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Anabela Mota Ribeiro

(Quase) Toda uma Vida - Frei Bento Domingues

11.01.17

É com o espantoso Frei Bento Domingues que vou falar no dia 15 de Janeiro, domingo, 17h, no pequeno auditório do Centro Cultural de Belém (entrada livre sujeita à lotação da sala).

Começa com ele um ciclo de conversas que vou manter todos os meses com portugueses de excepção, seniores, de diferentes áreas, ao longo de 2017.

Chama-se (Quase) Toda uma Vida.

Gostava muito que estivessem connosco. Outros nomes confirmados para as sessões mais à frente: Eduardo Lourenço, Jorge Sampaio, Vasco Vieira de Almeida, Siza Vieira, Artur Santos Silva. 
Partilho convosco isto: a ideia para este ciclo ocorreu-me depois de entrevistar Eduardo Lourenço e José Augusto França e perceber que, naquela amizade de 60 anos, e nos percursos de cada um, se podia ler o século XX português. Gostaria que estas entrevistas, todas juntas, pudessem funcionar um mosaico de quem somos, forçosamente parcelar, mas rico e diversificado.

Frei Bento Domingues, um homem livre, quiçá subversivo, que cita Aquino: “Se faço uma coisa porque está mandado, mesmo que seja por Deus, não sou livre, só sou livre quando faço, ou deixo de fazer, porque é mal ou é bem”. Nasceu no Minho, andou por muito lugar, de África à América Latina. Vive num convento. Ouvimos a sua voz, por exemplo, nas crónicas que escreve para o Público há anos. Escuta o rumor do mundo com atenção. É um clérigo que nos ajuda a procurar o sentido da palavra Humanismo. Este ano fará 83 anos. Parece mais novo, talvez pelo espanto e pela disponibilidade com que acolhe os outros, com que olha o mundo.

 

 

 

Mário Soares (2005)

08.01.17

Esta entrevista é parte do livro "Mário Soares - O que falta dizer", editado em 2005 pela Casa das Letras. O  livro resultou de um repto lançado por Mário Soares a Anabela Mota Ribeiro, Elsa Páscoa e Maria Jorge Costa. A ideia era, através de uma longa entrevista, percorrer áreas como a política, o internacional e a cultura, para dar a conhecer o seu posicionamento e reflexões acerca das mesmas.

A despeito do momento em que a entrevista foi realizada [eleições presidenciais], assumiu-se desde o princípio, e com acordo das partes, que a conversa deveria ser absolutamente livre, independente, aguerrida, e que nunca assumiria um tom panfletário - nem nas perguntas, nem nas respostas.

Nas duas primeiras sessões, o político e candidato respondeu às interpelações das três jornalistas; as sessões seguintes ocorreram em separado. Foram no total cinco encontros, 15 horas de conversa, realizados entre 30 de Outubro e 5 de Novembro, repartidos por diferentes espaços: a casa de fim de semana, em Nafarros, e a Fundação Mário Soares, na Rua de S. Bento, em Lisboa.

A entrevista que se segue foi conduzida por AMR. 

  

No final do nosso primeiro encontro mostrou os livros da casa de Nafarros, e a casa contígua que serve, exclusivamente, para guardar livros. Num outro encontro, na Fundação, mostrou também os livros e os quadros. Para que serve ler tantos livros e ter tantos livros?

Tenho no conjunto uns 50 mil, 60 mil livros. Não tenho a pretensão de os ler todos, mas sei onde estão, porque é que os comprei, de que é que tratam. Li os índices, li as pestanas para ver o que é que diziam. Tenho curiosidade pelos autores. Estão ali num sítio onde eu sei que posso ir quando me apetecer, ou quando precisar. Uma grande biblioteca, bem arrumada, tem que ser arrumada pelo próprio; porque arrumar livros é uma maneira de arrumar a própria cabeça. Neste momento estou a refazer a minha biblioteca. Esta biblioteca é da Fundação, doei-a à Fundação_ portanto, não conta. No meu espírito, já não é minha. A minha biblioteca é a que tenho em casa, quer em Nafarros, quer na casa do Campo Grande.

 

Dá todo o tipo de livros?

Por exemplo, toda a biblioteca jurídica, tirando o Direito Constitucional, um pouco do Direito Criminal e do Direito Público, dei tudo.

 

Não precisava desses livros?

Dei baixa na Ordem dos Advogados desde que vim para Portugal. Acho que o advogado defende interesses privados e o político defende interesses públicos. No meu espírito são coisas incompatíveis. Não estou a criticar quem as fez, quem se manteve advogado e político, mas estou a dizer que achei mais transparente ir lá fazer aquilo.

 

Imagino que a reorganização da biblioteca esteja suspensa...

Antes de tomar a decisão de me recandidatar estava a reorganizar a biblioteca. Resolvi alugar o andar por cima do meu, onde moro há 60 anos. O andar de cima tem um grande terraço, e, por intermédio do meu amigo Ribeiro Telles, estou a fazer um jardim suspenso. É uma coisa que vai ficar linda! Uma casa inteira onde não tenho mais nada, só livros e quadros, e onde estou a instalar a minha biblioteca. Fiz uma arrumação de acordo com o meu próprio critério. A política de um lado, a história do outro, a história de Portugal num lado, a história de certos países que me interessam especialmente, como a Espanha e o Brasil, em secções separadas. A religião, as artes, a literatura portuguesa, a literatura de outros países, a literatura clássica. Lá em cima tem também um escritório, (além do escritório da casa onde moro), onde tencionava escrever os tais livros de que falei. Mas agora isso está interrompido, dados os afazeres que tenho.

 

Que trabalhos tinha em mão?

Estava a fazer estudos sobre as pessoas que conhecia em Portugal, uma biografia do Salazar que comecei a magicar, um livro sobre os grandes vultos que conheci, o Mitterrand, o Willy Brandt, essas pessoas, uma reflexão sobre conversas que tive com eles, etc. Tenho que voltar a isso, assim que tiver tempo. Tenho que voltar a reflectir sobre o que foi isto tudo desde 1974. É uma coisa importante e eu tenho uma contribuição directa que mais ninguém tem. Conheci as pessoas, falei com elas, sei como é que se passaram as coisas. Tenho uma versão; não quer dizer que seja a versão verdadeira ou que as outras são falsas. Não é isso que estou a dizer, porque sei bem que a memória, às vezes, é traiçoeira, é selectiva. A memória tem a ver com a emotividade, como se sabe. Há coisas que ficam porque nos marcaram e há coisas que se apagam da memória. Muitas coisas desagradáveis, tendo a esquecê-las, não me vêm.

 

É fascinante o processo da memória, perceber como é que resgata umas coisas e não resgata outras. E é um processo autónomo, é lá com ela.

Quando eu era estudante de Filosofia, estudei Psicologia. Um dos exemplos que os professores davam, vinha em todos os manuais, era este: um cidadão entrava numa aula, desconhecido, dizia umas palavras desagradáveis e simulava uma briga com o professor. Depois pedia-se à classe para explicar o que tinha visto. Cada um tinha visto a cena da sua maneira. Isto é a prova de que a memória é selectiva, mesmo quando é imediata. E que é emotiva também. Havia aqueles que tomavam logo o partido do professor, outros que achavam graça ao tipo ter entrado da maneira que entrou, etc. Por isso é que os testemunhos são importantes, mas os historiadores do futuro têm que confrontar os diferentes testemunhos e fazer a história como eles a entendem.

 

Tem com os livros uma relação por vezes romântica. Na sua juventude, ser escritor, ser ficcionista, era um sonho.

Era um sonho.

 

Todavia, os livros políticos, aqueles que dizem respeito ao correr da história e que são do domínio do factual, ganharam predominância...

Sim, mas se vir os livros que escrevi, são sempre testemunhos. Desde o “Portugal Amordaçado”, que escrevi no exílio e que foi um livro importante naquele momento histórico. Ninguém conhecia o que se passava numa ditadura como a nossa e esse depoimento ficou, as pessoas recorrem a ele. Até à maneira como fui participando na vida pública, sempre escrevendo, ou para os jornais, ou ensaios, ou conferências, ou livros. Fui sempre pontuando a minha actividade com livros de reflexão, que estão por aí.

 

Insisto: são livros-testemunho, não são livros de um ficcionista... Que era a sua primeira ideia.

A minha ideia era ser ficcionista e sou ficcionista ainda hoje. Tenho uma tendência para estar num café, por exemplo, entra um casal, começam a falar e imagino o que é que podem estar a dizer, quais são os acordos e desacordos, como é que se entendem, etc. É a tendência pura do ficcionista. Também lhe digo uma coisa, não tome como vaidade, que eu não sou vaidoso, sou até bastante crítico em relação à minha pessoa: há um tipo de inteligência, que têm os políticos, os pedagogos e os romancistas, a que Pascal chamava “l’esprit de finesse”,

 

O que distingue esse o seu tipo de inteligência?

L’esprit de finesse” é uma inteligência de tipo intuitivo que capta aquilo que os outros dizem e a entendem em termos profundos e não aparentes. Muitas vezes as pessoas servem-se da palavra para esconder o seu próprio pensamento. Servem-se da palavra para fingir o que não são ou para esconder o seu pensamento. E eu, realmente, sempre tive essa capacidade de perceber as pessoas, homens e mulheres. Muitas vezes, éramos jovens, a minha mulher e eu, e íamos a casa de um casal amigo. E a minha mulher vinha e dizia: “Ah, aquele sujeito nosso amigo dá-se tão bem com a mulher, é um casal encantador”; e eu dizia: “Isso é a aparência, vais ver que não é o que existe”. E de repente, havia um divórcio, havia uma separação e as pessoas ficavam muito espantadas!

 

E o senhor não ficava nada!

Nada! Isso é um exemplo, mas podia dar-lhe mil exemplos dessa natureza.

 

Essa agudeza, essa finesse, aprende-se?

Não se aprende, é uma coisa inata, acho eu. Há muitas espécies de inteligência, eu tenho algumas mas não tenho outras. Há a inteligência abstracta, dedutiva, dos grandes matemáticos, dos juristas, de alguns filósofos. Sou relativamente pouco dotado desse tipo. Depois, há a inteligência mecânica, das pessoas que têm a capacidade de perceber os mecanismos das máquinas; são curiosos de saber como funcionam os diferentes tipos de máquina e de técnicas. Eu não tenho esse tipo de inteligência, também. Depois há aquelas pessoas que têm uma memória para os números extraordinária, que fixam sem esforço os números de telefone, são capazes de perceber muito bem e rapidamente as diferenças dos números, as fraudes de conta, etc. Eu não tenho esse tipo de inteligência. Tenho dificuldade em lidar com números, faço frequentemente confusões, brincam comigo a esse respeito.

 

Diz que com à vontade que não tem diferentes tipos de inteligência...

Quando é preciso fazer contas complicadas, tenho dificuldade. Nunca pego naquelas maquinetas de fazer [contas] porque tenho uma certa incapacidade de lidar com máquinas. Tirando a máquina de escrever, uma Hermes Baby que tive quando estive no exílio_ não tinha ninguém e tinha que escrever muitas cartas, muitas coisas, e aprendi a escrever com dois dedos.

 

Como é que reagiu aos computadores? Não muito bem, imagino...

Nunca fui uma pessoa que me agarrasse aos computadores, a esse tipo de coisas. Se é preciso meter o DVD, tenho dificuldade em meter aquilo bem. Peço sempre à minha mulher ou aos meus netos. Mesmo a procura dos canais, irrita-me se não apanho à primeira. Tenho esse tipo de dificuldades. Pelo contrário, sou um curioso da vida e sou, sobretudo, um curioso das pessoas.

 

Fotografa imediatamente quem tem à frente?

Sim, e não julgue que isto é uma pretensão. Conheço as pessoas não só pelo que dizem. Penetro nas pessoas e consigo perceber os mecanismos psicológicos que as movem.


Isso é válido para qualquer pessoa?

É válido para os amigos e para os inimigos. E, por isso, nunca tive grandes surpresas em política. Nunca fiquei muito surpreendido com algumas coisas que me apareceram na política, nem muito indignado, porque previ-as com bastante antecedência.

 

Então, não é fácil traí-lo. Porque percebe as pessoas e pressente a traição...

Nunca me queixei de traições por isso mesmo: pressenti-as a vir.

 

Essa sageza, essa agudeza, nasceu com ela?

As aptidões intelectuais podem-se estimular e podem-se desenvolver. A escrita... Eu escrevi sempre com facilidade; o que, cheguei à conclusão, era mau para um escritor. Porque um escritor deve castigar a prosa, deve rever, rever, rever. Veja os textos originais que nos chegaram do Eça de Queirós, ou do Camilo, e veja como eles reviam. O próprio João de Deus, que tem aquela poesia tão cristalina, “Um beijo na face/pede-se e dá-se/dá”, parece que é uma coisa que saiu assim... Não saiu, foi tudo refeito e rescrito. O ofício das letras, além de uma arte é um ofício. Um escritor precisa de estar todos os dias na sua banca de trabalho, com a volúpia da escrita, de encher o papel em branco, dantes era pela caneta, agora é pelo computador, tanto faz, é mesma coisa.

 

Mas o que é que se aprende nos livros? Existe em si uma aptidão natural para entender as pessoas. Mas ela pode ser exercitada, aperfeiçoada nos encontros que a vida proporciona. E nos livros também. Queria perceber como é que a sua vida foi enriquecida, moldada pelo encontro com os livros e a arte.

Houve livros que me marcaram em diferentes gerações. Tive a sorte de ler os grandes romances da literatura mundial muito jovem, quando estava preso. Enquanto alguns fabricavam uma espécie de baralho de cartas para jogarem às cartas, cartas que fabricavam com pedaços de papel, porque não eram permitidas cartas dentro de uma cela, eu passei a vida a ler. E a ler quase só romances.

 

Lia-os em francês?

Lia-os em francês, em português e em espanhol_ são as três línguas que leio sem dificuldade. Por exemplo, li a “Guerra e Paz”, li os “Thibault”, li a “Alma Encantada”, do Roman Roland, esses grandes romances que levam um mês a ler. Li “Os Irmãos Karamazov”, do Dostoievski. Li os americanos, o Wolfgang Sinclair, que é hoje um escritor esquecido, mas que teve uma influência extraordinária nos anos 50.

 

O “Quixote”, leu?

Claro que li. Não li o “Quixote”na cadeia, mas a grande literatura, li-a toda na cadeia. Quando estava no isolamento, e estive várias vezes no isolamento... O isolamento é estar fechado numa cela única, sem ninguém. Ao contrário do que pode parecer, não sofria muito com o isolamento.

 

Com o que é que entretinha a sua cabeça?

Com a minha cabeça. E lembro-me de uma vez, em Caxias, havia celas colectivas e celas isoladas, e estive nas duas. Na cela colectiva, tive experiências interessantes; havia os presos políticos e havia os presos comuns, às vezes misturavam-nos. Um belo dia, certamente para me humilharem, entenderam meter-me numa dessas celas, em que estavam 20 e tal numa sala deste tamanho, com beliches de três lugares. Quando estava metido com presos políticos, ou nos conhecíamos pessoalmente ou sabíamos quem éramos; portanto, era fácil a convivência. Dessa vez, perante os [prisioneiros] comuns, fiquei numa situação difícil porque ninguém me conhecia. Alguns eram facínoras puros, outros eram uns malandros. Aquilo era uma sala grande, tinha uma espécie de retrete... As retretes são as coisas mais nojentas que há nas cadeias.

 

Para começar, há uma total falta de privacidade para momentos íntimos...

Em tudo. O chefe de cela disse-me: “Entraste agora, és tu o escalonado para limpar a retrete!”. Não é fácil a um tipo que nunca limpou uma retrete, que já era advogado, enfim, e que não fosse...

 

Era um menino de família.

Tinha sido um menino de família, tinha sido professor, tinha estado preso várias vezes. E de repente, um tipo diz-me: “Limpa a retrete”, com aquele ar desafiador... Percebi que estava num mundo hostil e que tinha que dominar aquele mundo. Limpei a retrete, não há dúvidas.

 

Sentiu-se humilhado, furioso?

Nem furioso, nem humilhado. Pensei assim: estou numa situação horrível, tenho que a suportar, e tenho que dar a volta, senão estou destruído. A minha reacção foi esta.

 

Eu estava a tentar perceber como é que fica perante o horror.

Eu sou colérico em relação às coisas pequenas. Se me falta um lápis, se não vejo um livro que não encontro, começo a dizer às minhas secretárias: “Onde é que está isto?” Mas nas coisas graves percebo que tenho que fazer frente à situação. Então, não só limpei a retrete, como depois comecei a falar com eles e a tentar percebê-los, as divisões e os ódios que existiam entre eles, as conflitualidades. Posso garantir-lhe que foi a única vez que limpei a retrete, porque depois todos eles se ofereciam para me limpar a retrete.  

 

O que é que lhes dava em troca?

A partir de um certo momento, eu era o chefe real da cadeia. Porque era a única pessoa que se interessava por eles. Comecei a falar com eles e a tentar entender um por um. Era uma coisa que ninguém fazia.

 

Isso era o que dava em troca, respondendo à minha pergunta?

Foi o que comecei por dar. Mas o meu grande sucesso foi o seguinte: estava lá um francês, que era meio tonto, tinha entrado porque tinha tido uma visão de Fátima; entrou clandestinamente em Portugal, passou a Espanha, porque queria vir a Fátima. Por sinal estava no beliche em baixo do meu. Falava muito mal português e eu falava com ele meio em francês, meio em português, para nos entendermos bem e para que os outros também entendessem e não desconfiassem. Estava lá há seis meses, tinham-se esquecido dele. E eu disse-lhe: “Porque é que não escreves uma carta ao cônsul francês em Portugal?” Ele nem sabia que isso era possível! Eu fiz-lhe uma carta, que ele depois copiou como uma letra muito hesitante; assinou-a, entregou-a e mandou-a. Dei-lhe o dinheiro para os selos.

 

Teve resultados?

Por mais estranho que pareça, uma semana depois, aparece o cônsul a visitar o homem. E o homem foi libertado. Imagina o que isto significou na minha cela? A partir daí, fui o procurador daqueles tipos todos. E depois, claro, eu tinha cigarros. Dizia à família: “Mandem-me cigarros em quantidade”, e a minha mulher: “Mas tu quase não fumas, para quê é que queres tanto cigarro?”. E mandavam-me bolos, que eu distribuía por toda a gente. Os tipos perceberam que eu era diferente deles e começaram-me a tratar da maneira que era devida, sem que lhes tivesse pedido nada. Considerei que isto foi uma das experiências mais ilustrativas na minha vida.

 

Porquê?

Porque fui posto à prova e consegui reagir bem. A prisão é uma escola fantástica para quem resiste. É a melhor das universidades. E a prisão é a destruição total de um homem para quem se deixa abater. De um homem ou de uma mulher.

 

Não há nada que o deite abaixo?

Naturalmente que há. Tenho tido grandes tristezas. A morte do meu pai e a morte da minha mãe afectaram-me muito, bem como a morte de amigos. A morte é um fenómeno com o qual convivo mal. Sei que a morte faz parte da vida, mas convivo mal com ela. Quero afastar essa ideia para longe.

 

Nunca pensa na sua morte?

De vez em quando passa-me pela cabeça: “Quando cá não estiver, o que é que hei-de fazer?”. A crença é realmente um grande conforto para aqueles que acreditam. Mas é difícil acreditar. Pensar que há um Deus, que somos feitos à sua semelhança, que sente o que nós sentimos e que pode ser até antropomórfico, é uma coisa que não entra no meu espírito. Nunca entrou. Por isso sou racionalista e agnóstico. E também não acredito, dada a evolução das espécies, dado o que já sabemos cientificamente da nossa vida, também não acredito na outra vida. As pessoas que acreditam têm esse grande estímulo: estão a trabalhar para poderem estar na outra vida e serem recompensados na outra vida. Eu não acredito na imortalidade. Mas acredito na memória, na memória histórica.

 

Até determinado momento das nossas vidas, acreditamos que somos imortais.

Nunca pensa na morte?

 

Não penso na morte [tenho 34 anos].

É normal.

 

A partir de que momento é que passou a equacionar, ainda que querendo pô-la ao longe, a ideia da morte.

Não é uma coisa que me preocupe muito. Ainda estou convencido de que tenho uns anos para viver. De maneira que tenho protelado isso e dito: “Bem, já passei esta barreira, vou passar certamente outras, na altura própria vou pensar nisso”. Mas a eternidade é para mim uma coisa dificilmente concebível.

 

Há pessoas perto de si profundamente crentes. A sua mulher, por exemplo.

A minha mulher era completamente agnóstica como eu. Mas quando o João teve aquele desastre e esteve à morte, ela chegou lá primeiro. Eu tinha partido naquele dia para uma viagem oficial que não podia de maneira nenhuma anular. Estava tudo combinado, uma viagem presidencial é sempre uma coisa difícil de organizar.

 

Imagino que seja uma dilaceração, ter um filho à morte e ter de cumprir deveres oficiais.
E que morte. Tecnicamente ele deixou de respirar duas vezes durante o avião que o levou de um sítio para o outro, foi o boca a boca que o despertou... A minha mulher chegou lá, deparou com um médico muito simpático, sul-africano de origem holandesa, mas de fala inglesa, que era muito religioso. Quando chegou e viu o filho naquilo, uma papa, todo partido, e o médico lhe disse: “Há dez por cento de probabilidade de ele se salvar. Reze, reze”, a minha mulher converteu-se, e rezou. Era tão difícil para ela conceber a morte do filho, que era uma pessoa cheia de vida, cheia de alegria, cheia de tudo, que se converteu naquele momento. Desde aí ficou a ser crente. Em minha casa só ela é que é crente. Os meus netos não são, os meus filhos não são, nem a minha filha nem o próprio João.

 

É extraordinário o próprio não se ter convertido.

Há uma história muito bonita, que já contei. Quando lá cheguei, ele ainda estava em coma. Dois dias depois, saiu do coma e escreveu, (ainda não podia falar, estava todo entubado), “thank you”, para o médico. O médico olhou para aquilo e respondeu-lhe: “Agradeça a Deus, que foi um milagre”, e ele voltou a escrever: “Agradeço ao senhor doutor, porque não acredito em Deus”! É preciso ter coragem, naquele momento, para fazer uma declaração daquelas.

 

Isso fá-lo sentir orgulho?

Tenho orgulho nos meus filhos e nos meus netos, isso tenho. Porque é gente muito bem formada, de primeira qualidade.

 

Sim, mas a coragem, essa têmpera, deixam-no muito satisfeito. Seria ignominioso ter um filho ou alguém muito próximo que fosse pouco valente?

Era inimaginável. A minha filha também é muito valente. Têm ambos uma personalidade muito forte, muito contrastada, apesar de serem muito amigos e terem discussões. Os meus netos, também. Enfim, nós somos uma casa onde se discute muito, sempre.

 

É sinal de vitalidade, não é?

Já na casa do meu pai era assim. Eu era praticamente filho único. Os meus dois irmãos tinham mais 17 e 18 anos, e eram só meus meios-irmãos. Um era filho do meu pai e outro da minha mãe. Havia um ambiente muito político. O meu pai era um homem político, além de ser um pedagogo. Publicou muitos livros escolares, de história universal e de geografia. Entendia muito bem as pessoas, era de uma grande humanidade e deixou muitas recordações nos seus alunos. Por exemplo, os Pupilos do Exército, mais de 60 anos depois de terem sido alunos do meu pai, já o meu pai tinha morrido, fizeram um almoço comigo. Passaram uma manhã a contar histórias divertidas do meu pai, que os tinha marcado a todos. Fiquei deslumbrado com aquele almoço.

 

Foi o exemplo que mais perseguiu a vida toda, o do seu pai? Tem, como o seu pai, a qualidade de tocar o momento e a pessoa com quem está.

A minha mãe era uma pessoa também muito sólida. Devo muito à minha mãe, em muitos aspectos. O meu pai era um homem de sonho, de pedagogia, de desejo de ajudar os outros, real, sincero. A minha mãe era uma mulher com os pés fincados na terra, na realidade, que adorava o meu pai, que me adorava a mim. Tive sempre essa coisa, desde miúdo, que os pais me adoravam, quer um, quer outro. E que me acompanhavam sempre. Percebi isso com os meus cinco ou seis anos, intuitivamente, depois fui confirmando essa ideia. Não digo que vivessem completamente para mim, mas eu era o centro das atenções da casa, com os meus irmãos muito mais velhos também a ocuparem-se de mim. Deu um grande conforto na vida, ter esse carinho, essa confiança em mim, que me incutiu em mim próprio confiança.

 

Auto-estima é fundamental.

Exactamente. Mas a minha mãe era uma mulher forte, fortíssima. Quando o meu pai ficou doente, ela tomou conta do colégio. Era uma pessoa de poucas letras, não tinha grande instrução, mas era uma mulher de trabalho, uma mulher de grande determinação. Não se deixava engolir por histórias. As pessoas que me rodeavam, os amigos do meu pai, as mulheres dos amigos do meu pai, eram muito mais cultas que a minha mãe.

 

Mas ela não se deixava intimidar por isso?

Ela nunca se deixou intimidar por isso e tinha uma personalidade que toda a gente respeitava. Ai, isso não tenha dúvida.

 

Seria muito fácil, no meio de literatos, e sendo ela menos versada, sentir-se excluída, inferiorizada.

Não era versada, não era versada. As leituras dela foram mínimas. Tinha muito pouca instrução, fez talvez a instrução primária até à terceira classe. Mas a vida ensinou-a. E era uma força da natureza, era uma mulher que se impunha às pessoas. Quando nasci, ela tinha 38 anos. Quando me lembro bem da minha mãe, tinha um grande deslumbramento por ela, porque era muito bonita.

 

Era pequenina?

Não, era grande, maior que o meu pai. Uma mulher desembaraçada, a vida nunca a assustou. Tinha uma filosofia própria e dizia coisas muito acertadas de bom senso. Eu sabia que ela só tinha um calcanhar de Aquiles. Era eu, e, em segundo plano, o meu pai. O meu pai, além de todas as outras coisas, foi um homem um pouco mulherengo, pregou-lhe algumas partidas de que houve ecos em casa, mas aquilo manteve-se sempre...

 

O seu pai gostava muito da sua mãe?

O meu pai tinha por mim uma fixação, mas também apreciava muito a minha mãe. Sabia que era uma mulher de bom senso, uma mulher de trabalho. O meu pai esteve muitos anos na clandestinidade. Era uma pessoa em ascensão; tinha ministro, deputado, governador-civil, professor dos Pupilos do Exército, vogal do Tribunal de Contas, tinha uma carreira brilhante. De repente, vem a ditadura e o meu pai entrou logo na conspiração contra a ditadura. Entre 1926 ou 27 e 1935, o meu pai andou sempre na conspiração. Portanto, os anos da minha infância, passei-os sozinho com a minha mãe.

 

Quer dizer que não o via, ou via-o muito raramente.

Em encontros fortuitos, mas lembro-me dele. E de a minha mãe me dizer: “olha que o teu pai chama-se Sr. Araújo, trata-o por Sr. Araújo” .

 

Mas então a imagem dele foi mitificada. Imagino que tenha chegado através das histórias que a sua mãe contava.

E das histórias que ele próprio contou, e dos meus irmãos, e de toda gente, e dos amigos do meu pai, e de toda a gente. Depois perdeu uma perna. Depois fundou o colégio, que ainda hoje existe, e que é um grande colégio dirigido pela minha filha. Aos domingos e aos sábados começavam a aparecer os amigos do meu pai. Com as mulheres ou sem as mulheres, chegavam lá sempre para conspirar. E eram tardes inteiras, às vezes noites. Almoçavam por lá, às vezes jantavam, e a minha mãe nunca se atrapalhava com isso. Eu ouvia deslumbrado as discussões dos amigos do meu pai porque estava ali sempre, a discutir uns com os outros sobre o Salazar.

 

O fascínio por Salazar vem daí?

Por isso é que quero fazer um dia uma biografia do Salazar: toda a gente era contra. Depois vivi a Guerra de Espanha e a Guerra Mundial, então já com uma consciência diferente. Foi isso que me foi formando.

 

Alguma da gente com quem mais tarde se dá é da literatura. Frequentava também o cinema?

Sempre tive a paixão pelo cinema. Gostava pelo imaginário que dá o cinema, pelas actrizes, pelos actores. Tirando os períodos de cadeia, em que não podia ir ao cinema, eu ia ao cinema uma, duas, três vezes por semana. Como os meus pais me davam dinheiro, ia. O cinema era uma fonte de diversão naquela altura em que as pessoas iam todas. Conversávamos entre nós, depois íamos tomar uma cerveja e discutíamos até altas horas o que é que era o filme.

 

Discutiam sobre o que tinham visto, sobre o que tinham lido, sobre o que se passava. Essa dimensão era fundamental na sua vida. Que interlocutores teve nas letras?

Quando era jovem, os meus amigos foram os expoentes máximos do neo-realismo - não é por acaso. O Mário Dionísio era o teórico no neo-realismo, o Pomar, na altura, era neo-realista, os outros pintores que eram meus amigos estavam mais ou menos nessa linha. Depois, os escritores: o Fernando Namora, o Carlos de Oliveira, o Manuel da Fonseca, o Joaquim Namorado, o Alves Redol, o Soeiro Pereira Gomes, toda essa gente, foram todos da minha privança íntima. É toda a escola neo-realista.

 

Tem com a literatura brasileira uma relação igualmente intensa.

Li todos os livros do Jorge Amado, e depois conheci-o muito bem. Também li e fui influenciado pelo Erico Veríssimo; o «Embaixador» é um livro extraordinários sobre a América Latina.


Uma veia mais psicologista, como a da Clarice Lispector, interessa-lhe também?

Interessa, naturalmente que me interessa, e cada vez mais. A certa altura apercebi-me que o neo-realismo era...

 

Uma coisa datada?

Uma coisa um pouco datada. Era a chamada literatura engagé, a literatura ao serviço da política. Percebi que isso não era um caminho, que os grandes escritores não podiam ir por aí. Eles todos se modificaram um pouco. Os melhores, os mais dotados. Não se pode dizer hoje que o Carlos de Oliveira seja só um escritor neo-realista.

 

O Carlos de Oliveira é um grande escritor, ponto.

Um grande escritor, um grande poeta. O José Cardoso Pires também foi meu amigo desde os tempos da universidade. Ele era de Ciências e eu de Letras, andávamos ali a conversar, participávamos nas mesmas tertúlias. Tertúlias de café com 20, 30 pessoas, vinham uns, iam outros, discutíamos, conhecíamo-nos todos. Era interessante.

 

Falavam também da vida uns dos outros? Ou só falavam no essencial, de política, do que se passava?

Não, falávamos do que se passava, da literatura, da arte, dos filmes, das peças de teatro. Não se esqueça que a minha mulher também foi uma grande actriz, e falava-se muito nas peças que ela fez. Por via dela, participei em muitas coisas que tinham a ver com teatro, com a Amélia Rey Colaço, que eu conheci bem, e o Robles Monteiro.

 

Gostava verdadeiramente de teatro?

Gostava verdadeiramente de teatro. Gostei sempre mais de cinema do que de teatro, para lhe dizer a verdade. O teatro no nosso país era sempre um pouco dramatizado, estilo Alves da Costa. Falavam de uma maneira um pouco estranha, pouco realista...

 

Num estilo gongórico...

Um pouco gongórico. Eu gostava de cinema, mas gostei muito das peças que a minha mulher representou. Vi o Lorca, o Régio, isso tudo.

 

O dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues, cujo estilo é completamente subversivo, interessou-lhe?

O Nelson Rodrigues aparece muito mais tarde. Estou a falar da geração que aparece com força nos anos 50, mas que vinha de trás.

 

Nelson Rodrigues não saiu do Brasil... Mas outros, como Jorge Amado, viveram exilados na Europa. Foi em Paris que tomou contacto com o mundo das letras internacionais?

Conheci o Jorge Amado e a mulher em Paris, no hotelzinho. Conheci, ao mesmo tempo, um grande escritor cubano que vivia lá. Havia um conjunto de escritores de vários países do mundo que comecei a conhecer. Por exemplo, o Gabriel Garcia Marques, de quem fui amigo, embora tivesse tido grandes discussões com ele por causa do Fidel Castro. Mas só conheci o Gabriel Garcia Marques depois do meu exílio, nos anos 70. Como conheci o grande escritor peruano Vargas Llosa, ou o mexicano Carlos Fuentes. Agora a minha filha encontrou o Vargas Llosa em Paris e ele disse: “dê um abraço ao seu pai. Olhe que estou a torcer por ele, porque acho extraordinário que se apresente com aquela idade. Estão a discutir a idade? Que burrice!”.

 

Conheceu as grandes figuras do Século XX, mas não percebo como é que se relaciona com os trastes, com os medíocres. A maior parte das pessoas que conhecemos e com as quais lidamos todos os dias, não são pessoas proeminentes, especialmente talentosas ou esforçadas.

Não gosto muito das pessoas pretensiosas, nem das pessoas que se fazem passar por uma coisa que não são. Como gosto das pessoas em geral, procuro sempre, mesmo nas pessoas más, ou nos que são uns trastes, como diz, tirar o que há de bom nelas. Todas as pessoas têm coisas boas e coisas más, tudo depende da percentagem. O Mitterrand dividia as pessoas em duas categorias: aquelas que ele achava inteligentes e boas, com as quais tinha umas atenções, uma amizade requintada, (tive a sorte de ter sido metido nessa categoria por ele e de ser amigo dele até ao fim da vida). Em relação a tudo o resto era de uma altivez, de uma incompreensão, de um desprezo que para mim eram chocante. Eu não tenho isso. Evidentemente que sei muito bem distinguir aquilo que são jóias em estado puro, de pureza interna, e aquilo que são pessoas mesquinhas, pobres de espírito, intriguistas, bajuladores - não gosto nada dos bajuladores! Mas mesmo nessas pessoas há coisas boas. E pode-se retirar delas o que há de melhor. Isso é bom para nós, que fazemos essa experiência, e elas ficam gratas por termos feito isso.

 

Devo depreender que acredita na bondade do humano...

Acredito profundamente que cada ser humano tem consciência. Por que é que temos o senso do bom e do mau? Porque é que temos o sentido do belo? Vale a pena acreditar na consciência das pessoas. As pessoas todas, mesmo que nos façam uma grande malandrice, têm consciência que a fizeram. Às vezes querem emendar a mão e é preciso dar-lhes a segunda oportunidade. Esta é a minha noção do relacionamento com as pessoas. A minha mulher costuma dizer: “não te lembras do que ele já disse de ti?, esse tipo disse de ti isto assim e assim”.

 

Há um ano, quando nos encontrámos, estava a ser lançado o livro dos poemas da sua vida. Falou-me de um poeta que lhe tinha feito uma malandrice qualquer, e que, apesar de não ser um excepcional poeta, decidiu incluir na sua antologia.

É o Armindo Rodrigues.

 

O seu gesto quis ser uma bofetada com luva branca?

O Armindo Rodrigues é um homem muito emocional. Embora tenha versos de pé quebrado, quando entrou na fase religiosa do Comunismo, é um bom poeta. Fomos muito amigos, ele era mais velho do que eu. Depois do 25 de Abril, transformou-se num comunista furioso. Acreditou naquela aventura da reforma agrária e por aí fora. Então, começou a escrever artigos sobre mim, terríveis. Um dia, morreu o Ary dos Santos, que é um bom poeta. Eu estimava o Ary dos Santos, apesar de o Ary dos Santos também ter aderido ao Partido Comunista. Mas como ele morreu e eu era primeiro-ministro, resolvi ir prestar uma homenagem. Entrei na Sociedade de Autores sozinho, como é meu hábito, sem segurança nem nada. Estava ali todo o estado-maior comunista a fazer uma espécie de homenagem, a última, ao camarada. Aquela gente toda olhou para mim como se fosse uma mosca que cai na sopa! Como é que este tipo se atreve a vir aqui?

 

Era tão grave assim?

Havia nessa altura no ar um antagonismo terrível. Foi o meu primeiro governo. A única pessoa que se aproximou de mim foi a Isabel da Nóbrega, nessa altura vivia com o Saramago: “Não se importe, Mário, que estes tipos são uns fanáticos”. No dia seguinte, apareceu uma carta num dos jornais comunistas, uma “carta aberta a Mário Soares”, escrita por Armindo Rodrigues. Dizia assim, mais ou menos: “Mário Soares, você é um homem de uma desfaçatez absoluta! Você, que tem sido um grande reaccionário, que tem prejudicado esta revolução tão bela dos cravos, você que destruiu a Reforma Agrária, atreveu-se a vir a um enterro de um camarada? Quero avisá-lo que dei ordens expressas à minha família e aos meus amigos para que, se o virem no meu funeral, o expulsem pelas escadas abaixo a pontapé, que é o que você merece!”. E li aquela carta e ri-me.

 

E riu, como ri agora?

Claro, é uma coisa de um fanatismo que só compromete a causa que ele julgava que defendia. Bem, tentei escrever-lhe uma carta, que tem alguma graça, mas que não lhe reproduzo agora.

A partir dessa história, presumo que leia romancistas de todos os quadrantes políticos.

Leio o Mário de Carvalho, que é muito interessante e muito dotado. Leio os livros do meu amigo Urbano Tavares Rodrigues; e o livro de memórias do irmão. Agora leio o Saramago, ao princípio não lia.

 

A vossa relação nem sempre foi pacífica.

Tive um desaguisado com o Saramago quando ele era director do Diário de Notícias. Conhecíamo-nos desde a juventude. Apareceu um livro dele que me disseram que era muito bom, o «Memorial do Convento»; não o li. Depois apareceu «O Ano da Morte de Ricardo Reis», voltaram-me a dizer que era uma obra-prima; e então, aproveitei umas férias no Algarve e li o «Memorial do Convento». É um livro fabuloso, realmente fabuloso e importantíssimo na literatura portuguesa. Fiquei deslumbrado. Fui ler logo a seguir o outro, e ainda fiquei mais deslumbrado. Resolvi escrever-lhe uma carta neste estilo: “Meu caro José Saramago, como sabe não gosto nada de si do ponto de vista político e tenho muitos desacordos consigo. Várias pessoas me chamaram a atenção para os seus livros. Acho que você é um grande escritor português, que prestigia o nome de Portugal, e, não obstante não termos relações, entendo, como primeiro-ministro do país, que lhe devo esta homenagem. Devo dizer-lhe que você está a prestigiar Portugal com os livros que escreve. Receba os cumprimentos do Mário Soares.” Demorou um mês ou coisa assim, mas veio uma resposta. O Saramago escreveu-me uma carta engraçada que era mais ou menos isto: “Caro Mário Soares, eu ainda gosto menos de si do que você de mim em matéria política, porque o responsabilizo por muita coisa. Mas seria hipócrita se não lhe dissesse que a sua carta me deu muito prazer e que lhe agradeço os comentários que fez. Fico muito feliz que tenha gostado dos meus livros”. A partir daí, quando nos vimos começámos a rir e voltámos a ter as mesmas relações.

 

Mitterrand dividia as pessoas em função da sua inteligência. Quanto a si, a matriz de uma eventual divisão é qual? A religião?

A crença é uma coisa do foro individual. É-se crente ou não se é crente. Mas há muitos pontos em que as pessoas podem conviver. Lembro-me que tinha discussões com a minha professora de Francês, uma senhora já de bastante idade, mas de uma grande inteligência; chamava-se Carolina Franco. Era filha do Visconde de Franco, era de uma família aristocrata. Os azares da vida fizeram com que tivesse pouco dinheiro e acabou por ser professora. Essa senhora não era católica inicialmente, mas converteu-se por volta dos 40 ou 50 anos. Era uma católica muito genuína, que acreditava profundamente, como os católicos convertidos em geral acreditam, e que tinha discussões imensas com um irmão, Xavier da Silva. Era grande amigo do meu pai e um digno pensador, como se dizia no tempo, que tinha sido Ministro dos Negócios Estrangeiros. Estavam sempre a discutir! E eu ia dar lições de Francês com a senhora, encontrava-a com o irmão, e, em vez do francês, entrava nas discussões!

 

Que lado tomava?

Eu, a favor sempre do Xavier, que era um homem inteligentíssimo e digno pensador, e ela sempre a bater no irmão e a bater em mim por não termos crença. Ela, no final das discussões, dizia-me assim: “Você, Mário, não tem religião, mas ainda um dia vai ter; estou lá em cima e hei-de ver isso. Porque você tem uma coisa que é ainda mais importante do que ter religião, que é a inteireza e a rectidão de carácter! Ainda hei-de vê-lo, lá de cima, um grande apóstolo da nossa santa religião.” Palavras textuais: um grande apóstolo da nossa santa religião! Ela tinha escrito num livro de orações: “Ó meu Cristo, ó meu Cristo, ó meu amor, ó não sei quê”, umas coisas apaixonadas...

 

Parecia uma carta ao namorado!

Uma coisa estilo Santa Teresa de Ávila, um amor místico ao Cristo. O irmão tinha visto aquilo e o que é que escreveu por baixo? Ele era muito repentista e escreveu uma quadra que eu fixei, que nunca mais esqueci, com uma letrinha miúda: “Pois, senhores, em vistas disto/de um amor tão exaltado/estou a ver que Jesus Cristo/ ainda acaba em meu cunhado”! Isso deu uma discussão horrorosa. Isto mostra que a religião é uma coisa íntima. Respeito muito as pessoas religiosas, se me disser que não tenho crenças, eu tenho crenças não-religiosas.

 

Acredita em quê?

Eu tenho uma crença que não se explica por razão de natureza racional, mas que é verdadeira: acredito no Homem, acredito no progresso do Homem, acredito na consciência.

 

Acredita que ele é bom?

Que tem inato o sentido do bem e do mal. Há aqueles que não são capazes de resistir ao mal e há aqueles que são capazes. E isso pode ser feito sem ser [num ângulo] religioso. Acredito no progresso, tenho essa crença profunda. Eu, aliás, numa discussão que tive muito, muito interessante que infelizmente não está publicada... Uma vez convidaram-me para discutir com o senhor Cardeal Patriarca estes problemas da crença e da não crença, num grande auditório no Colégio Pio XII, levava mil e tal pessoas, estava cheio. A Maria João Avillez era a moderadora, mas quase não moderou. Eu comecei por dizer àquela assembleia, e foi um gelo, que aquilo era quase tudo católicos, que não acreditava em Deus, que não acreditava na imortalidade da alma. Disse logo assim, para começar. O Cardeal respondeu dizendo que eu dava prova de coragem, dizendo aquilo com simplicidade; mas se eu julgava que os católicos não tinham dúvidas e tinham só certezas... Os católicos também têm dúvidas, toda a gente perante uma história tem dúvidas. A partir daí, desenvolveu-se toda uma discussão à volta desta temática. Foi um dos momentos interessantes da minha vida, essa discussão_ infelizmente não está publicada. Aliás, tenho frequentado desde há 15 anos os chamados encontros ecuménicos, organizados pela comunidade de Santo Egídio em todo o mundo.

 

Vai porquê?

Estão pessoas das mais diferentes religiões e alguns poucos que não têm religião nenhuma. Aparece lá muito o Jean Daniel, que é o director do Nouvelle Observateur, e também o director do Reppublica, um jornal italiano, que tem uma posição bastante semelhante à nossa. Até costumamos dizer, por brincadeira, que somos os agnósticos de serviço!, porque vamos discutir, e discutimos entre as religiões.

 

Vai sempre à procura de se enriquecer, por via da discussão?

Vou à procura de mais conhecimento.

 

Por via do encontro com a diferença. A sua vida fica mais rica.

Mais rica, no sentido moral do termo. Tenho tido a sorte de conhecer as personalidades mais interessantes, quer no plano filosófico, quer no plano literário, quer no plano político, que passaram por este século. Conheci bem, e ele tentou também convencer-me em matéria religosa, o Jean Guitton, que foi um académico que morreu há poucos anos, com mais de 90 anos e uma lucidez admirável. Tenho os livros dele autografados. Tinha uma visão muito larga e muito generosa da fé. O fanatismo é a pior coisa que existe.

 

Qualquer forma de fanatismo?

Em tudo, na religião, em todas religiões, e também na política. Fanatismo, intolerância, as pessoas estarem convencidas de que têm a verdade no colete, saberem meia dúzia de coisas disto, daquilo, do que for, e não saberem de mais nada, e estarem convencidos de que aquilo é a bíblia. Bem, isso, realmente é o fanatismo, é o mal.

 

A sua bíblia é o mundo.

Exacto.

 

Estava a pensar que livro tem à cabeceira... E talvez seja o mundo.

Tenho vários livros, depende das fases. Mas devo dizer que agora tenho poucos livros à cabeceira. Há mais de dez anos que deixei de ler na cama. A leitura na cama é péssima para as cervicais. Habituei-me a ler num bom sofá que tenho próximo da cama, ou então num quarto ao lado, para não incomodar a minha mulher, se ela está a dormir...

 

Pela primeira vez, desde que anunciou a sua candidatura, parece que se justifica muito mais em relação às coisas que fez...

Ninguém sabia nada porque não tenho por hábito andar a vangloriar-me do que fiz. Quando se vê agora o que fiz nestes dez anos, as pessoas ficam muito espantadas. Sou uma pessoa que gosta de batalhar, gosta de discutir, gosta de viver as ideias, gosta de se pronunciar sobre as coisas. E tenho curiosidade pelo mundo e pela vida. Nunca a perdi, e isso é um sinal de juventude.

 

É a sua maneira de...

Reagir à velhice.

 

... guerrear esse inimigo poderoso, esse grande inimigo da sua vida, que é a velhice.

Eu até agora não tenho sentido grandes estragos. Mas posso-lhe garantir que sou muito introspectivo e muito crítico de mim mesmo. Quando começar a sentir, darei imediatamente por isso. O meu médico diz que sou um bom doente. Sempre que estou doente, coisas pequenas, uma gripe, e ele me receita qualquer coisa, cumpro. Quando vou ao médico é para cumprir. Se vou àquele médico e não a outro, é porque tenho confiança nele. Ele diz uma coisa interessante: “Você quando me chama, diz-me precisamente aquilo que sente e aquilo que tem”. Costumo introspeccionar-me e saber as faltas que tenho. A velhice... Como dizia o general DeGaulle: “A velhice é um naufrágio”. Dizia no fim da vida, claro.

 

E é?

Eu acho que não é um naufrágio se a gente souber compensar aspectos negativos da velhice com alguns muito positivos, que são a experiência, o conhecimento e a memória, (se não a perde). Tenho uma memória que, como todas, é emocional, que está ligada a factos que me marcaram. Mas por enquanto não me sinto diminuído para participar num debate público. A primeira dificuldade que senti para comunicar com as pessoas, foi perante o preconceito que elas criaram: que eu tinha 80 anos, logo não devia ser presidente. Foi por isso que falei várias vezes da idade.

 

Por isso se justifica...
Não é uma justificação. É que perante perguntas que me põem, tenho que responder. É uma resposta àqueles que não acreditam. Há muitos exemplos, não sou um caso único. Sou um caso feliz, isso sou, e até privilegiado. Mas não fiz nada para isso, foram os genes, nasci assim.

 

Insisto no tom, que parece de justificação. Tem uma evidente auto-estima e confiança em si. Mas parece afectado. As pessoas dizem que está velho e tenta dar provas da sua curiosidade, da sua vontade de viver, da sua condição.

Não preciso de dar provas, porque isso é genuíno. Penso que os portugueses estão a começar a perceber isso mesmo: afinal ele está em boas condições, afinal talvez valha a pena ouvir o que ele diz, e daí, afinal, talvez valha a pena votar nele.

 

 

Esta entrevista, conduzida por AMR, é parte integrante do livro "Mário Soares - O que falta dizer" (2005), de AMR, Elsa Páscoa, Maria Jorge Costa. A reprodução é feita com o consentimento da editora Casa das Letras. 

 

 

Maria de Jesus Barroso

07.01.17

Maria de Jesus. As fotografias mostram-na a representar a jovem «Benilde», a dizer poesia revolucionária, a discursar num comício nos anos quentes de um país. Mostram-na envolvida pelos filhos João e Isabel, abraçada a Mário na Foz do Arelho, em 56, quando eram incrivelmente jovens e tinham a felicidade estampada na cara. As fotografias mostram-na à distância de um metro da senhora Clinton, numa elegância irrepreensível. (Comento que o casaco que traz no dia da entrevista é lindíssimo, ela confessa que tem 50 anos, que o mandou refazer. Um clássico.)

Não há fotografias, mas sabe-se que espatifava as mãos nas barrelas que fazia na casa de Paris, onde o marido se exilara. Que juntava salpicão, farinheira e chouriço num saco de viagem para fazer para ele cozido à portuguesa. E que arcou com o Colégio Moderno, que o sogro fundara, nos anos em que, proibidos de ensinar, de fazer o que fosse, a escola era tudo o tinham.

É uma lutadora. Franzina, floral, lembrada como uma pessoa «insólita» no meio do teatro, onde começou por fazer carreira. Tem uma voz delineada, firme, que diz muito da sua força.

A nossa eterna primeira-dama (embora eu prefira pensar que há qualquer coisa nela de Rainha-Mãe), tem uma agenda tão preenchida quanto a do marido. A par do percurso político, multiplicou-se em acções que promovem a solidariedade e a tolerância. 

Maria de Jesus Barroso Soares. Completará 80 anos em Maio de 2005. A vida dela poderia ter sido outra? Pode sempre. Todavia, talvez não seja estranho que o caminho cruzado tenha sido este.  

 

O seu pai morre em 1970, e a sua mãe morre três meses depois – como se morresse de desgosto. O percurso dos seus pais é muitas vezes coincidente com o seu e o do seu marido. Gostava de perceber como ama, o que norteia a sua vida, e se isso não foi fundando pelo exemplo que os seus pais lhe deram.

Isso é rigorosamente verdade. Os meus pais foram a primeira escola que frequentei. Foi com os meus pais que aprendi a descobrir o que são os grandes valores: o amor ao próximo, o respeito pelos outros. Nós éramos uma família grande, sete filhos, o pai, a mãe e uma avó. Uns pelos outros foi uma das coisas que nos infundiram, e que se manteve, aliás, pela vida fora.

 

A história de amor dos seus pais, então...

A minha mãe era professora primária. O primeiro lugar que ocupou foi na terra do meu pai, Montes de Alvor, entre Portimão e Monchique. O meu pai, como a maioria dos jovens do país, tinha dois caminhos para poder socialmente subir um pouco: a vida eclesiástica e a vida militar. Escolheu a vida militar. Eles encontraram-se ali, nasceram quatro filhos, dois deles morreram, não os conheci, e dali passaram para a Fuzeta, onde nasci e nasceram dois irmãos mais velhos que eu. O meu pai estava no regimento em Tavira e a minha mãe era professora na Fuzeta. Muitas vezes, quando fui lá depois do vinte e cinco de Abril, nas campanhas eleitorais, as pessoas saltavam-me ao caminho a dizer: «Fui aluna da sua mãezinha». Mas eu tinha um ano quando o meu pai foi irradiado para o Regimento de Infantaria Onze de Setúbal. De Setúbal viemos para Lisboa, onde frequentei a quarta classe e todos os meus estudos.

 

Foi a sua mãe que a ensinou a ler e a escrever?

Não. Fiz a escolaridade na mesma escola em que a minha mãe dava aulas, mas com outra professora. Claro que a minha mãe nos ajudava em casa, mas tinha sete filhos e não lhe sobejava tempo. Naquele tempo, as mulheres não tinham férias de parto, tinham que ir para a escola pouco depois de as crianças nascerem.

 

Tem uma imagem vívida da sua mãe grávida, de haver muitas crianças à volta?

Sou a quinta. Mas essa imagem é muito emocionante para mim. A avó, que quase não se usa agora nas casas, era muito importante na minha família. Porque estando a minha mãe super-ocupada e o meu pai deportado nos Açores, era extremamente importante do ponto de vista emocional.

 

Como era o amor da sua mãe e do seu pai?

Eram duas pessoas que se compreendiam e ajudavam. O meu pai ajudava, talvez porque os militares têm esse espírito de ajuda. Lembro-me que chegámos a morar numa quinta em Setúbal e o meu pai, muito habilidoso, era capaz de fazer as capoeiras para os animais, galinhas, frangos, coelhos, e ajudava em casa no que era preciso.

 

Havia uma expressão viva dos afectos? O modo como se amava nessa altura era diferente, (menos expressivo, mais contido), imagino, do que é hoje.

O meu pai esteva preso, o meu pai esteve muitas vezes preso, e quando foi para os Açores deportado, foi um choque imenso para a minha mãe o afastamento da pessoa com quem tinha casado, por quem tinha uma grande amizade e ternura. E o estar sozinha em casa, só com apoio da minha avó, a acudir aos filhos... Eles fizeram 57 anos de casados, eu estou a fazer 56.

 

Insisto neste aspecto porque me parece que, de certo modo, repetiu muitos dos passos da sua mãe. Conheceu, como ela, a sensação de arcar com o peso emocional e financeiro da família, com toda da dor da separação, da imprevisibilidade. O que é que a sua mãe mais estimaria no seu pai? A coragem, a heroicidade?

A coragem. Era uma das grandes qualidades que a minha mãe apreciava no meu pai. Vivíamos em ditadura e era preciso ter coragem para tomar uma atitude contra o regime. O meu pai teve-a.

 

Ele participou no golpe de 27, o primeiro contra a ditadura, não foi?

Participou e sofreu as consequências disso. O estar, por exemplo, deportado nos Açores, foi um sacrifício para ele e para todos nós. Quando o meu marido era Presidente e visitou a Ilha Terceira, muito especialmente o forte de Angra do Heroísmo, senti uma certa emoção depois de ver lá inscrito o nome do meu pai.

 

Inscrito na parede?

Sim. O meu sogro também lá esteve. São coisas inesquecíveis. Isso fez criar em nós um sentimento de solidariedade muito grande, primeiro com os membros da família e depois, esse sentimento extravasou os muros da casa e exprimiu-se através de acções em que participámos para ajudar os que sofriam.

 

Que imagem tinham do pai, então?

A minha mãe fazia-nos escrever. Tive muita pena, perdi muitas cartas. Gostávamos de contar o que nos acontecia, que o Fernando me fazia isto, a Fernanda fazia esta ou aquela acção. E ele mandava-nos postais dos Açores, alguns muito bonitos, com hortenses.

 

Quando o seu marido esteve preso e ficou sozinha com os seus filhos, incutiu-lhes esse hábito? Como é que lhes falava do pai?

Falava do pai como uma pessoa que desencadeava uma acção a favor da democracia, a favor da liberdade, com o desejo de que os direitos humanos fossem respeitados. Explicava-lhes o que é que significava estar preso. Não era que tivesse cometido um acto menos digno; pelo contrário, a sua acção era no sentido de criar no país condições melhores para todos, e para eles também.

 

Era um modo, também para si, de o ter mais perto?

Eu estava muito dentro do clima político. Quem ia a nossa casa eram os nossos amigos que estavam implicados na mesma luta. Eles habituaram-se a viver e conviver com aquela gente, o Teófilo Carvalho dos Santos, o Manuel Menezes, o Caetano Menezes, o Jaime Cortesão. A Maria Isabel Inglês, que foi madrinha da minha filha, era uma corajosíssima lutadora pela liberdade e pela democracia, fez parte da comissão central do MUD, esteve presa e foi demitida dos lugares ocupou. Eles foram criados nesse clima, a aperceberem-se de como é que nós todos sobrevivíamos, da necessidade de alguns se sacrificarem. Era o caso do pai, também.

 

A noção de sacrifício era fundamental?

Ah, pois.

 

Disse «sobrevivíamos» e não «vivíamos». Quer dizer que as condições em que viviam...

Era difícil. Para se ter um diploma para o ensino particular, a polícia política tinha uma voz activíssima nisso.

 

A senhora tinha um diploma e não a deixavam ensinar.

E ainda antes de casar, fizeram que me demitissem do Teatro Nacional. Porque não era afecta ao regime e demonstrava publicamente que não era. Era uma vida dura, mas valeu a pena, porque fortaleceu em nós um amor muito grande à democracia.

 

A noção de amor na sua família, quer a família de origem, quer a família que constituiu com o seu marido, está muito comprometida com a noção de luta, de coragem, de respeito.

Exactamente.

 

Ontem perguntava-me por que é que se apaixonou e amou este homem especificamente e não outro.

É uma coisa que não podemos explicar. Entrei para o Teatro Nacional e para a Faculdade de Letras ao mesmo. Havia vários grupos na Faculdade de Letras, uns que se interessavam mais pelas coisas culturais, outros pela política. Havia um grupo que se interessava especialmente por teatro, onde se encontrava o Luís Filipe Lindley Cintra, a Matilde Rosa Araújo, o Sebastião da Gama. Eles queriam conquistar-me todos para o seu grupo e eu dava-me com eles todos.

 

[interrupção para atender o telemóvel; a empregada pede indicações para o almoço]

 

As mulheres têm isto. Para além de terem que fazer o discurso, têm que decidir o que é o almoço, o que é o jantar... Eu encontrei no meu marido o desejo de lutar por um mundo melhor. Isso foi uma das coisas que me atraíram extraordinariamente e me fizeram aproximar dele.

 

Se essa característica não fosse tão vincada, tê-lo-ia amado da mesma maneira? 

Sinto que não poderia ter-me apaixonado por uma pessoa que não estivesse na mesma via em que me encontrava. Eu tinha outros colegas extraordinariamente interessantes, muito inteligentes, muito interessadas pela cultura, pela poesia, pela música, pelo teatro, mas achava que era muito mais importante o interesse pela modificação da sociedade em que vivíamos.

 

Foram a heroicidade e a coragem do Dr. Mário Soares...

Sim, a coragem dele, e sobretudo o interesse dele, as intervenções dele no sentido de participar na modificação do regime, que era injusto e que nos dominou durante tantos anos.


Consegue situar os pilares da vossa vida, os momentos mais determinantes?

Por exemplo, a deportação dele para S. Tomé, em 1968.

 

Antes disso, houve o casamento, que foi por procuração. Porque é que decidiram casar e porquê por procuração?

Porque não sabíamos o que poderia o futuro trazer-nos e estávamos interessados em selar essa amizade e estabelecer um compromisso entre nós.

 

Através dessa oficialização podia visitá-lo mais vezes no Aljube, onde ele se encontrava preso?

Não podia visitá-lo se não estivesse casada com ele. A polícia política não deixava que pessoas de fora, apenas amigos, se visitassem. Foi um ponto de partida importante na nossa vida. Em 68 vou viver com ele para S. Tomé, quando é deportado; se houvesse apenas uma relação de amizade seria muito difícil. Eu quis ser professora em S. Tomé. O reitor dizia-me: «Tenho muitas horas de ensino para dar, pode ser professora quer no curso diurno, quer no nocturno». Mas, claro, apesar de ter mandado buscar a minha carta de curso, o regime não deixou que ensinasse no liceu.

 

Viviam de quê, nesse período do degredo?

Vivíamos dos recursos que tínhamos. Eu tinha uma escola, o Colégio Moderno, deixei-a entregue a um primo do meu marido que não tinha nada que ver com as actividades políticas, e por isso deixaram-no ser director, e ao meu cunhado, casado com a minha irmã. Deixei as coisas todas destinadas de maneira a poder estar com o meu marido e acompanhá-lo. 

 

Estávamos a situar os momentos importantes da vossa vida.

O 25 de Abril, a chegada do regime democrático a substituir o regime ditatorial.

 

E as visitas a França, quando o Dr. Mário Soares estava exilado?

Eu ia com os meus filhos, de avião, fazíamos lá o Natal, a passagem do ano, em casa de amigos nossos. Alguns inventaram, depois do vinte e cinco de Abril, que vivíamos num palácio!, que tínhamos umas grandes facilidades! Eu mostrava as minhas mãos a alguns amigos quando vinha... Lavava roupa, fazia comida, limpava a casa, às quartas e aos domingos ia ao mercado de rua. Na altura, o meu filho conseguiu uma bolsa para a Alemanha, que o meu marido pediu ao Willy Brandt, porque tinha sido expulso da universidade por razões de ordem política. A minha filha ajudava-me já no colégio. Valeu a pena e não criou em nós nenhum sentimento de ódio aos outros, pelo contrário. É como quem visita os campos de concentração: o que a visita suscita, é uma capacidade de amar mais o próximo e rejeitar tudo o que é a negação dos valores que nos inspiram.

 

Era importante para si que o seu marido a admirasse?

Com certeza.

 

Li uma história extraordinária que gostaria que me confirmasse: de haver uma pessoa da sua família que cortou a língua para que não o obrigassem a falar...

Não era da minha família. Era o Jaime Rebelo, que conheci e cuja mulher e filhos os meus pais acolheram na nossa casa em Setúbal. Com o receio de não conseguir aguentar-se com a tortura que lhe inflingiram, cortou a língua com uma lâmina.

 

Teve medo?

Tive medo algumas vezes, não posso estar aqui a fazer de Joana d’Arc. Mas também tinha a convicção de que era importante ter coragem.

 

Foi interrogada pela PIDE. Estava ainda no Teatro Nacional, era muito novinha.

Fui interrogada por duas vezes. Uma delas porque dizia poemas revolucionários do Mário Dionísio, Carlos de Oliveira, Álvaro Feijó. Eram as armas de que me servia para demonstrar o descontentamento com o que se passava.

 

Lembra-se ainda de alguns?

Um poema do Sidónio Muralha: «Já não há mordaças nem ameaças, nem algemas que possam impedir a nossa caminhada, em que os poetas são os próprios versos dos poemas». Ou um poema que fazia muitos engulhos à polícia política, chamado «Prometeu», do Joaquim Namorado: «Abafai-me os gritos com mordaças, maior será a minha ânsia de gritá-los, amarrai-me os pulsos com grilhetas, maior será a minha ânsia de quebrá-las, rasgai a minha carne, triturai os meus ossos, o meu sangue será a minha bandeira, meus ossos o cimento de uma outra humanidade, que aqui ninguém se entrega, isto é vencer ou morrer...» Como é? Não me recordo...

 

Em que circunstâncias foi chamada à polícia política?

A primeira vez foi porque fiz um recital desta poesia revolucionária em Santarém. No dia seguinte estava a ser chamada para ver se denunciava qualquer pessoa. Queriam que dissesse: «Fui ali apenas dizer os poemas, convidada»; mas não. Eu sabia a responsabilidade que assumia participando na sessão. Era responsável por aquilo que dizia.

 

Sentiria vergonha de si se fosse menos corajosa?

Com certeza. Não me prenderam, mas chamaram-me à política. Mais tarde, encontrei na rua alguém que tinha sido demitido da emissora nacional e que me disse: «Ó Maria Barroso, faça o que eu fiz: escreva uma carta ao Salazar e será reintegrada no Teatro Nacional». Eu olhei para ele, muito espantada e disse: «Você não me conhece, pois não?, não sou capaz de fazer uma coisa dessas». Não escrevi carta nenhuma ao Salazar, aguentei com as consequências de tomar uma decisão política.

 

É sempre nítida a linha que demarca o que é digno do que não é, o que é lícito aceitar do que não é?

É. Como é que queria que eu, filha de um homem que lutou pela democracia... O meu pai celebrou 74 anos na sede da polícia política, na Rua António Maria Cardoso, a fazer a tortura do sono. Eu denegria toda aquela herança que recebi dos meus pais, dos meus irmãos?

 

Quando se tem essa tenacidade, essa herança, qualquer sacrifício é fazível?

Desde que se queira, que isso corresponda a um imperativo da nossa consciência, a gente não faz concessões. Não fiz concessões ao regime, como lhe disse.

 

E concessões ao amor?

Ao amor? Fazem-se as concessões que entendemos que devemos fazer porque amamos, porque estamos dispostos a sacrificar tudo para demonstrar o nosso amor a outro ser humano. Fui sempre tímida na maneira de estar no mundo, mas determinada na defesa dos valores que entendia que eram fundamentais.

 

Não se incomodava com a má reputação que o meio artístico então gozava?

O meu pai consentiu que fosse para o Conservatório. A minha mãe não gostava e chorava, exactamente por causa dessa ideia de que o curso de teatro era um curso de perdição e o teatro era um local de perdição. Mas o meu pai dizia, e com razão: «Não são as profissões que fazem as pessoas, são as pessoas que fazem as profissões. Acredito e tenho confiança na minha filha, mas com uma condição: tirar um curso superior». Fiz exactamente isso. Fui fazer ao Liceu Pedro Nunes o antigo sétimo ano e o exame de aptidão à faculdade, e entrei na faculdade. Representei quatro anos no Teatro Nacional com uma mestra admirável por quem tinha a maior consideração e respeito, Amélia Rey Colaço. E todas as noites tinha a minha mãe como companhia para ir para o Teatro Nacional.

 

«Benilde» foi uma das suas interpretações mais notadas. Quando Manoel de Oliveira filmou o texto, participou do elenco.

Depois fui fazer a «Casa da Bernarda Alba» do Lorca, uma personagem totalmente diferente da Benilde. Foi em 48, ainda fomos ao Porto, mas não nos deixaram representar, porque acharam que era uma peça revolucionária. Deu-me um grande desgosto. A própria figura da Bernarda Alba, representada pela grande actriz que era a Palmira Bastos, era a encarnação da ditadura.

 

Que legado deixa aos que lhe são próximos?

Não deixo nada de especial. É uma actuação, uma vida alimentada pelos grandes valores que eu própria assumi dos meus pais: o respeito pelos outros, o sentido da solidariedade com aqueles que são os mais frágeis na sociedade, o amor ao próximo, o respeito pelas suas opções religiosas, políticas, etc. Já não tenho muito para dar. Podia ficar em casa a gozar de uma certa comodidade a que teria direito... Mas não sou capaz.

 

Se se aquietasse, morreria mais cedo?

Acho que sim. Parar é morrer, diz o povo.

 

Sente-se viva, desta maneira.

Não sei funcionar de outra maneira. Quando agora fui ao Egipto, o meu marido e os meus filhos disseram: «Ai, não vás, é perigoso». Eu vou porque se puder ajudar um pouco que seja, continuo a ajudar. Foi sempre o meu sonho: participar de alguma maneira, para transformar o mundo de intolerância num mundo pacífico e solidário. Aliás, é esse o ensinamento da Igreja. Aquilo de que mais me orgulho é de não me ter acomodado a uma sociedade em que os valores materiais se impõem. Foi isso que me fez reagir e inspirou as minhas acções, que me fez sofrer, mas também ter grandes alegrias.

 

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2004

 

Ler no Chiado (12 Jan)

06.01.17

No próximo Ler no Chiado, a escritora Ana Margarida De Carvalho, o prof. de Direito Eduardo Paz Ferreira e o escritor Richard Zimler vão pensar connosco sobre o significado de batalha, aventura, num mundo alterado pelo trumpismo, pela ameaça, pela desagregação. Nesta discussão, a literatura ocupa um lugar central, é instrumento do pensar.

Partimos dos romances "Não se pode morar nos olhos de um gato" e "O evangelho segundo Lázaro" e da crónica e ensaio de "Por uma sociedade decente".

Juntem-se a nós no Ler no Chiado, 12 Janeiro, quinta feira, às 18.30, na Bertrand do Chiado. Eu modero.

Ler no Chiado é uma iniciativa mensal da revista Ler e da Bertrand.

"Que há-de ser da longa batalha/ que nos fez partir à aventura?/ que será, que foi/ quanto é, quanto dura?": Sérgio Godinho, canção "Que há-de ser de nós?".

 

 

Curso de Cultura Geral

02.01.17

O programa Curso de Cultura Geral (estreia dia 8 de janeiro, na RTP2, às 22.35) propõe uma interrogação sobre a noção de cultura geral, suscita uma variedade de respostas dadas por pessoas de proveniências culturais, sociais e etárias distintas.

Reforçando a ideia de que não há uma lista única, canónica, um modo único de ler e apreender a realidade, três pessoas em cada programa elaboram uma lista de experiências de cultura que foram significativas para si, discorrem sobre o entendimento que têm de cultura e o modo como ela contamina a vida de todos os dias. Então, o programa não será sobre as obras que mudaram o mundo, mas sobre as obras que mudaram o mundo daquele entrevistado. E pode falar-se da leitura do Diário de Anne Frank, de ver Caravaggio numa igreja em Roma, da obra de Sophia, Pina Bausch, de uma mãe que ensina que não é preciso escolher entre ciências e letras, da experiência de viver fora do país, de ser médico e aprender com Abel Salazar que "um médico que só sabe de Medicina nem de Medicina sabe".

A escolha de convidados é abrangente. Há figuras conhecidas do grande público, há pessoas que não são conhecidas. Há professores, agentes culturais, uma bancária, um padre, uma menina de 22 anos que estuda escrita criativa, uma especialista em estudos islâmicos... A paridade foi uma preocupação, e no conjunto dos 13 programas mais de metade dos 39 convidados são mulheres.

Para dizer com Guimarães Rosa, "mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende". Ou seja, este será um curso no qual todos são discípulos e mestres, dispostos a partilhar e aprender.

O programa tem a duração de 50 minutos, periodicidade semanal, autoria e apresentação de Anabela Mota Ribeiro.

Curso de Cultura Geral é uma declinação muito livre e desenvolvida de um trabalho que a autora fez para o jornal Público, "O que é ser culto hoje?".

 

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