Joana Carneiro
Começámos por falar de Cecilia Bartoli, acabámos a falar de Renée Fleming. Falámos sobretudo de Bernstein, Esa-Pekka Salonen, de figuras tutelares, inspiradoras. De dirigir cedo demais, de dirigir com o que se é. De tempo de maturação. De ter uma vida pessoal plena e uma vida profissional plena. Esta semana, Lisboa estava cheia de cartazes a assinalar os 50 anos da Orquestra Gulbenkian. A cara era a dela.
Joana Carneiro parece ainda mais miúda pessoalmente do que nas fotografias. Tem um dedo do pé partido, veste um vestido de malha curto, as unhas estão pintadas de vermelho. Faz este mês 36 anos. Tem uma voz que se tivesse cor talvez fosse rosa pálido. Plana, afinada. Às vezes o discurso é o da católica que encontrou na música um veículo para o plano do inexplicável (o termo é dela). Outras vezes, é uma mulher segura que aprendeu que tinha de ser a mesma no pódio e fora dele. No pódio é exuberante, sensual, intensa. Se aí tivesse voz, a cor seria talvez cor de sangue.
Toda a gente sabe que é uma dos nove filhos de Maria do Rosário e de Roberto Carneiro. Que quis ser maestrina cedo, que estudou nos Estados Unidos, que pertence a um grupo restrito de maestrinas que têm uma carreira internacional. Nos últimos anos acompanhamo-la de perto na qualidade de maestrina convidada da Orquestra Gulbenkian. É também directora musical da Sinfónica de Berkeley. Quanto é que lhe custa o sucesso?
Entrevista na sua casa em Lisboa, onde vive agora a maior parte do tempo.
Vamos começar por aquela vez em que, em Nova Iorque, estava ao lado da Cecilia Bartoli e não conseguiu concentrar-se no que estava a ouvir… Quer contar a história?
Foi há 10 anos. Eu estava a participar nas finais do concurso Maazel-Vilar. Foi estreada uma peça de John Adams, On the Transmigration of Souls, e a segunda parte foi a Nona Sinfonia de Beethoven. Estava constantemente a pensar: “O que é que a Cecilia Bartoli pensará da soprano?”. Foi um concerto muito bonito, ainda bem que me lembra esse dia. Não só por ter visto a Cecilia Bartoli de perto mas pelo que me tocou a peça do John Adams, escrita por ocasião do primeiro aniversário do 11 de Setembro.
Interessa-me neste episódio a relação de quase idolatria.
Uma das razões porque decidi seguir direcção de orquestra foi porque nos anos 80 o maestro Leonardo Bernstein gravou o West Side Story com a Kiri Te Kanawa e o José Carreras. Eu vinha da escola e a primeira coisa que fazia era ver essa gravação (que os meus pais tinham feito em VHS) e ouvir as minhas árias preferidas. Bernstein, como maestro, era uma figura carismática. Foi o meu primeiro ídolo. O que mais gostava era de ter assistido a um ensaio. Perguntar-lhe como é que tomava decisões, quais eram os critérios, como é que olhava para uma partitura.
Outros ídolos?
Trabalhei com Kurt Masur. Estudei com ele as sinfonias de Brahms. Ensinou-me muito sobre Brahms, Mendelssohn e Beethoven. Com Esa-Pekka Salonen tive uma relação parecida. Fui assistente dele quatro anos em Los Angeles [LA] e era uma relação de querer ser como.
Sobre o modo como ataca uma partitura, e usando a metáfora de um texto: como é que faz dela uma coisa sua?, como é que decide onde faz parágrafo, que nota está mal interpretada e resulta num erro ortográfico, onde é que identifica as articulações?
É um bom momento para falar sobre isso porque estou a aprender uma partitura nova. Vou dirigir a estreia mundial, na Suécia, na próxima semana [dia 13; a entrevista aconteceu dia 7]. Como é entrar em contacto com qualquer coisa que não conhecíamos? Não existe sequer uma referência ou alguém a quem possamos fazer perguntas (além da compositora); não existe um maestro ou chefe de orquestra a quem possamos perguntar, como tantas vezes faço: “Como é que vocês tocaram isto?”. É um processo difícil, moroso. Exige muita paciência e método. Penso que é um trabalho parecido com o de um encenador.
Portanto a primeira coisa é decorar o texto/saber muito bem a partitura.
É. E depois é dar um sentido a esse texto. É esse trabalho que ocupa a minha vida mais de 90% do tempo.
Em concreto: quanto tempo trabalha a partitura? Recorre a instrumentos quando está a estudá-la?
Por vezes recorro ao piano. A linguagem atonal é tão complexa que preciso de ouvir, perceber as relações harmónicas, experimentá-las muitas vezes, até que... façam parte da minha natureza. Os americanos usam muito a expressão “segunda natureza”. Até se tornar second nature. Quando é uma peça tonal, é raro fazê-lo.
Esta partitura, que são 40 minutos de música, recebi-a há duas semanas e meia. Normalmente encontro-me com os músicos dois ou três dias antes do concerto (quatro, no máximo). Existe o calendário de ensaios estipulado pela orquestra; com antecedência decido o que vai ser ensaiado em cada momento, os músicos organizam-se conforme a instrumentação. Para este concerto terei quatro ensaios de três horas.
No tempo em que Bernstein se afirmou tudo era mais lento. As carreiras eram sedimentadas a outra velocidade. Isso tinha uma repercussão no modo como a música era interpretada? Há um tempo de preparação e reflexão diferentes.
Primeiro vou falar da aceleração, que é uma coisa sobre a qual penso muito. Este carácter acelerado da nossa vida, da minha vida – e não falo de ser fácil chegar a qualquer lado rapidamente – angustia-me. Tudo o que fazemos é público, imediatamente público, o bom e o mau. Existe uma exposição muito cedo. Por vezes senti que me privava de ter o crescimento de que precisava. Agora não temos esse luxo. O nosso instrumento não é um instrumento que possamos praticar na nossa privacidade. Praticamos sempre em público. Esta exposição e esta aceleração impõem certas características à nossa evolução e forma de estar. Faz parte da minha vida, aceito isso, mas por vezes gostava de estar anonimamente numa orquestra a maturar.
Na qualidade da execução, não penso que essa celeridade [se reflicta] de forma negativa. As orquestram têm um nível extraordinário, e por isso é possível preparar grandes concertos nesse espaço de tempo.
Também se dirige com quem se é, não? E também para isso é preciso tempo de maturação.
Claro. Mas olhemos para um exemplo como o do Gustavo Dudamel.
(Gosta dele? Há puristas que perguntam se gostamos do Dudamel-maestro ou gostamos do que faz com a orquestra juvenil Simón Bolívar.
Acho que é um músico formidável. Quando foi a LA a primeira vez – é agora o maestro titular da Orquestra Filarmónica de LA – fui maestrina assistente dele nesse concerto.) É um maestro muito jovem. [Dudamel nasceu em 1981] Cada vez que dirige um concerto, sente-se qualquer coisa de extraordinário. Os músicos sentem, nós que assistimos, sentimos. Consegue transmitir muito bem a mensagem a que se propõe. E é isso que desejamos como artistas, aos 20, aos 30, aos 40, aos 50. Ouvi-lo a dirigir a Quinta Sinfonia de Beethoven será uma experiência diferente daqui a 30 anos; mas hoje é uma experiência... verdadeira. Não há muita gente que consiga fazê-lo com esta idade.
Insisto no tema da maturidade: esta Joana, mais madura, dirige de maneira diferente? A maturidade importa?
Importa. Sinto que cada ano há um crescimento musical e que vem da relação que temos com a vida. Aquilo que lemos sobre a vida dos compositores tem um reflexo diferente em nós. Esse sofrimento, essa solidão por que às vezes passamos, teve em mim um efeito muito profundo.
Pode falar-me disso?
[riso nervoso] Não gosto de falar especificamente sobre este tipo de assunto. Hoje experimento uma felicidade que nunca pensei viver. Mas a minha vida nem sempre foi assim. Embora me sentisse uma pessoa essencialmente feliz, com muito mais para agradecer do que para pedir, houve momentos em que me senti sozinha. Sem saber se ia ser possível ter uma vida profissional plena e uma vida familiar plena.
A equação era sobretudo essa?, conseguir esse equilíbrio?
Sim. E ainda é. Agora sei que é, porque tenho um marido extraordinário, que me apoia, e sabe o que é importante para mim, e valoriza-o, e investe nisso.
Mas a solidão, o silêncio – como na música – clarifica.
O seu lapso verbal foi entre solidão e silêncio. Como se uma fosse indissociável da outra.
Neste caso foram indissociáveis. Vejamos bem: viajo uma grande parte das vezes sozinha. Acabo um ensaio e vou para o hotel. Não vou almoçar com os músicos. (Por acaso, com os músicos da Orquestra Gulbenkian, às vezes, almoço. São a minha família, já. Mas isto é raro.)
Nesses anos, era uma solidão acompanhada por um silêncio destrutivo.
Em ritmo de corrida?
Sim. É sempre uma corrida, há sempre um objectivo a atingir. Neste momento em que falamos, é ter, até segunda-feira, as partituras estudadas para o ensaio. O meu objectivo principal não é o concerto de quinta-feira, mas aquele ensaio.
Perguntam-me muitas vezes: “Você sente-se nervosa antes de um concerto?”. Sinto. Se houvesse um gráfico que ilustrasse o meu nervosismo, o pico seria antes do primeiro ensaio. É esse o momento em que descobrimos se aquilo que imaginámos e sentimos corresponde à realidade. E se aquilo que é que para nós a verdade é possível. Se não há empatia, se não há aceitação, é muito difícil construir esse Belo em comunidade.
Sente necessidade de corresponder à expectativa que têm em si? Essa expectativa é um peso? A sua carreira tem, em números redondos, dez anos. Tudo aconteceu muito rápido.
Existe essa pressão, sim. Precisamos de ser aceites – não há outra forma. O público tem de querer vir aos nossos concertos, as orquestras têm de querer trabalhar connosco, os directores artísticos das respectivas orquestras têm de querer convidar-nos e reconvidar-nos. Existe muita competição. Saudável.
Saudável?
Sim, sim. Até porque não nos encontramos, os maestros. Não comunicamos entre nós. Vou a concertos de colegas meus porque os admiro e para aprender com eles.
Existem muito mais maestros do que orquestras. Existem muito mais pessoas a querer dirigir orquestras do que lugares disponíveis. Criar um repertório que faz sentido, que toca as pessoas – tudo isso entra na equação e na corrida. Tenho duas agentes muito boas, que me conhecem bem; sabemos quantos riscos posso tomar por ano e para onde é que quero ir. Já fiz muitos erros. Quis chegar muito longe muito cedo e não estava preparada.
A primeira vez que dirigi a Quinta Sinfonia de Beethoven foi à frente da Orquestra de Cleveland. Tinha 23 anos. É capaz de ter sido um dos maiores erros musicais que fiz na vida.
A que é que chama erro musical?
Era um concurso para ser maestro assistente. O meu professor disse-me: “Tu não tens de fazer este concurso. Daqui a dois anos vão precisar de novo de um maestro assistente. Podes fazê-lo nessa altura, quando te sentires mais bem preparada”. Eu nunca tinha dirigido aquela sinfonia. Fui. Arrisquei. Quis. Porque era uma das melhores orquestras do mundo. E porque achei que era uma grande oportunidade.
O seu pecado foi o da soberba?
Foi. Houve uma arrogância da minha parte. Achei que bastava saber as notas e fazer os gestos certos. Não é verdade. A maturidade ensina-nos isso. O que é que aconteceu nessa audição? Nada de profundamente mal.
Percebeu logo que não tinha corrido bem?
Percebi quando estava a dirigir. Foi como dar um Ferrari a um recém-encartado. Não sabemos o que fazer com um carro desses. Não dirigi a orquestra. A orquestra tocou. Estava nervosa, e estava maravilhada com o som que produziam. Segui-os. Mas não é isso que se espera de um maestro.
A relação com a orquestra é uma relação de poder e sedução?
Sedução não é uma palavra que use. Chamo-lhe aceitação. Mas sim, é importante chegar ao coração dos músicos. O poder: quando estava em LA, falava muito com o meu colega, maestro assistente, sobre essa questão. Por um lado temos de ser humildes, por outro o que os músicos esperam de nós é liderança. Liderança musical e espiritual. Esse equilíbrio vai-se encontrando com a vida. O Kurt Masur disse-me uma vez, eu tinha 20 e poucos anos, e tinha uma imagem de direcção de orquestra definitivamente associada a poder (um poder autoritário e que partilha pouco): “Um maestro é sobretudo um líder espiritual.” Não percebi então o que queria dizer. Essa liderança, como é que se faz na prática?, como é que se consegue tocar um músico? Com a nossa preparação e empenho.
Vou fazer uma pergunta que lhe devem fazer constantemente: ser uma miúda gira e nova...
Obrigada!, pelos dois adjectivos.
... tornou tudo mais difícil?
Sinto que não. É irrelevante. Ninguém me contrata por eu ser nova ou velha, bonita ou feia. E ninguém deixa de me contratar pelas mesmas razões. Penso que ser mulher, num mundo que é predominantemente masculino, tem gerado uma atenção especial. Que é de um carinho enorme! Em Portugal tenho sido acarinhada de uma forma que sinto que não poderei pagar de volta.
Quantas maestrinas há no mundo com uma carreira semelhante à sua?
Não somos muitas. Da minha geração, conheço meia dúzia, no máximo. Com carreiras extraordinárias: a Susanna Malkki, a Simone Young.
O que teve de sacrificar à sua carreira para estar nesse lote tão exclusivo?
Não sei analisar. Talvez o tempo com a minha família. É o maior preço: o tempo que estou longe de casa. Perdemos aniversários. Não estive presente no casamento do meu irmão mais velho. Essa data coincidiu com o primeiro concerto que fiz com a Orquestra Filarmónica de LA (por inexperiência, nem me ocorreu perguntar se podia trocar com um colega). É um momento que não volta.
Sente culpa?
Muita. Mas creio que há uma obrigação em mim de seguir esta vocação e desenvolvê-la. Há colegas meus que não tiveram a sorte de ter uma carreira internacional como a que tenho agora.
Chama-lhe sorte?
Tem uma dose de sorte, com certeza. Podia ter nascido noutra família, que não valorizasse a educação musical, mesmo quando disse qual era a minha vocação, aos nove anos. Podiam ter dito: “Não, é uma carreira muito difícil, dominada pelos homens”. Nunca ouvi estas palavras. A forma como cheguei à Orquestra Filarmónica de LA, foi sorte. (Foi o primeiro concurso que fiz para ser assistente, e entrei logo. Era tão ingénua que nem tive a noção do que me estava a ser dado. Uma das melhores orquestras do mundo, um dos melhores laboratórios do mundo.) As pessoas que tenho à minha volta, ter tido tantas oportunidades, ter-me sido dado tanto – sorte. E uma responsabilidade. Perante a arte, perante o meu país, para continuar.
A obrigação resulta de uma necessidade de retribuir o que lhe foi dado?
Foi-me dado o dom que tenho. Gratuitamente. O dom para a música, para a comunicação através do meu corpo. É uma história bíblica, a parábola dos talentos. O que é que fazemos com o que nos é dado? Escondemos na terra ou investimos para que os três talentos que nos dão se transformem em dez? E devolvemos os sete a quem no-los deu.
Isto tem para si um fundo religioso?
Um fundo espiritual. É evidente que sendo uma pessoa espiritual e católica tenho enraizada em mim essa inspiração.
Participou numa das cerimónias que acolheram o Papa Bento XVI em Portugal. Foi importante?
Tive um pequeno momento com o Santo Padre, e, com o Manoel de Oliveira, oferecemos-lhe uma escultura. E fiz o concerto dos 75 anos do cardeal patriarca [Fevereiro 2011]. Tem um fundo espiritual, a música, em mim. O serviço [a que me sinto obrigada] é perante esse mistério do que me foi dado. É uma forma de oração. É uma forma de sair de um plano terreno e chegar a qualquer coisa de inexplicável. Aliar isso à celebração dos 75 anos do Cardeal Patriarca, que me tem acompanhado, de um modo generoso e amigo, foi importante na minha vida.
Quem foram as figuras nucleares do seu caminho? Pergunto pelos interlocutores fundamentais para se encontrar com quem é.
Tudo começa com a nossa família. É um dos pilares mais importantes, e sem ele nunca teria seguido esta carreira nem vivido tão livremente quem sou. Depois a escola. Em Michigan encontrei Kenneth Kiesler, que ainda considero meu mentor, e com quem falo sobre as decisões que tenho de tomar. Foi a primeira pessoa que me disse que não podia ser uma pessoa diferente no pódio e fora do pódio; e falava da relação emocional que temos com a música e que não podemos dissociar de quem somos (mesmo que queiramos). O segundo grande momento artístico foi em LA quando fui assistente durante quatro anos do Esa-Pekka Salonen, meu mentor; falamos muito sobre o sentido de responsabilidade que tenho perante a comunidade que sirvo, Berkely, Portugal, sobre o modo como um músico pode intervir na sociedade. A Filarmónica de LA foi a última grande escola onde andei.
A relação com a Orquestra Gulbenkian tem sido uma das experiências mais estruturantes da minha vida como artista. Tem-me concedido uma liberdade enorme, na escolha de repertório. Ter acesso a um instrumento tão bom quanto a Orquestra Gulbenkian, ao nível da execução musical e da imaginação artística, de forma continuada, é um privilégio.
Sente que fizeram uma aposta em si?
Sinto que tem sido uma aposta, não só do serviço de música, da administração, da Gulbenkian em geral, mas também dos músicos. As sinfonias de Tchaikovsky, a maior parte das sinfonias de Beethoven, dirigi-as pela primeira vez com a Orquestra Gulbenkian. Muitas conversas tivemos em privado, sobre coisas que eu podia melhorar, os músicos tiveram essa generosidade. É muito raro encontrar uma relação destas.
Sente-se orgulhosa por ser a cara dos 50 anos da Orquestra Gulbenkian? É a sua imagem que aparece a promover o concerto comemorativo [dia 15].
Devo confessar que passei na Avenida de Berna, vi esse cartaz e vieram-me lágrimas aos olhos. De gratidão. Não sabia que ia ser assim. Não sinto orgulho. Sinto responsabilidade perante a instituição e perante esses músicos. Às vezes sentimos que a nossa carreira podia acabar naquele momento e que aquilo não nos podiam tirar.
Quando foi para os Estados Unidos estudar, fazer o mestrado e depois o doutoramento, foi para um país onde não era uma menina bem nascida, católica, protegida. Foi o primeiro embate com um mundo onde era apenas mais uma?
Não foi um embate. A educação que os meus pais nos deram foi baseada na meritocracia. Mais importante foi o alargar de horizontes. Os Estados Unidos ensinaram-me muita coisa, tiraram-me muitos preconceitos – sobre o que tinha que ser, sobre o que eu achava que o mundo era. Vinha de uma sociedade e de um meio muito homogéneo. Percebi que aquilo que eu pensava que era verdade, não só não era verdade como existiam outras possibilidades.
(Uma pergunta indiscreta: alguma vez se apaixonou por alguém fora da sua classe social? Ou, apesar dessa abertura de horizontes, as coisas mantiveram-se dentro de determinado cânone?
[riso] Não posso dizer que me tenha apaixonado alguma vez por uma pessoa diferente de quem eu sou.)
O meu irmão mais velho estudava em Chicago e o seu orientador de tese foi prémio Nobel [da Economia], James Heckman. O meu irmão convidou-me para ser a acompanhante dele num jantar, e na nossa mesa, éramos dez. Nós os dois, portugueses, brancos (embora em Portugal sejamos considerados mestiços pela ascendência [macaense] que temos, nos EUA somos brancos), dois indianos, dois africanos, dois americanos e dois hispânicos. Todos doutorados. Lembro-me de pensar que nunca tinha sido confrontada com essa diversidade. O que era determinante não era a proveniência, mas o que faziam.
Já falou de se expressar com o corpo. Quando dirige, há um abandono físico e um quase despudor. Foi fácil para si, atendendo ao quadro social e religioso em que cresceu?
Fui uma criança muito extrovertida e quando comecei a dirigir era muito vigorosa. O meu percurso tem sido ao contrário: tentar controlar esse meu ímpeto. Porque sinto tudo com muito fervor e às vezes é demais. Tenho aprendido a controlar-me e a construir melhor a minha parte gestual.
Há uns anos um agente dizia-me que tinha de filmar os concertos para perceber [a gesticulação]. Fiquei complexada, mas o comentário foi construtivo. Recentemente vi uns vídeos do [Claude] Abbado quando era jovem, e também era muito mais exuberante.
Está cada vez mais parecida com a sua mãe. Não é só a fisionomia.
Cada vez mais!, sim. [gargalhada] À medida que vou crescendo, olho-me ao espelho e surpreendo-me porque vejo a minha mãe. Até considero que tenho uma irmã fisicamente mais parecida. Mas é na expressão, na forma de falar... Quando me dizem que estou cada vez mais parecida com ela, sinto-me orgulhosa. Quer dizer que as coisas estão a correr bem.
Como assim?
A minha mãe é uma pessoa que admiro muito. Com o meu pai, construíram uma família extraordinária. Nove filhos, que seguiram as suas vocações livremente e plenamente. Ensinou-me a fazer tudo com uma enorme alegria.
Tem quase 36 anos, um casamento recente, a experiência de uma família numerosa. Posso perguntar se a maternidade é um tema central na sua vida? Já aludiu ao difícil equilíbrio entre uma vida familiar plena e uma carreira plena. Como é que se viaja constantemente pelo mundo com crianças?
É muito importante, para que a Joana-artista tenha sucesso, que a outra Joana, que é a mesma, seja feliz. Penso que a vocação da maternidade é uma vocação que me tocará também. Quando é que existirá espaço para isso? A acontecer, terá de ser nos tempos mais próximos.
As maestrinas que conhece e que têm carreiras promissoras e bem estruturadas têm filhos?
A maior parte, não. Só conheço duas que têm.
O seu discurso é titubeante quando fala disto. E assertivo quando fala de música.
[riso] É difícil falar da nossa intimidade. Mas posso dizer-lhe que sinto com muita força este desejo de maternidade. Talvez por vir de uma família tão feliz, por ver os meus sobrinhos, por ver esse sinal de amor que é uma criança.
Onde é que estão as suas inseguranças?
Ah, nas relações pessoais. No procurar ser a melhor mulher para o meu marido, a melhor filha, a melhor irmã, a melhor tia. A melhor que posso ser. Na vida do dia a dia é onde sinto mais fragilidade.
Alguma vez lhe apeteceu desistir?
Sim, muitas. Demorei tempo a admitir isto. Ainda mais porque Bernstein dizia: “Se um maestro pensar em desistir, é porque não deve estar nesta profissão”.
É difícil chegar ao momento em que nos sentimos à vontade com uma partitura. É uma carreira que implica sacrifícios. Muitas vezes achei que não estava à altura. Que não era digna das oportunidades que me davam. Que não era digna de dirigir as orquestras que dirigia e dirijo. Hesitei, muitas vezes, sim, por me sentir... indigna.
É uma palavra muito forte.
[gargalhada nervosa] Mas ouça, somos artistas. Sentimos as coisas assim.
Isso parece ter um conteúdo moral e espiritual. Na base disso, mais do que a sensibilidade de uma artista, aparece o seu catolicismo?
Talvez. Sinto, por vezes, que não estou tão preparada quanto gostaria, que podia ter feito melhor. Mas vou em frente. E a vida é feita destes paradoxos, de ter a certeza e duvidar no instante a seguir. Será que é possível ter uma família e ter uma carreira? Falei disto com a Renée Fleming.
Foi a cantora mais famosa que dirigiu. De repente ela passa a ser só uma cantora que está a dirigir ou continua a ser a Renée Fleming?
Continua a ser a Renée Fleming por ser a artista formidável que é. As duas vezes em que trabalhei com ela senti que estava perante uma das melhores artistas com quem tinha trabalhado. O que transmite é tão claro... E era tão claro o que eu tinha de fazer com a orquestra para estar com ela.
Casou-se no mesmo mês que eu, há um ano, em Setembro. Encontrámo-nos pouco depois e falei-lhe de como tinha mudado algumas coisas na estratégia da minha carreira (o critério na escolha, o fazer menos concertos). Deu-me alguns conselhos: “É mesmo isso que tens de fazer”. Deu-me força.
Publicado originalmente no Público em 2012