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Anabela Mota Ribeiro

Guernica

26.05.17

Comecemos por um quadro de Magritte, pouco visto, que faz parte da exposição “Encuentro con los años 30”, inaugurada no início de Outubro, em Madrid. É uma tela de médias dimensões, pintada entre os anos 1936 e 1937, em plena Guerra Civil Espanhola. É uma pintura escura, onde não se vislumbra esperança. Num céu ameaçador, há aviões de formas fabulosas, cinco. Não há neles qualquer dimensão lúdica, ou leveza. Pesam chumbo.  

A Europa daqueles anos talvez fosse assim. Despontavam os totalitarismos, havia na atmosfera um prenúncio de guerra. Uma grande guerra, a Segunda Guerra, com outra, fratricida, a acontecer ao lado, no mapa. Mesmo um pintor surrealista como Magritte pintou o quadro rente à realidade. O título é “A Bandeira Negra” (“Le drapeau noir”).

A resposta não é categórica quando perguntamos sobre que falava Magritte. Podia ser da guerra em Espanha, podia ser do ambiente que se respirava na Europa, podia ser do apoio da Alemanha à trincheira franquista. Em qualquer caso, era um horizonte sombrio, de incerteza. Um daqueles momentos da História em que tudo pode acontecer. Como aquele que hoje vivemos, e que perigosamente (mais do que gostaríamos) nos remete para os anos 30, e para a espiral de crise económica e social, deriva fascista no campo político, conflito militar entre nações.

A exposição que pode ser vista no Museu Reina Sofía é sobre esses tempos. É um documento e uma aula de História que tem como pretexto os 75 anos da “Guernica” de Picasso, mas que está longe de se esgotar nessa obra que é talvez a mais poderosa mensagem anti-belicista de todo o século XX.

Picasso pintou o mural na sua casa de Paris, Rue des Grands Augustins, 7. À noite. Quando a luz artificial era mais exacta, e propiciava um jogo de sombras mais contrastadas. Foi uma encomenda. A peça deveria integrar a representação espanhola na Exposição Internacional de Paris. Ano: 1937.

Dora Maar, musa, amante, fotógrafa, registava os diferentes momentos da composição da obra, do outro lado da sala. Como hoje, no museu: os registos fotográficos de Dora Maar estão na parede em frente. São fotografias pequenas, íntimas, que deixam perceber a relação corpo a corpo com o desenho, a rasura, o repensar, o compreender, o momento de reduzir tudo a cores de morte e transformar “Guernica” num grito.

Podemos ler na obra a tragédia de um coro grego, os despojos ainda fumegantes de um mundo que deixou de existir. A despeito do cinzento, tudo na “Guernica” nos fala à carne e ao sangue. Nada está em cinzas, seco. O tom cromático é o do luto. O lamento tem nele a cor da incompreensão, do absurdo, do sofrimento. Não é preciso que seja vermelho para que se veja nele a carnificina. É um quadro de um período de atordoamento. O que é que nos aconteceu?, poderia dizer, gritando, a mulher que se vê no lado direito da tela, braços levantados, as mãos suplicantes.

“Guernica” é o bombardeamento de Guernica, pequena aldeia de sete mil habitantes, numa manhã como as outras, pelos aviões alemães, a pedido de Franco? É a guerra civil espanhola? E se for qualquer guerra? Não é categórica a resposta quando perguntamos do que falava Picasso. Nem do que falam, hoje, os líderes de uma Europa à beira do colapso. Eles sabem que é tempo guerra? E é deveras tempo de guerra? A utopia do projecto europeu, paradigma de desenvolvimento e liberdade, está em risco de desaparecer?

As perguntas não estão na exposição, mas inevitavelmente elas fazem-se quando nos confrontamos com as peças que aí constam. Parece que foi há pouco. Setenta e cinco anos foi quando os nossos avós, os nossos pais nasceram. A memória é fresca. Há pessoas vivas que se lembram do bombardeio de Guernica, da população do País Basco dizimada, das mães que perderam filhos (há uma Pietà, à esquerda, no quadro de Picasso), dos corpos decepados (há um braço, o que resta de um braço, a segurar uma espada partida, e milagrosamente há uma flor que essa mão segura), do choro e do ranger de dentes (como é próprio do apocalipse). Há pessoas que seguiram as notícias da guerra civil de Espanha como se essa fosse a sua guerra, passada dentro da sua casa. Pessoas que se mobilizaram politicamente por causa do que ali estava a acontecer. Todos fomos espanhóis de 1936 a 1939.

O génio de Picasso fixou essa agonia. É uma obra de arte que é um manifesto político. É a sua forma de dizer isto que disse também em palavras: “No, la pintura no está hecha para decorar las habitaciones. Es un instrumento de guerra ofensivo y defensivo contra el enemigo.” Goya tinha dito o mesmo, noutros termos, quando pintou o “3 de Maio de 1808” (a obra está no Museu do Prado) e quando nos pomos no lugar dos homens que estão prestes a ser executados. Disse o mesmo nas suas famosas pinturas negras, de caras esfomeadas. Como é possível que o pintor da corte, o mesmo que pintou a “Maja Desnuda” e a “Maja Vestida” em tons cálidos, tenha pintado o horror daquela maneira?

Goya é uma espécie de presença constante e subliminar na exposição. Basta ver gravuras, desenhos, telas de André Masson e George Grosz para o compreender. Além da marca de Goya em Picasso e no imaginário espanhol. O grotesco da guerra está lá. 

Voltemos a “Guernica”. Dimensões: 3.50x7.82 m. Sim, quase oito metros de comprimento. Mas só quando se está ante o quadro se percebe bem a que é que correspondem estes oito metros, porque se fica subjugado por eles. É uma narrativa, desenrolada numa parede, pintada como se fosse uma série de colagens, de sobreposições. Camadas sobrepostas como se fossem corpos amontoados. Não há um centímetro de artifício, literatice, condescendência. Há um vago tom amarelado debaixo da lâmpada e de um olho (dá a impressão que nos segue, persegue). Há um touro (muito espanhol, muito Picasso) de que falam todos os estudos sobre a obra, e um cavalo (mais ao centro) que também grita, e cuja língua triangular corta como uma lâmina.

O quadro parece ainda uma ferida gigante. Há um silêncio na sala onde está, a mesma há cerca de 20 anos. A temperatura do espaço não se parece com a que há em frente a “As Meninas” de Velásquez; nem há o sopro da euforia que se sente na Capela Sistina ou junto à Mona Lisa. Algumas dezenas de pessoas olham “Guernica” devagar, com respeito, intimidadas pelo horror. Não seria despropositado falar de compaixão como sentimento dominante. Ou medo. Medo que também aquilo nos aconteça. De sentir algo parecido. O que nos devolve a questão central da exposição: o que foram os anos 30? Que circunstância excepcional foi aquela em que brotou uma peça como “Guernica”? A excepcionalidade foi só política ou também artística?

Os anos 30 foram mais do que anos de transição. Parece impossível que houvesse tanto para inventar, depois dos míticos anos 20, do esbatimento de fronteiras geográficas, culturais. Mas havia. No final da década, Lorca instalava-se em Nova Iorque, Salvador Dalí em Paris, Brecht reinventava o teatro em Berlim. Nos anos 30 consolidava-se o abstraccionismo, o surrealismo, o realismo. O totalitarismo. O que conduziu à Segunda Grande Guerra. À guerra civil. Explodiu a fotografia, o cinema, a imprensa. Não por acaso, na exposição do Reina Sofía há uma quantidade significativa de cartazes propagandísticos ou de publicidade, um cartaz onde se lê: “Rapidez en el cumplimiento de las órdenes”, filmes, fotografias do bombardeamento de Valencia nas páginas de um jornal. Há uma sala inteira dedicada à repercussão que a Guerra Civil Espanhola teve na imprensa estrangeira. Há obras que nos dão a ligação da arte (de artistas, melhor dizendo) aos totalitarismos soviético e italiano (sobretudo). Há obras que falam da ruptura, da experimentação, do indivíduo que não se submete à hegemonia do colectivo, que não pretende que a arte seja pedagógica, que recusa que a arte seja instrumental da política e da guerra. E no deste discurso centro, uma obra que é política e que fala da guerra, ainda que a sua raiz seja a do humano em sofrimento.

Esta exposição é uma parte de um díptico. Em Madrid, são dois pisos e centenas de obras que exploram a multiplicidade de encontros que se deram nos anos 30. Entre artistas, entre artistas e poder, entre diversas disciplinas e suportes, tendo como âncora a obra de Picasso. Em Nova Iorque, é uma exposição no Guggenheim Museum centrada no que Picasso pintou em branco e preto, entre 1904 e 1972. São118 obras, muitas delas da colecção particular do artista, raramente vistas. O propósito é situar a “Guernica” no contexto da obra de Picasso, como, na mostra no Reina Sofía, é situar o mural no contexto dos anos em que ele foi feito.

Se a exposição é boa? É. Talvez tenha excesso de informação, como têm uma boa parte das exposições dos nossos tempos. Ou talvez não, se pensarmos que precisamos dessa informação para entender, justamente, os nossos tempos. O catálogo (custa 40 euros!) é um livro de tamanho A5, 400 páginas, repleto de ensaios sobre os anos 30.

Nem há uma semana, duas ruas abaixo do museu, milhares de pessoas protestavam contra as medidas de austeridade, erguiam bandeiras, agitavam cartazes. A exposição continuava cá fora? A escolha, a resposta, também são nossas.

 

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012  

 

 

Picasso

26.05.17

“Je dessinais comme Raphaël”. Em francês, Picasso disse à amiga Gertrude Stein: “Diziam que eu podia desenhar melhor do que Rafael, e provavelmente tinham razão; talvez eu desenhe melhor. Mas, se eu desenho tão bem quanto Rafael, acredito que isso me dê pelo menos o direito de decidir qual é o meu caminho”.

Não era caso de soberba. Era um génio que falava e que sabia que podia medir-se com os mestres.

“Challenging the Past”, a exposição que pode ser vista na National Gallery em Londres até Junho, e que antes extasiou os franceses, é a comprovação permanente dessa relação. Picasso e Velasquez, Picasso e Delacroix, Picasso e Manet, Picasso e El Greco, Picasso e a escultura clássica. Picasso e Picasso, numa inesgotável reinvenção de si mesmo.

É a primeira vez que Picasso se exibe na National Gallery. Mas passo a passo, sala após sala, percebe-se que o homem nascido em Málaga em 1881, um modernista, é um clássico entre os clássicos. É um competidor que se apropria da linguagem dos mestres e que impõe a sua linguagem. Não por acaso, usa-se amiúde, no catálogo da exposição, a palavra wrestling. Manifesta, face a um problema, a intenção de o resolver (resolver o quadro); face a outro, o desejo de o submeter e vencer. Picasso era assim. Sabia que desenhava como Rafael. Talvez desenhasse melhor do que Rafael. E não era ousadia afirmá-lo.

Comecemos pelo princípio. A arrumação da exposição não é cronológica. Está organizada em núcleos temáticos: Natureza Morta, Nu Feminino, Retrato. No essencial, são os temas da grande pintura ocidental e são os temas que Picasso mais desenvolveu. O que a exposição permite imediatamente perceber, se restasse alguma dúvida a esse respeito, é a capacidade de Picasso se reinventar a si próprio. Pintar como Goya e o resultado ser Picasso. Pintar como Van Gogh e o resultado ser Picasso.

Dois exemplos: a cabeça de um homem com chapéu de palha pintado em 1971 e que se cola ao famoso auto-retrato de Van Gogh também com chapéu de palha. Ou a imagem que ilustra o catálogo da exposição: um retrato cubista, em tons de azul, igualmente com chapéu de palha.  Outro: a celebérrima Maja Desnuda de Goya, de que Picasso se apropriou em sucessivas variações, executadas nos anos 60. Há uma versão mais arredondada, outra mais angulosa; um proeminente nariz em ambos os casos, e o corpo reclinado no mesmo sentido da voluptuosa Maja de Goya.

Nas primeiras salas da exposição há quadros da fase rosa, quadros da fase azul. Há um auto-retrato do artista enquanto jovem. Pintado em 1906, nele surge com paleta numa mão e a outra enfiada no bolso.  É já o Picasso que conhecemos: olhos enormes, que ora parecem absortos, ora nos sugam pela sua força magnética. Corpo entroncado. A confiança de quem sabe que desenha melhor do que Rafael.

Era já isso que aparecia no seu primeiro auto-retrato, pintado quando tinha apenas 16 anos: confiante, maduro, boémio, dandy. Era assim que se via, ou que queria que o vissem.

Mas no auto-retrato de 1906 há qualquer coisa de touro amansado. Sanguíneo, carnal, imponente, sem ser raivoso. Convém juntar que o touro, além de ser um dos temas recorrentes de Picasso, foi o tema do seu primeiro óleo. Pintou-o quando ainda não tinha dez anos. Nessa idade, se não lhe diziam que pintava melhor do que Rafael, convenciam-no de que podia fazer tudo. Até ser melhor do que Rafael.

O pai, Don José Ruíz y Blasco, pintor, professor nas Belas Artes, curador do museu municipal, notou cedo o talento do filho para a pintura. Incentivou-o a pintar, a fazer dessa a sua forma de expressão. As pombas, que Picasso pintou abundantemente na idade adulta, foram usadas como primeiros modelos. Bem como uma vizinha – criança convidada a posar, imobilizada…

A primeira vez que Picasso se mediu com os mestres foi numa visita ao Prado, quando tinha apenas 13 anos. Conhecia já as grandes obras a partir de reproduções, mas o contacto directo com as telas, a noção de escala, a espessura da tinta, a subtileza da luz, a intensidade da cor – em suma, aquilo que só um contacto directo permite, abriram-lhe horizontes. Treinado para olhar com atenção e copiar com rigor, fez trabalhos nesses sentidos. Pintou, por exemplo, cenas de Velasquez.

Lembrar-se-ia dessa primeira ida ao Prado quando se atirou ao Las Meninas tantos anos passados? A sua apropriação do famoso quadro de Velasquez aconteceu no final dos anos 50. Picasso não o via há cerca de vinte anos. Pintou-o com uma paleta monocromática. Manteve a composição. Alterou a dimensão das personagens. Emerge com especial destaque a figura do pintor. No quadro de Velasquez, o pintor surge do lado esquerdo, a pintar uma tela gigante. Ao centro, las meninas. No quadro de Picasso, o tamanho do pintor é desmesurado – bate com a cabeça no tecto. A cara coincide com a de Velasquez; mas talvez a importância que tem no quadro coincida com a importância que Picasso se dava.

E voltamos ao princípio, ao artista que pinta como Rafael. Àquele que faz comentários deste calibre sobre os intocáveis da História da Pintura: “As pessoas estão sempre a falar do Renascimento – mas é patético! Vi recentemente alguns Tintorettos. E não são mais do que cinema, cinema barato!”. “Daria toda a pintura italiana por um Vermeer”. Noutros dias, reconciliava-se com os italianos: “Miguel Ângelo…, gosto de me perder na obra dele, tão rica e poderosa como uma montanha. Mas Rafael é puro céu: que serenidade de linhas ele possui, que poder!”.  

Havia ainda Delacroix ou Van Gogh. “Aquele sacana do Delacroix era mesmo bom…”. “É magnífica a invenção de novos temas. O Van Gogh: pintou batatas, aquelas coisas sem formas. Ou um par de sapatos velhos”.

Como na escola. Picasso não temia afrontar os professores. Interpelava-os directamente. Discutia opções. Precocemente confiante, recebeu uma encomenda de um convento de Barcelona para copiar dois altares de Murillo; tinha 15 anos. “A ideia aborreceu-me tanto… Copiei-os até determinado ponto. Depois refiz as coisas de acordo com as minhas ideias”. Nada contra Murillo. Picasso fez o mesmo em relação a outros artistas que admirava enormemente.  

Picasso, o prodigioso, sempre viveu com os mestres. Quando se visita um museu e se diz: “El Greco tem umas cabeças extraordinárias”, está a dizer-se que se visita os quadros de El Greco como se visita a casa de um amigo. Estes amigos, que encontrava em museus, sobretudo em Madrid, Paris e Londres, eram realmente amigos.

As premissas em que assentava esta amizade são os da amizade: igualdade e camaradagem. A História e a cronologia eram irrelevantes. “Repetidamente me pedem que explique como é que a minha pintura evolui. Para mim, não há passado nem futuro na arte. Se uma obra de arte não pode viver sempre no presente, ela não pode ser considerada uma obra de arte. A arte dos Gregos ou Egípcios, ou dos grandes pintores que viveram noutros tempos, não é arte do passado. Talvez esteja mais viva hoje do que alguma vez foi”.

Ou seja, Picasso visitava os mármores do Parténon no British Museum e convivia com o que via como se isso lhe fosse contemporâneo. E incorporava esses elementos no trabalho que tinha em mãos. Em relação a este caso específico, é evidente a marca desta visita no quadro “Large Bather”, de 1921. Uma mulher imensa, monumental como uma escultura romana, sentada sobre uma cadeira revestida a tecido drapeado. São as pregas do tecido que imediatamente denotam a influência das figuras do Parténon; mas também a posição do corpo, a leveza que emana do quadro, apesar do peso-chumbo, como se fosse de pedra, da grande banhista. 

No texto que acompanha o catálogo da exposição, e de onde se retiram estes comentários (por sua vez retirados de entrevistas e conversas que Picasso manteve com jornalistas e amigos), conta-se a história do primeiro encontro dos quadros de Picasso com os quadros dos seus mestres. Porque, se é verdade que esta convivência é antiga, outra coisa diferente é vê-los lado a lado.

Fala-se do Teste do Louvre. Aconteceu em 1947 e consistiu no seguinte: Picasso doou ao Museu Nacional de Arte Moderna de Paris uma série de obras suas; temporariamente, os quadros ficaram alojados no Louvre. O director dos museus franceses deu então a Picasso a possibilidade de os disseminar pelo museu, ao longo das várias galerias. Era uma proposta irrecusável. Mas era, ao mesmo tempo, um desafio enorme: como sobreviveria o trabalho de Picasso ao lado do dos mestres do passado? Picasso estava simultaneamente orgulhoso, gratificado, mas também apreensivo. Uma vez expostos, e após um silêncio inicial, explodiu a excitação: “Vê, é a mesma coisa! São a mesma coisa!”.

Este é o tom de toda a homenagem que Picasso faz a Ingres, Poussin, Degas. Uma homenagem que não é nunca submissa. E que faz dele um competidor à altura. Trata-se sempre de um encontro de iguais, em clima de camaradagem. Uma amizade à moda de Picasso, que foi alimentada sempre desta maneira.

Nos primeiros anos, fez-se numa aproximação mais respeitosa, mas nem por isso menos livre. Há dezenas de quadros inacabados, em que o propósito parece ser o de pintar como Toulouse Lautrec ou como Cézanne. Picasso pinta-se com a cabeça empoada como Goya. Pinta-se com um ar alucinado como os Expressionistas. Pinta uma cara ao estilo de El Greco. Fica-se com a sensação de que o mais importante era a experimentação, a incorporação das técnicas do outro. Não é como se dissesse: deixa cá ver se eu sei fazer isto (ele sabia que sabia); é como se dissesse: deixa cá ver como é que resulta se eu pintar como o Van Gogh, como é que subverto o que lá está. Numa linha: como é que o que eu faço supera o que foi feito.

Havia outra razão para nunca completar os quadros: Picasso tinha aversão a completar definitivamente o que quer que fosse. “Terminar, executar, é também dar morte a uma coisa. É dar-lhe um coup de grâce”. 

Picasso tinha horror a copiar-se a si mesmo e esta amizade permitia-lhe, também, estimular-se visualmente, renovar a maneira como pintava. Não era, como o acusaram alguns críticos, um artista que parasitava o que via nos museus e, sobretudo, no seu museu imaginário. Quer nos primeiros anos, quer nos anos de maturidade, visitar os mestres foi um impulso recorrente. A André Malraux disse que estes artistas viviam tanto na sua vida quanto as pessoas que com ele privavam diariamente. Contudo, não era uma convivência pacífica.

Subjacente, havia o desejo de dominar o outro. Ou, pelo menos, de não ser dominado pelo outro. Era uma questão territorial. Como com as mulheres.

O pintor espanhol referia-se assim à relação com Jacqueline Roque: “Aquela falhou porque ela dominava-me”. Em relação aos mestres do passado, a relação era bem sucedida quando Picasso conquistava a liberdade de criar a partir deles, apesar deles. Quando deixava de se sentir dominado por eles. Quando, livremente, criava com eles. Quando ele acreditava que desenhava melhor do que Rafael.

 

 

Manet:

Picasso pegou no Dejeuner sur l’Herbe de Manet no início dos anos 60. É espantoso pensar que a desconstrução dos corpos e do espaço já tinha acontecido há décadas. O Cubismo, lugar de toda a experimentação, tinha produzido Guernica, a sua obra magna, em 1937. Mas não há imediatos sinais desse ciclone num quadro como aquele que Picasso pinta em 1960.

O tom dominante continua a ser o verde. E o essencial da composição mantém-se. Dois homens de sociedade, acompanhados de duas cocottes. Uma, em primeiro plano, nua, que olha de frente o olhador (que somos nós), e uma semi-vestida, dobrada sobre si, que se lava no riacho. À época, o gesto era de uma enorme ousadia e provocação; provavelmente, esta mulher lavava-se depois de manter relações sexuais.

Terá sido o teor do quadro a captar o interesse de Picasso? A verdade é que, além do quadro “principal” de 1960, o pintor espanhol voltar a desenvolver a cena nos anos seguintes. E lá estão; a mulher nua, imensa, que olha de frente o olhador, a outra, que se lava; a folhagem envolvente, as peças de fruta que compõem uma separada natureza morta, os homens, exactamente na mesma posição do original de Manet.

Mas a visitação do quadro do mestre francês não se ficou por aqui: em 1962, Picasso desenhou em cartão algumas figuras soltas, destacadas no almoço sobre a relva. O molde era visível na exposição da National Gallery. E as esculturas a que deram lugar estão expostas num país nórdico, num espaço público.

 

Delacroix

Aquele sacana do Delacroix era mesmo bom… - disse Picasso do pintor francês.

Women of Algiers, pintado em 1834 por Delacroix, foi um quadro inesgotável para Picasso. É uma cena íntima, feminina, sensual. No interior, entre azulejos, tapetes, um cachimbo de água, e uma luz soberba que entra pela esquerda, estão três mulheres sentadas e uma criada negra de pé, em movimento. A carne muito branca, a profusão de elementos (colares, pulseiras, peças de roupa sobrepostas), os sapatos em desalinho, os pés desnudos: tudo aponta para um cenário de lascívia e ociosidade.

Mas talvez seja a utilização de cores quentes o que dota o quadro de uma particular voluptuosidade. Foi isso que Picasso manteve nas variações que fez de Women of Algiers. E o movimento delicado das mulheres, a maneira como se reclinam sobre a almofada, como o corpo diz coisas.

Apesar de ser feito poucos anos antes do quadro de homenagem a Manet, a opção pelo idioma cubista é mais vincada, e numa parte do quadro domina. Porém a figura da esquerda é redonda, “inteira”, tem os seios e o umbigo à mostra. As cores são vibrantes.

Tal como aconteceu com Las Meninas, Picasso fez ainda quadros com figuras parcelares de Women of Algiers.

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios

 

 

 

 

 

    

 

 

 

  

 

 

(Quase) Toda uma Vida - Celeste Rodrigues

26.05.17

“Sozinha de ilusões naveguei em barco parado no rio, despida de emoções atraquei no cais do meu vazio. Foram levadas pelo vento dos sonhos que outrora tive. Por isso canto no fado aquilo que minha alma vive. Ontem fui, hoje não sou, menos serei amanhã. Sinto que a minha sombra vai fugindo apressada. Está tão cansada de mim e eu dela estou cansada.” 

Celeste Rodrigues escreveu estas quadras, que a dizem com exactidão. É fadista. Podia não ter sido artista de variedades, como dantes se usava na carteira profissional, não podia não cantar. Em casa, cantavam, muito, desde sempre. Cantavam como quem partilha, comunica, está. Mais do que a irmã, Amália, é a voz da mãe que elogia como a mais bonita do mundo. 

Nasceu na Beira há 94 anos. Continua a fazer espectáculos no mundo todo, e a cantar em casa, pelo prazer que lhe dá. O seu bisneto mais novo aprendeu a tocar guitarra só para a acompanhar. 

É com ela que vou falar no próximo (Quase) Toda uma Vida, no Centro Cultural de Belém, dia 3 de Junho (sábado), às 17h, sala Sophia de Mello Breyner Andresen. Entrada livre (sujeita à lotação da sala).