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Anabela Mota Ribeiro

Mário Cordeiro

02.05.16

Mário Cordeiro, pai de cinco, avô de cinco. Não lhe digam que é um pai-avô. Habitualmente fala de papas e birras. Desta vez falou da sua infância, de ver os agapantos com o pai.

Na badana do livro mais recente, dizem que é o pediatra em quem os portugueses mais confiam.

Escreveu peças de teatro, poesia, romance, escreveu de tudo. Fez “safaris fotográficos” por Lisboa como quem vai numa expedição. Tentou captar a natureza, a cidade, a luz, os ângulos. Revelava os rolos em casa. Fazia muitas coisas, tem talentos e interesses dispersos. Era mais ou menos inevitável que fosse médico e pediatra.

É filho de um médico pediatra que tem o mesmo nome e que se transformou numa referência da pediatria. Sobretudo, houve sempre crianças por perto. Foi tio aos dez anos, as irmãs montaram um infantário em casa, depois vieram os filhos e os netos.

É um pediatra de referência, autor da bíblia O Livro da Criança, um autor prolixo. Só na segunda metade de 2014 publicou Educar com Amor e Diário do André. No primeiro, fala sobre a tarefa hercúlea que é educar meninos felizes e equilibrados e abre cada capítulo com uma citação de Saint-Exupéry. No segundo, num tom diarístico, olha para a vida e o íntimo de um jovem institucionalizado.

Parece dizer a cada resposta a celebérrima citação d’O Principezinho: o essencial é invisível aos olhos. Quer dizer, está sempre à procura do âmago que importa.

A entrevista começou com uma hora de atraso porque foi preciso acudir a meninos doentes. Passou-se na hora de almoço. Não houve almoço. Saímos juntos do consultório e já no passeio explicou-me da vantagem que é fazer vida a pé. Vive a dois passos do espaço onde trabalho, as crianças andam numa escola logo ali. Uma vida simples. Tem 58 anos.

 

 

Fala no seu livro Educar com Amor da importância de nos sentirmos queridos. A palavra “querido” é muitas vezes usada como se fosse uma coisa esvaziada de sentido, mas é fundamental na construção de quem somos e da nossa auto-estima.

O “meu querido”, quando dito com sinceridade, diz-se como se fosse um nome. Relacionado com o verbo, tem a ver com desejado. “Eu quero-te”. Essa sensação de ter sido querido, ou de se ser querido – amado – é um dos factores protectores maiores que a pessoa pode ter. Ter uma recordação, mesmo que no inconsciente, de uma infância em que alguém nos quis; descobrir ao longo da vida, em gestos, nos símbolos, que se foi querido (até por pessoas que já morreram, pais, avós); pensar que a nossa família, o nosso bairro, o nosso grupo de amigos não teria sido igual sem nós, é muito importante.

 

Dê-me uma recordação sua assim, como quem dá um tesouro.

Vivíamos numa moradia no Restelo. Uma das coisas de que me lembro com mais gosto era sentir o carro do meu pai chegar. Às vezes, já estava escuro e eram dias chuvosos. Ele ia dar uma volta pelo jardim, apanhar uma rosa, podar umas coisas, tirar os caracóis dos agapantos, que comiam as folhas.

 

Esse passeio, fazia-o consigo?

Sim. Era um passeio muito pequeno, um bocadinho. Era uma maneira de ele sentir: “Cheguei a casa, estou a ver as minhas roseiras, as árvores de fruto”. Tínhamos uma cumplicidade silenciosa. Julgo que nem falávamos. Ou ele falava para explicar. Era um homem curioso, cientificamente, e muito vasto na sua cultura.

 

Que idade é que o seu pai tinha quando faziam esses passeios pelo jardim?

Ele tinha 43 quando eu nasci. Portanto, tinha quase 50 anos.

 

Aos cinco, seis anos não podia organizar a importância que esse gesto teria para si. Tinha apenas a sensação prazenteira. Há coisas que não têm que ser verbalizadas, que não são taxativas, mas que insidiosamente ficam lá. Hoje temos a ideia de que tudo tem que ser dito, quase formalizado. Outro aspecto: uma atenção exclusiva, que parece durar a vida toda, e que cabe em 15 minutos.

A minha costela epidemiologista não me deixa fazer comparações. Se hoje é melhor que antigamente. É comparar o incomparável. Estamos a falar de realidades diferentes. Mas há uma coisa que me preocupa na sociedade dita ocidental: a perda da intimidade. Não só a intimidade de um pequeno ecossistema familiar versus os sete mil milhões de habitantes do planeta. Revelar a intimidade ad nauseam, sem se saber muito bem porquê… É bom ter partes íntimas, e apreciar os momentos pelos momentos.

Quando era esse quarto de hora: chegava o Outono, fazia-se uma queimada de folhas. Para um miúdo, é sempre deslumbrante ver folhas a arder. Esta faceta pirómana... Os cuidados a ter, ver de onde o vento vinha, perceber se é dia para fazer isso ou não. Essa percepção das coisas, esses momentos, eram preciosos.

 

Os passeios eram só consigo. Era um tempo só seu numa família numerosa. Oito filhos.

Tendo o meu pai uma vida tão sobrecarregada, não dava para estar uma hora com todos. Conseguia pequenos momentos, pequenos códigos, que uniam a família. Trabalhava no hospital de manhã, à tarde tinha consultório, vinha almoçar a casa. A minha mãe estava em casa. Fazíamos o possível, os meus irmãos e eu, para almoçar também a casa. A seguir ao almoço, escolhíamos um disco para ouvir. Discos de vinil, 33 rotações, os LP. Geralmente música clássica. Eu ou um dos meus irmãos é que éramos os eleitos para escolher o que íamos ouvir. Estas pequenas coisas (não ser ele a escolher), era um privilégio que ia dando. E transformava aquele bocadinho, que era muito pouco em termos de tempo útil.

 

Como é que se consegue transformar uma coisa que parece banal (um almoço/um jantar em família), sobretudo na vida apressada que todos temos, num encontro mágico, pelo qual se anseia?

É o espírito com que se vive as coisas. Essa figura central, que era ele, e a minha mãe, também, não sendo muito expansivos nas suas manifestações afectivas… Eu fui muito mais físico com os meus filhos do que o meu pai ou a minha mãe foram comigo. Havia o desejo de que estivéssemos lá. Não havia um carácter obrigatório. Não era um amor obrigado.

 

Transparece no que diz uma ausência de ansiedade. No fundo, estou a falar das doenças de que as pessoas mais se queixam. O medo do abandono, a sensação de desamparo.

Eu tinha grandes ansiedades quando era criança e adolescente. Era de uma timidez – era e sou, quando se é, é-se a vida toda –exagerada. Ter sete irmãos mais velhos, e estamos a falar de seis irmãs, não é fácil. É-se passado a pente fino, a pente para piolhos. O meu irmão casou-se tinha eu nove anos. Fui tio aos dez anos.

 

O que é que era mais difícil, conquistar o seu espaço?

O modelo infanto-juvenil da relação fraternal é de grande cumplicidade, mas também de muita picardia, de empurrões para ver quem chega à frente.

 

Digamos que é uma primeira grande amostra do que se passa cá fora.

É. Os irmãos muitas vezes não passam uns sem os outros mas, a propósito de coisas mínimas, explode uma litigância.

 

Essa litigância tem sempre por objecto a atenção dos pais?

Muitas vezes, sim.

 

Era um tímido exagerado – estava a dizer.

O meu pai também era extremamente tímido. E o meu avô materno também. (Era um homem fascinante, escrevi um livro sobre ele. Morreu tinha eu oito anos. Veio no início do século XX para Portugal, para a metrópole. Chamava-se Júlio Gonçalves.) O gosto pelo show off, sempre me arrepiou um bocado. Serviu para cultivar uma vida interior maior. Estava com os amigos nas férias e no fim-de-semana, em casa estava muito sozinho. Gostava muito de brincar, de ler. Os ecrãs eram mínimos. Só tive televisão quando o homem foi à lua. O meu pai nunca controlou o que eu estudava, mas eu sentia que ele queria que estudasse.

 

Esperava que reproduzisse o percurso dele e quem ele era?

De alguma forma. O meu pai veio da Índia com 14 anos num barco que levou não sei quantos meses a chegar. Veio pelo Cabo da Boa Esperança. Foi para casa de um tio jesuíta, o padre Valente Cordeiro, que era um homem genial do ponto de vista intelectual, mas de uma vivência espartana. O meu pai habituou-se a isso. Uma coisa que procurou transmitir: a noção de coerência, consistência, rigor. E gosto pelo trabalho.

 

A partir de coisas que disse, a casa, a forma de se tratarem, percebo que era um quadro burguês. Mas não havia espaço para o desperdício. Que relação tinham com o dinheiro?

Não. O meu pai era asceta. Tudo o que fosse para promover a pessoa intelectualmente, nunca regateou. Tudo o que fosse extra, dizia: “Façam pela vida”. Uma vez fui pintar paredes para a International House para ganhar uns dinheiros. Passava coisas à máquina.

Sou completamente desprendido em relação ao dinheiro. Sinto que sou uma pessoa afortunada relativamente à esmagadora maioria dos portugueses. Não vou agora armar-me em falso pobre, não vou ser hipócrita. Mas o dinheiro, para mim, serve para o nosso conforto. Não consigo compreender aquelas pessoas que quanto mais têm, mais querem.

 

Aprendeu a ouvir outros muito diferentes de si. Estou a pensar especificamente no Diário do André, um livro que escreveu recentemente sobre um rapaz institucionalizado, filho de uma prostituta, com um quadro social e afectivo oposto àquele que teve. Essa aprendizagem, de foco e atenção ao outro, começou onde?

Creio que vem de ser muito tímido. Tive outra intercorrência: cresci muito tarde. Tinha a senha do talho mais atrasada.

 

Pareceu uma criança até que idade?

Quando entrei na universidade era minúsculo. Nem fazia a barba. Felizmente, para não me sentir completamente nas ruas da amargura, tinha o meu melhor amigo, Carlos Ruah. Ele também cresceu tarde. Fizemos o liceu todo juntos. Depois fomos para Medicina. Unha com carne. Depois, de repente, dei um salto.

 

O que é que o fez crescer?

É uma coisa que se chama atraso constitucional de maturação. É uma variante normal. Assim como há raparigas que no 4º ano já tem o período (10%), há rapazes que crescem mais tarde. Dentro do crescer mais tarde, há uns que começam aos 12, 13 anos, e há outros que começam aos 16.

 

Entram razões emocionais nesse processo?

Não. Na Revolução Industrial, verificou-se que as crianças que trabalhavam nas minas e nas fábricas e as que iam à escola tinham diferentes tamanhos. Não tinha a ver com carências alimentares. Tinha a ver com carências afectivas e sobrecarga de trabalho. Veio descobrir-se que quando uma criança está afectivamente ou fisicamente esgotada há uma paragem da hormona do crescimento.

Neste caso, não era isso. Era uma variante normal..

 

Mas sofre-se muito, quando se é muito pequenino.

Sofre. Nos meus livros, procurei falar muito nisso, porque é uma história por que passei. Não era o medo de não crescer, sabia que seria pouco provável. Não era o Peter Pan. Era ver passar oportunidades. A vida na adolescência faz-se muito de acordo com dinâmicas de grupo, e as dinâmicas de grupo têm muito a ver com símbolos de pertença. Vai-se à discoteca, já se bebe cerveja. Namoricos. Eu era outsider. Tinha uma timidez enorme, não tinha cabedal.

 

Curioso, não usou a palavra “sexualidade” quando falou de adolescência. Disse “namoricos”.

Porque a palavra sexualidade decorre desde que nascemos até que morremos. A sexualidade não é apenas relações sexuais e não é só preservativos. É mais uma parte de relação afectiva.

Em determinada altura, dei o grito do Ipiranga. “Ou me deixo levar por isto e vou ser infeliz, ou tenho que dar a volta.” A maneira que arranjei, que tenho recomendado a muitos jovens que passam pelo mesmo, era imaginar que eu não era eu. Quando tinha que me expor, imaginava que estava a representar um papel. Depois fui-me habituando à exposição e agora já me reconheço como eu.

 

Tendemos a reproduzir os que nos são próximos. Não é pediatra por acaso, pois não?

O meu avô era médico, o meu bisavô também. Tem sido por tradição, não por obrigação. Os meus quatro avós: três eram goeses. O meu pai foi um pediatra muito conhecido a nível internacional. Foi um dos fundadores da UNICEF e da Pediatria Social. Começava a haver preocupações com o que estava para lá da doença. Prevenção, vacinas. Com o trabalhar de maneira pluridisciplinar, com psicólogos, antropólogos. E a visão da criança enquanto ser provido de direitos.

Foi graças a ele, e estamos a falar dos anos 70, não é da Idade Média, que os pais puderam estar ao pé das crianças no hospital. Antes disso, os pais iam ter com as crianças das três às quatro da tarde, através de um vidro. Era a cultura do “assepticismo”. Podiam transmitir doenças, os pais. Os médicos, não, mas os pais, sim.

 

Como é que se chamava o seu pai?

Mário Cordeiro.

 

O retrato que dá do seu pai, a partir das coisas que diz, é de alguém próximo, sensível. Apesar da educação austera que recebeu.

Era extremamente sensível. Não tocava nenhum instrumento musical, mas era um melómano. Desde cedo, pôs-nos todos a aprender piano. Tínhamos um piano em casa e era mais fácil arranjar uma professora que despachasse todos. Levava-nos a concertos. Lembro-me de passar tardes nos concursos Vianna da Motta a fruir música. Naquela altura pediam-se autógrafos a todos os pianistas. Eram um troféu de caça.

É evidente que o meu pai preferia música clássica. Mas uma vez foi a Londres e trouxe o Hair. Outra vez, o Abbey Road dos Beatles. Lembro-me de chegar ao liceu com o álbum..., faz de conta que não mostro, mas a mostrar.

 

Já alguma vez foi a Abbey Road, em Londres, e atravessou a passadeira, em frente ao estúdio onde o disco foi gravado?

Não.

 

Não é muito longe da casa onde Freud morreu e onde viveu o último ano de vida.

E que visitei com a minha mulher há três anos. Se quisesse definir a sensação de paz e serenidade, foi a nossa visita à casa de Freud. Mas não era a paz de cemitério. Era a compreensão das pessoas, de poder perspectivar o que os outros são. A não emissão de juízos de valor, de rótulos.

 

Qual foi o objecto que mais o impressionou? O divã, a colecção de arqueologia, os livros?

O divã é o divã. Gostei muito da sala, do escritório. Gostei do tear da filha [Anna, que está no andar de cima]. A análise é uma arqueologia da mente. Mesmo que não se faça psicanálise, nem psicoterapia, o tentar descobrir dentro de nós a nossa arqueologia, escavar… Nomeadamente nos sonhos, nos actos falhados, nas nossas raízes. Sem perder a noção científica. Não é por acaso que Freud era neurologista e arqueólogo. Sem essas duas vertentes, não teria conseguido.

 

O que é que o seu gabinete de trabalho diz de si? O de Freud diz muito sobre ele.

Este gabinete não está totalmente feito à minha medida porque é partilhado. O que diz mais é a música (a primeira coisa que faço quando chego é pôr música). São os livros, os livros. Os brinquedos pacificam as crianças. E a mim também.

 

Gosta do Winnie The Pooh, especialmente? Tem aqui, sobre a secretária, uma imagem do ursinho.

É uma personagem simpática. Gosto do Burro porque tenho pena dele, por causa do seu sofrimento, da sua angústia. O Tigre, sendo um tigre, é frágil. O Piglet quer é amizade e brincadeira.

 

Estávamos a falar do seu pai, que trazia discos de Londres. É um pai muito diferente do pai que ele foi?

Os meus irmãos mais velhos referem que, em relação a eles, o meu pai era mais rígido, mais espartano. Em relação a mim, não me posso queixar. Talvez porque passaram 14 anos entre o nascimento do meu irmão mais velho e o meu. Nunca me tocou. Nunca me ralhou, nunca me lembro de me ter levantado a voz. Mas o olhar dizia tudo. Já sabia que o olhar era: “Não gostei”. Eu sentia: “Falhei”.

 

Teve cinco filhos com uma grande diferença de idade entre eles. O seu filho mais velho, teve-o com que idade?

Tive-o com 23. Hoje tem 35. Os mais novos, os gémeos, têm 11.

Recuso liminarmente quando algumas pessoas dizem: “Ai, agora és um pai-avô”. Eu sou avô, tenho cinco netos. E sou pai, tenho cinco filhos. Uma coisa é ser avô e a outra é ser pai. Não me vejo, em relação aos mais pequenos, a assumir-me menos como pai e mais como avô. Tenha a idade que tiver.

 

Ser avô passa por ser mais permissivo com os netos?, não ter a mesma responsabilidade?

Exacto. A responsabilidade educativa é dos pais. Também não defendo que os avós deixem fazer tudo e que aproveitem para minar o caminho dos pais. Devem ajudar os pais. E aquele mínimo de valores que os pais definem, os avós têm a obrigação de respeitar.

Mas pode-se ter uma relação mais despreocupada. Até no quotidiano. Com os meus netos, não tenho que me preocupar com o que comem ao pequeno-almoço, o que almoçaram ou se vão mais tarde para a cama. E com os meus filhos, tenho.

 

Afinal, foi um pai muito diferente do seu filho mais velho do que é agora, dos gémeos?

Não acho que tenha sido, na matriz. É evidente que os tempos são outros. Dou-lhe um exemplo: quando o Pedro e a Filipa chegaram à adolescência, apareceram os Game Boy. Quer eu quer a mãe dissemos: “Não há Game Boy para ninguém”. Fui muito impositivo: “Não quero”. Achei, e continuo a achar, que crianças e adolescentes são seres que têm cinco sentidos. Reduzir tudo a uma coisa meramente visual, é redutor da capacidade humana.

Eu gosto de livros. Gosto também do cheiro dos livros. E muitos livros numa sala produzem o cheiro de livros.

 

Os seus filhos mais pequenos não têm telemóvel, imagino.

Telemóvel têm, mas não fui eu que dei. Não têm IPad e não têm consolas. Não vejo interesse. E é viciante. Crianças e adolescentes são seres que têm que ser generalistas, plurisensoriais. Pôr a mão na massa. Numa altura em que o mundo é cada vez mais artificial, o contacto com a natureza é fundamental. Uma das coisas que estive a fazer com o meu filho Tomás, em Outubro, foi recolher folhas, espalmá-las naqueles livros pesadíssimos, fazer colagens. Para mim, é mais engraçado, para eles, é mais engraçado.

 

Ao perguntar se foi um pai muito diferente, também estou a perguntar se é um pai menos ansioso. Os pais, sobretudo em relação ao primeiro filho, têm a preocupação de fazer tudo bem. E ficam muito contristados quando alguma coisa corre mal. Li no seu livro que uma criança descarregou sobre a mãe: “A mãe é má, má e feia”. Eles nunca disseram: “O pai é mau e feio”?

É preciso saber interpretar porque é que dizem. Há duas maneiras de dizer: “O pai é mau” ou “A mãe é má”. Uma pode ser mesmo sentida, vem cá do fundo. É uma negação do vínculo que assusta. Outra pode ser mais no sentido: “Gostava tanto de fazer aquilo. Se não existisse essa tábua da lei (que o pai é), podia extravasar o meu impulso”. É a velha luta freudiana entre o id e o superego. O pai representa o superego, o obstáculo. O miúdo chateia-se por ter aquele gendarme interno. E é mais agradável projectá-lo em algo externo.

Esse jogo é muito interessante. Interessa-me cada vez mais perceber porque é que existem princípios éticos na humanidade, por que é que vingaram. É claro que há um sistema de controlo social, legislativo, jurídico. Mas esse apareceu para dar corpo institucional a um sentido ético.

 

Esse interesse, em si, está ligado a uma convicção religiosa?

Não. Fui educado na religião católica até aos 17, 18 anos. Nunca fui beato, mas era católico. A determinada altura comecei a pensar que não precisava de intermediário entre mim e Deus. Acredito num desígnio cósmico na humanidade, nos mistérios da natureza, no Big Bang. A religião, nomeadamente a católica, acaba por renegar em muita coisa os princípios anunciados por Cristo. Há muitos vendilhões do templo por aí. A exclusão das mulheres da vida da Igreja, o celibato dos padres: não tem nada a ver com Cristo, são coisas que aparecem já no século XIII.

 

Educar não parece muito difícil para si. Como as crianças se transformaram numa espécie de bem raro, também a educação ficou transformada numa coisa dificílima. As crianças deixaram de estar naturalmente ali, que era o que acontecia nas famílias numerosas não há muitos anos, para passarem a ser os pequenos ditadores, os reis da casa.

Criou-se esse mito da criança ditadora. Nem sempre é assim. Às vezes são os pais que se antecipam ao desejo da criança. Eles dão e a criança não recusa. Dão o chocolate antes de a criança pedir. Muitas vezes nem sequer expressou o desejo: já o teve.

A educação: não é ser uma coisa difícil, é ter momentos terríveis. Momentos de dúvida. Momentos em que nós, que não somos de plástico, não sabemos lidar com a situação, não sabemos compreender o outro, em que o outro não está em estado emocional para dialogar. Finalmente, em caso de conflito de interesses e impossibilidade de consenso, é preciso impor regras. É talvez a base da educação.

 

Mesmo que as crianças não entendam os motivos da proibição?

Muitas vezes vemos educar como sinónimo de proibir, limitar. Não é. Educar pode ser estimular e dar.

 

Pode esboçar alguns princípios básicos?

Primeira coisa, transformar conceitos abstractos, como respeito, amor, solidariedade, dignidade, rigor, que não se medem, não se pesam, em exemplos que mostram: “Ah, isto é respeito”. Cumprimentar o vizinho que vem no elevador, segurar a porta para o senhor que vai entrar, perguntar se quer ajuda para levar o saco. Perguntar se a sua mãe, que está doente, está melhor. Algumas pessoas dirão aos filhos: “Tens que respeitar a professora, o vizinho, a avó”. Mas depois não consubstanciam isto. Para crianças que aos seis, sete, oito estão na fase do concreto, que não têm ainda a fase simbólica completamente estabelecida, é difícil perceber.

A segunda coisa é ser-se muito coerente e avisar: se isto vier a acontecer, haverá aquela consequência. E explicar porquê. Outra é analisar os comportamentos e não a pessoa. É necessário que nós, enquanto pais, façamos o percurso de passar de vítimas com vontade de linchar o outro, e de humilhar, de descarregar tudo o que somos, para o estatuto de juiz que aprecia os factos. Se houve ou não houve dolo, se há atenuantes ou agravantes. Implica uma maturidade psico-afectiva muito grande. Caso contrário estamos a dizer aos nossos filhos: “Não gostamos de ti”. Quando o que temos que dizer é: “Amo-te, mas não gostei nada do teu comportamento”.

 

Quando se fala de sanção, e se explica, está-se a introduzir a palavra Justiça.

Sim. Que faz parte da ética, do conceito do bem e do mal. Mas qualquer justiça desproporcionada é má.

 

Temos uma expressão para isso em português: “Perdeu a razão pela maneira como falou/agiu”.

Não estou de acordo com esse adágio. Não se perde a razão. Pode-se é expressar mal a razão.

 

Surpreende-me que tenha tido vários casamentos.

Não gosto de falar muito do passado. Já fiz as pazes com a maior parte dele e aprendi com os erros e sucessos. Gosto de dizer que tenho um excelente casamento. O meu pai e a minha mãe viveram um amor muito romântico. Neste meu casamento, que é o terceiro, revejo muito a cumplicidade conjugal que meu pai e a minha mãe viviam.

Há uma tendência, porque as personagens são as mesmas, para a relação conjugal e a relação parental se confundirem.

 

Que quer isso dizer, exactamente?

O homem e a mulher confundirem-se com o [papel de] pai e de mãe. Foi uma coisa que fui descobrindo. E isso inquina um bocado. Os filhos podem inquinar a relação homem-mulher. Requerem tanta coisa. Precisam de coisas, este lufa-lufa das escolas, mais as 500 actividades… A minha mulher e eu não temos problemas em dizer: “Ao sábado, meninos, não há actividades nenhumas”. Sábado é para acordar e ver onde nos leva o vento e tempo. O que apetecer. Alguns pais sacrificam-se demasiado.

 

Teve coragem para ter a vida que queria ter, sem medo que isso pusesse em risco a estabilidade das crianças, a harmonia da vida familiar, os chavões aos quais estamos subordinados.

Não foi fácil. As relações devem durar aquilo que duram. Nem mais um minuto nem menos um minuto. Pode durar, foi o caso dos meus pais, até o meu pai morrer. E podem durar muito menos tempo. Disso sabem os intervenientes e mais ninguém. Fui aprendendo que não são os filhos que devem manter uma relação conjugal.

 

Muitas vezes, eles são usados e mencionados para justificar a manutenção de um casamento.

Cada vez mais reflicto, com base na minha experiência, e não só, que isso não conduz a nada. Depois sobra uma coisa: a relação parental. O conflito conjugal pode estender-se à parte parental ou não, conforme o que sobrou da espuma dos dias e a personalidade das pessoas. Tudo seria bom se houvesse, como dizem as Miss Universo, paz e amor, mas a vida real infelizmente não é assim. Há jogos de interesses, pressões, e as crianças podem muitas vezes ser objecto de manipulação.

 

O melhor que se pode fazer a uma criança é dar-lhe um exemplo de uma vida feliz e escolhida?

É. É dar o exemplo de uma pessoa digna, solidária socialmente, um compromisso de existência em relação aos outros.

 

Retomo uma questão que vem de trás: podia não ser pediatra?

Podia. Sempre tive uma tendência natural para a Pediatria por lidar com crianças, o meu pai lidar com crianças. As minhas irmãs mais velhas – uma é educadora, outra é assistente social –, no início de vida resolveram fazer um infantário. Como tínhamos uma casa grande, o meu pai cedeu uma parte para fazer um infantário, no jardim. Eu adorava chegar do liceu e ir brincar com os miúdos. Foi sempre uma pulsão enorme.

 

Uma pulsão que o põe em contacto com a sua infância?

Não só. Serve-me para colmatar a angústia existencial. Sempre tive uma ideia completamente estúpida: no dia em que fiz dez anos – lembro-me disto como se fosse ontem – acordei e declarei, oficialmente, que morria aos 54 anos. E convenci-me disso. Não tinha nada factual, mas projectei a minha vida toda no sentido da existência de 54 anos. Não consigo conformar-me que vivamos tão pouco tempo face àquilo que temos para fazer.

 

Tem no armário em frente a si uma fotografia da sua mulher. Também é pediatra?

É jurista. Encontro na minha mulher o gosto por pequenas coisas, frugais.

 

Tem uma cara de miúda.

Realmente parece, mas faz 50 anos no fim da semana. É uma madrasta exemplar para os miúdos, e isso foi muito bom, também, para mim.

 

Qual é que é o cheiro da sua infância? Os bebés têm um cheiro especial. As nossas memórias têm um cheiro.

Há vários. A terra molhada. A relva acabada de cortar. O cheiro dos livros. O quarto da minha avó com o cheiro de alfazema. O chocolate quente da noite de Natal.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2015

 

 

 

Maria João Valente Rosa

02.05.16

Maria João Valente Rosa é a directora da Pordata, a base de dados do Portugal Contemporâneo. Doutorou-se em Sociologia, é demógrafa e professora da Universidade Nova. As suas áreas de estudo são aquelas que se relacionam com a população, Segurança Social, Educação. É autora, entre outros títulos, dos ensaios “Portugal: os números” e “Portugal e a Europa: os números”, com Paulo Chitas, editados pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Estamos a dias de mais um 10 de Junho. Olhamos para nós? Como aparecemos reflectidos no espelho?

  

Apesar de todas as mudanças expressivas que aconteceram depois de 1974, somos, números redondos, os mesmos 10 milhões que éramos há décadas. É assim?

Não. Em 1970 éramos 8,7 milhões. Em 2013, 10,5 milhões. Somos mais do que éramos. Já começámos a diminuir. Às vezes um número diz pouco. Até poderia ser o mesmo, mas as características desse número são radicalmente diferentes.

 

Em que é que isso se vê?

Por exemplo, na composição etária da população. Temos uma população extremamente envelhecida actualmente. Somos um dos países mais envelhecidos em termos mundiais. Nos anos 70, de um conjunto de 15 países da União Europeia, éramos o país mais jovem e menos envelhecido. Começámos a envelhecer mais tarde.

 

Qual é a barreira, quando é que começámos a envelhecer de uma maneira notória?

O grande marco é o ano de 2001. O número de pessoas com 65 e mais anos ultrapassa o número de pessoas com menos de 15 anos. Isto não se faz de um ano para o outro, a evolução já se vinha a desenhar nos anos 80. Mas a rapidez do processo foi de tal ordem que aí fomos originais, acelerámos o passo.

 

Porque é que isso é visível em 2000? Estamos a sair de um período em que a democracia se consolidou, há uma ideia de expansão, crescimento. Ainda estamos longe da crise.

O envelhecimento não aconteceu por acaso. Tem a ver com o desenvolvimento da própria sociedade. Em demografia há dois factores que explicam a modificação do perfil da população. Por um lado, a diminuição dos níveis de fecundidade. Deixámos, em Portugal, de substituir as gerações. No contexto europeu – a Europa é o continente mais envelhecido do mundo –, tínhamos níveis de fecundidade nos anos 60, e ainda nos anos 70, elevados. Actualmente temos o nível de fecundidade mais baixo da Europa a 28, com 1,21 filhos por mulher. A existência de menos filhos por mulher significa que a base da pirâmide se vai estreitando. Um outro factor importante é a mortalidade [infantil].

 

Que, no nosso país, e nos anos posteriores à revolução, diminuiu drasticamente.

Aí fomos quase os campeões do processo. Tínhamos níveis vergonhosos de taxa de mortalidade infantil, de óbitos no primeiro ano de vida, no início dos anos 60. Actualmente temos níveis muito baixos no âmbito dos países desenvolvidos.

 

A mortalidade infantil permite perceber o índice de desenvolvimento do país?

É muito usado para medir esse índice, sim. Para além disto, a esperança de vida nas outras idades também foi aumentando. Cada vez mais as pessoas têm hipótese de chegar às idades mais avançadas. Isto leva a que o topo da pirâmide se vá alargando. Estes são dois excelentes indicadores do desenvolvimento da sociedade portuguesa nas últimas décadas. Não é por acaso que os países mais desenvolvidos são os que têm os níveis de esperança de vida mais elevados e, ao mesmo tempo, níveis de fecundidade mais baixos.

 

Sabemos que a razão porque nascem tão poucos bebés em Portugal é complexa. Mas toda a composição da família se alterou. Os homens entraram em casa, reivindicaram um espaço doméstico e deixaram de estar apenas na esfera exterior a ganhar dinheiro. As mulheres, é toda uma revolução, por demais conhecida. As crianças transformaram-se num bem raro, de estatuto completamente diferente do que tinham há uns anos. Tudo isto implica uma nova composição do tecido social.

A família já não é o que era. Quando falamos de família, não sei muito bem do que é que estamos a falar.

 

O que é a família hoje?

São famílias. As famílias já não nos remetem para os laços institucionalizados que se iniciam, por exemplo, com o casamento. O aumento das uniões de facto é revelador de que as pessoas se juntam e de que já não precisam de institucionalizar perante os outros a sua relação. O casamento era um momento importante para se pensar num projecto de parentalidade, e isso também perdeu o seu valor.

 

Boa parte dos nascimentos são fora do casamento.

Quase 50%. Nos anos 60 eram os chamados nascimentos ilegítimos. Hoje, as crianças têm menos irmãos biológicos, mas muitas vezes têm irmãos que são fruto de anteriores relações que os pais tiveram. E muitas pessoas juntam-se sem dar início a um projecto de parentalidade. Os laços emocionais efectivos tomaram muito lugar na vida das pessoas. Para além das famílias monoparentais. As pessoas vivem mais tempo, têm mais hipóteses de concretizar múltiplos projectos [conjugais]. E há um aumento do número de divórcios. Também estão a aumentar os nascimentos que ocorrem sem que os pais coabitem.

 

É um novo entendimento de parentalidade e de conjugalidade.

Exacto. Neste momento é tão difícil falarmos de família no singular... Estamos a falar daquelas pessoas com quem tenho laços de consanguinidade ou estamos a falar de pessoas com quem partilho a minha vida? O conceito de família tradicional, de pai, mãe e filhos, tem tradução real, mas deixou de ser dominante como era no passado.

 

Isso dá um tecido social matizado onde antes existia a homogeneidade, mais do que tudo.

Sim. A criança perdeu o valor económico que tinha, ganhou um valor emocional. Não pensamos nos filhos como um garante para a velhice, do ponto de vista do contributo que eles poderão ter para a nossa sobrevivência quando chegarmos a essa fase de vida.

 

Com a crise, e com os cortes nas pensões e a fragilidade em que os mais velhos ficaram, não apareceu novamente essa ideia de que vamos precisar dos nossos filhos para nos amparar no fim da vida? Ou só pontualmente?

Os dados relativamente ao que se está a passar nesta fase crítica são muito diversos. Também têm existido sinais no sentido contrário, de serem os pais e os avós o garante dos filhos e dos netos em situação de emergência.

As mulheres começaram a estudar. Estão em maioria em termos de diplomados no ensino superior, nos doutoramentos. São as mulheres que menos abandonam a escola precocemente. Faz parte do seu projecto afirmarem-se como boas profissionais, e não apenas como boas mães. Muitas vezes, em Portugal, o ser boa mãe e boa profissional são partes de uma equação que não se acompanham.

 

Persiste a ideia de que uma mulher que investe demasiado na sua dimensão profissional não investe o suficiente nos filhos. São os resquícios do passado, de uma cultura machista?

Sim. Mas tem tradução na realidade. Em Portugal valorizamos muito o número de horas de trabalho. Trabalhamos muitas horas. A percentagem de mulheres a trabalhar a tempo parcial é baixíssima comparada à média da União Europeia. Isto deixa pouco tempo para o desenvolvimento de outros projectos, como o de ter filhos – que é um projecto que se quer muito bem sucedido.

 

A escala de prioridades alterou-se, mas, sobretudo, o tempo de fazer cada investimento alterou-se. Primeiro a carreira, depois os filhos?

O que está a acontecer na sociedade portuguesa é que as pessoas estão a adiar cada vez mais o nascimento do primeiro filho. Actualmente a idade média do nascimento do primeiro filho já é de 30 anos.

 

Como é nos países do norte da Europa, com quem sempre nos queremos parecer?

Não é muito diferente. A nossa diferença é que estamos a ficar-nos cada vez mais pelo primeiro filho. Em muitos países do norte da Europa as mulheres primeiro asseguram a outra componente, que é imprescindível para se ser um cidadão em pleno, mas depois conseguem a conciliação de tempos.

 

A conciliação dos dois planos é um problema difícil de resolver em Portugal, onde as pessoas trabalham até tardíssimo.

A conciliação de tempos está muito mal resolvida, aqui. Mas a sociedade mudou. E são mais os indivíduos e as suas emoções que se começam a afirmar.

 

Uma palavra tão simples e central como felicidade passou a entrar na equação.

Exacto. A partilha de tarefas e de responsabilidades parentais, apesar de estar melhor resolvida entre os jovens quando comparamos com gerações mais velhas, está muito mal resolvida, ainda em prejuízo claro das mulheres. Os homens ajudam, porventura.

 

Mas a palavra é “ajudam”. Como se não fizessem mais do que a sua obrigação.

Ainda há um problema muito grande de igualdade entre géneros a resolver. Voltando à questão da felicidade. Muitos acusam as sociedades de serem egoístas. As pessoas pensam que querem ser felizes, ter a sua vida, e que, por isso, têm menos filhos. Não sei se é uma questão de egoísmo. Quando se pensa na criança não se está a pensar apenas na felicidade que essa criança nos vai dar ou no retorno financeiro que essa criança nos vai dar. Pensa-se muito naquilo que a criança pode ser e naquilo que tenho condições de dar a essa criança.

 

Não deixa de ser curioso que sejam os dois extremos da vida, as crianças e os velhos, aqueles que mais diferenças sentiram nas últimas décadas. A maneira como se é criança alterou-se profundamente. Mas também o aumento da esperança de vida, e a medicalização da sociedade, alterou a forma como se é velho.

Completamente. Embora uma pessoa com 70 anos, hoje, não tenha nada a ver com o que era no passado, – como no futuro não terá nada a ver –, continuamos a entendê-las do ponto de vista social, e do ponto de vista da nossa organização enquanto sociedade, quase da mesma forma.

 

Como assim?

O modo como pensamos a vida: há uma fase em que se estuda, há uma fase em que se trabalha e há uma fase em que se descansa ou se entra na reforma. A fase em que se estuda é uma fase que está a dilatar-se. Cada vez mais as sociedades estão sustentadas no conhecimento. Isso faz a diferença em termos de competitividade. Até aos 23 anos não chega. Depois, em termos de trabalho, a idade que vai até aos 65 ou 66, um período em que trabalhamos de forma particularmente intensa e que não nos deixa tempo para mais nada. E depois temos um tempo em que se diz que já acabou.

 

Acabou o trabalho. Mas, atendendo ao aumento da esperança de vida, não começam a preparar-se para morrer.

Ao longo da vida as pessoas vão mudando, adquirindo competências, perdendo outras. Faria todo o sentido que a pessoa abarcasse várias carreiras ao longo da vida. Mas para isso seria preciso prepararmo-nos, termos tempo para a formação. Congelámos uma estrutura de três fases de vida, sem sequências, que não se cruzam. O importante era cruzar estas fases de vida.

 

Como concretizar isso?

Defendo uma menor intensidade de trabalho durante o período de vida activo, através da promoção do tempo de trabalho parcial e de outro tipo de iniciativas. E simultaneamente uma reforma a tempo parcial. Começarmos por estar mais tempo ligados a actividades que não têm que ser aquela actividade com a qual iniciámos a nossa vida.

 

Há questões emocionais muito sérias que as pessoas não consideram quando olham para aqueles que se reformam. O que é que vão fazer à vida? Se tudo correr bem, e se se reformarem aos 66, podem ter 20 anos em que estão a fazer o quê?

Há vários problemas. A reforma faz bem à saúde? Não tenho provas, mas acho que não.

 

Como é que uma pessoa ganha energia (se está farta até à ponta dos cabelos de fazer aquilo que fez a vida toda) para começar de novo aos quase 70 anos?

Essa pessoa está esgotada. Mas estou a falar para as pessoas do futuro, que somos nós. Quando falamos da situação actual esquecemo-nos de a perspectivar a médio, longo prazo. O que é que estamos a fazer para mudar. Muito pouco. Continuamos a discutir fórmulas que transportamos do passado. Por exemplo, a questão da segurança social. Continuamos a esticar de um lado ou a diminuir do outro. Ou a aumentar a idade da reforma, a diminuir as prestações, a aumentar as contribuições. E andamos nisto.

 

É um problema centralíssimo. Como é que se torna sustentável uma sociedade que envelhece desta maneira?

As soluções dos problemas não se encontram dentro do mesmo quadro referencial em que esses problemas nasceram. Para encontrar a solução tenho que sair.

Na Segurança Social temos duas questões que deviam ser separadas: o presente e o futuro. E continuamos a discutir o futuro com base no passado.

 

O presente é crítico, todos sabemos.

Muito crítico. A taxa de pobreza das pessoas com 65 e mais anos, se não tivessem transferências sociais, seria de 90%. Após transferências sociais é de 15%.

 

Por transferências sociais entende pensões, rendimento mínimo...

Subsídio de desemprego, abonos, tudo. Mais de um milhão e trezentas mil pessoas recebe pensões de velhice abaixo do salário mínimo nacional. Temos uma situação problemática: a dependência que estas pessoas têm e a sua incapacidade de desenvolver novos projectos.

 

E depois temos o problema do futuro.

Não podemos continuar a pensar que no futuro vamos continuar a usar as mesmas fórmulas e o mesmo modo de funcionamento. Os países que têm maiores percentagens de pessoas a trabalhar a tempo parcial são os países que têm maior produtividade laboral hora/trabalho. E são os mesmos países em que a remuneração média por trabalhador é mais alta.

Em Portugal, trabalhamos muitas horas mas produzimos muito pouco. Enquanto continuarmos a pensar em tempos e em horas, e não em resultados, não vamos lá.

 

O que a baixa produtividade nos diz, mais do que tudo, é que o nosso modelo de organização do trabalho está errado?

Sim. E diz-nos que a nossa baixa produtividade tem a ver com um défice elevadíssimo de qualificações. Mais de metade da população tem no máximo o ensino básico (nos trabalhadores por conta própria). A média da União Europeia é 22,5, nós temos 67,2. Olhando para os trabalhadores por conta de outrem, os valores são menos altos mas igualmente graves.

 

Em 1974 um quarto da população era analfabeta. O investimento na educação foi brutal e as novas gerações já são todas escolarizadas.

Ainda temos um nível de abandono [escolar] elevado. Ainda somos o quarto país da Europa em que os jovens dos 18 aos 24 desistem de estudar e não se encontram inseridos em nenhum curso de formação. E não têm o secundário completo. A nossa meta para 2020 é de dez%. Não sei como é que vamos lá chegar. No início dos anos 90 era de 50%. Continuamos com um discurso perigosíssimo: “Estudar para quê?”

 

Um discurso que recrudesceu com a crise e em especial o aumento do desemprego jovem?

Sim. “Estar a estudar para o desemprego. Estudar não compensa. Mais vale ir trabalhar.”

Estes baixos níveis [de escolaridade] impedem-nos de fazer avaliações pelos resultados, e não pelo tempo que se demora a fazer. É muito difícil estabelecer metas para quem não sabe quais são as metas. “Tem que chegar ao fim do dia e a sua meta é esta. Se demora uma hora a fazer ou cinco horas, é consigo. Não vou prejudicá-la.” Em Portugal o que vigora é o contrário.

 

Quem trabalha poucas horas é visto como preguiçoso.

É. Quanto mais horas está a trabalhar mais bem visto é no âmbito da organização da qual faz parte.

 

Também é verdade que não se fez uma renovação demográfica de 1974 para cá. Muitas destas pessoas pouco qualificadas, nascidas antes do 25 de Abril, continuam vivas.

Mas mesmo em relação aos jovens, entendo que a situação é preocupante. As pessoas desistem. Ou então estão os 12 anos mas não passam do 9º ano de escolaridade. Vão sendo retidas em nome da exigência, como se a exigência tivesse a ver com isso. As nossas crianças não são menos dotadas que as finlandesas. Por que razão as crianças finlandesas conseguem sucessos enormes na escola e nós não conseguimos?

Em Portugal, apesar dos enormes avanços que conseguimos, ainda não nos libertámos. A origem social e familiar ainda continua a fazer muita diferença em relação às oportunidades. As crianças continuam a ser muito o cabide daquilo que são os adultos. Isto é terrível.

 

A permeabilidade social em Portugal é muito reduzida. As pessoas continuam a frequentar as escolas do seu meio, a dar-se com as pessoas do seu meio, a casar com as pessoas do seu meio. E raramente furam na escala social.

É a questão do mérito. Não conseguimos olhar para a pessoa e avaliá-la pelo que ela vale por si. Estamos a anos-luz de ser uma sociedade que valoriza aquilo que a pessoa é e sabe, e não o meio de origem ou certas características quase vazias que tem. Valorizamos pontos tão disparatados quanto o critério administrativo da idade. Ou a nacionalidade.

 

É uma forma de racismo?

É. Somos nós e os outros. E dentro do nós existem aqueles para quem olhamos através de um segundo ou terceiro filtro. Quando temos dois candidatos a um mesmo lugar, com idênticas competências, o primeiro factor que vem à cabeça para se optar por um e não pelo outro é a idade. Não faz sentido. Uma sociedade que está a envelhecer como a nossa, o capital que estamos a desperdiçar...

Quando se fala em dinamização da economia, a economia faz-se com pessoas. Tivemos uma grande entrada de estrangeiros dos países de leste e pusemo-los a fazer trabalhos desqualificados. Pensamos que nos estão a tirar o nosso lugar. Outro mito é o de que o mais velho está lá para ocupar o emprego do mais novo. É mentira. Quanto maior for o dinamismo da economia mais empregos são criados – para todos, novos e velhos.

Ainda sobre o discurso perigoso do “estudar não compensa”: o diploma não é tudo, mas é um bom princípio para conseguirmos ser mais resilientes. Há a diferença salarial entre quem tem baixa escolaridade e alta escolaridade. Portugal não é um país com excesso de diplomados.

 

Quando dizem que temos excesso de diplomados ou doutorados estão a dizer, de certa maneira: “Baixa a bolinha, não podes desejar ser doutor. Modera a ambição”?

É uma forma de dizer isso. É uma forma de as pessoas se promoverem pela sua mediocridade. Continuamos a viver como se fôssemos bipolares. De um lado temos a mudança social evidente do ponto de vista familiar, demográfico, e mesmo nas condições de vida. Uma mudança que foi muito acelerada. Depois continuamos a reproduzir aquilo que herdámos. O principal problema das sociedades modernas não é o futuro, é o passado. Insistimos em perpetuá-lo, é a nossa forma de nos afirmarmos.

 

Percebemos que dentro de casa as coisas mudaram muitíssimo. Contudo, quando olhamos para o espaço exterior, para a maneira como os portugueses tratam a res publica, a mudança não é tão significativa? Temos uma atitude mais empenhada civicamente, colectivamente, ou continuamos encapsulados na nossa família, no nosso pequeno grupo?

Começam a existir algumas formas de pensar para além daquilo que nos é imediatamente próximo. A forma como convivemos com o espaço público, com a questão do ambiente, é bem diferente do que era até há dez, 15 anos.

 

Estou a pensar na relação com a política, na maneira como as pessoas se abstêm nas eleições.

As pessoas não se revêem já neste fato. Um fato que sempre foi muito marcado por partidos políticos. Do facto de as taxas de abstenção serem particularmente elevadas, não consigo retirar um maior desinteresse das pessoas pelo que se está a passar. Desinteressam-se pela forma como estão a pedir que colaborem. De outras formas, estão mais empenhadas. Nos voluntariados, por exemplo.

 

Somos essencialmente um país homogéneo? O corte é norte-sul, litoral-interior, espaços rurais-espaços urbanos? Ou, cada vez mais, ricos-pobres?

Também somos um país de ricos e pobres. Nos últimos anos, a desigualdade de rendimentos entre os mais ricos e os mais pobres aumentou. E houve quem tivesse ficado particularmente mais vulnerável: os mais jovens.

 

Voltemos à minha pergunta: os cortes neste país aparentemente homogéneo são em que sentido?

O país é muito assimétrico. Portugal é o 12º país mais populoso da União Europeia a 28. Do ponto de vista da superfície e da população não somos um país irrelevante. Quando olhamos para o país numa perspectiva regional, os indicadores tomam um rosto muito diferente. Genericamente, todas as regiões estão a envelhecer. As regiões mais envelhecidas são as do interior, em especial as zonas menos urbanas. O litoral é mais dinâmico. E mesmo no litoral temos duas bossas, as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Cerca de 35% do poder de compra concentra-se em dez municípios do país. Quando olhamos para a distribuição de estrangeiros pelo território, há predomínio de estrangeiros no sul do país, para além da zona de Lisboa.

 

De um ponto de vista político, somos instáveis? Tivemos inúmeros governos em 40 anos. E não crescemos. E gastamos muito, quer particulares, quer Estado. São grandes linhas que podemos sublinhar?

E trabalhamos muito e produzimos pouco. A grande linha que dá sentido a tantos destes pontos frágeis de Portugal é a educação. Voltamos sempre lá. As exigências de hoje não são as mesmas de há 40 anos atrás. Hoje precisamos de chegar muito mais longe.

 

Uma das grandes penalizações da crise, recuperando um ponto que vem de trás, é a ideia de que a educação não é um bom investimento.

Existem vários. Esta ideia de que a educação é um gasto é terrível. Os resultados da educação não se vêem no imediato, no ano seguinte. Vêem-se a médio e a longo prazo. É preciso um investimento consistente, sem grandes flutuações ou mudanças de sentido em legislaturas. Deveria ser a nossa grande referência em termos estratégicos.

Este centramento no presente, embora se fale de futuro, é outro problema muito grave. As pessoas estão ansiosas por um resultado imediato.

 

E a acudir ao imediato.

O imediato não nos basta. O futuro será mau se for pensado numa sucessão de imediatos. Em relação à Segurança Social, a população vai continuar a envelhecer. Recentemente a Comissão Europeia no relatório Ageing Report 2015, admite o aumento da fecundidade, as migrações passaram a positivo, e mesmo assim a população continuará a envelhecer. Continuo a ouvir da boca de muitos responsáveis que o problema do envelhecimento está na fecundidade, e que, se esta aumentar, deixamos de envelhecer. O que me está a amedrontar.

Portugal podia ser um case study fantástico, sendo um dos países mais envelhecidos do mundo. A crise muitas vezes obriga-nos a rever uma série de pressupostos. Mas estamos a rever pouco. Precisávamos de repensar a questão das horas, das avaliações, da produtividade. A nossa relação com os estrangeiros aqui dentro.

 

 

O corte das pensões. Além da dor efectiva das pessoas que passaram a viver com praticamente metade daquilo com que viviam, o que é que representou?

O problema do presente está nas pessoas que estão totalmente dependentes, porque alguém lhes disse: “Podem contar.” A questão é a confiança. Dizem toda a vida que não é preciso fazer nada porque “estamos cá quando chegar a essa idade”. A pessoa chega a essa idade, não arranjou mecanismos alternativos, e dizem que as regras mudaram. E não lhes dão hipótese de fazerem qualquer coisa. Temos muito enraizada a ideia de que os mais velhos servem para pouco e que não podem dar um contributo. Agora, as gerações mais novas podem perguntar: “O que é que tenho a ver com isto? Foi um contrato que não foi feito por nós.” Há um problema geracional que começa a colocar-se. Começamos a ter duas facções, a dos que pagam e a dos que são beneficiários. Estamos a comprometer a sustentabilidade futura da sociedade como um todo, do ponto de vista da sua coesão.

 

Os cortes tiveram que ver essencialmente com a sustentabilidade.

Sim, os cortes recaíram na questão da sustentabilidade e implicaram a introdução do sistema de sustentabilidade e a revisão do método de cálculo das pensões, que passou a contar com toda a carreira contributiva em vez dos quinze últimos anos. Mas temos que dar o salto. Tudo o que está a acontecer, entendo como paliativos, não como solução do problema.

 

Temos de pensar como é que trabalhamos, não mais horas, mas como produzimos mais riqueza?

Começa por aí. Produzir mais riqueza. Se calhar não passa apenas por nos esforçarmos mais. Precisamos de tempo para estudar. Precisamos de saber avaliar. Precisamos de pensar que aos 40 ou 50 é tempo de imaginarmos outra vida. É tempo de nos re-imaginarmos.

 

Isso não é utópico?

Não. Isto é mais realista do que as pessoas pensam à partida. As soluções não têm que vir de fora. Aquele Estado protector que nos comanda e organiza: todos já sentimos que não é a melhor forma de vivermos nesta sociedade. O Estado é uma parte. Fazemos parte do Estado, mas é uma parte. E por fazermos parte deste grupo temos aqui um papel decisivo. Podemos mudar muita coisa.

 

Quando perguntava pela forma como os portugueses se relacionam com a res publica estava também a falar disto. As pessoas distanciam-se e desresponsabilizam-se muito mais...

Muito mais do que seria desejável.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015