Iva Delgado (s/ Humberto Delgado)
Debaixo do caramanchão, numa tarde quente. Os gatos passavam entre os ombros e o colo. E na casa, em frente, a mãe segurava a lupa e espreitava uma revista. A mãe chama-se Iva. O pai Humberto, o General sem Medo. Numa tarde de Verão, na casa de família, que se ergue para as bandas da terra do pai. Dissecou-se a história de uma família que se entretece com a história recente do país.
Iva Delgado, a filha, é licenciada em Filosofia, é presidente da Fundação Humberto Delgado.
É a senhora que se ocupa da ordenação do espólio e de tudo o que concerne à memória do general Humberto Delgado. Tinham uma afinidade particular?
Um filho meu disse-me: «Aquele livro é óptimo, é tal qual o que o avô era»; eu respondi-lhe: «Mas como podes saber se nunca o conheceste?», «Mas a mãe fala dele todos os dias...». Fiquei espantada, não me tinha dado conta. Esse legado é mais forte que eu. Nunca me senti a menina preferida. Mas sempre senti uma afectividade muito forte que não se explica. A melhor coisa, quando era pequena, era dar um passeio depois do jantar, no Canadá ou em Lisboa, com frio ou chuva. Só quando havia algum jantar da vida diplomática é que não o fazíamos. Um dia não pôde e fiz-lhe uma cena. Ele disse: «Mas tu não vês que é uma grande honra, para ti que és uma miúda, ter uma pessoa que vai passear contigo todas as noites?». E ficou o Passeio da Honra. Esses pequenos momentos são eternidades. A felicidade é feita de pequeníssimos instantes que perduram pela vida toda.
Humberto Delgado é para nós o General sem Medo. Aquando das eleições tinha já 52 anos, não é detalhadamente conhecido o seu percurso anterior.
O mais recôndito em mim data de um período anterior ao Canadá, para onde fui aos sete, oito anos. Teria quatro, cinco anos, e lembro-me, sempre, de uma pessoa que, quando entrava em casa, fazia tudo girar à sua volta. Tinha um fortíssimo sentido de monopólio e queria que toda a gente notasse que tinha chegado. Ia ter individualmente com cada uma de nós... O meu irmão é uma figura ausente, estava no Colégio Militar, e tenho pena de não ter brincado com ele. Éramos então duas, uma parelha.
Ele era muito extrovertido, soltava gargalhadas, mas era também um militar, e, ao que consta, autoritário. Como conviviam estas duas características?
O autoritarismo, que coloco entre aspas, fazia-o ser uma pessoa muito arrumada. Achava insuportável que alguém desarrumasse qualquer coisa. Era metódico e exigia limpeza, higiene. Era o outro lado da estrutura: a minha mãe olhava pela casa como um todo, ele ia ao individual, «Esta é a tua toalha, não tocas nesta que é a minha».
Ia ter com esse tipo de pormenores?
Sempre foi muito de pormenores. Detestava bric-a-brac, que tornava complicada a tarefa de limpar o pó, e exigia uma certa austeridade e sobriedade na decoração da casa. No entanto, ia muito a leilões e comprava quadros. Tinha mau génio, tinha um extraordinário mau génio. Quando eclodia, nós escondíamo-nos, «Meninas, tudo para debaixo da cama». Mas não era uma coisa grave, era passageira, eram segundos ou minutos. Assim que lhe passasse, havia um cantarolar, já se tinha esquecido.
Dava-lhes uma tareia?
Não. Ralhava e gritava bastante e nós assustávamo-nos.
Que tipo de conversas tinham? Nos passeios falavam de quê?
Adorava saber. Na minha mente, eram intermináveis passeios e conversas. Eu seguia radiante, a saltitar ora num pé ora noutro, e hoje não consigo reproduzir. É um tempo que fugiu. O que ficou foi a forma, não o conteúdo.
Quando é que se apercebe de que o seu pai é um homem importante, com uma vida diferente da dos pais das outras meninas?
Antes de 58 sentia que havia qualquer coisa. Eu escondia-me debaixo da mesa da casa de jantar e ouvia as conversas todas, tinha esse horrível vício. Ainda há pouco tempo a minha mãe relembrava coisas dos Estados Unidos, «Aqueles pessoas que iam lá a casa, tudo, tudo a dizer mal, tal como agora». Era esse dizer mal que gostava de ouvir. As pessoas que dizem que o meu pai só em 58 se virou contra o Salazar..., não é verdade. Ele não gostava da maneira de ser do Salazar. O meu pai gostava de desporto e ar livre, e Salazar era um homem fechado entre paredes que não gostava da luz do sol. Era quase um homem de outro século e o meu pai era o homem da modernidade. Era o aviador. Esse lado também me fascinava.
As histórias da aviação?
Sim. Havia as histórias dos perigos, do pioneirismo, as histórias de quando tinha capotado com um avião em Alverca e quase morrido. Os pais das outras meninas não eram aviadores; havia pouquíssimos, é como ser astronauta nos dias de hoje.
Comenta-se, sobretudo, a passagem do seu pai por Washington, entre 52 e 57. O Canadá foi também significativo no seu percurso?
No Canadá esteve entre 47 e 50 como representante no Conselho da Organização da Aviação Civil Internacional. Salazar chamou-o porque tinha muita competência técnica em matéria de aviação civil. Com Marcello Caetano Ministro das Colónias, foi fundada a linha imperial – Portugal não tinha aviação civil. Teve aí um papel preponderante.
Percebeu em Washington que viviam uma antecâmara do que estava para chegar?
De maneira nenhuma. Foi uma surpresa total o que veio a acontecer. O normal seria a carreira progredir. O adido militar e aeronáutico, representante português no comité militar aeronáutico, era o cargo mais importante do ponto de vista diplomático. Dali não podia haver um retrocesso. Ao darem-lhe a aviação civil outra vez, claro que não gostou nada. O discurso de tomada de posse dava as suas picadinhas ao poder; achava que tinha feito um excelente trabalho em Washington e que não estava a ser recompensado.
Ainda em Washington, tinha vontade de regressar a Portugal?
Muita. Nós regressámos um ano mais cedo. Depois de três anos lá, achou que tínhamos de voltar. Estávamos naquele limbo... As minhas colegas todas tinham «dates» e namorados; nós não devíamos conhecer rapazes, não caía bem.
Que abertura tinha ele para as saídas, os encontros?
A vida de festas e namoricos era com a minha mãe, o meu pai achava que a minha mãe orientava esse sector. As raparigas não tinham a liberdade que têm hoje, nem lhes passava pela cabeça.
Quando é que teve a noção de que o seu pai seria uma figura?
Não tinha, nem ninguém tinha, prenúncio do que viria a acontecer. Fazendo raciocínio retrospectivo, repescando pensamentos que tinha e que não sabia o que era, havia em relação ao meu pai algo de indefinível que me dizia que estava predestinado a alguma coisa. Senti isso em Washington quando nos despedimos: que a nossa vida se ia desconjuntar. Fomos à piscina do clube militar pela última vez; durante o caminho ia vendo os cartazes publicitários, ia vendo sem ver, e pensando «Nunca mais vou estar aqui». O tempo estava a esgotar-se. Tinha-se fechado um ciclo, e isso coincidia com a minha idade. Tudo isso caiu em mim numa melancolia extrema, e o mesmo no meu pai.
O seu pai teve também essa intuição?
Teve, teve. A nossa conversa, que não conseguiria reproduzir, dizia-me que estávamos a perceber ambos que tinha acabado qualquer coisa, e que não era agradável. Cá, quando eclodiu a campanha, estava no sexto ou sétimo ano. Era ao mesmo tempo agradável, aventuroso, perigoso, indefinido. Não se sabia bem o que estava a acontecer. Falava-se da presidência da república; mas nesse tempo, era tão, tão importante ser presidente da república, tão difícil chegar lá, que nos perguntávamos como era possível uma coisa daquelas!
Foi Henrique Galvão, que estava preso, que sugeriu a António Sérgio o nome do seu pai para a candidatura.
As histórias do Henrique Galvão eram faladíssimas lá em casa. Sobretudo a da máquina de escrever, que, aliás, é contada pelo Marcello Caetano nas suas memórias sobre Salazar. O episódio é absolutamente como ele o conta. Eu só não sabia que o meu pai se dava com o Marcello Caetano. O Galvão estava sem máquina de escrever – tinham-lha tirado por pirraça. E o meu pai foi pedir ao Caetano para lhe restituírem a máquina, sem a qual passava períodos de depressão terríveis.
Já percebia a diferença quanto à opção política do seu pai e de Salazar?
Essa noção tive-a muito, muito antes. As discussões lá em casa, com as pessoas que lá iam, eram sempre em redor do sistema de governação do Salazar.
Chamavam-no de Salazar?
Sim. Tinha uma imagem de Salazar, e quem ma transmitiu foi o meu pai.
Qual era?
A de uma pessoa antiquada, que vivia permanentemente com desconfiança. O meu pai não tinha afinidades com aquela criatura. Quando discutiam sobre Salazar, a minha mãe estava muito aferrada à ideia de que o Salazar tinha sido extremamente útil nos primeiros tempos, que se não fosse ele o país tinha ido à bancarrota.
Houve uma fase de encantamento com o Regime. Humberto Delgado foi um dos tenentes do 28 de Maio.
Ele era uma pessoa do Regime. Não era uma pessoa bafejada pelo Regime; ou seja, não tinha benesses. Ele destrinça o carácter técnico da sua profícua colaboração com o Regime do carácter político. Se tivesse sido bafejado, ter-se-ia revoltado?
Ele acreditava no ideário do Regime?
No décimo aniversário da revolução nacional, faz um discurso onde diz «Não foi por esta revolução que me bati». Vitupera o excesso de burocratismo, de centralismo, faz uma série de críticas. Uma posição tomada publicamente, num jantar de oficiais, em 36.
Quando se dá o inequívoco distanciamento?
Penso que houve um lento abrir de olhos. Nos Estados Unidos e nas viagens que fez na sua actividade de diplomata militar, abriu os olhos para a democracia. Por outro lado, ele próprio tinha estado na Legião Portuguesa a dar instrução; sabia, passo a passo, que o Regime estava tendenciosamente a tornar-se cada vez mais repressivo.
Porque é que não se revoltou em 36?
Não sei. Porque, se calhar, havia a Guerra Civil de Espanha e até estava do lado de Franco. Era como se vivia na época. Na infância ouvi falar da Guerra Civil de Espanha pelo lado do Franco! Só em adulta, quando trabalhei o tema, percebi que havia o outro lado, e que ambos tinham bons e maus. As pessoas não se consideravam fascistas, consideravam-se nacionalistas. Mas em 42 fez as negociações, por parte da aviação portuguesa, com os Aliados, sabendo que no governo havia tantos germanófilos, a começar pelo ministro Santos Costa.
Humberto Delgado estava isolado. Não pertencia à Oposição, tal qual ela existia em Portugal, e por outro lado ia ficando desfasado do Regime ao qual pertencera.
Por isso escolheu para a candidatura a palavra independente. A palavra tinha uma conotação fortíssima. Não se sentia já identificado com o Regime, mas nunca tinha sido da Oposição. Foi talvez o que estabeleceu uma ligação directa com o povo.
Na campanha, a lado do espectáculo era original. Era uma novidade o candidato passear-se num descapotável, abrindo os braços para as pessoas.
A rua foi a novidade. Ele tinha muito a noção de espectáculo: subia para as varandas. Temos uma foto dele em cima desta varanda, no parapeito, e disto cheio de gente. Foi o primeiro político a trepar para o tejadilho de um automóvel e a abrir os braços. Fez política de rua, coisa que ninguém tinha feito.
Como é que aparece essa linguagem?
Essa linguagem não se inventa. Não se diz «Agora vou fazer isto porque vai cair no goto do povo». É uma empatia súbita entre aquilo que as pessoas todas estão a pensar, mas não têm coragem de dizer, nem sabem como dizer, nem sabem que estão a pensar, e alguém que vem dizer isso mesmo.
A noção de espectáculo não foi muito apurada na América? Chamavam-lhe, aliás, General Coca-Cola.
Não, que ideia. Havia um abismo entre a vida que se passava nos Estados Unidos e em Portugal. Até eu dava por isso. Vivíamos numa sociedade arcaica, e os Estados Unidos tinham já uma sociedade de consumo. Transpor aquilo para cá, a ideia dos chapelinhos, das marjoretes e do Eisenhower, era impossível. A propaganda da campanha, é toda ela muito patusca, muito pobretana. A do [Américo] Tomás também.
O slogan que acompanhava a campanha de Delgado apelava «Tornai-vos conscientes» e «Votai sem Medo!».
Não era um slogan. Os slogans resultaram da palavra exacta, corporizada, e depois assumida pelo povo. O Costa Gomes, por exemplo, foi uma criatura que nunca entendeu o «Obviamente Demito-o» [resposta de Humberto Delgado quando lhe perguntam o que vai fazer a Salazar caso ganhe as eleições]. Achou que foi um grande erro, porque o Salazar ainda estava entranhado no povo. Nunca entendeu que foi o princípio do fim dizer que o cargo do ditador não era vitalício.
Como é que leu recentemente a entrevista dada por Costa Gomes e publicada aquando da sua morte? Basicamente dizia que Delgado tinha um parafuso a menos.
O Costa Gomes era um homem sem sentido de humor que nunca compreendeu o sentido de humor do meu pai. Conta aquelas histórias, que aliás são muito cómicas, e leva aquilo a sério.
Contava a história do seu pai ter puxado os pêlos do nariz a outro militar.
Se isso foi assim, o que duvido, é uma história cómica. Mas o Costa Gomes era um homem formal, incapaz de compreender o acto de coragem que era dizer que demitia o Salazar. Nunca seria capaz de o fazer. Por isso lhe chamavam «O Rolha». Ninguém quis dizer quando morreu, mas era o que toda a gente lhe chamava. Porque boiava de um regime para outro. O Costa Gomes teve a sua importância histórica e impediu uma guerra civil, mas não era capaz de fazer um golpe militar.
O famoso «Obviamente Demito-o» foi espontâneo, ou criteriosamente estudado?
Penso que sabia que iam fazer a pergunta. Que o assunto foi discutido previamente, foi.
Com quem?
Soube da história muito depois, pela Alcina Bastos. Contou-me que nessa noite, véspera do 10 de Maio, foram lá a casa ela, o irmão e mais três ou quatro pessoas ligadas à comissão nacional. E discutiu-se muito, «Ah, o que é que se vai dizer se alguém pergunta o que se faz ao Salazar?». Era a questão vital: Vai continuar tudo na mesma?, vai tudo mudar? Foi dito por alguém presente que se devia responder com certa prudência, que ainda havia pessoas que gostavam do Salazar. Quando iam embora, o meu pai fechou as portinholas do elevador, e disse «Então, Alcina, já sabe: sua excelência, o senhor Presidente do Conselho, vai ficar!».
Ainda que na leitura dos jornais não estivesse destacado o «Obviamente Demito-o», houve um impacto imediato no povo, quatro dias depois do Porto.
Havia toda uma forma de comunicação subterrânea. Não era pela televisão, pela rádio, pelos jornais. «O tipo foi dizer que demitia o Salazar?», aquilo caiu como uma bomba. A recepção no Porto extravasou completamente as barreiras, quer as da Oposição quer as do Regime. Só tive noção do que se tinha passado quando no dia 16 chegámos a casa e ele nos contou.
Não se telefonavam?
Não. Era um universo de impossibilidades. Logisticamente a vida transformou-se num caos.
No liceu sentiu alguma afectação?
Senti as pessoas que me vinham falar com entusiasmo e as pessoas que deixaram de me falar. O rescaldo foi complicado. Bulia muito com a vida das pessoas, «Tem cuidado, não fales com ela». O medo. Esta foi a revolução do medo. Eu sentia medo também.
Medo de quê?
Medo de tudo. Do que se estava a passar, da premonição da catástrofe que podia desfazer a família toda. Um medo que me atacava o estômago de manhã.
Em casa falavam do medo?
Não se fala. Tenta-se disfarçar. Para dar força aos outros. Eu era das mais animosas. Vivia na contradição de adorar estar presente e de ter medo do que pudesse vir a acontecer.
Na recepção em Lisboa, foram esperá-lo à plataforma de Santa Apolónia. Como foi atravessar aquele mar de gente, no carro descapotável, com o seu pai?
A chegada do foguete foi tumultuosa. Cá fora já havia perturbação, contra-manifestação, polícia. Quando dei por mim estava enfiada em cima de um carro, com a minha mãe, a minha irmã, a Alcina Bastos, o Maldonado Freitas, o Joaquim Bastos, que são as pessoas que aparecem na celebérrima fotografia onde se vê o panteão ainda sem a cúpula e o GNR que parece um soldado prussiano. Lembro-me dessa caminhada, lembro-me tão bem...
No carro falava-se?
Só me lembro da enorme frustração. A minha mãe contou isso numa entrevista. Contou que o governo não caiu nesse dia por nossa causa. Se o meu pai estivesse livre dos empecilhos familiares, das pessoas que tinha de proteger, teria ido pela Avenida da Liberdade, não se teria deixado aprisionar.
O sentimento que a dominava era o de Pai- Herói?
Era um sentimento colectivo. Era «Aqueles malandros obrigaram-nos a vir por aqui [zona oriental da cidade] porque sabiam que se fôssemos pela Avenida da Liberdade...».
Qual era o sentimento do seu pai?
Quando chegou a casa, o meu pai estava furioso! E contou-nos o que tinha sucedido no Porto, «Vocês não fazem uma pequena ideia do que sucedeu no Porto!», «Mas foi mais do que aqui?», «Trinta mil vezes mais, foi uma coisa fantástica!». No Porto tinham sido apanhados desprevenidos, em Lisboa já não.
Humberto Delgado arrependia-se de ter colaborado com o regime?
Não. Sempre encarou isso no contexto da sua eficiência. Tinha um enorme orgulho naquilo que fazia.
Como é que ele lidava com essa incongruência?
Lidava bem, muito bem. Não sentia que estava inserido no regime para retirar benefício próprio. Dizia que dava mais do que recebia. Ele atacou esse tema de frente, até porque lhe perguntavam, «Como é que o senhor...». Respondia «Sou um dissidente do regime por isto e isto e aquilo».
Voltemos a 58. Acreditou-se que o governo ia mesmo cair, que as eleições iam decorrer com transparência?
Houve uma altura em que se acreditou completamente. O Porto foi um momento de euforia e pelo país fora houve momentos em que se acreditou que, com uma ajudinha de um golpe militar, a coisa iria.
Delgado já não era um militar do regime. Que tipo de ajudinha podia esperar?
O golpe só podia ser feito com gente nova, não com os generais velhos que foram ao beija-mão ao Craveiro Lopes. Se me perguntar nomes, não sei. Mas que iam lá a casa, iam. Não tinha acesso aos quartéis, mas acalentou a esperança. Nas «Memórias» fala do que estava planeado, em Junho e em Dezembro. Foi boicotado porque havia perto dele um informador, o Rodrigo de Abreu. Está em todas as fotografias. Havia aquilo a que o meu pai chamava «Pidite Aguda». Era muito fácil num país gangrenado pelo sistema da delação cair-se no abismo de que toda a gente era da Pide. Havia que lutar contra isso.
Em 65, quando o atraem à emboscada, há quem avise: «Olhe que cheira a tramóia por tudo quanto é lado, não vá». Ele ignora.
É uma forma de sobrevivência contra o fenómeno Pide. Também lhe diziam que a Alcina Bastos e o irmão eram da Pide. Todos eram da Pide!
Ao longo desse mês, as fotografias mostram-no feliz.
Andava eufórico. Estava a cumprir o seu destino. Provavelmente todos dos passos que deu na vida foram para chegar àquele momento.
O regime distribuía panfletos apontando-lhe a vaidade. Era um homem vaidoso?
Penso que não. O que ele tinha era um enorme brio em relação às suas capacidades. Mas isso, desde criança. Nas «Memórias» é um aspecto insistente: que era o melhor, que era o primeiro, que tinha substituído o professor. Havia uma emulação constante, sim. Mas uma pessoa que põe em risco a sua vida, o seu futuro, não é com certeza por ser vaidoso.
A principal motivação era o amor à pátria?
Tinha atingido um ponto em que já não suportava mais viver naquele Regime. Este convite que lhe veio de bandeja era, ao mesmo tempo, um presente envenenado e um enormíssimo desafio. E não resistiu à ideia de ser a alavanca dessa mudança. Não tinha tanto em vista o que ele próprio iria perder ou ganhar, estava tudo em jogo. Costa Gomes nunca seria capaz disto, só dava o passinho quando estivesse tudo seguro. Aliás, a tese da loucura já vinha da propaganda negativa de Salazar. Costa Gomes repesca-a nas suas memórias porque, nessa altura, também ele estava um bocadinho gagá.
Era excêntrico? Que tipo de situações, pela sua bizarria, podiam dar azo a comentários sobre a sua sanidade mental?
Uma pessoa que tinha tido um comportamento exemplar e condecorações dadas pelo regime só podia ou estar doido, ou ser um intempestivo, ou ser um vaidoso. Tinham de descobrir mazelas, tinham de fazer o assassínio de carácter.
Que defeitos é que imputaria ao seu pai?
Talvez o mau génio. Deixe-me pensar bem, nunca lhe vi assim muitos defeitos...
Insisto nas razões que sustentam a sua obstinação em derrubar Salazar.
Tenho a impressão que o amor à pátria não é algo que se possa definir como se pode definir um quilo de marmelada.
Falo do amor à pátria pensando nas suas características pessoais e no tempo que então se vivia.
Não estamos a falar de um Portugal fechado no nacionalismo dos anos 30. Estamos nos finais da década de 50, numa fase de abertura a outros universos de colaboração. O amor à pátria é uma coisa latente. Dá-me ideia que é mais o amor aos princípios da liberdade, que estava muito sufocada e que tinha sido saboreada nos Estados Unidos.
Nos meses que sucedem às eleições vive-se a evidência da fraude e a incógnita quanto ao futuro. Sentiam que a vossa vida corria perigo, num cenário mais catastrófico?
Tinham medo de nos tocar. Tinha saltado demasiado lá para fora – tinham ido jornalistas estrangeiros lá a casa. Não havia aquele ar de ressaca e de preocupação. Lembro-me do Verão de banhos na praia de S. Julião da Barra com o meu pai. Havia qualquer coisa no ar e, aqui e acolá, resquícios da campanha.
As reuniões prosseguiram em casa?
A maior parte das pessoas desapareceram. Mas havia um ping-ping de contactos. Quando se dá a cena do 5 de Outubro, que teve uma forte conotação de provocação ao regime, comecei a perceber que aquilo não ia às boas. E havia as reuniões clandestinas com o [António] Sérgio.
Havia uma apreensão?
Não. Eu achava que já tinha passado o pior, que tinha de haver uma solução qualquer. Quando foi para a embaixada, senti um enorme alívio. A vida profissional dele tinha acabado e era muito novo para ficar quieto. Sair de cá, era o melhor.
Qual foi a gota de água que o fez perceber que não podia continuar cá e o levou a pedir asilo na embaixada brasileira?
O processo posto pelo Kaúlza. Ele teve uma atitude provocatória. Deu entrevista ao «New York Times», bem, badalou lá fora, coisa que o regime não suportava. Ofereceram-lhe um exílio dourado no Canadá e ele teve a tal carta onde dizia «Imagine que me querem mandar para o Canadá onde anoitece às quatro da tarde!». Na sequência do processo, sai uma nota oficiosa no início de Janeiro de 59 que o poria sujeito à lei civil, portanto, ao alcance da Pide. E isso é que foi verdadeiramente a gota de água. Isso e a manifestação na [Rua] Filipe Folque. Em conversa de bairro, alguém ouviu que a manifestação era para o liquidar, chamou a nossa empregada que contou à minha mãe.
Como reagia a sua mãe a uma coisa dessas?
A minha mãe tinha o tal pragmatismo, «Querem-te prender ou matar, vais já para qualquer lado». Era muito claro. O que sei é que nos mandaram para o cinema S. Jorge, e, ao sair da matiné, vimos as parangonas: «Delgado pede exílio político», e percebemos porque nos tinham mandado ao cinema. Alguns dizem que a manifestação era da Legião, outros que era de estudantes. Fosse como fosse, o meu pai chamou o barbeiro e perguntou-lhe, «O senhor acha que devo ficar?»; e o homem ter-lhe-á dito «Ó senhor general, vá-se embora que aqui matam-no».
A partida para o Brasil não é fácil. Não é autorizada senão em Abril.
O governo português não tinha tradição em conceder asilo. Então, veio cá o João Dantas, director do Diário de Notícias do Rio de Janeiro, na comitiva do Secretário de Estados dos Negócios Estrangeiros; não sei que voltas deu ao governo, o que sei é que pegou no meu pai, levou-o para o aeroporto e meteu-o no avião. O troco disto era a exclusividade, que teve.
Como é que ficou a vossa vida em Portugal? Como é que financeiramente se resolveram?
São problemas particulares e não gosto de falar deles. Fica a nebulosa de família de sobreviventes... Mas claro que não foi fácil para nenhuma de nós.
Foram ostracizadas?
Ah, isso fomos. A minha mãe deixou de ter os chás de canastra e as senhoras das noelistas que a convidavam. Mas aprendemos a viver com isso, com certo brio, até. Primeiro estava a situação do meu pai, nós estávamos do lado dele.
A ausência é muito mais fantasista. Desenvolveu o sentimento de heroicidade?
Não fazíamos futurologia, nem mitificávamos ninguém. Estávamos no concreto a tentar sobreviver. Os problemas eram os diários, «Não te importas de ir à farmácia?». E o normal metia cartas clandestinas, encontros em sítios esconsos para receber correspondência.
Era um drama familiar, ponto.
Ponto final. Vamos tentar sobreviver desta e daquela maneira. E havia o espírito da minha mãe, que é peça chave disto tudo.
Troca intensa correspondência com o seu pai. Mais tarde queimou as cartas.
Estávamos com medo que a Pide fosse revistar a casa. E eu disse «Prefiro ficar sem elas do que a Pide apanhar-mas». De maneira que destrui-as. Toda a vida me arrependi. Às vezes eram cartas telegráficas, a contar o que se tinha passado. Para ele saber que aguentávamos o barco. Não gosto da vitimização. O povo português foi vítima, e nós fizemos parte desse povo.
Durante o exílio, há contactos com países estrangeiros desenvolvidos a partir do Brasil. Há em 1961 o assalto ao paquete Santa Maria, e, na passagem de ano de 61 para 62, o episódio falhado do assalto ao Quartel de Beja. Persistia ainda, evidente, o desejo de dar à volta à situação.
Ele aprendeu muito no estrangeiro. Reformulou o seu pensamento em relação às colónias. Primeiro no sentido da federação, depois da autonomia. O problema número um do Regime em relação ao Santa Maria, é terem pensado que o objectivo era constituir um governo em Luanda. O Santa Maria foi mais que um assalto a um barco. Todos, todos os media, até a China, convergiram, não se sabe bem porquê, naquele assunto. Transformou-se numa coisa heróica, o [Henrique] Galvão teve todo o cariz de herói romântico.
Quando Delgado vem para o assalto ao Quartel de Beja mantêm contactos? Viram-no?
Não. Mas telefonou. E telefonou uma outra vez do norte de África. O falhanço de Beja não é o falhanço de Beja.
Foi um falhanço quanto ao propósito da acção.
Sim. Mas foi a maior bofetada na Pide: esteve cá 15 dias e não lhe deitaram a mão. O Rosa Casaco diz que foi a partir daí que ficou o destino selado.
Como é que leu a reportagem do Rosa Casaco?
Li com asco e repugnância. Pareceu-me a glorificação do criminoso. Penso que há alguém no «Expresso» que deve ser amigo do Rosa Casaco. Se for ver, desde 90, até todos os 12 de Fevereiro, há uma notícia sobre a prescrição. Não é por acaso. Não digo que seja o [José Pedro] Castanheira, que é um jornalista sério, mas há proteccionismos em Portugal e há proteccionismos na máquina administrativa espanhola. Não é uma acusação, é uma observação de facto.
O que sente em relação a uma pessoa como Rosa Casaco? É ódio puro?
É pena. Uma pessoa que não se consegue redimir, que voltaria a fazer o que fez, em termos humanos e históricos não vai ser absolvida, não pode ser. Se ele viesse..., enfim, não digo com ar lacrimejante, mas com o mínimo de dignidade, o que não pode ter por ser quem é, se dissesse «Venho cumprir a pena porque estou arrependido»... Mas não é o caso. Não tem nada a ver com ódio. Tenho pena.
É o seu sentimento passados quase 40 anos. Naquele tempo...
Sabe que nunca personalizei...
Não era importante para si?
Tenho de lutar para que o legado de luta pela liberdade seja entendido pelas gerações de agora, muito propensas a deixarem-se apanhar por máquinas repressivas várias. Para nós a Pide era um todo. Distinguir os indivíduos e persegui-los... Essa superioridade da democracia e das pessoas, acho bonito de se ter. Não podemos andar a vida toda atrás dos criminosos. Foram julgados, à revelia, mas foram julgados; se ainda existem, tinham de ter uma atitude de honestidade. Mas isso era pedir que não fossem o que são, que é criminosos. Eu sei que há redenções, mas neste caso não houve.
A noção de justiça perseguiu-vos, era importante?
Estivemos sempre atentos ao fenómeno, e ainda estamos. Os casos encerram-se quando a justiça age. O Supremo Tribunal Militar é uma excrescência. O Tribunal Constitucional ao coadunar aquela decisão, está a coadunar... Porque é que há tribunais para militares? Não estamos em tempo de guerra. O Pinochet, aqui em Portugal? Nem o processo se abria!, estaria a rir de gozo. Se o Rosa Casaco está a rir neste momento, é um riso muito, muito mau. Eu não gostava nada, nada de ouvir esse riso. E não sou só eu que tenho de o ouvir: é o povo português, é a democracia. Não me toca só a mim. A memória nunca prescreve. Fazer uma contabilidade da memória?
Consegue separar a personalidade mítica de Humberto Delgado do homem que foi seu pai?
Às vezes consigo, outras não. Às vezes digo o meu pai, outras o general. Depende do momento e da pessoa com quem estou a falar.
Originalmente publicada no DNa do Diário de Notícias em 2001