril, e qual é que é o teu 25 de Abril”.

Ainda antes do 1º de Maio começa uma luta pelo poder, entre várias facções militares, e também entre facções político-partidárias. Luta pelo poder que vai sendo agravada à medida que os tempos vão passando. Dizia-se que Portugal era uma panela de pressão e que se tirou a tampa, saiu tudo cá para fora. Era inevitável, depois de 48 anos de repressão. As pessoas respiraram. Muitas vezes respiraram sem ter em conta o dia seguinte, mas respiraram. Por outro lado houve a descolonização, provocando o regresso de centenas de milhares de portugueses de África. Houve também as tentativas de conquista do poder, o general Spínola, o Vasco Gonçalves. E depois as facções político-partidárias que havia e que se foram infiltrando nas Forças Armadas.

 

Luta é a palavra daquele tempo.

A luta começou no dia 25 de Abril. Ou até começou antes porque se sabe que o programa do Movimento das Forças Armadas resultou de um compromisso entre o movimento e o general Spínola.

O processo revolucionário vai desencadear-se sobretudo a partir do 11 de Março. Com as nacionalizações, a reforma agrária, ocupações, o problema das eleições (se se realizam ou não), a ocupação da República, da Rádio Renascença, as manifestações e contra-manifestações.

 

Se olharmos para a descolonização, para a vinda de quase um milhão de pessoas, e para a maneira como foram admiravelmente integrados… Bom, admirável é um advérbio meu. Não sei se concorda.

Concordo. É uma diferença muito grande entre o modo como recebemos os portugueses que vieram de África e o modo como os franceses receberam os pieds-noirs da Argélia.

 

Entre as grandes fracturas dos dois primeiros anos, o que é que acha que foi mais extraordinário? Ou foi a revolução em si mesma?

O mais extraordinário foi o sequestro da Assembleia Constituinte. Foi o auge do processo revolucionário. Quando uma assembleia, eleita por sufrágio directo, universal, secreto, conforme o programa das Forças Armadas, num certo dia é cercada por dezenas de milhares de manifestantes, e as pessoas não podem sair...

 

O que é que se lembra de ter pensado e sentido, nessa altura do sequestro?

Senti uma grande preocupação. Mas também uma enorme humilhação. Eu e as pessoas que lá estavam. Eu, deputado eleito pelo povo, estar impedido de sair, impedido de receber alimentos, ser obrigado a passar a noite lá. Depois sair no meio de manifestantes, em fila indiana, até meio da Rua de São Bento – foi um vexame enorme. Não à minha pessoa, mas a mim enquanto representante do povo.

 

Como se fosse a democracia a ser vexada?

Uma humilhação tremenda à democracia.

 

Nunca perdoou isso ao PC e aos comunistas?

Não é uma questão de perdoar ou deixar de perdoar, é um facto histórico que não pode ser esquecido. Os deputados do Partido Comunista, pelo contrário, saíram aclamados, de braço erguido.

 

Esse foi, a seu ver, o acontecimento mais negativo desses dois primeiros anos.

Claro que houve também outros acontecimentos dramáticos, o 28 de Setembro, com as barricadas. O 11 de Março, com a assembleia selvagem. O 25 de Novembro com a ocupação de bases, e as lutas na Calçada da Ajuda, onde morreram três pessoas. Mas porque vivi isso, foi o mais dramático. O mais positivo foi a votação final de aprovação da Constituição. Representou a vitória da democracia, da Assembleia Constituinte.

 

No ano passado, nos 40 anos do 25 de Abril, Pacheco Pereira deu uma entrevista com uma afirmação muito polémica ao jornal i, na qual dizia que a democracia nasceu também dos excessos do PREC. Que foi naqueles anos turbulentos, também, que se fez a democracia.

Historicamente não há dúvida de que foi assim. Agora, não quer dizer que a democracia seja a filha do PREC. A democracia é filha do 25 de Abril, do programa do Movimento das Forças Armadas. É esse que restaura as liberdades, liberta os presos, permite o regresso dos exilados, convoca a assembleia, permite partidos.

O PREC talvez fosse historicamente inevitável.

 

Talvez, ou era mesmo inevitável?

Não quero fazer a afirmação. Talvez fosse historicamente inevitável tendo em conta as condições que disse. Mas o PREC põe em risco a democracia.

 

Havia uma coisa comum a todos nesse tempo da Constituinte: o sonho. Cita no seu livro o verso famoso de Sophia de Mello Breyner, “Esta é a madrugada que eu esperava/ o dia inicial, inteiro e limpo/ onde emergimos da noite e do silêncio”.

Reconheço que todos tinham um ideal. Desde o CDS até ao PCP, até à UDP. Acredito que as pessoas estavam motivadas por uma visão de um Portugal melhor.

 

E havia essa ideia de que se podia fazer tudo, de que estavam na folha em branco e era possível desenhar o país?

Talvez nos primeiros momentos tivesse havido essa impressão, mas a partir de certa altura comecei a sentir que não era possível fazer tudo.

 

Quando?

A partir do verão de 1974. Com o problema da descolonização, com os problemas a nível militar, com a situação externa de Portugal, com a crise económica – o problema do petróleo já vinha de 1973 –, não era possível fazer tudo.

 

Era preciso ser comedido?

Era preciso haver conta, peso e medida. Era preciso ter um sentido de progressividade. [O contrário] poderia até provocar o retorno de uma extrema-direita. Muita gente com quem falei não tinha esta noção. Comecei a ficar preocupado quando vi que a situação económica estava muito má. As universidades estavam paralisadas, o sistema de ensino estava em queda, em ruptura. No plano social havia conflitos muitas vezes provocados por forças partidárias. E havia verdadeiros assaltos aos sindicatos, às autarquias locais. Havia forças que estavam a tentar tomar o poder rapidamente. E que o país já não aguentaria. Isso podia levar a uma situação de conflito, como levou.

 

Era muito jovem. Eram todos muito jovens. E quando se é muito jovem tem-se a ideia de que se pode mudar o mundo, e que os projectos podem ser puramente executados. Depois existe um confronto com a realidade e uma necessidade de adaptação. Foi uma grande aprendizagem para si, nesse sentido?

Foi. Até no puro plano da democracia e do parlamento, dos partidos, da visão que tinha do jogo das eleições. Pensava que era só por ideais que as pessoas iam para os partidos, para o parlamento ou para as eleições. (Deve dizer-se que na Assembleia Constituinte os deputados mostraram uma grande independência, tomaram posições de acordo com as suas ideias.) Poucos anos depois comecei a sentir que os partidos eram máquinas de poder. E que havia interesses de vária ordem que estavam infiltrando-se na vida política.

 

Quando é que para si o sonho do 25 de Abril começou a ser desvirtuado?

O sonho do 25 de Abril no sentido do sonho de uma liberdade, de uma democracia, esse nunca foi desvirtuado. Apesar de todas as dificuldades, de tudo o que temos passado, ainda temos essa liberdade, essa democracia. Não aquela democracia pura que ambicionava. Uma democracia de ideais, que talvez não exista. Talvez devido à minha educação jurídica, muito assente em determinadas normas que seriam cumpridas, num certo conjunto de valores, numa dedicação profunda à causa pública. A partir de certa altura senti que não era bem assim. E depois também lutas pessoais, que tinha dificuldade em compreender. No próprio PPD. Estive sempre à margem, causavam-se grande incómodo.

Nunca teve ambição de fazer uma carreira política?

Nunca tive.

 

Esteve sempre muito próximo do PPD.

Estive muito próximo do PPD porque tinha estado muito próximo do Sá Carneiro antes do 25 de Abril.

 

Por via do catolicismo?

Não. Por via da revisão constitucional de 1971. Conheci Sá Carneiro quando houve um encontro da Ala Liberal, com o Rui Machete, para discutirmos o projecto de revisão constitucional que a Ala Liberal ia apresentar.

 

Achei que também o catolicismo fosse um substrato da vossa relação.

Não foi. Foi a actividade dele na Assembleia que me aproximou dele, que me criou uma grande admiração por ele. Senti-me social-democrata desde muito jovem, e era importante criar um partido de gente jovem, gente com 20 anos.

 

Em que ano nasceu?

Em 1941. Tinha 33 anos nessa altura. Eram pessoas à volta dessa idade. Era empolgante.

 

Do outro lado da barricada, Francisco Salgado Zenha, era uma pessoa com quem se dava?

Era meu parente por afinidade, sobrinho de um tio-avô meu. Tenho por ele uma grande admiração. Mas nessa altura não tive contactos com ele porque ele esteve no Governo. Admirei-me muito com o artigo que escreveu em Janeiro de 1975, contra a unicidade sindical. Foi um ponto de viragem muito importante, esse artigo no Diário de Notícias. Mas conheci muita gente do PS, a começar por Mário Soares.

 

A Constituição foi o elemento organizador que resultou da revolução, e que definiu as traves mestras do que iríamos ser. Na sua opinião, e porque é uma Constituição compromissória, herdou elementos espúrios que não devia ter herdado?

A Constituição começa por afirmar a dignidade da pessoa humana. É um ponto fundamental, a trave mestra da Constituição. Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular. A parte I é de direitos e deveres fundamentais. O Partido Comunista pretendia que fosse a organização económica, mas os outros partidos quiseram que começasse pelos direitos e deveres fundamentais. E dentro dos direitos e deveres fundamentais começamos pelos direitos, liberdades e garantias. Depois estão os direitos sociais. Há um catálogo de direitos sociais que não tem paralelo em nenhuma Constituição europeia.

 

Essa é a essência da Constituição?

Sim. Depois, temos a organização do poder político assente em eleições, liberdade, partidos. Depois o controlo da constitucionalidade. E depois a organização económica. É sobretudo na organização económica que o elemento compromissor é mais forte. Vai apontar para uma transição para o socialismo, mas ao mesmo tempo garante a propriedade privada e a iniciativa privada.

 

A direita olhou/olha com desagrado para o caminhar para o socialismo.

Não é uma Constituição que aponte só para a pura estatização. É certo que ficou a regra de caminhar para o socialismo, a irreversibilidade das nacionalizações. Há certas formas marcadamente ideológicas, mas facilmente desapareceram nas revisões constitucionais, logo a seguir. Não afectaram a essência da Constituição. Sempre defendi isto. Logo em 1978 publiquei um livro sobre a Constituição, em que fazia a distinção entre a forma e o conteúdo. A forma tinha elementos com os quais não concordava, contra os quais o partido votou logo contra.

 

Fala disso no livro. Usa a palavra “mácula”.

Máculas ideológicas que não adiantavam nada. Não traziam nenhuma solução. Só serviram para dar argumentos àqueles que queriam atacar a Constituição. Isso aconteceu.

 

Fizeram-se reformas significativas em 82 e 89. A Constituição que temos hoje, no essencial, serve? A essência que vem de 1976 mantém-se, ou precisaríamos de fazer uma grande renovação ajustada aos tempos que vivemos?

Não. A Constituição é a mesma. A essência da Constituição está nos direitos fundamentais, na ideia na dignidade da pessoa humana e na vontade popular. E depois em todo o sistema de protecção dos direitos fundamentais, Estado de direito, independência dos tribunais... Isso permanece intocado.

A nossa Constituição foi fonte para outras constituições, a espanhola, de 1978, a brasileira, de 1988. Países africanos, e até da Europa oriental, depois da queda do muro de Berlim.

 

É uma Constituição de que nos podemos orgulhar, de que o senhor se orgulha?

Não é a questão de me orgulhar ou não. É uma Constituição que não é algo de estranho no mundo actual, bem pelo contrário. Mas não há dúvida de que pode ser aperfeiçoada. Apresentei em 1980 um projecto de revisão constitucional. Em 1996 e 2008 também fiz projectos de revisão constitucional.

 

E têm que ver sobretudo com que matérias?

Com a organização do poder político. Em matéria de direitos fundamentais pode haver uma ou outra correcção, uma ou outra clarificação, que me pode interessar mais como jurista. Também não é na fiscalização da constitucionalidade [que ela precisa ser revista]. Deveria pensar-se em aperfeiçoar o sistema em alguns aspectos.

 

Se fala da fiscalização da constitucionalidade, isso leva-me a pensar no Tribunal Constitucional e na sua acção nos últimos anos, que foi apontada pela esquerda como um garante do que está na Constituição, e pela direita como um instrumento de poder.

Sou muitas vezes muito crítico em relação ao Tribunal Constitucional, mas acho que não tem sido um travão em relação às principais medidas do Governo. Deixou passar a Contribuição de Solidariedade, muitos cortes de pensões, de salários. Outros não. Tem havido algum equilíbrio. Não se pode dizer que haja uma oposição sistemática do TC às medidas de austeridade que têm sido adoptadas. Nem que haja um lavar de mãos do TC.

Há muitas coisas que o TC decidiu e a meu ver decidiu bem. Por exemplo, em 2014 considerou inconstitucional a chamada Contribuição de Sustentabilidade. Mas já tinha deixado passar a Contribuição de Solidariedade. A meu ver, há aí uma contradição; mas uma era transitória, a outra era definitiva. Nem sempre a argumentação é satisfatória.

 

Acha que procuram sobretudo um equilíbrio?

Se analisarmos com cuidado os principais acórdãos do TC, podemos encontrar um certo equilíbrio, uma certa oscilação. Nem sempre encontramos grande coerência, mas dizer que há um bloqueio, que há um governo de juízes, é injusto. Se compararmos isso com o que foi o Supremo Tribunal dos Estados Unidos nos primeiros anos, em que as medidas que o presidente Roosevelt queria fazer aprovar eram sistematicamente postas em causa pelo Tribunal Federal, é uma diferença enorme.

Entre os constitucionalistas há bastantes divisões. Até aqui na faculdade [de Direito]. A minha oposição endurada é de crítica em algumas coisas e de aceitação de outras.

 

Há ainda os que acham que a questão não é tanto a acção do TC, é a Constituição ela mesma. Que o TC não pode senão defender o que está na Constituição.

Como já tem sido reconhecido, até por adversários, o TC, quando tem declarado inconstitucionais certas medidas legislativas, tem feito recurso ou apelo a princípios que são fundamentais de um Estado de direito em qualquer parte da Europa e do Ocidente. O princípio da igualdade, da proporcionalidade, da protecção da confiança. Claro que sendo princípio tem sempre um carácter mais geral. A aplicação, a interpretação dos princípios não é a mesma coisa que a aplicação de uma regra precisa, que diz que não se deve fazer isto ou aquilo.

De resto, na Europa, houve sete Tribunais Constitucionais que foram chamados a pronunciar-se sobre questões de inconstitucionalidade nesta crise económica. E desses sete houve cinco que se pronunciaram no sentido da inconstitucionalidade. E houve até um, o TC da Letónia, que se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade e depois o governo da Letónia teve que renegociar com a União Europeia. E sem esquecer o TC alemão, que tem sujeitado o governo alemão, e indirectamente por via dele a União Europeia, a uma série de constrangimentos enormes em nome da soberania, do princípio da independência ou de certos princípios do Direito constitucional alemão.

 

Disse que achava que a Constituição podia ser melhorada em aspectos relacionados com a organização política. Pode concretizar?

Um ponto em que tenho estado a pensar tem que ver com o mandato do presidente da República. A ideia de que devia ser um só mandato, não haver reeleição. Isso daria maior independência ao presidente.

 

E caminhar para um sistema presidencialista?

Não. Está bem o sistema presidencial como o temos. Depende muito do perfil do presidente, das maiorias que haja ou não no parlamento, mas o sistema no essencial tem funcionado bem. Se compararmos este sistema com o que foi o parlamentarismo no tempo da primeira República, ou com o presidencialismo na América Latina, que no fundo é um super presidencialismo, ou com o semi-presidencialismo francês, que é também um super presidencialismo… O presidencialismo em rigor só funciona nos Estados Unidos. E funciona com o chamado checks and balances, pesos e contrapesos. O presidente dos Estados Unidos tem muito menos poder do que o presidente da França.

 

Considera que em Portugal seria preciso que o presidente tivesse mais intervenção, mais poder?

Depende da circunstância e do perfil de cada pessoa. Mas há competências que o presidente devia ter. Nomeação de dois juízes do TC. Só devido à zanga que houve em 1980, 82, entre o PSD, o PS e o Presidente Eanes, é que, ao contrário do que constava dos projectos de revisão constitucional, o presidente da República não tem poder de nomeação dos juízes do TC.

Também acho muito mal que haja juízes de carreira eleitos pelo parlamento. Os juízes são propostos por partidos. Embora tenha de ser aceite por outro partido, quando o juiz aceita ser proposto pelo partido A, aparece identificado com o partido A. Haver juízes de carreira eleitos na base de propostas partidárias é muito negativo para a assembleia. É certo que, tem que se render homenagem, os juízes, uma vez eleitos, comportam-se com independência. A instituição prevalece sobre a forma de designação.

 

Como é que vê esta falta de confiança que se sente na política e na justiça?

É consequência de muitos erros que foram praticados. E muitas vezes de deficiências, não no sistema político mas no sistema financeiro. O caso dos bancos, as supervisões. Chega a ser dramático ver, ouvir a comissão parlamentar de inquérito ao caso do BES. Sente-se ali qualquer coisa que mina também, muito, a confiança das pessoas.

Mas o Portugal de 2015 é muito melhor, em todos os aspectos, do que o Portugal de há 40 anos. Temos um sistema de saúde que não funcionará maravilhosamente mas funciona razoavelmente. Há dez vezes mais alunos universitários. O analfabetismo praticamente desapareceu. A mortalidade infantil praticamente desapareceu. Conseguimos, apesar das guerras, ter com os partidos africanos de língua portuguesa, relações mais amigáveis do que a França e a Inglaterra têm com os países que foram ex-colónias. Conseguimos a independência de Timor. A minha tendência é para ser optimista.

 

No ano passado, nos 40 anos do 25 de Abril, nas sondagens que foram feitas, uma delas coordenada pelo ICS, dizia-se que os portugueses achavam que o grande falhanço destes 40 anos de democracia tinha sido a justiça, apontada como a área que funciona pior.

Isso é injusto. Tem havido problemas, sem dúvida, atrasos de processos, mas há uma coisa que se pode dizer: os juízes, que não são muito bem pagos…

 

Mas ganham mais do que um professor universitário.

Ganham. Mas estão em dedicação exclusiva e nós não. Não digo que não haja defeitos, mas apesar de tudo têm cumprido a sua missão. Há sistemas que têm funcionado pior. O sistema do poder local tem funcionado pior, tem sido um centro de grande clientelismo, da corrupçãozinha, de alguns tiranetezinhos.

 

Neste estudo do ICS, as pessoas não se referiam apenas aos aspectos quantitativos da justiça, ao número de anos que o processo demora, ao dinheiro que é ali investido, mas a uma percepção de que a justiça é iníqua, que tratava de maneira desigual os cidadãos.

Não tenho essa ideia. Não concordo.

 

Estamos a fazer uma deriva justicialista com estes grandes casos? Só se fala de justiça.

Isso é positivo, mostra que a justiça funciona. Estamos numa república democrática, ninguém está acima da lei. Também pode ser negativo por corresponder a uma certa banalização e popularização daquilo que deve estar a funcionar de acordo com regras de segredo, de respeito pelos direitos das pessoas.

 

Imagino que para um professor da faculdade de Direito esta contínua violação do segredo de justiça seja uma coisa intoxicante.

É uma coisa horrível. É uma violação de direitos fundamentais. Reconheço que será difícil evitar, mas é lamentável a todos os títulos.

 

Há a ideia de que as coisas estão a mexer e ninguém é poupado, mas as pessoas não têm o traço fino de um professor de Direito, não percebem que há princípios que não podem ser violados sob pena de porem em causa o funcionamento do Estado de direito. Gostava de o ouvir sobre isso.

Um caso típico que me causa preocupação é a lista dos pedófilos. Não ponho em causa as boas intenções que haja, e a gravidade que a pedofilia tem. Mas a justiça funcionou, as pessoas foram acusadas, foram condenadas, cumpriram as penas e acabou. Há um cadastro que fica. A ideia de uma lista que pode ser consultada expõe as pessoas depois de [estas] terem cumprido penas. A justiça penal visa a re-socialização, a reintegração na sociedade, e não a marcação com um ferrete na testa de quem quer que seja. Isto choca-me.

Em relação a crime de enriquecimento injustificado, sou favorável à previsão desse crime, mas tem que ser com extremo cuidado para garantir a presunção da inocência.

 

A presunção da inocência que está nas ruas da amargura em Portugal, em todos os casos, há muitos anos...

Aí, a comunicação social tem alguma responsabilidade.

 

A informação vem de algum lado. Alguém a sopra.

É evidente, os jornalistas não inventam. Mas dão excessivo relevo a coisas que talvez não o merecessem. Às vezes cai-se num certo sensacionalismo.

 

A violação do segredo de justiça e a ausência de presunção de inocência, que são dois pilares do Estado de direito, e que vemos devassadas permanentemente, são graves?

São situações muito graves. Tem de haver, em relação ao segredo de justiça, um controlo muito mais apertado (no Ministério Público, na Polícia Judiciária) e a aplicação de medidas disciplinares a quem quer que, dentro do sistema de justiça, viole o sistema de justiça. Tem que haver o máximo de rigor no funcionamento do sistema.

Isso está ligado à presunção de inocência. Uma pessoa presume-se inocente até à sentença. A opinião pública, pessoas menos preparadas e até pessoas preparadas, quando vêem alguém acusado, tendem logo a condenar. Às vezes um simples furto num supermercado. Isto também passa por uma educação cívica. Ninguém está livre de amanhã ser acusado injustamente disto ou daquilo e ser condenado em praça pública.

 

Conversa de café: “Mas acreditas na inocência de José Sócrates?”. “Não se trata de discutir a inocência ou a culpa de José Sócrates. O que temos que discutir, para já, é se estão a ser cumpridos os procedimentos que nos permitem perceber, no final, se aquela pessoa é culpada ou inocente.” “Mas isso é olhar para um bibelot quando está um elefante na sala”. Concorda com isto?

Quer nesse caso, quer em todos os outros, têm que ser cumpridos os procedimentos – rigorosamente.

 

Independentemente da culpabilidade ou inocência?

À partida, a presunção é de inocência. Há uma investigação, há medidas de coação que são adoptadas face aos resultados da investigação, mas só no fim é que se sabe. Tem que haver o máximo de rigor nos procedimentos para se chegar a uma certeza de que a pessoa é culpada ou não. Não se pode deixar aquilo que se chama “dúvida razoável” nas pessoas. Sobretudo uma decisão de condenação, tem que assentar numa certeza. Não é uma questão de crença, é uma questão de cumprimento das regras. Em relação a essa pessoa [Sócrates] ou a outra pessoa. Numa República não há privilegiados nem discriminados. Num estado de Direito todos são iguais perante a lei. Portanto, os procedimentos têm de ser iguais para todos, com o mesmo rigor.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015