Maria do Carmo Fonseca
Maria do Carmo Fonseca é cientista. Professora catedrática e directora do Instituto de Biologia Molecular. Prémio Pessoa em 2010, Prémio Gulbenkian de Ciência em 2007 (recebeu muitos outros prémios e distinções). É aquela que sacia a curiosidade como quem mata a fome, ou seja, vorazmente. A que não lê romances mas usa termos definitivos para falar do seu amor pelo trabalho e pela ciência. A que descreve células como quem retrata pessoas. Tem 55 anos e uma voz de menina curiosa.
Demoramos algum tempo a compreender alguma coisa de Maria do Carmo Fonseca. Começa por parecer árida, de tão focada no seu objecto de investigação. (Estuda desde sempre o genoma em acção.) Depois percebemos a resposta singular, inesperada, e somos invadidos pelo assombro, por certa energia febril que a toma e que contamina os que com ela trabalham, os que a ouvem falar de ciência.
Tem uma vontade luminosa, além de férrea. Está a trabalhar com uma pessoa à secretária (nenhum minuto se perde) quando chegamos. É um gabinete pequeno e modesto, com um poster onde se vê a sequenciação do genoma humano, descoberta em 2000, e emoldurado, com discrição, o prémio Pessoa que lhe foi atribuído em 2010. É, mais do que tudo, um gabinete de quem trabalha e não está armada em ser a catedrática, a reputada, a premiada, a et cetera e tal. Nem especialmente alinhado, nem especialmente desalinhado. Anódino.
Houve um tempo em que se interessou pela Geologia. Seria poético dizer que se fosse pedra seria uma rosa do deserto. Sólida e delicada. Mas poupemo-nos ao efeito romanesco. O que lhe interessa é a formação, o recorte, a sedimentação, das pedras, das plantas, das pessoas. Essa é a relação mais evidente, mas não única, com a beleza. Parece árida até se descobrir a intensidade na relação com a vida. A intensidade e a felicidade. “Acha que há pessoas muito boas no que fazem que estão infelizes?” Nessa altura arde como fogo e isso vê-se.
A imagem de temos de si é a da cientista premiada, circunspecta, determinada. Depois, a sua voz é a de uma menina curiosa.
[gargalhada] Não consigo avaliar a minha voz, não é?
Esta é uma maneira de perguntar pela menina curiosa.
Se me está a puxar para a minha meninice, através da voz, lembro-me de mim a descobrir o mundo. Adorava observar. Qualquer coisa que fosse novo, deixava-me encantada, parada. A olhar o que era aquilo, como era aquilo. Fenómenos da natureza, animais, plantas, pessoas. E com prazer, com gosto. Observava as formigas, o modo como se deslocavam, os caracóis, rãs.
Vivia em Lisboa?, isso era na cidade?
Era na [Costa da] Caparica. Vivia numa vivenda com um campo. Gostava de ajudar a cultivar, a regar, ver as plantas crescer. Fui sempre muito observadora da natureza e isso sempre me deu uma enorme recompensa emocional.
A escola, a escola primária: um horror! Obrigavam-me a decorar e não achava piada nenhuma aquilo. A grande mudança, que me fez passar de ser uma aluna média a muito boa aluna, aconteceu quando percebi que a escola me ajudava a descobrir o mundo. Passei a estudar porque me dava um enorme gosto perceber as coisas. E passei do observar por fora ao observar por dentro.
No fim do secundário tinha um grande dilema: eu gostava de tudo o que era natureza e actividades que me punham em contacto com a natureza. Montanhismo. E adorava Geologia, os movimentos da crosta terrestre, a formação dos continentes, montanhas, oceanos...
(Parêntesis: tem um pedrário?, uma pedra preferida?
Não, não! Gosto de ver, mas não de colectar. O melhor sítio para as coisas estarem é onde elas pertencem. Isto passou-se com as rochas, com as plantas (as formas das pétalas...) e com os fósseis. Passei um período nas arribas da Costa da Caparica à procura de fósseis. Andava dependurada... Tive um acidente grave, e tal.)
E depois Medicina.
Pensei, pensei, pensei. Achei que tudo o que estava relacionado com a vida era mais fascinante do que o resto. A ida para o curso de Medicina foi fruto de conversas com o meu pai.
Médico?
Engenheiro.
O que percebo aí é uma tentativa de decifração. Começa pela observação do mundo como ele é, mas nunca se fica pelo encanto que isso lhe provoca. Procura sempre compreender.
Exactamente. Em Medicina fui confrontada com um professor, que veio a ser o meu mentor em toda a minha carreira científica, David Ferreira. Dava aulas mostrando como é que as coisas tinham sido descobertas. Eu bebia aquelas aulas, literalmente! Pensava: “Também quero!”.
Também quero ter o prazer da descoberta?
Sim. O professor convidou-me a ir estagiar no laboratório dele. Pude sentar-me frente a um microscópio electrónico. Quanto mais longe eu via, mas fascinada ficava. Mas nunca me contentava.
Quando concluiu o curso já sabia que não queria ser médica mas sim investigadora?
Já sabia. Concluí o curso com a melhor nota. Ou seja, podia ter escolhido qualquer coisa. A minha escolha foi deixar a Medicina.
Porque é que foi a melhor?
Porque gosto de aprender. Quando faço uma coisa, tenho de a fazer bem. Acho que isso está em mim. Se ao meu lado houver outras pessoas que fazem melhor, é porque é possível fazer melhor.
Chama-se a isso competição.
É. E é óptimo! [riso] O que me faz ser cada dia melhor é ter os olhos nos que fazem melhor do que eu. Esses são as minhas referências.
Não é daqueles que dizem: “Eu compito comigo própria”...
Não. Compito com os que são melhores do que eu.
Tem sempre a confiança de achar que vai ser, pelo menos, tão boa quanto eles?
Não. De vez em quando levo grandes pauladas. Coisas que não são aceites. Artigos. Projectos. Dói num dia. No dia seguinte já se está a pensar onde é que se vai melhorar. É isso que me mantém viva. Se me tirarem essa minha ambição de ser melhor, acho que morro.
Onde radica essa ambição?
Está em mim. Definitivamente não me foi imposta.
Não é um tema fácil em Portugal.
Não, porque as pessoas acham que é uma coisa má, ser ambiciosa. Acham que é mau tentar ser o melhor. Penso que é uma das origens de a nossa sociedade ser, durante muito tempo, cinzenta. Ninguém queria sobressair.
É uma herança do salazarismo?
Não sei o suficiente sobre isso. Não sei se não vem de trás.
Imaginemos que há uma célula chamada Ambição. E outra chamada Insegurança. A boa convivência entre as duas é fundamental.
É. O que aprendemos da vida é que somos muito mais do que a junção das nossas peças. E as nossas peças têm por vezes comportamentos diametralmente opostos. É por isso que acho que as sociedades, as equipas, as instituições, os países têm que ter células ambiciosas, células inseguras, células que fazem tudo certinho, células criativas que detestam fazer tudo certinho. Essa diversidade é fundamental.
Como é que se fez segura, confiante?
Não diria que sou uma pessoa muito confiante. Até porque tenho um fenótipo muito tímido. Quando estou em sociedade, gosto de passar despercebida.
Onde é que se fez? Nos livros, na relação com as pessoas? Não pode ter sido só na observação do mundo.
Acho que me fiz aproveitando as oportunidades. A construção [de quem sou] baseou-se muito no ir buscar conhecimento. Sou muito factual. Só gosto de me pronunciar quando estou ancorada. Quando me sinto segura? Quando tenho informação de fontes que considero fidedignas, e que estudei, que me permitem construir a minha opinião.
Percebo de modo acentuado o seu lado factual. E o fantasista, que todos temos, também?
Acho que eu não tenho!
As árvores que se vêem atrás de si, pela janela: têm uma raiz, um tronco, uma copa mais ou menos frondosa e sonhadora, galhos frágeis...
Ah, sei muito bem onde estão os meus sonhos. Quero que a minha copa seja ainda maior. Mas não é fantasia.
Fez uma cara de grande estranheza quando falei em fantasia. Como se fosse uma palavra que não lhe pertence.
É isso.
Outra palavra que talvez não faça parte de si: romance. Lê romances?
[muitos risos] Não.
Procura sempre uma nitidez na observação e na análise? Não quer imagens desfocadas?
Não, não quero.
“Pergunta”, ao contrário destas outras palavras, é com certeza uma palavra essencial para si. Vive de perguntar? A maneira como se faz uma pergunta é fundamental para se chegar onde se quer chegar.
É verdade que a pergunta é fundamental. Também é verdade que há um componente de imprevisibilidade na ciência que me atrai muito. É claro que tenho de mostrar aos outros que sei fazer perguntas. Mas se formos ver a história das grandes descobertas (basta ouvir o que contam as pessoas que tiveram o prémio Nobel), [os cientistas] não estavam à procura da resposta àquela pergunta. Ou seja, se vamos descobrir uma coisa completamente nova, não a podíamos ter perguntado. Não fazíamos ideia de que aquilo existia assim.
De onde vem isso que não sabíamos que era assim? Nem sabíamos como chegar lá.
Ciência não é inspiração, nem fantasia. É preciso um trabalho muito metódico, um grande rigor, lidar com a imprevisibilidade. Sobretudo é preciso saber agarrar uma coisa inesperada. Onde está verdadeiramente a descoberta é na diferença. É quando dizemos: “Não estava à espera disto. O que é que isto me está a dizer?”.
É estacar no que constitui um enigma?
Exactamente.
Então, o que é preciso é ter uma sólida formação para saber compreender que aquilo são sinais de um enigma.
Exactamente.
O gravurista Bartolomeu Cid dos Santos (filho e neto de um médico) disse num documentário (realizado por Jorge Silva Melo): “A técnica, é preciso dominá-la, para depois a esquecer”. Na ciência, não se pode esquecer a técnica.
Não, mas é preciso pensar fora dos cânones. Quando estamos dentro do que é expectável, não vamos descobrir nada realmente revolucionário.
Quando começou a trabalhar, quais eram as suas grandes perguntas?
O meu fio condutor é a célula, o como os genes funcionam. Fui sempre mais fascinada pelo poder observar coisas cada vez mais finas do que propriamente pelas perguntas. Aquele deslumbramento que tive quando olhei pela primeira vez por um microscópio electrónico, voltei a tê-lo quando olhei pela primeira vez por um microscópio que me permitia ver as células vivas. O deslumbramento era ver cada vez mais longe, ver o que antes não era possível ver. É uma área em que todos os anos, senão em todos os semestres, há instrumentos que revolucionam a nossa maneira de olhar.
E que tornam obsoletos os que há um ano tinham sido uma grande descoberta?
Sim! Ando sempre atrás destes instrumentos novos, de poder olhar com eles.
Novos óculos para poder ler melhor e melhor e melhor – resumido numa linha. Está contida nesta linha a importância do investimento continuado nestes materiais?
Claro. Mas repare, não tenho que ter os microscópios aqui, no IMM ou em Portugal. Tenho ido aos centros que têm os novos microscópios. É impensável gastar milhões a comprar essas tecnologias. Por isso é que trabalhamos em rede. Passo muito tempo fora. Uma das razões é justamente ter acesso a novos instrumentos; a outra é falar com pares. A troca de ideias é crucial para se avançar. Senão ganham-se vícios, pensa-se da mesma maneira.
O que é que na vida cá fora, e não na ciência, a faz resplandecer assim?
Nada! [gargalhada] A sério. Que é que eu vou fazer?
Sempre foi assim?
Fui. Se não me deixassem ser cientista, teria sido uma pessoa extremamente frustrada.
Nunca teve uma grande depressão?
Não. Nem grande nem pequena.
Depressão: mais uma palavra daquelas que não fazem parte do seu glossário. O que é que a deita abaixo?
Penso que vou entrar em depressão quando me obrigarem a reformar.
Ainda faltam uns anos...
Faltam. Mas ando muito preocupada. Se me tiram este estímulo... Preciso de estar junto de gente mais nova do que eu e de gente que me faça challenges. Se não tiver um challenge, não tenho prazer nenhum.
O desafio está muito ligado ao pôr a pessoa em causa. Quem é que a foi pondo em causa? Os seus pais?
Em relação aos meus pais... eu tinha que ser capaz de fazer isto sozinha. Fosse o que fosse. A minha vida era minha e tinha que me afirmar sem a protecção dos meus pais. (Faz-me muita confusão ver alunos de Medicina que vêm, no primeiro dia de aulas, com os pais, que os ajudam a matricular-se! [riso]) Preciso muito de ser eu.
Porque é que precisou de se emancipar, contar consigo apenas?
Eu precisava de mostrar que era capaz. Sozinha. Sem rede. Os meus pais queriam proteger-me, como todos os pais. Ainda por cima, filha única. A protecção sempre me deixou muito inconfortável.
Não somos células únicas. Uma pessoa não existe sozinha.
As grandes referências que tenho, são todas profissionais. Houve professores que me marcaram muito, por causa desta procura de mais, mais, mais. Cada vez que assistia a uma conferência muito boa, pensava: “Adorava ser capaz de fazer uma conferência e deixar na audiência o mesmo efeito que eu estou a sentir”.
Isto foram marcos, o onde eu queria chegar. E logo depois: “Será que alguma vez vou ser capaz de lá chegar?, de marcar, de influenciar?”.
Imaginando o seu futuro, nunca imaginou que ia ter uma vida certinha, da vivenda com jardim, de casar e ter filhos?
Sabe que não faço planos para o amanhã? As rotinas, o plano..., é sufocante. Preciso de estar com a mente completamente aberta. Porque eu sei!, eu sei que vai acontecer uma oportunidade, e tenho que estar pronta para a agarrar.
Na geração de Maria de Sousa, que é 20 anos mais velha, exigia-se a um cientista, sobretudo a uma cientista mulher, uma dedicação e uma disponibilidade totais. Não por acaso, Maria de Sousa, bem como outras mulheres portuguesas que se distinguiram nas suas áreas, e que têm agora 70, 80 anos, nunca casaram nem tiveram filhos. Como foi no seu caso? Deduzo que não tenha filhos...
Não. Não tenho por opção. Não faziam parte do meu [projecto de vida]. No meu modo de viver não havia espaço para filhos. Mas há colegas, da minha geração, que têm filhos e família.
Não teve de sacrificar nada, em prol da carreira? Não sacrificou uma vida familiar?
Não fiz sacrifícios nenhuns, não. Segui o meu instinto, o meu puro instinto. Aliás, se tivesse alguma vez de fazer um sacrifício ia ser muito frustrada. Tive o privilégio de poder fazer o que quis com a minha vida. Inclusive, parti-me toda...
Já lhe peço que conte essa aventura. Gostava ainda de a ouvir sobre o sacrifício. Não é uma questão menor, para muitas mulheres com carreiras exigentes e competitivas, a conciliação da vida pessoal com a profissional.
Nunca ouvi nenhuma mulher cientista dizer que tenha sacrificado a vida pessoal para a carreira. Há pessoas que arranjam a sua maneira de conciliar, outras optam por uma ou por outra, mas é a sua opção. Não se podem fazer sacrifícios. A pessoa tem que estar feliz no que faz, não é?
Essa é uma palavra inesperada no seu discurso, mas boa. A pessoa tem de estar feliz?
Ah, sim, sim. Senão a pessoa não é boa. Se a pessoa não está feliz, o cérebro não está a 100%.
Explique lá isso. Se a pessoa está infeliz, não produz da mesma maneira?
De certeza. Acha que há pessoas muito boas [no que fazem] que estão infelizes? Quem?
Como é que se porta uma célula deprimida?
É muito triste. Não cresce, não faz nada. Está a um cantinho. O nosso cérebro está em estados completamente diferentes se estamos felizes, deprimidos, ansiosos... Não conseguimos dissecar em todo o detalhe, mas já conseguimos fotografar cada um destes estados de espírito.
Freud, a psiquiatria, nunca lhe interessou? Era uma outra maneira de ler esses estados de espírito.
Sim...
Um sim renitente.
Li Freud, como li Marx, como li anarquistas para perceber o mundo à minha volta. Li-os quando estava a crescer. Depois fiz as minhas escolhas. Estou focada. Pode achar que é mau, mas é como é.
Tenho vontade de lhe fazer uma pergunta pessoal. Compreendo se não quiser responder. Alguma vez se apaixonou de caixão à cova? Uma paixão que muda as placas tectónicas de lugar.
Obviamente que me apaixonei. Apaixonei-me várias vezes. Nunca de caixão à cova. Vivo com um companheiro que é literalmente a minha cara metade. Não podíamos ser mais parecidos. Há o partilhar a vida com uma pessoa que gosta das mesmas coisas, cada um com as suas pancadas.
O terramoto da paixão significaria o desconserto total dessa organização, desse mundo.
Vai na linha do romance, das pessoas que largam tudo, que viram a vida ao contrário. Olho para isso [torce a cara] com estranheza.
Já aludiu a um grande acidente. Não é uma paixão, mas pode reposicionar-nos. O que é que aconteceu?
Espatifei-me. Estava a fazer escalada. Como tenho esta coisa de querer fazer mais e nunca estar contente com o que faço, comecei a fazer coisas cada vez mais arriscadas. Até que um dia tive um acidente. Foi grave. Deixou-me sequelas, com as quais tenho de lidar o resto da vida. Coxeio ligeiramente.
Eu tinha 20 e poucos anos, estava no quarto ou quinto ano da faculdade.
O que é que emocionalmente o acidente representou?
Não me deitou abaixo. Foi preciso lutar com muita força. Tive que fazer operações sobre operações. Um dos meus objectivos foi não perder nenhum ano da faculdade – e não perdi. O outro foi conseguir voltar a andar. A primeira coisa que os médicos me disseram foi que não sabiam se ir voltar a andar. Talvez [o acidente] tenha sido o meu grande teste de autodisciplina. Impus-me exercício, exercício, exercício.
Foi um processo longo. Mais de um ano. Depois de cada operação ortopédica, andava seis meses com gesso, canadianas. A ir à escola, a vir da escola.
Que prova. Já tinha que ter uma fibra de aço para conseguir resistir.
Foi. Ter 20 anos foi importante, pela capacidade que o corpo tem de se regenerar. Quando vejo, agora, penso: “Uau, foi mesmo duro”. Lembro-me que a minha mãe ficou muito chateada comigo. “Vês o que fizeste? E agora, não te vou dar apoio nenhum!” Claro que não foi verdade. Mas no primeiro dia nem sequer me quis ir ver ao hospital.
Houve risco de vida?
Houve. Primeiro foi a fase em que a pessoa tem de reagir. Depois foi a fase das dores. Finalmente, acabei em Santa Maria, onde me deram uma pré-anestesia. Lembro-me perfeitamente de um conforto e de uma paz que podia ser uma pré-morte. Depois acordei e começou a luta.
Como é uma célula que luta? Muito mexida?
Essencialmente é uma célula que não desiste. Não é necessariamente muito mexida. É uma célula que está a pensar nas coisas, a fazer planos.
Têm uma configuração muito diferente, de facto, quando as analisa? Como se fossem caras diferentes.
São, são bastante diferentes.
Falámos de doença e de morte. No seu trabalho, está sempre a tentar compreender a vida...
A doença e a morte fazem parte deste ciclo. A doença e a morte são o preço de existir vida. Claro que a morte nos toca de uma forma emocional, dependendo das pessoas ou entes que perdemos. O meu companheiro e eu somos fanáticos por cães, as nossas crianças, e já perdemos alguns dos nossos filhotes. [ligeira comoção] Sabemos que a morte existe, que é inevitável, mas este é um modo de lidar com a morte que não tem nada a ver com o trabalho.
Uma coisa é a morte abstracta que se analisa ao microscópio. Outra coisa é a morte que se sente.
São duas mortes. Lidamos com a morte de uma forma pragmática quando a estamos a estudar. Quando nos toca, é uma perda. Não é propriamente a morte, é a perda.
E a vida?, e o genoma? Falemos sobre as coisas em que anda a trabalhar.
Tenho tentado perceber como funcionam os genes. Nos últimos tempos ando fascinada com a imponderabilidade. (Já falámos ao de leve nisso, quando falámos de imprevisibilidade.) Começámos a perceber, ao usar estes microscópios que nos permitem ver os genes vivos, que a célula não está sempre a actuar, e que o acaso domina muito. Temos genes que estão acesos, acesos como se tivessem uma lâmpada, e que depois a lâmpada apaga-se por um período de tempo aleatório, e depois acende-se outra vez, depois apaga-se, depois acende-se. Sabemos cada vez mais sobre os genes, temos as associações que nos permitem dizer que quando uma pessoa tem esta variante genética tem mais predisposição para ter esta ou aquela doença. O que eu começo a pensar é que nunca vamos conseguir fazer este tipo de previsão.
Porquê?
Porque os genes falam todos uns com os outros. Os genes são cada vez mais multidões. Desde o ano 2000 até agora, descobrimos níveis e níveis e níveis de complexidade na forma como os genes interactuam. Acho – e é uma interpretação minha – que vai ser impossível fazer previsões. Ou seja, aquela ideia: “Mostre-me o seu genoma e eu digo-lhe o que lhe vai acontecer”, vai ser impossível. Excepto em determinadas situações patológicas, em casos raros. Na maioria dos casos, temos uma enorme diversidade dentro de nós, os nossos genes vão funcionando de uma maneira diferente, e de certeza que o nosso estado de alegria, de depressão, de ansiedade vai influenciar a maneira como os nossos genes funcionam. Somos um grande ser imprevisível.
Há não muitos anos, descobriu-se a sequenciação do genoma humano. Parecia que estávamos no caminho que nos leva ao centro do ser. Sucedeu a isso uma euforia. Mas o seu discurso é céptico. É um modo de dizer que aquilo foi um passo de gigante, mas que a seguir ficamos novamente no escuro?
É isso. Mas agora sabemos por que estamos no escuro. [pequena pausa] Não é propriamente estar no escuro. Nós acompanhamos as mudanças. Não conseguimos é prevê-las. Conseguimos olhar para uma pessoa doente a um nível cada vez mais fino. A ideia de que no futuro a medicina vai ser personalizada, cada doente vai ter a sua própria medicação: não tenho dúvida que vai acontecer. Vamos aproximar-nos mais da medicina tradicional chinesa onde o que interessa é a pessoa e não a doença. É uma grande diferença de abordagem.
A nossa medicina vai centrar-se mais na pessoa, então, porque vamos dissecá-la cada vez mais pormenorizadamente?
Sim. Vamos tirar um retrato completo às várias células doentes daquela pessoa. Vamos conhecer cada vez melhor a doença, as doenças. Vamos ter mais medicamentos, mais estratégias terapêuticas.
A relação com a doença tem mudado. Em relação ao cancro, por exemplo, ou a alguns tipos de cancro, a ideia de que esta doença era uma sentença de morte, acabou. Contudo, há um medo cada vez maior em relação a ele. O mesmo se pode dizer em relação a outras doenças, mesmo sabendo das muitas terapêuticas disponíveis.
Não lido profissionalmente com a doença. O que vejo (interpretação minha, não profissional) é que as pessoas estão cada vez mais informadas sobre a doença e sobre aquilo que provoca a doença. Mas têm, curiosamente, uma atitude irracional na prevenção da doença. Preferem tomar medicamente contra a hipertensão e o colesterol do que mudar hábitos de vida. Não entendo esta opção. Está provado que o estilo de vida têm um impacto muito maior na evolução do estado de saúde comparado com a medicação que possa ser tomada.
As pessoas ficam apanicadas, outro tipo de irracionalidade toma conta delas, quando sabem que estão doentes. Isto é, no fundo, e sempre, um medo da morte?
É. Por vezes penso: qual é a maneira mais eficaz de fazer passar esta mensagem?, que os medicamentos não são a solução para a prevenção das doenças.
Sobre a fuga de cérebros a que estamos a assistir: que comentário faz? Há centenas de jovens cientistas a emigrar.
Recuso-me terminantemente a aceitar a ideia da fuga de cérebros. A ciência é global. Qualquer pessoa que queira ser um cientista precisa de trabalhar fora. Cientistas e outros, qualquer pessoa que acaba o curso e não tem oportunidade de trabalhar cá, o melhor que tem a fazer é procurar um sítio onde possa desenvolver as suas capacidades. E depois, quando houver oportunidade, e se quiserem vir para cá, vão trazer ideias completamente diferentes. O melhor investimento que o país pode fazer para mudar-se é deixar que as pessoas circulem mais. Com os cientistas, acontece assim há muito tempo. Vinte anos antes de mim, a Maria de Sousa foi para o estrangeiro. E voltou, e o país usufruiu [da vantagem] de ter cientistas muito bem treinados, que ganharam esse treino fora. Se não tivessem estado fora, não teriam sido os bons cientistas que foram, não teriam vindo influenciar as camadas mais jovens. Precisamos que as pessoas circulem.
Uma coisa é sair para crescer. Outra coisa é não ter escolha.
O não ter escolha: são fases. Não vejo isso de uma forma muito pessimista. Umas vão voltar, outras não. E vão estar nas nossas universidades e centros de investigação pessoas que não são portuguesas.
Deve ser a única cientista, em Portugal, que não tem um discurso carregado em relação ao desinvestimento na ciência.
O desinvestimento na ciência está a ser feito em todos os países, proporcionalmente. Sempre que há uma crise económica... A ciência é financiada, essencialmente, pelos Estados. Quando os Estados estão em crise, há menos dinheiro para a ciência. Se olharmos para o passado, vamos ver estes ciclos. É chato estar a viver um momento em que o ciclo está em baixo, porque há menos lugares, é preciso lutar mais. Mas quando lutamos mais somos mais criativos. Não há grandes avanços quando está tudo muito confortável.
Teve alunos especialmente promissores que gostaria que trabalhassem aqui consigo e que foram obrigados a emigrar?
Os meus melhores alunos: sou eu que os empurro para fora. Os meus alunos aprendem isso comigo: não devem ficar.
Como é que é uma célula com saudades de casa?
Vem a casa!, quando houver oportunidade, ou cria a sua própria oportunidade. Cada vez mais o local de trabalho é flexível. A velha ideia de as pessoas trabalharem a cinco ou dez quilómetros do emprego, de fazerem o percurso sempre à mesma hora, é passado. Temos de estar prontos para mudar.
Publicado originalmente no Público em 2014