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Anabela Mota Ribeiro

Nuno Severiano Teixeira

03.07.16

O hino, onde se fala do nobre povo que canta o esplendor de Portugal, traduz a nossa identidade? E a bandeira, esse pedaço de pano pelo qual muitos foram e são capazes de dar a vida, condensa o quê? Nuno Severiano Teixeira escreveu um livro sobre a história dos símbolos nacionais, “Heróis do Mar”. Severiano é professor catedrático e vice-reitor da Universidade Nova, é director do Instituto Português de Relações Internacionais, foi ministro da Administração Interna e da Defesa.

 

Quem foram, e o que caracteriza, os heróis portugueses? Em diferentes momentos, quem foram as pessoas que transformámos em heróis?

Historicamente os heróis eram aqueles que davam a vida pela pátria. Aqueles que foram feitos heróis eram os reis, os grandes chefes militares. E aqueles que tinham protagonizado os momentos que foram fazendo a história de Portugal. Hoje isso continua a existir, mas há outros heróis. Os heróis contemporâneos são muito os heróis que passam pelos media. A começar pelos desportistas.

 

Seria impensável em 1910 um desportista ser um herói nacional.

Sim. Há um inquérito sobre a identidade dos países europeus, o último dos quais é de 2009, em que se questiona quais são os factores do orgulho nacional. Incluem-se nesses factores um conjunto de indicadores de natureza material (o desenvolvimento económico, o estado da Segurança Social, a qualidade da democracia) e um conjunto de indicadores imateriais (a história, os feitos desportivos, o património, a literatura). Os dois factores mais altos do orgulho português são a história e os feitos desportivos, seguidos da literatura.

 

São factores de natureza imaterial.

Sim. Não estamos orgulhosos com o estado da nossa democracia, com o desenvolvimento económico, com o estado da justiça. Mas estamos orgulhosos com a nossa história, o nosso património, os nossos escritores.

 

No fundo, vamos apoiar a nossa identidade em aspectos imateriais. Estou a pensar no Fernando Pessoa, no José Saramago, no Camões...

... no [António] Lobo Antunes, que aparece muito.

 

E depois os desportistas, o Cristiano Ronaldo, o Mourinho.

O Mourinho, um pouco. Aparecem aqueles mais antigos. A Rosa Mota, o Carlos Lopes, o Eusébio. São factores de identidade em que os portugueses se revêem. E revêem-se naqueles momentos históricos associados aos símbolos.

 

Isso é novo?

Se olharmos para trás, a bandeira e o hino eram símbolos de um nacionalismo formal. Quem promove os símbolos é o Estado. Os símbolos vêm sempre das instituições, das elites. E estão sempre associados a momentos solenes de comemoração. Paradas militares, discursos políticos, dias nacionais. Hoje há uma mudança muito substantiva na forma como os portugueses se identificam com os seus símbolos.

 

Como se concretiza essa mudança?

Há uma passagem desse nacionalismo formal para um nacionalismo informal. Alguns autores chamam-lhe nacionalismo banal. É o nacionalismo do quotidiano em que a relação com o símbolo não é de distância, de solenidade, de reverência. É uma relação de proximidade e de interioridade. Isso traduz-se no uso dos símbolos. Era impensável em 1910 que um português vestisse uma camisola ou uma t-shirt com a bandeira nacional.

 

Ou mesmo em 1974.

Sim. Há uma transformação importante que passa do símbolo vindo de cima para o símbolo vindo de baixo. De um símbolo que é promovido pelo Estado para um símbolo que é assumido pela sociedade civil.

O símbolo simbolizava a nação no seu conjunto. Com esta mudança, há uma apropriação individual do símbolo que vai ao ponto de as pessoas inscreverem o símbolo no seu próprio corpo. O fenómeno mais curioso é as pessoas irem para os campos de futebol com a cara pintada com as cores nacionais.

 

O pôr o indivíduo no centro, e já não ser a imposição de cima para baixo, foi possível porque temos 40 anos de democracia?

Tem a ver também com a democracia. Há países cuja forma de nacionalismo é informal. O caso dos Estados Unidos é dos mais conhecidos. Mas isto passa-se também nos países nórdicos. É muito frequente passear nos Estados Unidos e ver à porta de casa das famílias uma bandeirinha.

 

Para nós, não foi impensável pôr as bandeiras à janela durante o Europeu, mas continua a ser um gesto raro alguém ter a bandeira de Portugal dependurada na janela, hoje.

O nosso nacionalismo é mais formal. O desses países é um nacionalismo muito informal. E o que se passa com a bandeira, também se passa com os hinos. O nosso hino é cantado nas cerimónias oficiais com essa solenidade. Não é normalmente cantado a partir de baixo, coisa que acontece nos Estados Unidos ou nos países nórdicos, em que há o canto espontâneo nas festas populares. A aproximação que temos a isso é o canto nos fenómenos desportivos. Quando sobe a bandeira nacional, quando os atletas portugueses ganham uma medalha, ou quando vai jogar a selecção.

 

Foi a democracia, mais do que tudo, que promoveu esta inversão na relação com os símbolos?

Não é só a democracia, mas é sobretudo a democracia que permite isso. Houve anos da democracia em que assim não foi. Nos primeiros anos da nossa democracia, até aos anos 80, a relação com os símbolos foi muito difícil e ambígua. Os nossos símbolos são uma obra da República. Mas o Estado Novo apropriou-se desses símbolos e construiu sobre eles toda uma narrativa e uma retórica nacionalista.

 

Como se aqueles símbolos estivesse contaminados por um tempo.

Isso fez com que nos primeiros anos da democracia o regime tivesse alguma dificuldade em separar os símbolos da retórica nacionalista. Durante algum tempo, tudo o que tinha a ver com símbolos nacionais, e até mesmo com a palavra pátria, era visto como qualquer coisa do fascismo, do autoritarismo. Foi preciso chegar aos anos 80 para que houvesse uma certa normalização da relação com os símbolos.

 

O que é que provoca essa normalização?

O primeiro factor tem a ver com a consolidação da democracia. A democracia está de tal forma consolidada que não há essa confusão dos símbolos com o autoritarismo. O segundo aspecto é a integração europeia. Até ao final do regime autoritário, o imaginário nacional era um imaginário investido da ideia colonial. Os símbolos tinham também esse investimento. A partir do momento em que se fecha o ciclo imperial com a descolonização, e sobretudo quando a Europa preenche o vazio no imaginário português deixado pelo império, esse problema desaparece. Os símbolos da Europa convivem naturalmente com os símbolos nacionais.

 

É curioso ver o percurso que o fado faz. Nos anos imediatamente a seguir à revolução, a própria Amália era considerada uma cantora do regime, foi apropriada pelo regime. O fado era considerado quase uma canção fascista.

Foi difícil nos primeiros anos da democracia separar as duas dimensões. É absolutamente espantoso o percurso que o fado faz durante o período democrático. Não só na sua dissociação simbólica relativamente àquilo que era a apropriação pelo regime anterior, mas também do ponto de vista estético. O trabalho sobre o fado continua e hoje temos cantores fantásticos.

 

Hoje, cantoras como Carminho, Aldina Duarte, Mariza, Ana Moura são embaixadoras de Portugal.

Sem dúvida. O percurso idêntico é o do Eusébio, hoje a caminho do Panteão Nacional.

 

Pensemos nas imagem das paradas do Estado Novo com Salazar e a saudação romana, que foi apropriada pelo nazismo. Ainda hoje impressiona ver essa saudação, esse símbolo, em acontecimentos portugueses de não há muitas décadas.

É uma imagem do princípio do regime autoritário, na fase da sua consolidação. Isso tem a ver com o período de 33 a 36, provavelmente até ao final de 39. O Estado Novo e o regime autoritário funcionaram, desse ponto de vista, de uma maneira diferente dos regimes fascista, de Itália, ou nazi, na Alemanha. E isso tem a ver com a suavização desse processo de mobilização de massas, com encenações de tipo militar ou paramilitar. A forma de actuação do regime autoritário português não é tanto pela mobilização de massas, mas pela neutralização.

 

Neutralização do indivíduo?

Não. Enquanto o primeiro é de mobilização política, o regime do Estado Novo é de neutralização política. A ideologia do Estado Novo é uma ideologia tradicionalista, católica, conservadora, que tende a reduzir o carácter espectacular das liturgias de massas.

Os desfiles da Mocidade Portuguesa ou da Legião Portuguesa, que são obviamente paralelos àquilo que se passava nesses regimes, são uma oitava abaixo.

 

Como se fôssemos remediados em tudo, até nas grandes paradas? Voltando aos heróis. O que é que admiramos nos heróis?

A sua coragem, sem dúvida.

 

Coragem é ir até ao limite, se for preciso, dar a vida pela pátria? É essa a ideia?

Exacto. Coragem física e coragem moral no sentido da liderança. E era isso que a narrativa nacionalista cultivava. Se olharmos para os heróis (desde o Viriato, passando pelo Afonso Henriques, até ao D. Nuno Álvares Pereira), são sempre modelos não só de coragem física mas também de exemplaridade moral. A mesma coisa se passa com uma outra dimensão da nossa história: os Descobrimentos. Também há uma coragem, ir para o mar e afrontar o desconhecido. É uma coragem tão valorosa quanto a outra.

 

Essa coragem, quando é uma coragem moral está impregnada de conceitos como o da honra?

Também. Esses valores, que em última análise são militares, têm sempre a honra por trás. No caso da construção da mitologia nacional, coragem é, sobretudo, arquetipicamente, a ideia de dádiva até ao limite. E o limite é a vida. Pela comunidade imaginada que é a nação.

 

É a abnegação por oposição ao egoísmo?

Sem dúvida.

 

  1. Pedro não era diferente de todos esses? Há uma tradição mais conservadora.

Estamos a falar do filho de D. João I?

 

Sim. Por oposição ao D. Miguel. É possível olhar para estes dois irmãos como se fossem duas faces de quem somos.

Estou de acordo. O modelo castiço e o modelo estrangeirado. Aqueles que têm duas concepções para o país. Do país centrado sobre si próprio e do país virado para fora. E esses dois modelos coexistem em nós portugueses.

 

Se calhar, ainda hoje. Quando olhamos para os nossos agentes políticos, frequentemente se diz, “é provinciano”. Ou ao contrário, “é cosmopolita”.

O provinciano e o cosmopolita são a versão moderna do castiço e do estrangeirado.

 

Passaram dois séculos e isso mantém-se. Quer dizer qualquer coisa?

Mantém-se na sua essência, embora o contexto seja completamente diferente. A sociedade aberta, de massas, não nos permite ficar absolutamente fora do fluxo de informação. Vamos aos locais mais recônditos do país e lá está uma televisão. Isso transforma muito a realidade. Mas sem dúvida que há essas duas posições. E ainda se vêem muito ao nível das elites. De quem fica em Portugal e de quem estuda no estrangeiro.

 

Tanto achamos que somos os maiores do mundo, capazes dos Descobrimentos, como nos fustigamos e dizemos que não saímos da cepa torta, que temos maus números quando olhamos para os livros de História. Temos este discurso quase esquizofrénico?

No discurso das elites, sim, essa dualidade continua a existir. Basta olhar para as pessoas que têm pensado sobre a nossa identidade. Basta olhar para os colunistas que escrevem na nossa imprensa. Não sei se isso corresponde à realidade das pessoas.

 

Porquê?

A sensação que tenho é a de que os portugueses têm uma relação com a realidade que é de pés na terra. Têm colectivamente tido uma sageza muito grande. Atravessámos esta crise profundíssima com alguma sabedoria. E com sacrifícios enormes. Com protesto, que é normal e tem que existir, se não existisse não era saudável...

 

De qualquer maneira, não foi um protesto de incendiar carros ou de partir montras, como acontece noutros países.

Exacto. Não atribuo o sucesso desta [superação da crise] inteiramente ao Governo. Tem muito a ver com a atitude dos portugueses, com a forma como reagiram. Austeridade teríamos que ter tido, mas poderíamos ter tido outra dose de austeridade. E poderíamos ter tido, sobretudo, outra repartição mais justa da austeridade. Digo isto para que não haja qualquer dúvida sobre a forma como vejo a maneira como as coisas foram conduzidas.

 

Esperaria que os portugueses se manifestassem mais furiosos?

Não sei se o estereótipo dos brandos costumes corresponde à realidade, tenho as minhas dúvidas. Os portugueses protestaram, e protestaram com razão. Embora tenham protestado, contrariamente ao que aconteceu noutros países, de uma forma enquadrada.

 

Enquadrada por quem?

Pelos sindicatos e pelos países mais à esquerda, que tiveram uma função muito importante. O protesto inorgânico foi residual em Portugal. E isso também reduz o nível de violência do protesto. O protesto está lá, o sinal político do protesto está lá, mas ele faz-se dentro de um enquadramento que é o das instituições que têm na sua função social e política protestar.

 

Isso diz, também, da força que os partidos e os sindicatos têm em Portugal. Quando achamos que não têm poder nenhum, que as pessoas estão desligadas dos partidos...

No jogo político-partidário, houve o momento daquela manifestação da Praça de Espanha onde se foi para além do controlo dos partidos políticos. Com alguma moderação.

 

Sublinho esta moderação que normalmente temos por oposição aos excessos (frequentemente assim designados) da Primeira República. Foi, a esse nível, um momento singular da nossa história?

Sim. O regime democrático evitou alguns dos erros da Primeira República. Todos têm a ver com a consolidação do regime. A República, ao contrário do que prometeu, nunca instaurou sufrágio universal. Havia franjas largas da população que não tinham capacidade de participação política legal.

 

Quem é que ficava de fora?, as mulheres?

Claro. À direita, os monárquicos, na grande maioria. E à esquerda, muitos sindicalistas e anarquistas. E socialistas. A República excluiu duas franjas importantes da sociedade portuguesa, que, como não podiam participar legalmente, se lançavam na participação ilegal. Isso elevou os níveis de violência política.

 

Estava escrito: “Um monárquico não pode votar”?

Não. Mas os monárquicos estavam proibidos de ter formações políticas monarcas. Quem altera isso é Sidónio Pais. Passa a haver no parlamento um partido monárquico.

Houve outro erro na Primeira República, que foi a relação com a Igreja (que vai até ao corte de relações com o Vaticano). O Dr. Mário Soares foi muito sábio nisso, teve sempre uma relação muito cordial. E também o regime teve a sorte de ter cardeais de grande prudência, o D. António Ribeiro e o D. José Policarpo.

Nunca se criou uma crispação tão grande na sociedade portuguesa actual como se criou na Primeira República, do ponto de vista social. Esta consolidação política do regime trouxe também a legitimação simbólica. Ninguém põe em causa a legitimidade do regime democrático em Portugal. Na Primeira República, boa parte dos portugueses punha em causa a legitimidade do regime.

 

Agora o que questionamos é a qualidade da democracia.

É um outro estado. Entendemos que a democracia não deve ser apenas a democracia formal, deve ser uma democracia real, que exige os tais indicadores de qualidade.

 

Vamos à bandeira e vamos ao hino. Nesse período de grande convulsão e de separação de águas, aparecem esses símbolos que são aqueles que hoje temos. O hino e a bandeira são uma espécie de nova folha onde se começa a escrever uma outra história?

As rupturas políticas profundas são normalmente acompanhadas de descontinuidade simbólica. A necessidade de mudar os símbolos tem a ver com a vontade política das sociedades, e de quem as dirige, de inscrever no símbolo a realidade política nova. A adopção do símbolo do hino é diferente da da bandeira.

 

Quais são as diferenças mais significativas?

O hino é uma marcha de matriz patriótica. Nasce como indignação ao ultimato inglês. Aquilo que está inscrito na letra do hino é uma matriz nacionalista e colonial. Mas não há na letra uma indicação monárquica ou republicana. Há a afirmação do país como nação, da sua grandeza, do seu esplendor.

 

E de resistência e de combate?

De resistência aos estrangeiros que estão a violar a soberania nacional. Os republicanos vão apropriar-se politicamente de um hino que era um hino patriótico. A seguir ao 5 de Outubro de 1910, A Portuguesa é adoptada como símbolo nacional. Porque ela já estava interiorizada como marcha patriótica e todos achavam que devia ser o símbolo.

 

Foi uma assunção pacífica?

Não há praticamente nenhuma polémica a seguir à República sobre a adopção do hino. Ainda há uma ou outra coisa... Uns dizem que deve ser a Maria da Fonte, outros que deve ser A Marselhesa.

 

Mas é sempre no feminino. Porquê? A imagem da República é uma mulher.

É por causa disso. Na monarquia, o rei tem dois corpos. Tem o seu corpo físico, de pessoa, e tem o seu corpo simbólico, que é aquele onde os súbditos se revêem. A República é uma abstracção, não tem uma cara. Uma das grandes dificuldades dos republicanos foi tornarem tangível para as pessoas essa abstracção. Tanto mais que, em 1910, 75% dos portugueses eram analfabetos. Isto tem um antecedente, a República Francesa, a Marianne, em que nos vamos inspirar. Há uma série de bustos que são feitos. Devíamos, como os franceses, ir mudando o rosto da República de tempos a tempos.

 

O Júlio Pomar pintou a Cristina Branco como cara da República, não há muitos anos. Porque dizia que era uma cara portuguesa.

Sim. Os franceses fazem isso periodicamente porque a função social do busto da República é tornar essa ideia visível para as pessoas.

Os republicanos foram exímios numa coisa a que chamaríamos marketing político. A divulgação do busto oficial foi feita nas mais diferentes formas. Apareciam rostos da República nos maços de cigarros, nas embalagens dos sabonetes, nos lenços, nos cinzeiros. Havia uma necessidade de massificação dessa imagem feminina da República.

 

Como foi com a bandeira?

Ao contrário do hino, a bandeira marca uma grande ruptura. Quando se implantou a República, havia os que defendiam que a bandeira devia continuar a ser azul e branca, retirando-lhe o símbolo monárquico, que era a coroa. Guerra Junqueiro foi o mais destacado defensor dessa linha. E havia outra corrente que achava que a bandeira devia mudar de cores e que as cores deviam ser verde e vermelho – onde estava o grupo mais radical do republicanismo. O que é que o verde e vermelho inscreve na bandeira?

 

O que se mitificou foi que o vermelho representa o sangue dos heróis e o verde é um sinal de esperança. Parece uma simbologia anterior à bandeira. E é um mito que perdura até hoje.

Há dois momentos em que o verde e o vermelho aparecem nas bandeiras sem que sejam a matriz fundamental da bandeira. A primeira vez é na bandeira da dinastia de Avis, em que a barra é vermelha e há as flores de Lis verdes. Depois, aparecem numa bandeira que foi utilizada no tempo dos Descobrimentos. Uma bandeira verde sobre a qual se inscrevia uma cruz de Cristo vermelha, que é retomada mais tarde durante a Restauração.

O verde e o vermelho apareciam em bandeiras associadas a momentos, ou de independência nacional, ou de Descobrimentos. Essa é a origem mais remota. É nela que os defensores do verde e vermelho – é o caso do Teófilo – vão procurar um discurso legitimador.

 

Qual é a sua interpretação?

O verde é a cor dos movimentos sociais, populares e democráticos do século XIX. Vêm desde a revolução de 1848 em França, na comuna de Paris. Perpetuam-se nas bandeiras dos partidos socialistas e comunistas. A primeira bandeira do 31 de Janeiro era uma bandeira toda vermelha com uma bola verde ao meio onde estava o nome do Centro Democrático Federal. O vermelho é a cor da tradição revolucionária e democrática que vem do século XIX. O verde é a cor que o Agusto Comte achava que devia ser a cor das bandeiras das nações positivas do futuro. A mais arquetípica é a bandeira do Brasil. Com o fundo verde, a esfera e a legenda “Ordem e Progresso”.

Houve alguns projectos para que a bandeira portuguesa tivesse a legenda “trabalho e progresso” ou “ordem e progresso”, que acabaram por não vingar. No caso do vermelho temos a matriz política do republicanismo. No caso do verde temos a matriz cultural, positivista.

 

“Trabalho e progresso” não é o mesmo que “ordem e progresso”. Trabalho e ordem são muito diferentes.

São. Portanto, este é o elemento de ruptura e é o mais importante. Depois há um elemento de continuidade, que está nos símbolos, nas armas. Estou a falar da esfera armilar e do escudo das quinas, que não estavam inicialmente na bandeira que foi hasteada em 5 de Outubro.

 

Como é que essa era?

Também tinha uma esfera, mas tinha símbolos maçónicos que acabam por cair. O que se vai procurar na esfera armilar e no escudo das quinas é a continuidade histórica. Mas é uma continuidade histórica que os republicanos achavam – como ainda hoje achamos – que correspondia aos momentos fundamentais da história portuguesa e que a monarquia de Bragança tinha desvirtuado. O escudo das quinas: a fundação da nacionalidade, com o D. Afonso Henriques. A esfera armilar: a época áurea dos Descobrimentos.

 

No fundo, é disso que nos orgulhamos, de nos termos constituído e de termos ousado.

Sim. E de termos sido grandes. É uma ideia que não corresponde à realidade, hoje, mas que permanece no imaginário.

 

Como diz na introdução ao seu livro, a grande questão é saber como é que um pedaço de pano se transforma numa bandeira, em algo pelo qual as pessoas são capazes de dar a vida, se incendeiam, fazem guerras. E, num nível mais imediato, como é que esse pano desperta uma comoção capaz de ir às lágrimas.

É verdade. É uma coisa que é independente da racionalidade. Esse é o grande poder dos símbolos, essa capacidade de fundir, em determinados momentos, o elemento objectivo com o elemento subjectivo. Esse pedaço de pano: individualmente revemo-nos no colectivo que ele simboliza. E é isso que provoca a pulsão e a mobilização. É por isso que as tropas, antigamente, quando iam para as batalhas, levavam à frente as suas bandeiras. Elas identificavam cada um com o colectivo que era a sua nação, o seu exército.

 

 

É sobretudo o poder da evocação e da pertença?

O símbolo é um condensador de sentidos. E sintetiza naquele momento, pela evocação, um conjunto de ideias racionais que se tornam sentidas através daquele pedaço de pano ou daquela partitura de música. É isso que torna os símbolos instrumentos políticos muitíssimo poderosos, objecto de grande disputa. Quem tem o controlo do sentido simbólico dos símbolos? E é por isso que se mudam bandeiras, e que se mudam as letras dos hinos.

Há dois elementos aqui. Há um elemento exterior, na relação com a alteridade, de diferenciação.

 

Há algum verso n’ A Portuguesa no qual tenha pensado especialmente ao trabalhar este livro?

O que gosto mais é “o esplendor de Portugal” [risos].

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015