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Anabela Mota Ribeiro

Jan Fabre /Troubleyn

20.05.16

O Troubleyn celebrou 30 anos. O Troubleyn é o corpo de Jan Fabre em palco, na dança, no teatro, na performance. A companhia está sediada desde 2007 numa ruína de um teatro. O espaço foi – está a ser – transformado numa espécie de museu em que as obras são inseparáveis do edifício: a sua remoção quase sempre implica o fim, a destruição. Jorge Molder e Julião Sarmento são os únicos artistas portugueses com intervenções no espaço e com uma relação de trabalho com Fabre, um coreógrafo que é também um performer e um autor e um artista visual. Os dois estiveram na celebração, em Antuérpia.

 

Há uma maneira peculiar de dizer Troubleyn. Comecei por pensar que se dizia trouble-yn, à inglesa, que é como quase toda a gente diz, num acento mais acurado ou menos. A maneira correcta é aquela que transforma num ditongo o “e” e o “y” e constrange numa sílaba inteira, simultaneamente rápida e longa, a segunda parte da palavra. Só a letra final é ligeiramente arrastada. Tudo o mais é dito de um fôlego.

Há muitas maneiras de dizer o que é o Troubleyn. Os locais saberão dizer Troubleyn de maneira própria, com uma música difícil de descrever. Os flamengos poderão pronunciar com correcção a palavra. Porém, só os bailarinos, os actores, os performers, os guerreiros da beleza de Jan Fabre, talvez só estes saibam dizer daquela maneira peculiar Troubleyn. Dizem-no como se falassem uma língua materna que é só de alguns, de uma comunidade artística que domina um determinado léxico, aquele e não outro, um aquele muito diversificado e abrangente, mas aquele. Um léxico, uma música, um som primordial.

Troubleyn soa a língua materna do fundador da companhia. Este é o nome de família da mãe de Jan Fabre. Mãe é um lugar de criação, criatividade, fonte e expansão. É corpo, parto, procura. É, traduzida à letra, uma palavra antiga que significa “fica fiel”. Jan Fabre explica o significado da palavra como se explicasse uma circunstância banal e ao mesmo tempo o começo do seu mundo – e explica, na verdade, o começo do seu mundo. Está sentado numas escadas onde não chega o barulho que não permite ouvir mais nada. Há uma festa de centenas de pessoas a acontecer ao lado, a sua festa. Fica sentado uns minutos apenas, há tentativas de interrupção, e contudo há um discurso que flui com força de torrente. Por isso, apesar de serem apenas uns minutos, estes são contundentes e parecem muitos mais. Seriam umas dez da noite.

Bob Wilson, homem elegante, cabelo arrumado linha a linha, começou por ficar quieto, em silêncio. Uns segundos, talvez um minuto, seguramente um minuto, ou mesmo dois. Enquanto isso não era o vazio, não era o tempo em que não acontece nada. Foi o tempo em que teve um olhar que fura a plateia, como se captasse cada uma das pessoas que a compõem e nenhuma em particular. Movia em pequenos gestos uma face opaca e que hipnotiza. Era o começo da festa, momento de discursos.

Fez um discurso composto de letras, palavras, interpretado por pessoas, animais, sons, um latido, um vagido, uma voz histérica, uma voz calma, uma performance que pertencia a diferentes corpos. Pareceu soletrar Jan Fabre. Seguramente usou as palavras “questão” e “porquê”. Foi ao nó do problema quando falou de Fabre como alguém que não dá respostas e do Troubleyn como uma companhia que integra ópera, teatro, dança, arquitectura, poesia, luz, música. Uma opus magna. Terminou desejando happy birthday.

Eram os 30 anos do Troubleyn, a companhia fundada pelo vulcão Jan Fabre. Tudo neste homem ligeiramente baixo, maciço, que mantém um ar de quem brigou na rua, é físico, e cérebro, e coração. Fabre é um fazedor, é um homo faber. Mas pode ser que a inversão mais acertada do enunciado de Descartes não seja: “penso logo faço”, mas “sou logo penso”. Primeiro ele é corpo, corpo em expansão. Depois é pensamento que quer encontrar-se com a dimensão carnal, besta, a sós.

Há um fervilhar subterrâneo que depois explode, ou seja, que se exprime artisticamente. A imagem do vulcão faz-lhe sentido, outras pessoas lhe falaram dela, mas não é bem isso, argumenta. “O meu trabalho é mais sobre a conexão entre o cérebro, o coração e as bolas.”

Acompanhou o percurso (cérebro, coração e bolas) com um leve movimento da mão. Não disse testículos nem sexo, não usou palavras subtis ou bem comportadas para falar do que aparece sob a forma de desejo. Jan Fabre usou a palavra “balls”, directo ao assunto. Recorreu, também na linguagem, a uma imagem poderosa. Não é diferente do que faz em palco ou no seu trabalho como artista visual onde as imagens são granadas de mão (ou mais explosivas do que isso!), sugerem uma rebentação. Traçou num mapa imaginário uma linha recta, fácil de reproduzir, que se impõe. O emaranhado, a complexidade de linhas, a composição versátil, tudo o que vem a seguir deriva deste núcleo.

Detenhamo-nos por instantes na palavra versátil, um dos atributos mais recorrentes de Jan Fabre. O outro talvez seja aglutinador. Façamos um movimento de câmara que alcança a plateia e onde estão os portugueses Julião Sarmento e Jorge Molder, o galerista de Julião em Paris, o poderoso Daniel Templon, o artista flamengo Michaël Borremans, Tino Sehgal que fará uma performance daí a pouco, a comunidade artística, comunidades artísticas, pessoas das artes plásticas, da dança, do teatro, do cinema, os que escrevem, os que subvertem, os que transgridem, pensadores, autores, as obras de Marina Abramovic, Chantal Akerman, Khris Martin, Luc Tuymans (já as vemos com outra lente, daqui a pouco), a instalação sonora de Bob Wilson que sai do chão, de uma boca-coluna, logo à entrada do edifício (Bob Wilson, de momento, continua no palco). Era fim de tarde de sábado e um certo mundo convergia naquele lugar.

O Troubleyn é um antigo teatro convertido em laboratório de criação, sede de uma companhia que faz qualquer coisa que não se pode confinar mas que está entre a dança, o teatro e a performance. É uma espécie de museu que acolhe intervenções artísticas de um grupo muito, muito heterogéneo de pessoas. As obras estão integradas no corpo do edifício. Por exemplo, Julião Sarmento fez um fresco moderno, desenhando directamente na parede. Marina Abramovic desenhou com sangue de porco (o líquido mais parecido com sangue humano) uma receita na parede da cozinha (da receita e do modo de preparação constam palavras como “faca afiada”, “dor”, “ataque”, “13 mil gramas de puro ciúme”).

É menos, então, uma obra de arte alocada no Troubleyn, é, quase sempre, o corpo do artista que se integra no corpo do laboratório. É uma obra pensada para esta fusão, feita para dialogar com o edifício, a companhia, as suas premissas essenciais. Mais um exemplo: Jorge Molder fotografou o espaço, ficou impressionado com as facas de cozinha dispostas na parede-instalação de Marina Abramovic, fixou-se numa janela exígua por onde entra luz, retratou-se a trabalhar com uma e com outra. O tríptico, em zinco, está pregado na parede. De certa maneira, a sua retirada implicaria a destruição da peça.

No começo, era uma sala de espectáculos que ardeu em 1974, situada num bairro problemático de Antuérpia. O bairro de Jan Fabre, aquele em que cresceu. A cidade celebrou um contrato com o artista em 1998, cedendo-lho por 30 anos. O compromisso de Fabre é o de que aquele seja “um motor” para a integração e recuperação social de De Seefhoek. O arquitecto belga Jan Dekeyser fez o projecto para 2500 metros quadrados de área útil, deixou à vista as cicatrizes do edifício, o incêndio, a degradação, o interior. Como um corpo onde são detectáveis as marcas do tempo. Depois de anos de obras e trabalhos, estão instalados naquele lugar desde 2007.

“Estão”, este plural é composto por Fabre e a comunidade com quem trabalha há anos. “Claro que somos uma família”, diz Fabre, nesses instantes nas escadas. “Trabalho com algumas pessoas há 20 anos, 30 anos. Trabalhámos um teatros pequenos, trabalhamos nos maiores museus do mundo. Para fazer parte [deste grupo] é preciso ter necessidade e paixão. Todas as pessoas que trabalham comigo têm uma necessidade profunda de fazer coisas. Eles acreditam na beleza, acreditam na paixão da vida.”

Algumas destas pessoas são distinguidas nessa noite. As pessoas que conhecem o chão que ele pisa, que montaram o chão e ergueram a casa com ele. Estão algures entre um grupo de mães adoráveis, guarda-costas mafiosos, assistentes que fazem piruetas como se a graciosidade fosse fácil, seguidores que o celebram com uma nota hagiográfica: Jan Fabre é haute couture, não é prêt-a-porter, a Barbara que tem um magnífico chapéu Margiela, pessoas engajadas, pessoas profundamente comprometidas que garantem que trabalhar com Jan é uma aventura existencial.

Essa primeira muralha de defesa e construção é constituída por seis mulheres e dois homens. São eles que sobem ao palco por altura dos discursos. É a eles, um a um, que Jan Fabre abraça e entrega rosas vermelhas. Talvez trinta, uma por cada ano de trabalho. Um ramo volumoso.

Além destes, há Cédric Charron, para citar apenas um bailarino que trabalha há 15 anos com o agente-provocador-mor. Aquando da sua passagem por Braga, o ano passado, para a apresentação da peça Attends, attends, attends... (pour mon père), Charron apontou-o, em entrevista a Inês Nadais, como o seu pai espiritual. “Faz duas vezes sete anos que trabalho com o guia das sombras. É um habitante do céu que guia com precisão o jogo dos animais inteligentes e dos heróis trágicos já desaparecidos. Também é o meu coreógrafo e o meu encenador no país da magia teatral [...].”

Homo corpus Fabre nasceu em Antuérpia em 1958. A linguagem do corpo, o que quer que isso seja, essa procura, essa expressão, está no centro do seu trabalho como artista visual, no palco, como autor. Estas três dimensões são uma catalogação possível, que ele usa, aliás, para se referir a si próprio.

O Fabre artista é o mesmo que o Fabre coreógrafo? Sim e não. Há quem goste do Fabre em palco, que trabalha o paroxismo do corpo, a violência, um cenário post-mortem do qual sobrevém uma fome de vida que não se pode saciar; e não goste do Fabre artista, das caveiras, dos cérebros com um punhal espetado, ou um saca-rolhas, do grotesco da sua Pietà.

O Fabre que faz uma performance com Marina Abramovic (Virgin /Warrior, Palais Tokyo, 2004), transformados em guerreiros que se amparam e magoam, é o mesmo Fabre que tem o escaravelho como fixação?, que trabalha a ideia de armadura, de barreira em relação ao exterior?

É inegável que o mundo de onde provêm é o mesmo: a cabeça delirante, excessiva, em erupção de Jan Fabre. As obsessões com a morte, os bichos, a condição do humano, a finitude do corpo, a sua vulnerabilidade, o encontro misterioso com a beleza são as mesmas. As suas expressões, as figuras simbólicas que o declinam, as metamorfoses que assumem, divergem.

Quando Julião Sarmento conheceu Jan Fabre, a sua importância nas artes performativas estava já consolidada. Também nas artes plásticas. Os dois conheceram-se através do amigo comum Jorge Molder, faz anos, em Lisboa. Foi num reencontro em Paris que Fabre convidou Sarmento a integrar o grupo de artistas que intervém no Troubleyn. “Quando cheguei, havia já várias obras, mas disseram-me: faz onde quiseres, desde que o espaço não esteja ocupado, é o que quiseres e onde quiseres.”

 

São duas pinturas (da série de pinturas brancas) que consolidam a ideia de dualidade e que ocupam lugares simétricos no teatro. Estão numas escadas de acesso, de um lado, de outro, o palco de permeio. “Subi as escadas e gostei daquele lugar. Porque está escondido. Tem muito a ver comigo e com o meu trabalho: é um sítio que é preciso procurar. E mesmo quando o procuramos, não o vemos – tal como o meu trabalho – de uma vez. Vemos um bocado, depois temos de subir as escadas para ver o outro bocado. Começa por existir uma visão parcial das coisas.”

Também o título das obras joga com a ideia de espelho: Troubleyn in Trouble/ Trouble in Troubleyn. Nos painéis estão duas mulheres sem rosto, vestido preto pelo joelho, que se debatem com um fio teso que lhes enreda as pernas e os braços ou que controlam esse fio. Feita com acrílico, gesso acrílico e grafite, a peça constitui algo próximo de um fresco. Nem o próprio artista sabe bem como classificar a técnica: “Não sei como se chama, não sei se há um nome correcto para isto. Foi desenhado na parede, a parede levou uma preparação de gesso, outros materiais. É claro que tudo é possível, sabemos que tiram frescos romanos dos lugares de origem e os põem em museus... mas não é fácil. Quis fazer um corpo dentro de um corpo, quis que a peça ficasse entranhada no edifício. A obra foi pensada em Lisboa, pré-desenhada em Lisboa e decalcada aqui [Antuérpia], concretizada aqui. Estive 11 dias a trabalhar. Estava um tempo óptimo.”

Em 2014, Jan Fabre estava a fazer o casting para Mount Olympus, uma peça que demora 24 horas e que continua em digressão mundial. Nesses 11 dias em que foi da casa, Julião Sarmento ficou impressionado com “o espírito de corpo, como se diz na tropa, desta malta. É, de facto, um grande organismo, uno. A cabeça é o Fabre, e o resto é um corpo que se agrega a essa cabeça. Trabalham non stop, são de uma dedicação canina ao projecto. Fabre parece desvairado, mas as coisas são pensadas ao milímetro. As peças têm um ar histriónico, barroco, excessivo, por vezes demasiado excessivo. Mas conhecendo o Fabre e o seu trabalho, aquilo faz todo o sentido”.

Sem recorrer a esta imagem, Julião Sarmento descreve uma corda retesada, que ameaça partir, que vive – e bem, e indispensavelmente – na ameaça, na vitalidade que daí advém. Uma corda-organismo que vive da paixão e desespero com que é manuseada. Como se o fim do mundo estivesse sempre para acontecer.

Sarmento e Molder são os únicos portugueses que integram o grupo de artistas que intervêm no Troubleyn. Mais de 50, até ao momento. Periodicamente, é feita uma inauguração de um grupo de peças. O tríptico de Jorge Molder faz parte do primeiro grupo de peças, os frescos-painéis de Sarmento do segundo grupo.  

A ideia é que o edifício acolha e se altere por acção destas peças, de outras peças, que tenha uma identidade mutante, que integre a heterogeneidade. “Essa mistura é muito interessante”, diz Sarmento. “Mentiria se dissesse que gosto de todos. Há intervenções de artistas super-conhecidos, de que gosto muito (o Borremans, a instalação fabulosa da Marina Abramovic); como há intervenções de artistas de quem nunca ouvi falar (estou a lembrar-me daquela caixa de ar, peça espectacular) e que são muito boas também. Há de tudo.”

A caixa de ar é um volume transparente contra a parede de tijolo, num corredor. Uma rolha de cortiça tapa um orifício. Não se sente o cheiro, mas a caixa guardou o suor dos elementos da companhia. Ou a ideia do suor, e é hoje uma combinação alquimia imaginária de ar e suor.

A peça de Peter De Cupere, que trabalha os fluídos do corpo, e se chama, justamente, Sweat, é só uma das peças que têm como matéria qualquer coisa que não se fixa, mas que é vital, e que vem de dentro do trabalho de Jan Fabre. As campânulas de Kris Martin, suspensas no tecto, sempre na iminência de se despregarem e caírem (ou temos receio de que isso aconteça), vivem da ideia das lágrimas que aí poderiam estar contidas, das nossas lágrimas, das lágrimas dos santos habitualmente protegidos por uma campânula de vidro.

Julião gosta especialmente da pintura que Luc Tuymans fez no tecto de uma das salas. São manchas de sangue a ocupar uma superfície imensa, sugerem um cenário macabro no andar de cima. A incursão de Tuymans num território inimigo (permitam-me o termo excessivo para falar de uma relação diplomática entre dois artistas de universos incomensuráveis) abre espaço para questionar como é possível que num território exíguo coexistam artistas tão influentes no mundo das artes plásticas e não só. Julião Sarmento diz, como se fosse uma evidência!: “Estamos na Flandres! Entre Antuérpia e Ghent estão o Fabre, o Tuymans, o Borremans, [os coreógrafos] Anne Teresa De Keersmaeker e Wim Vandekeybus, [os criadores de moda] Dries van Noten, Ann Demeulemeester, o director criativo da Dior, Raf Simons, era daqui a Chantal Akerman... A quantidade de génios criadores que saem da Flandres”.

Ao mesmo tempo, passear por Antuérpia é passear por corredores arrumados, casas que associamos aos Países Baixos, topo recortado em pirâmide, um mistério por desvelar. As pessoas têm caras iguais às da pintura flamenga. Nada grita o dinheiro dos diamantes (Antuérpia é um dos mais importantes centros de lapidação de diamantes do mundo). As montras das lojas da estação têm brilhantes que parecem de fancaria (por serem tão brilhantes). Vemos judeus ortodoxos num domingo de manhã, as mulheres por vezes usam perucas para não mostrar um fio de cabelo. Vemos árabes do outro lado da rua. E agora vemos militares fortemente armados a patrulhar as ruas, os pontos de partida e chegada.

Não vemos o subterrâneo em convulsão. Excepto quando ele já se manifesta na sua forma final.

Jorge Molder conheceu Jan Fabre nos anos 80. Não tem uma imagem clara desse encontro, sabe que teve como intermediária Madalena Perdigão. “Calculo que tenha sido por altura da peça The Power of Theatrical Madness [1984], apresentada em Lisboa. Era um trabalho visualmente muito poderoso. Continuo a achar que enquanto coreógrafo, produtor de peças de dança, o Fabre é visualmente muito poderoso. A dança tem nele uma força extraordinária. Mas se fosse preciso encontrar uma palavra para ele... A vida do Fabre é uma vida de misturas. Não é possível separar o homem da dança do homem que tem aquele universo visual. É um artista que se desdobra em muitas aplicações (para usar um termo actual [riso]). Consegue fazer uma teatralização do que é visual. Acho que tem um sonho de totalidade, e isso esteve muito presente numa encenação que fez em 2004 do Tannhäuser do Wagner, da ópera como síntese de actuações possíveis.”

 

A primeira vez em que coincidiram numa exposição foi em 1991. Era uma exposição que tinha um carácter simbólico porque coincidia com a independência da Eslovénia, explica Molder. Mais tarde, Fabre convidou o artista português para fazer o número de lançamento da revista Janus. Depois disso ganhou corpo a participação de Molder num projecto de que haviam falado anos antes, Le Temps Emprunté. “O Tempo Emprestado é o tempo que os amigos lhe emprestaram para fotografar peças de dança. É uma sequência que começa com o [Robert] Mapplethorp (que morreu no final dos anos 80, [em 1989]), e que foi fazendo pacientemente, ao longo do tempo. Penso que a série terminou em 2004 ou 2005, quando fez uma exposição com essa série vasta de materiais.”

A imagem de capa do livro que reúne os contributos dos amigos, o tempo que emprestaram, é uma fotografia de Molder. É uma cara de mulher-diabo, com língua pontiaguda, a bailarina Lisbeth Gruwez.

A relação de amizade antiga fez que Molder acompanhasse a evolução do edifício. “Está completamente diferente. Era uma ruína. A presença do incêndio era muito evidente. No mesmo espírito do Temps Emprunté, pediu aos amigos, a artistas que admira que fizessem uma obra que fosse indissociável do edifício. Neste momento, o Troubleyn constitui uma significativa colecção de arte contemporânea.”

Os seus zincos, suporte habitual na sua prática, estão colocados num quase abismo, numa parede onde o espectador não chega, em relação à qual não há proximidade. A colaboração entre os dois tem um novo capítulo anunciado: Molder vai fazer as fotografias do backstage da peça Mount Olympus. “Vou fotografar a parte de lá da representação.”

Voltemos aquela noite, às escadas e ao tempo inaugural que é o da infância, aquele em que o mundo se apresenta como uma caixa de conteúdo por descobrir. Foi pelos cinco anos, mas pode ter sido pelos dez. O padrinho era carteiro e distribuía o correio por aquele mesmo bairro. Ele quis ser esse que chega e traz a novidade, o distúrbio, a recompensa, o cheque, a carta, a liberdade, a soberania. “De certa maneira, é isso que faço, quando levo o meu trabalho a todos os cantos do mundo. Também quis ser especialista em química, cientista. Tive um pequeno laboratório, na cave. E explodi tudo! Tornei-me nisto mesmo: num experimentador.”

É claro que é uma formulação algo poética e pueril para descrever o que Jan Fabre faz e a sua importância no mundo da arte. “O único artista vivo a ter uma exposição solo no Louvre” (2008), frase-chavão que se encontra em todas as notas biográficas, diz muito sobre o seu estatuto. Ele já não é aquele que queimava dinheiro e escrevia Money, Art ou Honey com as cinzas do dinheiro emprestado pela audiência (performance de 1980). Mas, sim, Fabre continua a ser, essencialmente, um experimentador, um excessivo, um disruptivo. E pode ser que 30 anos depois, isto seja só o começo. “Eu sou um embrião!, estou apenas a começar. Sabe, é preciso uma vida para nos tornarmos um jovem artista.” Jovem?, rebelde, livre?, que corre riscos? “O meu trabalho é mostrado nos melhores museus do mundo. Sou bastante livre de fazer o que quero. Mas a minha ambição é interior. E agora, sinto-me mais livre do que nunca.”

Pode ser que um dia, ele faça tudo ir pelos ares – depois de todos os espectáculos e obras em que tudo vai pelos ares. Um ir pelos ares mais absoluto, verdadeiramente inaugural. Imagino que nessa peça se fale, apenas, a língua materna.

 STEPHAN VANFLETEREN

 

Publicado originalmente no Público em Março de 2016