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Anabela Mota Ribeiro

Ruy Castro

05.06.16

«Eu fico espantado no meu caso. Como é que fui despertado para a leitura de uma maneira tão violenta e tão cedo se não tinha praticamente livros na casa dos meus pais. Tinha jornais e revistas aos montes, havia o hábito de leitura, mas não eram livros. Não tinha televisão também, graças a Deus. Mas tinha tango, bolero, valsa vienense, marcha militar, música americana, italiana, mexicana, discos instrumentais e vocais, música de todas as partes do mundo. E na casa de todas as pessoas que conhecia, era a mesma coisa».

Nesta casa, no bairro do Flamengo, ouvia-se também música brasileira. A melhor música brasileira. Foi imerso neste ambiente que Ruy Castro passou a infância.

Quem é Ruy Castro? A biografia que aparece na badana dos seus livros diz que nasceu em 48 e que é jornalista com vasta passagem pela imprensa carioca e paulistana. É também, e isso não consta na badana, um dos autores mais vendidos no Brasil.

O seu livro «Chega de Saudades», editado em 90, é responsável pelo «boom» da Bossa Nova no mundo inteiro. Uma bíblia prodigiosa, indispensável para aceder ao Rio dos anos 50. À geração, ao movimento, à música. Lê-se como se lêem os grandes romances.

A vida de Ruy Castro, os personagens pelos quais se interessa, são igualmente figuras de romance. Vive no Rio de Janeiro, namora há anos com a jornalista e escritora Heloísa Seixas (cada qual em seu apartamento...), e tem duas filhas.

Recebeu-me na sua casa pelo fim da tarde. Fiquei até de madrugada a ouvir as histórias e as músicas. Não saímos para jantar porque desabou uma chuva doida sobre o Leblon. Nos dias a seguir, penitenciou-se pela minha fome. Não tinha sequer bolachas em casa! Mas quem quer saber de bolachas quando pode ouvir João Gilberto com os Garotos da Lua?  

 

O Rio dos anos 50 e a música dos anos 50 são os seus polos preferenciais.  

- Eu diria que o mundo dos anos 50 foi a primeira coisa que me fascinou porque foi quando tive a percepção do mundo. Nasci em 1948. Já sabia ler por volta de 1952.

 

Com 4 anos? Aprendeu com quem?

- Sozinho. Aprendi sentado no colo da minha mãe, minha mãe lendo Nelson Rodrigues. Lendo «A Vida como Ela É», que era um conto diário que ele escrevia na «Última Hora». Daí a poucas semanas, sem me dar conta, consegui ler o que estava à minha frente. É uma abertura para o mundo tão importante, ou mais até, do que quando se nasce. Porque a partir do momento em que se tem acesso à palavra escrita, se domina a linguagem, passa a se fazer parte do mundo. Você está conectado. Então, me lembro perfeitamente da morte do Francisco Alves, o cantor mais popular do Brasil, que morreu no segundo semestre de 1952. O meu pai adorava, tinha discos e mais discos, que tocavam o dia todo.

 

Leu a notícia da morte dele?

- Li, li. A minha casa estava atolada de jornais. Meu pai assinava vários por dia. «O Correio da Manhã», «O Jornal», comprava o «Última Hora» por causa do Nelson Rodrigues, «A Tribuna da Imprensa» por causa do Carlos Lacerda, o político que ele gostava. A morte do Francisco Alves foi uma coisa que acompanhei muito na época, com 4 para 5 anos, a morte da Carmen Miranda..., mas isso foi em 55, eu já era macaco velho, tinha 7 anos. Tenho uma percepção do mundo muito antiga por isso. Me lembro quando o Elvis Presley apareceu, me lembro de ter lido sobre a morte do James Dean, me lembro de ter acompanhado os primeiros anos de sucesso da Marylin Monroe.

 

Os anos 50 foram a sua casa, disse-me.

- Tudo o que aconteceu nos anos 50, discos que foram lançados, músicas que se ouvia no rádio ou que se cantarolava nas ruas, nas marchinhas de carnaval, os sambas, certas músicas americanas, os filmes musicais da Metro, os produtos que se usavam, as marcas de pasta de dentes, sabonetes, o estilo de vestir, os penteados, o tipo de beleza da época, as gírias, tudo mais, é uma coisa que se impregnou muito em mim. Tudo o que se refere aos anos 50 é uma coisa em que tenho facilidade em me locomover: eu estava lá.

 

E foi jovem nos anos 60.

- Em 1968, que muitos consideram o maior ano do séc.XX, tinha 20 anos e vivia uma situação privilegiada: era repórter do «Correio da Manhã», que era o jornal mais importante do Brasil, morava no Solar da Fossa, uma espécie de república onde moravam pessoas que depois ficariam famosas, [como Gilberto Gil e Caetano Veloso], estudava Ciências Sociais na Faculdade Nacional de Filosofia, a mais quente em termos políticos, e fazia parte da geração Paissandu. O Paissandu era um cinema que existe até hoje, no bairro do Flamengo, onde só passava filme europeu, de arte, Nouvelle Vague. Era um ambiente muito instigante. Sinceramente não tenho a menor queixa do passado. O passado não me deve nada. Não fui um mero espectador. Muitas coisas que aconteceram, eu estava lá quando aconteceram.

 

Os livros, «Chega de Saudade – A história e as histórias da Bossa Nova», «Anjo Pornográfico – A vida de Nelson Rodrigues», «Estrela Solitária – Um brasileiro chamado Garrincha», «Ela é Carioca - Uma enciclopédia de Ipanema», têm em comum o facto de nos reportarem ao Rio dos anos 50 e 60, a esse universo que descreve.

- Dificilmente conseguiria escrever sob o ponto de vista de outra localidade. Fiz uma novela, «Bilac vê Estrelas», sobre um grande poeta brasileiro, passada no Rio de 1902. Sem sair do Rio, viajei ao passado e fui para uma outra parte da cidade. Tentei escrever como as pessoas escreviam naquela época, como falavam naquela época. De certa maneira, isso tem a ver com a música, com a musicalidade da fala.

 

Como era a voz da sua mãe a ler-lhe os contos do Nelson Rodrigues?

- Os contos d’ «A Vida como Ela É» são curtos, (devem ter três, quatro páginas) e é sempre a história de um adultério. É sempre uma mulher que traiu ou está traindo ou vai trair ou sofre porque quer trair mas não consegue. Em alguns casos é um homem, mas na maior parte é uma mulher. Tinha sempre um final ou altamente dramático, em que alguém morria baleado ou esfaqueado ou coisa parecida, ou um final altamente humorístico. A minha mãe lia rindo, achando graça. Foi isso que me atraiu: queria saber a que é que ela achava tanta graça. Eu ouvia aquelas histórias e muitas delas não entendia onde é que estava a piada.

 

Ainda não tinha o sabor do pecado...

- É, mas rapidamente entendi. Devia ser, aos cinco anos, a criança que mais entendia de adultério! O Nelson Rodrigues era adorado pelos psicanalistas do Rio porque descrevia as pulsões internas das pessoas _ a coisa do desejo, da morte, do Édipo. Os personagens dão a impressão que só pensam no sexo.

 

Qual era a formação do Nelson Rodrigues?

- Não tinha formação nenhuma, era um génio intuitivo. Os personagens eram da zona norte (pessoas da classe média-baixa, pequenos funcionários públicos), que vinham à zona sul prevaricar. O centro de tudo era isso: a culpa concentrada dentro daquelas pessoas que só pensam em sexo e não conseguem extravasar. E aí, tanto podem acontecer grandes tragédias como grandes comédias. Geralmente as duas coisas aconteciam na mesma história. Uma história por dia, durante mais de dez anos.

 

Nelson Rodrigues escreveu também peças de teatro, ainda hoje muito representadas.

- O universo era rigorosamente o mesmo: a culpa, o pecado, o tesão reprimido, a punição, o castigo. As pessoas achavam que o Nelson Rodrigues era um pornográfico, imoral. Iam às peças e saíam com a sensação de que tinham ouvido palavrões do primeiro ao último minuto. As peças não tinham um palavrão.

 

De onde provinha essa sensação?

- O Nelson inoculava o palavrão na cabeça do espectador. Quem dizia o palavrão era o espectador.

 

E porque é que na biografia que escreveu ele é anjo, «Anjo Pornográfico»?

- É o que ele era. Tinha uma nostalgia profunda da pureza. Queria que o ser humano fosse um puro, um santo. A maneira de fazer isso era arrancar de dentro daquele anjo perdido todas as putrefacções que ele tinha, e reprimia brutalmente, e que só se purificaria se botasse tudo para fora.

 

Os seus livros, se exceptuarmos os “pequenos” «O Melhor do Mau humor», «O Amor de Mau Humor», «O Poder de Mau Humor», são biografias. A de Nelson Rodrigues, a de Garrincha, a da geração da Bossa Nova («Chega de Saudade» e «A Onda que se Ergueu no Mar»), a do bairro de Ipanema («Ela é Carioca»). O que é tão estimulante para si quando se propõe fazer uma biografia? O que é que procura?

- No «Chega de Saudade» eu me propunha a contar uma história da Bossa Nova. Eu próprio queria saber como tinha sido a Bossa Nova. Não tinha até então nenhuma publicação que contasse essa história. Tinha livros de interpretação, análise musical, estrutural, algumas coisas meio clichés... Não quis escrever um livro para musicólogos nem para estudantes universitários. Quis contar a história das pessoas que fizeram a Bossa Nova. Para isso, reconstituí a época, entrosando tudo.

 

Qual foi o seu «modus operandi»?

- Eu ia conversar com os veteranos da Bossa Nova e perguntava: «Você tinha carro?», «Tinha», «Que marca era?», «Não me lembro, acho que era um Fusca», «Que cor que era?», «Não me lembro! Foi há mais de 30 anos, bota 30 anos de cachaça em cima e quer que me lembre! Que importância tem isso afinal?». E tem importância. Aí eu ia apurar por outras fontes. Chegava junto do cara e dizia: «O seu carro era da marca tal, cor tal e tinha um problema porque quebrava muito...». Consegui fazer uma reconstituição da época, o mais aproximada possível. Também ajudou muito o facto de ter começado a ouvir Bossa Nova assim que ela começou.

 

O seu pai também ouvia Bossa Nova?

- Não. O meu pai só gostava da velha guarda. Francisco Alves, Sílvio Caldas.

 

E o Orlando Silva?

- Não. O meu pai só gostava dos cantores de voz grossa, de voz potente. Minha mãe gostava dos cantores de voz menor. Gostava do Lúcio Alves, do Orlando Silva, do Sinatra e de música americana. O meu pai, no Rio dos anos 30, morava na Lapa, que era o bairro boémio, onde ficavam todas as emissoras de rádio. Ele se dizia amigo do Mário Reis, tocava violão e cantava.

 

Era comerciante, não era?

- Era. Não tinha a menor veleidade cultural. Só lia o jornal e tocava violão.

 

Como é que o seu pai e a sua mãe, que não faziam parte da elite intelectual, o impregnaram de todas as referências da época?

- Me deram tudo. Nos anos 50 havia uma grande resistência dos pais em permitir que os filhos lessem as histórias aos quadradinhos. Eram consideradas nocivas, dizia-se que afastavam a criança do estudo. Meu pai nunca fez a menor censura a isso, me dava dinheiro para comprar tudo o que quisesse. Com 5 anos ganhei um livro. «Alice no País das Maravilhas». Uma determinada edição, que perdi durante a vida... Mas como estou tentando reconstituir todos os livros que tive em criança, as mesmas edições, achei a edição exactamente igual!

 

Eu sublinho essa procura: o mesmo livro, a mesma edição. Porquê essa fixação na reconstituição da sua biblioteca?

- É uma coisa meio doente. Procuro há uns dez anos, já reconstituí cerca de 80%. Gosto muito dos livros como objectos, também. Tenho livros maravilhosos, edições antiquíssimas. Reconstituir os livros que teve quando usava calças curtas, é um desafio. Por vezes é mais fácil encontrar um livro publicado há 100 anos do que um publicado há 50. Um livro publicado há 100 anos é mais resistente. Há 50 anos, não tanto. Não eram sequer costurados, eram só colados. Ainda mais manuseados por crianças ou por jovens, têm tendência a se desfazer.

 

Procura em feiras, velhas livrarias?

- Vou regularmente a sebos [alfarrabistas]. Às vezes nem preciso saber onde ficam. Vou e acho. E acontece também o seguinte: vamos supor que acho um livro que seja exactamente a edição que tive, aos seis ou sete anos de idade; esse livro certamente pertenceu a um outro menino, a um outro garoto. Então, me sinto tão irmão desse outro garoto... Como sou filho único, é como se tivesse uma quantidade de irmãos, espalhados por aí, que tiveram os mesmos livros que eu.

 

Alguma vez tentou encontrar um desses meninos?

- Muitos não estão nem anotados, não tem lá nenhum nome nem nada.

 

Os seus livros são anotados?

- Muitos são. Os livros que uso para o meu trabalho são altamente rabiscados.

 

Tem curiosidade em saber o que fazem as pessoas aos seus livros, se os rabiscam?

- Prefiro não. Não é que não me interesse pelo que as pessoas pensam ou como é que reagem enquanto lêem, mas tenho muito retorno verbal disso. As pessoas me param muito na rua e me falam o que é que o meu livro representa. A história mais bonita que tive até hoje foi a de um publicitário de São Paulo que foi sequestrado no dia em que foi lançado o «Anjo Pornográfico». Geraldo Alonso Filho foi levado para cativeiro e jogado num quarto e pediu: «Puxa, dá para comprarem um livro para eu ficar lendo enquanto resolvem esse sequestro?», «Que livro você quer?», «O livro que saiu hoje, o “Anjo Pornográfico”».

 

A história da vida do Nelson Rodrigues não é exactamente leve... Porque é que o sequestrado terá escolhido esse livro?

- A vida deles [Nelson Rodrigues e família] é incrível, é inacreditável. A quantidade de mortes, de acidentes graves, de crimes de que foram vítimas, a pobreza, a doença, a tuberculose, a morte… O pai, os irmãos, os avós, os filhos, a filha cega. É uma sucessão de tragédias que não pára. O Geraldo Alonso Filho em dois dias leu o livro. Aí pediu aos caras «Já li o livro, dá para comprar outro?», «Acabou a folga! Lê de novo». E ele leu de novo, e leu de novo, e de novo, e de novo. Pelo 15º dia pediu que lhe dessem papel e lápis. E passou o resto dos seus 40 dias como sequestrado a reconstituir de memória a árvore genealógica da família Rodrigues, todas as tragédias de cada um, com o máximo de detalhes que a memória lhe permitisse lembrar. Finalmente foi libertado.

 

Sabia disto?

- Não. Vejo no Jornal da TV Globo que ele libertado: «E aí, como é que suportou os dias de cativeiro?», «Minha vida foi salva por um livro». Foi a convivência com os personagens da família do Nelson Rodrigues que o salvou. A força que tiveram para sobreviver, para aguentar a sucessão de calamidades é que lhe deu força e até consciência da pouca importância da sua tragédia comparada com a deles. Foi uma declaração bonita. Fiquei meio abestalhado. No dia seguinte mandei um telegrama, ele respondeu. Daí a um ano, o «Anjo Pornográfico» ganhou um prémio. E um amigo meu disse: «Vou-te apresentar uma pessoa: esse é o Geraldo Alonso Filho». Nos jogámos nos braços um do outro, como diria o Nelson Rodrigues, aos soluços.

 

Estamos nas biografias. O que é que o estimula? O que é que persegue?

- Basicamente duas coisas: o meu interesse pela obra daquela pessoa (ou daquelas pessoas) e uma curiosidade pela vida. A vida não pode ser linear. Precisa ter fracasso, precisa ter tragédia. Prefiro que tenha bastante tragédia e que termine bem. Nem sempre é possível, né? No caso do Nelson terminou bonito. Mas no caso do Garrincha não havia a menor possibilidade, e o livro termina tão tragicamente como ele vem se conduzindo da metade para o fim. Não pude fazer nada.

 

As suas relações com a família do Garrincha não ficaram as melhores depois da publicação do livro...

- As pessoas erroneamente achavam que ele teve aquele problema todo com a bebida porque parou de jogar, deixou de ser famoso. Não é verdade. O Garrincha já bebia. Não só enquanto era famosíssimo, (quando era o melhor jogador do mundo junto com Pelé), como já bebia antes de ser famoso, como já bebia provavelmente antes de beber, porque os antepassados todos bebiam. E descobri também que o Garrincha não tinha nada de negro; era descendente de indígenas.

 

Mas quando parte para uma pessoa, o que procura é conhecê-la nos seus contrastes: no fracasso, no sucesso, quando bebe, quando está de ressaca amorosa… É esta dualidade que lhe interessa?

- Sempre. Quero reconstituir uma história. O meu grande guia são os factos. A maneira de descobrir os factos é conversar com as pessoas que foram contemporâneas daqueles factos e daquelas pessoas. Eles dão a visão deles, não é necessariamente a versão correcta. Mas também nunca me baseio só numa versão. Para cada facto importante tenho 5, 10, às vezes mais fontes.

 

Não é extraordinário perceber como há uma larga fatia que não é coincidente? O modo como as pessoas assistem à vida dos outros, o modo como participam, faz que tenham olhares absolutamente distintos sobre a mesma coisa, não é?

- É. Mas a partir de certo momento, quando você vai falar com uma pessoa, já sabe se aquilo que ela está dizendo é a verdade, é uma verdade aproximada ou é a maneira como aquela pessoa viu ou está querendo te mostrar um facto que não foi na verdade tanto assim. E como é que se sabe? Eu, pelo menos, não saio à rua para entrevistar ninguém antes de 4, 5 meses de trabalho.

 

Já tem uma reconstituição sua…

- Durante meses me dedico à leitura de tudo o que conseguir localizar de publicado sobre a pessoa. É o trabalho menos importante. Descarto opiniões, comentários. Só me interessam os factos. E faço a reconstituição nos menores detalhes.

 

A sua atenção aos pormenores romanescos é extraordinária. No livro «A Onda que se Ergueu no Mar» tem um capítulo em que fala da Nara Leão, que decidiu não gravar as canções do ex-namorado, Ronaldo Bôscoli, porque este a traiu com a Maysa. «Por causa de Maysa, Nara brigou com Bôscoli e, com isso, rachou politicamente a Bossa Nova».

- Tomei liberdades no «A Onda que se Ergueu no Mar» que não tomaria jamais nem no «Chega de Saudade», nem no livro do Nelson Rodrigues, nem do Garrincha, que é ficar dando a minha opinião, a minha interpretação.

 

É um livro de crónicas.

- Não são biografias, embora tenha mini-biografias, como a do Orlando Silva.

 

Que é impressionante. Orlando Silva foi um crooner dos anos 30, um dos homens mais desejados do Brasil. (Foi o cantor que mais inspirou João Gilberto). Subitamente perdeu a voz, eclipsou-se. Falou-se de álcool, cocaína, mulheres; afinal, injectava-se com morfina. Como é que descobriu a dependência, que era desconhecida à época?

- Conversando com as pessoas. Muitas estavam ainda vivas. No caso dos meninos da Bossa Nova, essas peripécias amorosas e atléticas e tudo mais, sem esse tipo de atitudes diante da vida, não teriam feito a Bossa Nova.

 

Importa-se de explicar melhor?

- A Bossa Nova jamais poderia ter nascido em São Paulo. Era uma coisa de gente jovem, bonita, atlética, esportiva, que gostava de praia, de mar, de namorar, e que tinha um misto de vida intelectual com vida saudável. Ipanema até aos anos 70 era um bairro residencial, de pequeno comério; não havia uma boite em Ipanema, todas as boites eram em Copacabana.

 

Quem morava em Ipanema?

- Muitas famílias europeias. Como era barato, moravam também pessoas excêntricas, criativas, que queriam escrever, fazer música, ou dança, ou teatro, ou cinema, ou pintar. Essa mistura entre intelectuais, jovens de ambos os sexos e gente absolutamente burra que só queria saber de praia e de fazer ginástica na praia e caça submarina, e essa mistura deles nos botequins… E uma grande liberdade sexual: todo o mundo já veio pelado porque estava na beira da praia…

 

A vivência do corpo, a dimensão sexual era muito significativa?

- Hoje não sei muito bem como é, estou meio retirado das lides. Creio que era uma coisa que existia, mas não era muito falada. Nessa comunidade de Ipanema dos anos 50 e 60, a cabeça estava em primeiro lugar. O que acontecia era que a vida era feita muito à beira mar. A Bossa Nova nasceu e morava em Ipanema, ia trabalhar em Copacabana. Só podia ter nascido em Ipanema porque Ipanema era menor, era uma província de cosmopolitas. Todo o mundo era cosmopolita e a vida era de província. Sempre que um descobria um acorde ia mostrar para o outro, imediatamente. Moravam perto. Em Copacabana cabem 10 Ipanemas. As pessoas circulavam muito na rua, os botequins eram importantes, as esquinas eram importantes, a praia era importante.

 

Interessa-se pela pequena história, pelo que ela pode traduzir. Voltemos ao episódio da Nara Leão: foi realmente significativo para o movimento da Bossa Nova ela ter sido enganada pelo namorado?

- É. Não adianta ficar procurando explicações políticas em relação a isso. A Nara ficou com ciúmes. Ficou ofendida porque o Ronaldo [Bôscoli; escreveu, entre outras, «O Barquinho», «Nós e o Mar», «Ah, Se eu Pudesse»] a trocou. Não é fazer os heróis descerem do pedestal e se tornarem seres humanos. Eu continuo a ver essas pessoas como heróis. Agora, acho formidável tentar capturar o que há de humano nesses heróis.

 

«João Gilberto transformou o seu apartamento num casulo, tendo como únicos meios de contacto com o cosmo a televisão e o telefone. (...) O vaivém de partituras era feito pela fresta da porta, como as marmitas do Buffalo Grill. E nem a entrega do violão pôde ser feita ao vivo: João Gilberto desculpou-se com Almir pelo interfone, dizendo que estava de pijama e com barba por fazer, e pediu-lhe que subisse e deixasse o instrumento na porta do apartamento». Porque é que João Gilberto deixou de ser uma criatura sociável?

- É possível que sempre tenha sido uma pessoa retraída. Houve um momento em que não foi, em que deixou de ser, em que concluiu que se não se expusesse, se não frequentasse os lugares, se não se mostrasse um pouco, não atingiria certos objectivos. Quando atingiu os objectivos, pôde voltar a ser como era. O que ele faz de diferente hoje é não sair de casa. Fica trancado naquela torre lá [um 29º andar, no Leblon]. Mas o tipo de coisas que faz quando sai de casa é muito parecido com o que fazia antigamente, antes de ser famoso.

 

«Ele detesta as histórias que correm a seu respeito. E nenhuma o irrita mais do que aquela, antiquíssima, do gato que teria pulado de uma janela do 10º andar, depois de ficar trancado com ele dentro de um apartamento ouvindo-o repetir um acorde durante doze horas. Na realidade, o gato não se suicidou, mas cochilou no parapeito e caiu. (...) João Gilberto tornou-se de tal forma um prisioneiro dessas lendas que teria de ficar ainda mais recluso para que as pessoas parassem de achá-lo esquisito». 

- Eu tenho muito boa vontade em aceitar certas idiossincrasias das pessoas em nome de alguma outra coisa mais importante que elas façam. Porque é que o João Gilberto havia de ser como o Tom [Jobim] ? O Tom era a pessoa mais generosa e acessível que você pode imaginar. O difícil no Rio era não encontrar o Tom. Todos os dias, perto do meio-dia e meia, ele estava na primeira mesa, perto da porta, da Plataforma. Podia falar com ele tranquilamente. Ou então ia aqui na farmácia e perguntava: «Sabe se o Tom está viajando?». «Não, o senhor Tom esteve aqui ontem».

 

O que é que sente pelo João Gilberto? É uma relação de idolatria?

- Não! Absolutamente. Tenho grande admiração, só.

 

Idolatria é o que sente pelo Tom Jobim?

- Eu tenho grande admiração pelo Tom e tive também uma enorme estima, porque ele me permitiu isso. Na verdade, fiquei até muito mais amigo dele depois que o livro [«Chega de Saudade», 1990] saiu. Fui a casa dele muitas vezes, sentei com ele no restaurante várias vezes, foi muito gentil comigo. Não falo com o João Gilberto desde o dia que o livro ficou pronto. «João, o livro está pronto e já está uma pessoa na ponte aérea levando ele para você». Eu nunca liguei para ele para saber o que achou do livro e ele nunca ligou para mim dizendo o que achou.

 

Estava à espera que ele ligasse?

- Sinceramente não, porque os músicos têm outras preferências. Os actores estão mais habituados à leitura. Por exemplo, o livro do Nelson Rodrigues, não há um actor de teatro no Rio de Janeiro e em São Paulo que quando encontre comigo não fale do «Anjo Pornográfico». Todos leram.

 

E Tom Jobim, o que achou do «Chega de Saudade»?

- Eu acho que deve ter gostado muito. Ele me adoptou. Algumas coisas pode não ter gostado, mas nunca me cobrou.

 

Mas foi expansivo quando lhe falou do livro?

- No jeito dele: [engrossando o tom de voz] «Muito bom, gostei muito do seu livro! Realmente! Como os americanos fariam».

 

Porque é que a Bossa Nova se chama Bossa Nova?

- Era uma expressão corrente da época, não para designar uma música mas para designar qualquer coisa que fosse diferente. «Fulano de tal tem bossa para isso ou tem bossa para aquilo». Apareceu uma música que era diferente, inclassificável, considerada uma bossa nova em relação ao que se fazia. Acho bonito que esse nome tivesse grudado a ela, essa migração semântica. Deixou de ser uma bossa nova. Passou a ser a Bossa Nova.

 

Também é revelador da força do movimento.

- Movimentou uma quantidade enorme de pessoas, principalmente jovens, que se identificaram com aquela música. Aquela música respondia aos anseios musicais e comportamentais delas na época. Passaram a viver em função daquele novo ritmo, daquela maneira de tocar violão, de cantar. As moças mudaram a maneira de se vestir, de se comportar, de falar. De repente, todo o mundo falava como o Vinícius [de Moraes]! Quando o movimento se esgotou, como todos os movimentos se esgotam depois de 3 ou 4 anos – por brigas internas, cisões, superações –, a música sobreviveu. Porque era boa. Quando o Brasil decidiu que a Bossa Nova já não existia mais, por volta de 65-66, ficou um anátema. Ficou até feio falar em Bossa Nova. Os americanos, que são menos orgulhosos, pegaram para eles.

 

O grande impulso da Bossa Nova nos Estados Unidos, mais do que o concerto no Carnegie Hall, em 62, que tinha a pretensão de mostrar à América a Bossa Nova, foi o disco de Tom Jobim com  Frank Sinatra, que é de 67.

- Mas não é só o Sinatra. Tem uma quantidade de cantores e cantoras americanos daquela época que gravaram Bossa Nova. 20, 30 anos depois jovens cantores adoptaram a Bossa Nova. Jazz então, nem se fala, incorporou a Bossa Nova, o seu repertório, a sua gramática.

 

Sempre quis ser jornalista? Nelson Rodrigues, pelo facto de os seus contos serem publicados no jornal, era, aos seus olhos de menino, um jornalista?

- Ele era um jornalista. Ainda mais, escrevia sobre futebol, também! Você, ao ler Nelson Rodrigues, vai-se convencer que é dos maiores dramaturgos do mundo. O único problema é que escreve em português. O Tennessee Williams, o Arthur Miller e o William Inge, que foram os três grandes dramaturgos da época do Nelson, se bater os três no liquidificador e jogar no copo, vão dar meio copo de Nelson Rodrigues. Digo isso tranquilamente.

 

O fascínio pelos jornais vinha desde que começou a ler no colo da sua mãe. Como é que foi alimentado?

- Essa coisa do jornal me fascinava. O mundo estava ali. Abre o jornal e está abrindo a janela. Eu já gostava muito de música e de cinema, sempre fui ao cinema desde muito garoto. Muito antes de entrar numa redacção já sabia como era por causa dos filmes. Fui fazer o vestibular de jornalismo e reprovei! Foi uma grande decepção para o meu pai, para mim também. Resolvi fazer um outro curso, porque ia ser jornalista de qualquer maneira. No meu primeiro dia de faculdade, tive o meu primeiro dia de trabalho como repórter no Correio da Manhã.

 

Trabalhava e estudava. Emancipou-se?

- A minha grande aspiração era sair da casa do meu pai. Tinha uma relação muito atritante com ele. Me cobrava uma eficiência que nem eu era capaz de ter. Eu tinha que sair da casa dele e era estagiário no Correio da Manhã, não recebia salário. Participei num concurso universitário. É tão presunçoso o que vou te contar… O primeiro prémio era um curso em Coimbra _ a viagem, o curso e uma bolsa de 600 dólares para passar 40 dias lá. O segundo prémio era 1 milhão de cruzeiros, o equivalente a 600 dólares, em dinheiro. Aí pensei: «Se ganhar o segundo prémio, posso sair da casa do meu pai, vou-me mudar para o Solar da Fossa e ficar independente».

 

E foi.

- Não. Porque tirei o primeiro prémio!

 

Então o Solar da Fossa aparece quando?

- Daí a uns 6, 8 meses quando finalmente mudei de emprego e comecei a ganhar um salário. Mas não imagina a minha frustração por ter ganho o primeiro lugar. Eu tinha que viajar. Não podia receber os 600 dólares e não viajar. Fui para Coimbra e depois para Paris. Nouvelle Vague! Devia estar com 580 dólares, porque não havia como gastar o dinheiro em Coimbra!

 

Já profissional, fixa-se em Portugal em 72.

- Fui para lá como editor assistente das Selecções do Reader’s Digest. A situação política aqui [Brasil] era sufocante, muito ruim. Em Portugal, como estrangeiro, não me meteria na situação política, achava que ia ter uma vida mais sossegada. O trabalho era mole, se fazia facilmente. Tinha 20 dias por mês para correr todos os sebos de Lisboa, aquelas livrarias maravilhosas, a Bucholz, a Bertrand… Mas em Abril de 74 já estava envolvido. É incompreensível para qualquer jovem português, hoje, entender o que era viver sob o regime salazarista. Aí aconteceu o 25 de Abril. Foi um dos dois dias inesquecíveis da minha vida. O 25 de Abril e o 1º de Maio. Decidi voltar um mês antes do 25 de Novembro. Pensei comigo que se ficasse mais do que três anos fora do Brasil, ia ser muito difícil retomar as coisas. Voltei trazendo uma filha portuguesa, a Bianca.

 

Que agora vive em Portugal.

- Formou-se no Brasil em Arquitectura e vive lá.

 

E porquê os gatos? Gosta de gatos desde sempre?

- Sempre fui maluco por gatos. Quando era criança não podia ter porque o meu pai tinha asma em último grau. A Bianca também. Quando me livrei do meu pai e das minhas filhas, ou seja, quando elas se livraram de mim, pude deixar os gatos entrar.

 

Qual é o seu ritmo? Deixou de ser jornalista há 14 anos e escreve a tempo inteiro.

- Acordo cedo. O despertador toca todos os dias às sete e meia da manhã, me levanto por volta das oito e pouco, faço as coisas que tenho que fazer e nove e meia no máximo estou diante do computador, no telefone. Vou trabalhando até onze horas, meia-noite. Não importa a hora a que termine, boto um filme e nunca durmo antes das três horas. Nunca levo para a cama um livro que esteja associado a trabalho. Levo sempre um livro de humor americano ou humor inglês dos anos 20 ou a biografia de algum director de cinema, alguma coisa para zerar o Q.I., na verdade.

 

Significa que durante a semana a sua vida é de reclusão?

- Mas é porque se estiver com muita gente me atrapalho!

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003