António Sampaio da Nóvoa, Magnífico Reitor da Universidade de Lisboa. Uma história que talvez o defina, e que diz respeito à sua primeira tese de doutoramento: “A tese tinha três grandes partes. Quando acabei a primeira fui chamado à universidade de Genebra, ao comité de supervisão, e disseram-me: “A sua tese está acabada”. Respondi: “Peço desculpa, a minha tese são três partes, só fiz a primeira”, “Isto é uma tese em qualquer parte do mundo”. Para mim era irrelevante. O meu projecto era aquele, lutei por ele, criei as condições para o concretizar. A tese tem mil e não sei quantas páginas, em francês, teve de ser toda escrita à mão, batida à máquina três vezes. Batida à máquina para a discutir, depois para ser revista em francês, e por fim para a apresentação. Um trabalho louco. Ninguém me obrigou”. Anos mais tarde, faria uma segunda tese.
O mapa deste académico: Genebra, Madison, Oxford, Nova Iorque, Paris, Lisboa. Cumpre o segundo mandato como reitor da UL, está empenhado nas comemorações do centenário da instituição, tem uma contenda pública com o ministro Mariano Gago. Não faz balanços sobre a sua obra. Concede que talvez tenha poder, mesmo quando não ocupa a sala belíssima da reitoria onde nos sentámos a conversar. (Comentámos os móveis desenhados por Daciano Costa. Foram ditas muitas coisas entre parêntesis que aparecem assinaladas).
É o tipo de pessoa que usa o adjectivo “forte” para qualificar a sua relação com as coisas e as pessoas. Tem um filho e é casado.
Fez dois doutoramentos, em Genebra e na Sorbonne. Começamos por aí?
O meu primeiro doutoramento é de 1986, em Genebra, o da Sorbonne é recente. Fui para Genebra no final da década de 70, Esses anos, centrais para a minha vida, marcaram a minha formação académica e intelectual. Ainda hoje tenho dúvidas se fiz bem em ter voltado.
O que é que o fez voltar?
Houve um episódio familiar muito importante, o nascimento do meu filho, que coincidiu com o fim da minha tese de doutoramento. Mas há muitas opções que não sou capaz de explicar pela razão. Vim.
Se perguntar o que é que procurava, isso pode ajudar a compreender as razões que o tentavam em relação a Genebra, ou as razões que, mesmo numa camada emocional, o fizeram regressar.
As minhas raízes familiares são muito fortes. É uma relação forte com o país. Acredito que isso tenha sido central na decisão. Embora a decisão não tenha sido uma verdadeira decisão. Quase tudo o que me aconteceu na vida não foram decisões racionais – como se tivesse que ser assim.
Tanto mais inesperado num académico.
Talvez. As coisas foram sempre acontecendo, tanto na vida pessoal, como na vida académica. A vinda para vice-reitor: estava nos Estados Unidos, na Columbia University, o reitor telefonou-me, eu disse: “Porque não?”. Foi uma decisão tomada em 30 segundos. A minha preocupação – é talvez a que me define melhor – é a de tentar fazer o melhor possível aquilo que estou a fazer num determinado momento.
Brio?
É uma palavra boa. Também tenho um sentido muito agudo de bem comum. Desde que sou reitor, a única pergunta com que durmo é: “Será que estou a fazer o melhor possível para o bem da universidade?”. Atormentam-me pouco os conflitos, as discordâncias.
No meu pai esta dimensão é fortíssima. Olho para aquele homem e vejo na vida toda uma tentativa de ser o melhor possível no lugar que se está a ocupar. Na minha geração, penso que isso tem a ver com o brio e com a liberdade. Com a ideia de que temos de fazer um país diferente, um país melhor. Tinha 18, 19 anos no 25 de Abril. O país é nosso, é nossa a responsabilidade, temos de fazer alguma coisa por ele.
Novamente Genebra. Há uma geração de exilados políticos, em Genebra, como Medeiros Ferreira, António Barreto, mas é anterior ao 25 de Abril. E não é a sua geração. Porque é que foi para Genebra naqueles anos?
Vou fazer estudos na área da História e da Educação. A rigor, uma parte importante da pedagogia portuguesa passa por Genebra. Esse grupo de exilados: já não conheço em Genebra, mas conheço o único elemento do grupo que fica, o Carlos Castro de Almeida, que estava na Organização Internacional do Trabalho, e de quem me torno amigo. É em casa de quem vivo uma parte da minha estadia em Genebra. Eu tinha a certeza de que queria sair de Portugal.
Foi numa altura em que havia um empenhamento geracional, de reconstrução do país. Mesmo assim tinha a certeza de que queria sair. Foi uma desilusão em relação à convulsão dos anos do PREC?
Não, foi uma necessidade de silêncio. A minha vida é pautada por uma necessidade brutal de silêncio. Sou como o Jorge Luís Borges: imagino que o paraíso é uma enorme biblioteca de livros. E estar sozinho no meio daquela biblioteca. O primeiro ano que estive nos Estados Unidos, em 1993/94, foi na universidade de Wisconsin, Madison. Apesar de Madison ser no Midwest, no meio de nada, com temperaturas de graus negativos durante meses, tinha uma biblioteca central fantástica. Estava aberta 24 horas, tinha vários andares, corredores imensos onde não havia ninguém, e onde passeávamos em acesso aberto. Chegava à uma, duas da manhã: “Ainda estou aqui metido…”.
Não sou pessoa de convívio social intenso. Os anos que passo em Genebra são anos em que não vejo quase ninguém.
Isso significa, sem jantar em casa de amigos, sem participar em discussões, regularmente? Era o oposto do que se vivia em Portugal, sobretudo naqueles anos tão politizados em que tudo se passava na esfera pública.
Ainda hoje, neste cargo como reitor, a parte mais difícil para mim é a parte social. Faz parte do ofício, mas não há nada que me canse mais do que jantares, ter de ir a uma recepção. Trocaria qualquer jantar social por cinco horas de trabalho numa biblioteca.
É também uma certa insegurança? Quando estamos num espaço público, há um mínimo de sedução dos outros que é preciso fazer. Há uma personagem que acabamos por encarnar. O que pode ser desafiador ou fatigante.
Creio que não. Há uma dimensão de timidez muito forte, isso há. Esse ambiente social, dos jantares a 20, são coisas em que circulo mal. Gosto do diálogo a dois, a três. Dou-me razoavelmente bem com as multidões – a multidão permite anonimato. (É desafiante ter de falar para muitas pessoas. Tenho ido muito ao Brasil nos últimos anos, onde o meu trabalho ganhou uma dimensão surpreendente. A última vez fiz uma palestra para seis mil pessoas. Não tenho nenhum pânico. É inspirador e estimulante.)
Os meus pais nunca cultivaram esse jogo social. É um ruído grande.
O que é que se valorizava na sua família?, a inteligência, o saber, o reconhecimento social?
Boa pergunta. Teria tendência para dizer que era o trabalho.
E não tanto a exigência em relação ao resultado?
Não. O meu pai é juiz, a imagem que tenho dele é a trabalhar nos processos. A cultivar o sentido de família, muito alimentado pela minha mãe. Eram famílias, do lado do meu pai, nobres. Os meus avós tinham quintas, palácios, mas tinham sete filhos, todos a estudar na universidade, em Coimbra. Não deve ter sido fácil do ponto de vista económico. Na nossa casa sempre vivemos de forma muito contida.
E a sua mãe, como é que ela era? O que é que valorizava?
A minha mãe é um poço de energias, de afectos e de cuidados. O meu pai é da zona de Famalicão, Guimarães, a minha mãe é de Valença do Minho, quase galega. Casaram cedo. Os meus irmãos e eu (somos cinco) nascemos todos na mesma cama. A minha mãe nunca trabalhou, o investimento principal dela foi sempre nos filhos, netos, sobrinhos, primos, uma rede vasta. O lado religioso é muito importante nela. Também é no meu pai, ainda que de maneira diferente.
Porque é que não estudou Direito? Estou a perguntar porque é que não quis ser juiz.
Nunca me pus a questão. O meu pai, apesar de não o dizer, gostaria que algum de nós tivesse ido para Direito. Nenhum foi.
Porque é que são estes os seus assuntos, a Educação, a Psicologia, a História?
Foram sendo. A História tem uma razão óbvia: somos antepassados directos do Alberto Sampaio, o amigo de Antero de Quental. Na quinta de que falava, havia o quarto do Antero. Fomos educados desde muito cedo no fascínio do Alberto Sampaio, do Antero de Quental, dessa geração de historiadores. Esse fascínio traz-me até aos dias de hoje. António Sérgio é a pessoa que mais influencia a minha trajectória de pensamento, e falando no Sérgio estou a falar de Antero de Quental. (Vou descobrir uma autobiografia do Sérgio, em Genebra, que venho a publicar.) Antes do Sérgio, a filiação é claramente no Antero. Depois do Sérgio, a filiação é claramente no Vitorino Magalhães Godinho.
Apresente melhor o seu antepassado, Alberto Sampaio.
É um homem que nunca teve vida pública significativa, que não gostava de vida social. Era recatado, calmo, muito diferente do Antero e do irmão dele, o José da Cunha Sampaio, que foi também colega do Antero em Coimbra. Agricultor, ligado à terra. Vive uma vida inteira de trabalho sistemático, para no fundo, tudo resumido, escrever dois livros fininhos.
Não é o seu caso. Tem uma obra extensa.
Mas tenho uma pena disso que nem calcula.
Uma pena?
Quando se consegue ter uma vida para escrever um livro ou dois, consegue-se pôr nesses livros um conhecimento, uma depuração, uma maturação dada pelo tempo. Hoje temos uma produção científica, não quero dizer do enlatado, mas do escreve, escreve, publica, publica. A tudo isto falta tempo. Adoraria ter escrito apenas um livro ou dois. Se calhar é por isso que os livros do Alberto Sampaio resistem até aos dias de hoje, enquanto os nossos não resistem uma semana.
Está a fazer um bocadinho de género.
Estou a fazer um bocadinho, mas não muito. A produção científica actual não resiste a meia dúzia de meses. E ainda é preciso que alguém a leia.
Hoje publica-se para construir carreira?
Acho que é isso. Vivemos numa sociedade, e há aspectos positivos nisso, em que somos mais autores do que leitores. Escrevemos mais do que lemos. Quando lemos, lemos para escrever, lemos de forma instrumental, como apoio à escrita. Não lemos como se lia no séc. XIX, no princípio do séc. XX.
A opção pela História é muito forte. A opção pela Educação é menos óbvia, mas que se justifica pelo sentido da responsabilidade social.
É o lado político daquele que emergiu no pós 25 de Abril?
É. Acabo por me encontrar, de uma forma completamente absurda, a dar aulas numa escola de formação de professores, em Aveiro. A saída e a vontade de parar teve a ver com a consciência muito nítida de que não tinha formação, não tinha qualificações para fazer o que estava a fazer. Tinha que me formar do ponto de vista universitário, de carreira, e Genebra apareceu.
O que foi perseguindo foi o Saber, o Saber que está no meio dos livros. Primeiro em Genebra, depois nos Estados Unidos, depois em Paris. Recapitulando, como é que circulou nesta cartografia? O que é que o fez passar de um ponto para outro?
Todas as narrativas que fazemos sobre nós próprios são construções, e são de algum modo invenções. Mas quando olho para a minha história acho que ela é feita de uma série de acasos tremendos. A história da minha vinda para a Universidade de Lisboa é porque encontro um senhor na Feira do Livro, o professor Albano Estrela, que me conhecia de miúdo, e de quem me tornei amigo, e que me pergunta o que é que andava a fazer. Digo-lhe que tinha acabado de fazer uma tese na universidade de Genebra. “Hás-de mostrar-me a tua tese um dia destes”. Numa altura em que as teses que fazíamos no estrangeiro levavam anos a ser reconhecidas em Portugal, quando o eram. Tinham-me dito que a minha tese jamais seria reconhecida em Portugal.
Um parêntesis: contaram-me que uma pessoa chegou a Portugal com uma tese feita em Harvard, e que esta não foi reconhecida na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Parece uma história incrível. Afinal pode ter algum cabimento?, acha que as universidades portuguesas são assim?
Agora já não são, felizmente. Uma das mudanças mais revolucionárias que fiz na Universidade de Lisboa – se calhar porque é uma maneira de resolver problemas que eu próprio tive – foi que o reconhecimento de qualquer diploma europeu é feito em 24 horas. A minha secretária só entrará por aquela porta por uma razão: se houver um diploma desses para assinar. Tem instruções para interromper qualquer reunião em que eu esteja, pode ser um júri de doutoramento, se estiver em causa o reconhecimento de uma equivalência dessas. Assino e a pessoa leva na hora.
Porque é que era assim?
Os chumbos eram sistemáticos. Tudo valia como argumento. Era uma maneira de proteger a corporação que estava cá.
Levo a tese ao Albano Estrela, sem grande esperança, e no dia a seguir de manhã, ou nesse mesmo dia à noite, telefona-me: “Queres vir para professor da Universidade de Lisboa?”. Eu disse: “Como? Não tenho tese reconhecida”. “Esta tese, temos de a reconhecer. Se quiseres, vem já”.
Isso acabado de regressar de Genebra.
O que era mais normal, tendo em conta o meu percurso anterior, era que fosse parar a uma Escola Superior de Educação, que estavam a começar a nascer.
O que é que não foi acaso e o que é que resultou de uma determinação sua, de um investimento nesse sentido?
Que me lembre, nada.
Ainda vai ser acusado de ser um diletante. Porque é que não teve de lutar por qualquer coisa, porque é que não teve de se empenhar? Tinha a tranquilidade de que alguma coisa havia de surgir?
Lutei por muitas coisas na vida, em função do que me foi acontecendo.
Mas não foi um estratega?
Não, a minha vida podia ter acontecido de uma maneira completamente diferente. Foi sempre investir no que me foi acontecendo. As decisões mais importantes que tomei na vida, tomei-as em segundos, e sem ter bem a consciência de onde é que me estava a meter.
Mas confiante na sua intuição.
Confiante. Há coisas que sei que posso fazer bem. E houve muitas outras coisas a que disse não em segundos. Coisas tão fora do que gosto de fazer, do que sou, da minha maneira de ser. Quando venho para vice-reitor, nunca tinha entrado neste prédio.
Foi em 2002. Qual foi o acaso que o trouxe cá?
Estava em Nova Iorque, sossegadinho, a fazer o meu trabalho. Estive nos Estados Unidos um ano e tal, dos Estados Unidos fui para Paris, mais um ano. Depois estive em Portugal uma série de anos. Depois fui um semestre para Oxford e um ano e tal para Nova Iorque, para a Columbia [University]. Na Columbia convidam-me para ficar, mas não tinha dúvidas: sabia que não ia aceitar.
Columbia é uma das mais reputadas universidades do mundo, porque é que tem a certeza que não quer ficar?
Preciso de estar em lugares que sinta que são a minha casa. (Há duas cidades que ultrapassam tudo, Nova Iorque e São Paulo. São Paulo é uma cidade delirante, mais até que Nova Iorque). Gostei imenso de viver em Nova Iorque, mas sentia-me sempre num país estrangeiro. Talvez tenha a ver com a língua. Não penso em inglês. Penso em francês.
Por mais fluente que se seja na língua, é-se estrangeiro. De Genebra, regressou quando teve um filho, e falou da base familiar. Os afectos são em português. Esta dimensão da língua, e de as outras nos serem estrangeiras, acaba por ter um peso significativo na sua vida.
Sim. Estar em Nova Iorque foi uma maneira de alargar as minhas redes às comunidades anglófonas, e passar a escrever e a publicar em inglês. (Ontem esteve cá um grande amigo de Madison, que insistiu imenso para que eu voltasse, pelo menos mais um ano). Mas para mim é o estrangeiro, não é a minha casa.
Porque é que lhe assentam bem lugares de poder? Se não os procura, de qualquer modo veste-lhes bem a pele.
Só tive como lugar de poder, este. Fui professor da universidade. É um lugar de poder? Talvez seja.
Sobretudo se se trata daquelas universidades onde leccionou. Quando se tem o seu percurso académico, tem-se poder.
Nesse sentido, um poder de influência, de magistério.
Há pouco falava das corporações de universitários, da maneira como se protegiam. Há um poder que tinham e que não queriam dissipar. Claro que alguns professores têm poder.
Sinto-me uma pessoa mais do contra-poder do que do poder. A pergunta para mim é estranha. O único cargo onde poderia ter tido algum poder, mas foi um cargo de que gostei muito pouco, foi o de consultor do Presidente da República, do Dr. Jorge Sampaio. Não gostei daquele ambiente. Tenho uma extraordinária relação com o Dr. Jorge Sampaio, por quem tenho uma enorme admiração. Mas o lugar concreto de consultor…
A esse lugar foi dar como?
Um dia estava em casa e telefonaram-me. Não tinha falado uma vez com o Dr. Jorge Sampaio. Uma senhora disse-me que o Dr. Jorge Sampaio, que tinha sido eleito há umas semanas, em 1996, queria falar comigo. Pensei que fosse um amigo a gozar. A pessoa não se desmanchava, eu também não. Disse-lhe: “Muito bem, dê-me o número de telefone que ligo para aí”. Telefonei e era mesmo verdade. Ele estava no Forte de Catalazete, convidou-me e aceitei na hora. Depois verifiquei que não gostava.
Diz que, em rigor, o único cargo em que tem poder é este. Gosta de ser reitor?
Sabia que me ia perguntar isso. A parte que tem que ver com o exercício do poder propriamente dito, não gosto muito.
O que é o exercício do poder propriamente dito?
Sou uma pessoa de fazer. Uma crítica imensa que me fazem aqui, que é justíssima, é que faço coisas demais como reitor. Não é porque queira concentrar em mim, é porque sou mais de fazer do que de mandar fazer. Gosto de pôr a mão nas coisas. Delego mal, e quando delego, delego mesmo. As pessoas que exercem melhor estes cargos delegam acompanhando, são capazes de construir uma equipa. Não sou bom nisso.
Porque é que é melhor no contra-poder? O que é isso do contra-poder?
Se me perguntar qual é o único valor que é indiscutível, é a liberdade, e junto com a liberdade, a independência. A liberdade e a independência são por definição qualquer coisa do domínio do contra-poder. São do domínio da apreciação crítica, mais do que do exercício do poder. Dir-me-á que sou ingénuo, mas a minha maior surpresa, nos anos que levo de reitor, é [constatar] como as instituições, e as pessoas que dirigem as instituições, são tão poucos livres, e tão dependentes das estruturas do poder. Tudo neste país está dominado por mecanismos de contactos, redes de influências, pequenos poderes.
Isso é a surpresa de quem vem dos Estados Unidos? Os Estados Unidos são o oposto disso.
Talvez. Nos Estados Unidos, nas universidades onde estive, as pessoas podiam ter opções ideológicas diferentes, mas havia um respeito genuíno pela diferença e pela liberdade académica. Já não havia respeito nenhum se uma pessoa fizesse um esquema qualquer, para arranjar um financiamento ou para ter uma benesse. Em Portugal, sobretudo desde que sou reitor, não vi outra coisa que não fosse um respeitinho. O “respeitinho é muito bonito”, do nosso O’Neill.
Mas também é o O’Neil que diz que “em Portugal a aventura termina na pastelaria”. Isso ainda é válido, não há asas para voar?
Do que estou a falar é mais deste modo funcionário de viver. Imaginava um país mais liberto, mais saudável, menos dependente do telefonema, do e-mail, do contactozinho, de prestar um serviço aqui e acolá. Imaginava as universidades lugares de uma liberdade incondicional. Vejo-me mal nesse tipo de jogos.
Mas quando diz, como disse numa entrevista ao Público, que chumbava o ministro Mariano Gago tem plena noção do impacto que vai ter. Parece um desejo, ou pelo menos uma acção consciente, de afrontar aquele poder.
Não é aquele poder em concreto.
Aquele poder é o poder que o tutela.
A questão começa logo por isso: a tutela. As universidades não são tuteladas por ninguém, são instituições livres. Sei que isso é utilizado noutra definição.
A declaração: fê-la porquê?
Tendo proferido algumas declarações mais críticas, elas eram justas, correctas. Quando certas pessoas, certos governantes, saírem do poder – vão ser aqueles que hoje os apoiam que vão ser os seus principais críticos. Não sei, não gosto ou não me vejo a jogar esse jogo da bajulação, da pequena intriga. Em Portugal isso é fortíssimo na área das universidades.
Vou fazer outra declaração (depois podem dizer que é uma questão de afrontar). É impressionante como a ciência está tão governamentalizada, tão dirigida por mecanismos directos de influências, e como as pessoas vivem bem com isso. Estou a falar de professores por quem tenho o maior apreço, grandes cientistas, pessoas que poríamos na galeria dos nossos heróis. Não é o cientista medíocre, mediano (esse até imaginaríamos que se submeteria a tudo). Tenho dificuldade em perceber como aceitam tão facilmente esta espécie de domesticação quando chega à questão do financiamento.
As pessoas habituaram-se a que se abrirem demasiado a boca não têm dinheiro, se não têm dinheiro não podem fazer obra. Em duas linhas fica resumido.
Mas é triste. Se essa tese é verdadeira, é de uma enorme tristeza para todos nós.
Acha que é verdadeira?
Acho que é, infelizmente. Há uma frase do Mariano Gago, da primeira vez em que é ministro, (era ministro da Ciência, mas não do Ensino Superior, do Governo de Guterres), quando cria os Centros de Investigação Científica. Uma frase que escreve num documento, em que diz que está a criar aquela estrutura para que as pessoas se libertem dos departamentos universitários, e tenham “uma interlocução directa com a Fundação para a Ciência e Tecnologia”. É um eufemismo para dizer “interlocução directa comigo”.
Porque é que acha que Mariano Gago tem sido um ministro tão consensual? É aquele que há mais tempo está no poder. Quando vemos as sondagens, é dos ministros com maior aceitação junto da opinião pública.
Acho que é uma pessoa extremamente inteligente, com enorme experiência política e que fez coisas importantes. Esse sucesso, a muitos títulos, é justo. Deve-se-lhe muito, em muitos planos. Mas isso foi feito à custa deste tipo de funcionamento, deste tipo de dependência. E foi feito em grande parte à custa das universidades. Ele próprio reconhece que não tinha dinheiro para fazer as duas coisas ao mesmo tempo. A opção foi desenvolver a ciência. Até admito, em tese, que possa ter sido uma opção acertada para romper com atavismos e corporativismos existentes dentro das universidades. Mas alguém que ocupa o espaço da universidade não pode deixar de achar que isto é de uma enorme injustiça.
Foi tarde, mas houve neste último Governo uma mudança de política. Houve uma tentativa de reaproximar as dinâmicas universitárias e as científicas, de tentar que elas se integrassem. (No meu discurso de tomada de posse em 2006 peço um contrato de confiança com o Governo. A reacção é violenta. O ministro disse que não há nenhum contrato possível, que os financiamentos são ano a ano.) A crise interrompeu isso.
Quanto tempo mais vai estar cá?
Essa agora... [pequena pausa] Mais dois anos. O mandato termina daqui a dois anos. O ministro colocou no último regime jurídico que a pessoa podia fazer dois mandatos, mas não um terceiro. Acho muitíssimo bem. As universidades precisam de renovação, não há interesse em que haja reitores a ficar muito tempo. Curiosamente, nenhuma norma destas existe para os grandes centros científicos. Nas grandes unidades de investigação uma pessoa pode ficar 20 anos. Foi sempre esta espécie de dois pesos e duas medidas que foi muito difícil de gerir para quem estava numa universidade.
Jamais farei uma avaliação sobre o meu trabalho, as avaliações são para ser feitas por outros e não por nós. É a coisa mais provinciana que existe, aqueles relatórios que se publicam quando deixamos um cargo: “fomos extraordinários, avançámos imenso”.
Uma das iniciativas dos 100 anos da universidade são as 100 lições, dadas por antigos alunos. Se desse uma lição, de que professores falaria, o que é que diria?
Tive dois professores absolutamente marcantes no liceu. Um foi o Professor José Esteves, de Educação Física, que ainda é vivo. É uma grande referência da democracia neste país, do pensar irreverente. O outro foi meu professor de Filosofia, Luís Ardisson Pereira, que quando tinha 15 anos me levou a ler aquelas coisas que são impensáveis para um miúdo de 15 anos, desde o Freud ao Kant. Grande parte do que aprendi na vida devo ao Ardisson Pereira. Há uns anos fui à procura dele, vim a saber que tinha falecido. Fiquei com imensa pena, nunca lhe pude dizer isto que estou a dizer.
É curioso que tenha citado dois professores de liceu e nenhum da faculdade.
Há dois professores que me marcaram na universidade de Genebra. O Daniel Hameline, director da minha primeira tese. Ainda hoje, quando faço discursos, penso nele.
Como se ele estivesse na plateia?
Quase como se estivesse comigo. Era um homem que alimentava a retórica do discurso como nunca vi ninguém alimentar. Falava extraordinariamente bem, cultivava esse gosto da palavra. Ainda é das coisas que mais gosto de fazer e o que sei fazer melhor: dar uma boa aula ex cathedra. Dêem-me um anfiteatro e dêem-me uma hora para falar às pessoas. O Hameline era francês, católico, ortodoxo. Era um homem muito distante, mas no dia do meu doutoramento, no final, (é a primeira vez que se aproxima de mim com mais intimidade, depois de anos a trabalhar), diz-me: “Agora gostava de convidar todos os presentes para um recital de órgão”. Ele era organista. Outro professor, que me convidou para assistente na universidade de Genebra quando iniciei a minha carreira universitária, foi o Pierre Furter. Foi ele que me introduziu nas questões da comparação. Contrariamente ao Hameline, era suíço, protestante. Davam-se mal um com o outro. Ainda hoje me correspondo com ele. Dedico-lhe o último texto que escrevi, numa revista latino-americana, porque a presença dele no Brasil e na América Latina desapareceu. Depois disso há duas teses de mestrado a falar sobre o Furter.
E assim se vislumbra a importância de se ser lembrado, de se ser referido.
Foi uma das coisas que marcaram este centenário [da UL]. A vontade de recordar pessoas, património, o que nos tem acontecido neste século. Pensamos que quando perdemos a memória perdemos apenas o passado, mas não, perdemos o passado e perdemos o futuro. Nem sempre foi fácil explicar isto às pessoas. Mas o futuro só existe a partir de uma construção, de uma reflexão sobre as memórias, sobre o passado. Não há futuro se não houver um trabalho sobre a memória.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010