Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Anabela Mota Ribeiro

Pedro Magalhães

24.04.18

Pedro Magalhães é cientista político. Nasceu em 1970. Encontrámo-nos para falar do país que somos 40 anos depois do 25 de Abril. A despeito da crise e do desencanto com os políticos, a democracia esgotou o seu prazo de validade?

Talvez a frustração seja inevitável. A promessa era grande. Na entrevista faz-se a anatomia de um sonho e tenta-se perceber o  que ficou por cumprir. A esmagadora maioria dos portugueses aponta o sistema judicial como o espinho da flor e uma boa parte deixou de ver a Europa como uma coisa “benigna”.

Muitos cravos para sentir até Abril. O país é olhado pela lupa de um politólogo, desde a revolução até aos nossos dias: “Os nossos partidos são instituições fracas. Quem é que me diz que no momento em que o PSD muda de liderança o discurso do PSD não muda completamente?”

 

40 anos depois, estamos prontos para uma revolução?, precisamos de uma revolução? São duas questões, comecemos por ambas.

Não sou fã de revoluções. As revoluções têm aspectos muito destrutivos, geralmente, e tendo a ser conservador. Gosto de reformas, gosto que as mudanças sejam incrementais. Até porque uma das coisas maravilhosas das democracias é a possibilidade de resolvermos os nossos conflitos de uma maneira pacífica, que aliene o menor número possível de pessoas e de interesses, que gere compromisso.

 

A nossa revolução foi atípica.

Foi, teve um carácter peculiar. Houve vencidos e vencedores (e houve uma sequência em que aqueles que foram vencedores num determinado momento acabaram por ser vencidos noutro). Foi pacífica ou relativamente pacífica. Teve um efeito transformador, não apenas em Portugal, mas em outros países (dos quais éramos potência colonizadora). É sem dúvida uma revolução no sentido em que teve uma grande componente de mobilização popular, teve uma ruptura em relação a um regime que estava estabelecido, avançou de forma muito rápida uma agenda política, de mudança. Mas não foi uma revolução com o potencial de destruição de outras revoluções históricas.

 

Não se cortou a cabeça ao rei.

Não se cortou a cabeça ao rei, não se cortou a cabeça aos que derrubaram o rei. Conseguiu-se uma transição que parecia em muitos pontos quase impossível (devido à intensidade do conflito, aos interesses que não eram apenas domésticos [que estavam em jogo]) e que chegou a um regime democrático em que as nossas diferenças se resolvem dentro das instituições.

 

Há uma ruptura efectiva e uma promessa de mudança. Que se faz?, que fica aquém do esperado?

Ah, é uma questão enorme... A comparação entre Portugal e Espanha é interessante. São dois momentos de mudança de regime quase contemporâneos e contrastantes. Em Portugal há uma ruptura e há um conjunto de ideias e poderes que ficam deslegitimados (pela sua ligação ao regime anterior). Em Espanha há uma transição pactada, e alguns dos principais actores do regime anterior conseguem, através da negociação, construir uma democracia. Outro contraste tem a ver com as promessas. A transição portuguesa, desde o princípio, desde o manifesto MFA, contém uma promessa da mudança das instituições, dos direitos, dos procedimentos, de diminuição das desigualdades, com uma componente social muito forte.

 

As questões que se levantavam na transição espanhola estavam mais confinadas à política?

Sim, à dimensão política e institucional. Em Portugal isso esteve também presente, e gerou conflitos e dilemas e avanços e recuos, mas a componente de mudança social e económica está presente desde o princípio.

 

Basta ver os casamentos que se desfizeram e fizeram de novo, o estilhaçar da família tradicional para perceber como, na sua célula, a sociedade portuguesa se transformou.      

A ideia de que as mulheres precisavam de autorização dos maridos para sair do país, as licenças de isqueiro... Vivíamos num mundo de tal maneira opressivo... Essa mudança nos costumes, na relação das pessoas com o Estado (o que é que o Estado nos pode dizer e não pode dizer, o que é que nos pode proibir ou não de fazer), estava presente na matriz. Os nomes dos partidos...

 

Espelham isso?

Em conferências internacionais, tenho de explicar que o partido de centro-direita em Portugal se chama “Social Democrata”. E que o partido mais à direita é um partido de centro. Em parte é um fait-divers, em parte é importante. Apesar de ter havido mudança geracional nos partidos, apesar de ter havido mudança ideológica, quando comparamos o que é a direita portuguesa com a direita espanhola, vemos diferenças muito grandes. A direita espanhola é muito mais conservadora, inclusive no plano das políticas económicas, mas sobretudo no plano dos valores. Temos esse legado da revolução – uma direita especial no contexto europeu.

 

Pensemos numa figura mítica como Sá Carneiro. Além da influência da social democracia nórdica, eventualmente sublinhada na relação com Snu, com quem vivia, a pergunta é: ser social democrata era a possibilidade, naquele momento, de ser de direita?

Os partidos apresentaram-se constrangidos pelo ambiente da altura. Não era possível com a deslegitimação que houve do regime anterior apresentarem-se como sendo de direita.

 

Ser de direita era ser fascista.

Basicamente era estar ligado ao regime anterior. Se observarmos quem eram as pessoas, vamos encontrar afirmações, textos programáticos, documentos de Sá Carneiro, por exemplo, que são claramente de centro-esquerda. Vale a pena recordar que foi sob o PSD que o Estado-Providência e as políticas sociais mais cresceram. Temos partidos de direita mais heterogéneos internamente do que muitos partidos de direita na Europa. O simétrico disto é dizer que temos um Partido Socialista que é dos mais conservadores da Europa.

 

Porquê?

Em Portugal, a principal clivagem durante a revolução foi entre o PC e os outros partidos. Muita gente que normalmente votaria num partido de direita votou PS.

 

Como opção moderada?

Como opção da luta contra o Partido Comunista. Ainda hoje, o PS, o seu eleitorado, é heterogéneo. O mesmo sucede com o PSD.

 

Tivemos um primeiro ministro socialista, António Guterres, católico praticante.

E socialistas anti-clericais.

 

Quando é que se percebeu que íamos ficar aquém do que tinha sido prometido e sonhado com a revolução?

Diferentes pessoas sonharam coisas diferentes.

 

Mas quase todas estavam envolvidas – e vale a pena destacar isto. Não foi um projecto confinado à política ou às elites de Lisboa. As pessoas aderiram, globalmente.

Sim. Algumas das promessas eram irrealizáveis. E, a meu ver, nem todas eram desejáveis. Um legado negativo da nossa transição foi o papel do Estado na economia das empresas públicas, na nacionalização do tecido económico. (Isto não tem nada a ver com o Estado-Social.) Veio-se a perceber que essas empresas não só não eram bem geridas como permitiam uma circulação endogâmica entre partidos e empresas públicas cujas consequências estamos ainda a viver. Portanto, essa promessa inicial, de que era possível ter uma economia que produzisse bem estar, crescimento, com um papel tão grande do Estado, era irrealizável, e teve que se desfazer ao longo do tempo.

Houve outros aspectos da promessa que se foram realizando. Quando (nas celebrações dos 30 anos) comparámos os dados estatísticos do Portugal de 73 e o de 2003, as mudanças eram extraordinárias.

 

No acesso à educação, índices da saúde?

Essa promessa realizou-se. O declínio da mortalidade infantil – a melhor coisa que podemos pôr no nosso poster, é o resultado mais espantoso. Muito disto não tem a ver com melhores hospitais, tem a ver com os direitos das mulheres; este resultado não teria sido conseguido sem a emancipação das mulheres.

As promessas que não se cumprem: não é apenas um fenómeno português. Nas novas democracias há sempre um momento de desencanto. Quando se luta por um novo regime todas as pessoas têm expectativas diferentes, e a democracia não permite que um grupo ou um interesse realize tudo o que quer em desfavor do outro. É uma vantagem da democracia e uma fonte de frustração. A democracia é o mundo do second best.

 

Por isso é que é o pior sistema com excepção de todos os outros, como dizia Churchill.

É. Todos conseguem e não conseguem exactamente aquilo que querem. Conseguem muitas vezes uma segunda e terceira opção [em relação ao que pretendiam]. “O novo regime vai ser aquilo que nós queremos.” Mas o “nós”, em vários sentidos, não existe. “Portugal deve”, “os portugueses querem”, “é preciso que os portugueses façam”... Os portugueses são um conjunto diverso de pessoas com interesses contraditórios. Quando o Fernando Ulrich falava dos sem abrigo e dizia que eles aguentam, dizia também: nós, nós, nós. Não há um “nós” no sentido em que o Fernando Ulrich o usava. O Fernando Ulrich partilha tantos interesses comigo como eu partilho com a empregada que trabalha em minha casa. Infelizmente há muitos interesses que não partilhamos, temos interesses em conflito, temos estatutos sociais diferentes. Isto para dizer que a frustração de expectativas é inevitável.

 

Há então um inevitável desencanto que sucede a um tempo de magia.

Sim. E uma coisa é garantir liberdade de expressão, de voto, de associação, protecção mínima dos direitos cívicos, liberdade religiosa – é desses direitos que faz a democracia e é uma conquista que não é de somenos. Mas depois vem o resto. O resto é aquele momento em que nos damos conta que uma coisa é a construção desta democracia, feita de procedimentos e de direitos, outra coisa é a qualidade da democracia.

 

O que leva alguns a dizer frases do tipo: “Isto nem é democracia nem é nada”.

As democracias mais antigas (Inglaterra, Estados Unidos, Europa do norte), com todos os seus problemas, foram resultado de processos de baixo para cima. Dou um exemplo. Temos partidos de centro-esquerda, como os alemães também têm, o SPD. Mas nesses países os partidos de centro-esquerda são uma emanação dos sindicatos. Em Portugal os sindicatos foram criados pelo Estado.

 

E hoje estão ligados ao PC, no caso da CGTP...

E a UGT ao PS e ao PSD. Isto dá-nos logo uma ideia de que o processo não foi o mesmo. Isto mostra-nos porque é que em Portugal, na Grécia, nas democracias da América Latina os sentimentos das pessoas em relação aos partidos e a sua sensação de não serem representadas pelos partidos são mais intensos do que nas antigas democracias. A mesma coisa com o centro-direita. Há muitos partidos de centro-direita nas democracias mais antigas que são uma emanação das igrejas, são uma manifestação política do poder da igreja.

 

O que é que não temos na nossa democracia, se temos liberdade de expressão e outras formas de liberdade, como já apontou?

Temos um sistema judicial que funciona mal. Temos um aparelho de Estado que elabora más políticas, que é rapidamente colonizado pelos partidos.

 

Está a dizer que o sector da justiça é o mais deficiente da nossa democracia? Aponta isso à cabeça?

Aponto eu e apontam as pessoas. Nos inquéritos, quando perguntamos: “Qual é o aspecto mais deficiente na nossa democracia?”, as pessoas convergem para várias coisas; aquela para que convergem mais rapidamente é o sistema judicial. Essas deficiências são heranças de longo prazo. A transição para uma democracia onde há eleições livres, competição partidária, direitos cívicos, pode fazer-se de uma forma relativamente rápida. É no resto que a História, a sociedade, a interacção com as instituições mostra as nossas deficiências. E por isso é difícil continuarmos felizes e realizados pelo facto de termos eleições livres ou liberdade religiosa. Não temos muito do resto que nos outros países faz parte do pacote, que foi desenvolvido historicamente durante muito tempo.

 

Temos uma cidadania pouco participativa.

Pouco envolvida, passiva. As pessoas desconfiam muitíssimo umas das outras.

 

Pensei que desconfiavam, mais do que tudo, do Estado.

Não. A seguir à Bulgária, somos o país europeu em que o cidadão, quando se lhe pergunta: “Acha que pode confiar nos outros ou que todo o cuidado é pouco?”, [mais] responde que todo o cuidado é pouco. 75%, 80%. Experimente perguntar isto a um sueco. É o contrário. Se as pessoas apenas confiam no seu círculo familiar ou de vizinhança mais restrito, e não confiam em pessoas que não conhecem, isto tem consequências que atravessam a sociedade toda. 

 

De que tipo? Fechamento ao estrangeiro, ao diferente?, provincianismo?

Quem é que investe numa empresa se está sempre com medo de um parceiro que não conhece? “E se o outro me vai enganar?” Quem é que se junta para um movimento político, para defender os interesses da sua cidade? Para mitigar isto precisaríamos de instituições do Estado, como o poder judicial, que [funcionassem]. “Eu posso não confiar em ti. Mas se houver algum problema, alguém resolve. Há alguém que vai fazer cumprir este contrato.”

 

As duas coisas estão ligadas...

Estão. “Eu vou organizar os canteiros e limpar a rua porque sei que os outros também farão, que os outros não vão tirar partido de mim.” Toda a gente acha que se fizer alguma coisa vai estar a ser explorado pelos outros e não temos as instituições que nos permitiriam pensar: “Eu desconfio, mas se correr mal, há alguém que vem de cima e faz justiça.”

 

Por mais anos que passem, se algumas coisas não mudarem radicalmente – e, se calhar, à cabeça, o sistema judicial – continuaremos a ser uma democracia (e nesse caso já antiga) mas imperfeita. É isso?

É uma das questões mais interessantes que se podem levantar hoje. Dizemos: novas democracias. Não somos assim tão novos... Quarenta anos já é bastante tempo. Mas os legados históricos demoram muito tempo a desfazer-se. São características quase intrínsecas da sociedade. Por muito que mudemos regime – de ditadura para democracia – as suas consequências continuam a ser visíveis porque são extremamente profundas.

 

As pessoas já viveram mais satisfeitas com a democracia.

Já. Neste momento, somos os europeus mais insatisfeitos com a maneira como funciona a democracia. Só os búlgaros e os romenos estão ao nosso nível. Mas se olharmos para os gráficos da confiança, em dez, vinte, trinta anos, são linhas rectas. Isso não muda. Os emigrantes de segunda geração mantêm a desconfiança [que foi inculcada pelos pais]. Arriscamo-nos a tornar-nos uma velha democracia e uma velha democracia deficiente. Não tenho sinais de que possa ser diferente.

 

Face a isso, retomo a minha primeira pergunta: estamos prontos para um revolução, precisamos de uma nova revolução? Isto está evidentemente ligado ao desencanto que se tem acentuado nos últimos anos, fruto da crise que estamos a viver.

Não quero desvalorizar o que se passou nos últimos anos. Mas se quisermos ter uma visão mais distanciada, esta insatisfação não é dos últimos dois anos. Acentuou-se bastante [com o agravamento] das condições financeiras. Em relação à Europa tínhamos a ideia de que íamos pertencer a um clube selecto, bem frequentado, de países ricos e desenvolvidos. Entrámos nesse clube, mas o nosso cartão não tem tantos pontos nem dá tantos privilégios como outros. Agora descobrimos uma coisa que aprofundou isto: os donos do clube não têm necessariamente os nossos melhores interesses em mente. São mais egoístas do que pensámos.

 

Por “donos do clube” devemos entender, essencialmente, a Alemanha?  

Os países mais ricos e dominantes na União Europeia.

Volto ao princípio: esta insatisfação não é recente. Fala-se de uma década perdida... Não foi perdida. Temos os indicadores da Educação e do PISA para mostrar coisas positivas que aconteceram nos últimos dez anos. Mas do ponto de vista do crescimento económico, da possibilidade de Portugal continuar a convergir com a Europa, são anos de desilusão. Quero chamar a atenção para isto: uma coisa é a desilusão com quem nos governa, e a desilusão sucessiva com vários governos, outra coisa é a atitude em relação ao regime como um todo.

 

Globalmente os portugueses continuam a preferir a democracia.

Uma larga maioria, quando lhes perguntamos nos inquéritos: “Acha que a democracia esgotou o seu prazo de validade? Acha que há regimes melhores?”, continua a apoiar um regime democrático. O que temos é um entendimento do que é a democracia que é mais exigente e mais maximalista do que se verifica em outros países. O último European Social Survey (o inquérito mais importante que se faz na Europa de dois em dois anos) tinha perguntas sobre liberdade de expressão, eleições livres, tribunais que tratam todas as pessoas da mesma maneira, controle da corrupção, igualdade social, combate à pobreza. Perguntávamos: “Até que ponto considera cada uma destas coisas essencial para que um regime se diga democrático?”

 

No fundo, é uma maneira de perguntar a que é que corresponde a ideia de democracia.

Sim. Depois perguntávamos: “Até que ponto acha que o seu país corresponde a esta [ideia]?” Em Portugal, a ideia de que a democracia é também reduzir igualdade social, combater a pobreza, ter tribunais que tratam as pessoas, independentemente do seu estatuto, da mesma forma, faz parte do conceito de democracia. Isto é tão essencial como eleições livres, como liberdade de expressão. Se em Portugal isso é tão essencial, quando perguntamos às pessoas se estão satisfeitas, é claro que estão insatisfeitas.

 

Em Portugal, esse entendimento de democracia, é assim porquê?

Em parte, é um legado do 25 de Abril.

 

Sobre o sistema judicial, uma das queixas que se ouvem é: “Os ricos safam-se sempre, quem se lixa é o mexilhão”. Traduz o sentimento de as pessoas não serem iguais perante a lei.

É um sentimento esmagador na sociedade portuguesa, e que junta a ineficiência do sistema e a iniquidade do sistema. Ouço comentários de juízes que dizem que a imagem do sistema é pior do que o sistema. Admito que seja verdade nalguns indicadores. Mas a percepção não é apenas de ineficiência. É de iniquidade!

 

Há uma classe média que engrossou nos últimos 40 anos e que tem sido especialmente afectada pelas medidas de austeridade. Se olharmos para as manifestações dos últimos anos, foram sobretudo esses que saíram à rua. As pessoas que vivem do rendimento de inserção parecem mais marginalizadas dos movimentos cívicos. Isto vai conduzir a quê?

Não vejo assim tanta participação cívica...

 

Manifestaram-se milhares de pessoas. Em Lisboa, fizeram um percurso, desaguaram na Praça de Espanha e depois cada um foi para sua casa. Não havia uma força política aglutinadora.

“Cada um foi para sua casa” – é um ponto importante.

 

Olhamos para o lado e vemos que o vizinho fez o mesmo que nós. É possível que isto, mais à frente, não produza um resultado?

Em primeiro lugar diria que o grupo dos pobres mais pobres não terá sido tão afectado. Também não havia muito mais para fazer..., quando se faz a fronteira nos 500 euros... Quem de facto perdeu rendimento e qualidade de vida foi a classe média. Na função pública (pelos cortes salariais) e no sector privado (por via do desemprego). Importa ter em mente que as consequências disso ainda não são completamente visíveis.

[A manifestação] da Geração à Rasca, a do 15 de Setembro [de 2012]. Em Espanha, na Grécia, a mobilização é mais activa, mais recorrente do que em Portugal. É impossível que não tenha consequências? O que vejo são diferenças. A grande questão para mim é saber porque é que essas consequências não são tão grandes em Portugal [como são noutros países].

 

Que explicação encontra?

O aumento da desigualdade e pobreza em Espanha foi mais abrupto. Na Grécia, um terço da população não consegue pagar a renda de casa, declara não ter dinheiro para comer proteínas. Em Portugal, os efeitos da austeridade não são, ainda, tão dramáticos. Isto pode ser uma primeira pista explicativa. Segunda pista: em Portugal não há tradição de esse tipo de mobilização produzir resultado. Em França, na Itália, na Grécia, sim, e por isso as pessoas mais rapidamente se mobilizam. Mas não tenho uma resposta clara para isto: “Porque é que os portugueses são tão passivos?”. Posso juntar uma terceira pista: como já falámos, os partidos de esquerda são muito heterogéneos de um ponto de vista social e ideológico. E são pouco independentes do Estado; vivem do financiamento partidário. Excluindo o PC, são pouco encaixados em clivagens sociais reais. Têm menos capacidade de mobilização.

 

Em Portugal vivemos no centrão. Como compreender que durante 40 anos tenha sido assim? Com excepção do CDS, que esteve em governos de coligação, as forças hegemónicas foram o PS e o PSD, e a percepção é a de que “eles são todos iguais”.

A grande clivagem inicial da política portuguesa era entre o PCP e os outros partidos, o que ajudou à heterogeneidade eleitoral de cada um deles, o que ajudou a que durante muitos anos essa fosse a principal luta política. Vemos PS, PSD, CDS juntarem-se em revisões constitucionais – numa oposição ao PCP. Também ajuda [a compreender esse fenómeno analisar] as relações íntimas entre o Estado e os partidos. PS e PSD juntaram-se para criar uma central sindical. PS, PSD e CDS em vários momentos se juntaram para distribuir os despojos dos cargos de liderança das empresas públicas e das direcções gerais. PS, PSD, CDS, PCP juntaram-se para garantir um sistema eleitoral em que nada muda – toda a gente diz que quer mudar, ninguém muda coisa nenhuma. Facilmente entrámos num sistema em que as continuidades não são postas em causa. Dito isto, temos sinais de mudança.

 

Mudança profunda?

Temos um PSD e novos quadros do PSD com posições, no domínio das políticas económicas, mais à direita do que era tradicional. É hoje muito menos verdade dizer que os partidos fazem o mesmo e propõem o mesmo.

 

Por exemplo.

É evidente que este Governo tem políticas de educação muito distantes das políticas de governos anteriores. Exames, transferência de recursos para o ensino privado, o que é que significa o ensino público e que missão deve ter.

 

É uma coisa deste Governo?

É uma coisa desta liderança do PSD.

 

No futuro, e a partir deste momento de encruzilhada, estes partidos têm de se redefinir por dentro? O PSD vai consolidar esta opção mais à direita?

Vamos ver. No PSD, sobretudo na economia, temos um discurso mais liberal, mais a favor do mercado e mais contra o Estado. Mas os nossos partidos são instituições fracas. Quem é que me diz que no momento em que o PSD muda de liderança o discurso do PSD não muda completamente? Se tivesse que apostar, diria que é isso que vai acontecer. Que quando houver um combate político dentro do PSD, vai ser em torno disto, e o PSD pode voltar a ter um discurso semelhante ao que tinha. Basta ver o discurso de figuras do PSD hostis a esta liderança...

 

Pacheco Pereira parece de esquerda.

Manuela Ferreira Leite. Pacheco Pereira. Bagão Félix. Em vários aspectos parecem de esquerda.

Este momento de maior diferenciação política e ideológica, devido à debilidade dos partidos, devido à sua reduzida ligação a interesses reais na sociedade – mudam os líderes, mudam os discursos. O exemplo máximo disso é o CDS. O CDS é aquilo que o seu líder achar que o CDS deve ser naquele momento. [Portas] demite-se do Governo sem perguntar ao partido. As coisas são decididas de cima para baixo.    

 

Não apareceram partidos de extrema-direita. Porquê? Seria natural que eles aparecessem e reunissem as franjas de descontentes com o centrão?

Uma parte do descontentamento é captada pela extrema-esquerda. (Não quero usar “extremistas” como um qualificativo negativo.) Falámos do 25 de Abril: acho que é mais um legado relevante. Há determinado tipo de discurso de extra-direita que é aceitável, plausível e imaginável em Espanha, em França, e que em Portugal não é imaginável. Terceira explicação: a entrada desses movimentos no espectro político é muito difícil. Os partidos que existem estabeleceram barreiras à entrada de novas forças; tem a ver, em particular, com a questão do financiamento. Último ponto: a extrema-direita na Europa combina um discurso que é xenófobo, anti-imigração com um discurso anti-política, anti-partidos e anti-Europa.

 

Os portugueses são racistas e anti-imigração?

Nos inquéritos, vemos que são. O discurso é que não é politicamente aceitável. Não éramos anti-Europa porque a Europa era uma coisa bestial, de pessoas esclarecidas, que nos mandava dinheiro, que governava muito bem os seus países – porque é que não vinha governar o nosso? Estou a ser caricatural... Mas essa ideia de a Europa ser uma força benigna está a desaparecer. Há seis, sete anos, 80% dos portugueses diziam que confiavam muito na Comissão Europeia. Hoje em dia são 20%.

 

Continuamos à espera de um Sebastião que, vindo das brumas, nos vem salvar? Especialmente agora, que estamos perdidos, e em perda.

Reajo contra a ideia da singularidade portuguesa. Não digo que não haja, mas o meu material de trabalho não é esse. Somos parecidos com certos países e diferentes de outros. Não vejo a nossa singularidade, vejo a nossa comparabilidade. Preocupam-me as semelhanças com outros países destas novas democracias, todas elas com muitas promessas e muitas incertezas. O forte sentimento anti-partidos não aparece por acaso, a forte desconfiança dos outros... O mito sebastianista surge sempre porque muitas dessas promessas (de sermos iguais aos países com os quais nos comparamos) não se realizam. Como não se realizam, esse desencanto está mais presente aqui do que noutros países. Não tem a ver com o sebastianismo.

 

Tem a ver com o que não temos.

Tem a ver com o facto de, muito do que imaginávamos que fazia parte do pacote (um Estado Providência desenvolvido, mais igualdade, menos pobreza...) não se estar a realizar. Inclusive há sinais de que estamos em inversão em muitos destes aspectos. A frustração é inevitável. E ainda é maior porque a promessa era muito grande. Temos democracia, mas não temos o resto do pacote.    

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014

 

Curso de Cultura Geral - 22 Abril 2018

22.04.18

O mundo de Manuel Sobrinho Simões foi modificado mais por pessoas, casas, lugares, países, do que por obras de arte. Neste programa, falará mais do avó e do bisavô, médicos, de uma casa onde leu tudo o que havia para ler, das pedras parideiras da sua terra, Arouca; se tivermos tempo, daremos uma guinada até à Noruega, onde Sobrinho fez um pós doutoramento e viu de perto outra cultura, outra forma de viver as estações do ano.

Tatiana Salem Levy nasceu por acaso em Portugal onde os pais estavam por razões políticas e agora vive cá, tem um filho português. É brasileira, judia, ouviu canções sefarditas em crianças. O seu primeiro livro, A Chave de Casa, editado em 2007, constituiu a sua tese de doutoramento e apresentou o fulgor da sua escrita. O jornal inglês The Independent considerou-a uma das melhores escritoras brasileiras de sempre.

O mundo dos livros e das bibliotecas são a casa e a chave de Teresa Calçada, actualmente coordenadora do Plano Nacional de Leitura. Muito do que traz para a conversa é revelador do Portugal em que cresceu: opressivo, anquilosado, machista; e de repente, o espanto, por exemplo, num filme de Antonioni ou numa pessoa com Rui Mário Gonçalves..  

 

A lista de Manuel Sobrinho Simões, cientista

  1. As casas de Arouca e do Bombarral, com o meu Avô e o meu Bisavô, ambos médicos. Li tudo o que havia para ler nas diferentes casas, até Max Du Veuzit;
  2. Arouca pelo Aquilino Ribeiro d’ O Malhadinhas e Um Escritor Confessa-se;
  3. Bombarral e Camilo Castelo Branco;
  4. As pedras parideiras de Arouca;
  5. O pós-doutoramento em Oslo, Noruega. Circulo polar ártico;
  6. O meu Pai (sempre com cachimbo) e o Eça (A Ilustre Casa de Ramires e Os Maias);
  7. Jacques Brel e alguns cantores franceses (mais do que os Beatles…);
  8. A Sorbonne em Paris: o Hotel St. Pierre na Rue de l'École de Médecine e o café Les Deux Magots;
  9. O Brasil: Rio de Janeiro, Chico Buarque, Amazónia, a noção de excesso;
  10. África em 1990/91. Hotel Polana em Moçambique.

 

A lista de Tatiana Salem Levy, escritora

  1. Memórias de uma moça bem comportada de Simone de Beauvoir;
  2. A paixão segundo G.H. de Clarice Lispector;
  3. Viagem à Itália com 15 e com 18 anos (e podemos incluir os Caravaggio da igreja francesa de Roma) e a viagem pela Sicília em 2017;
  4. Viagem ao Vietnã e a procura por Marguerite Duras;
  5. Concerto “Do cóccix até o pescoço”, da Elza Soares, no Mistura Fina;
  6. Cravos, Pina Bausch, no teatro municipal do Rio de Janeiro;
  7. E se elas fossem para Moscou?, Peça de Christiane Jatahy, a partir de As três Irmãs, de Tchekhov;
  8. Cantigas sefarditas;
  9. Caminho Inca, no Peru, e a descoberta da América Latina;
  10. Os diários e as cartas de Kafka.

 

A lista de Teresa Calçada, directora do Plano Nacional de Leitura*

  1. Ouvir muitas histórias. O sotaque brasileiro de um tio-avô: as palavras eram iguais e eram verdadeiros brinquedos. Depois, aprender a ler essas palavras, antes mesmo de ir para a escola;
  2. As inundações de Novembro 1967 em lisboa: a brutalidade da miséria urbana, o encobrimento político, a luta, o imperativo de agir. Revolta pela diferença social entre rapazes e rapariga. O início da consciência política;
  3. Uma amizade com uma mulher livre. Uma biblioteca aberta, que eu podia ler em liberdade. Um biquini vestido às escondidas. Ou o amor livre sem ser no vão de escada;
  4. O Deserto Vermelho (1964), de Antonioni, o primeiro que fui ver sozinha, no Tivoli. Não perceber nada, ter vergonha e ter a certeza de que aquilo é que era preciso vir a perceber...;
  5. A Filosofia: protestos por um curso anquilosado que não correspondia às expectativas e reconhecer que dava ferramentas para a vida;
  6. A Arte: a importância do Rui Mário Gonçalves;
  7. O 25 de Abril. O limite das experiências e emoções. Não ter que sair do país, ter causas, agir, acreditar e desacreditar em liberdade;
  8. Como professora, trabalhar umas horas na biblioteca do liceu de Leiria e descobrir o maravilhoso mundo das bibliotecas;
  9. O campo, os campos de flores, de trigo, de papoilas. As árvores. A terra. O silêncio. A aurea mediocritas.

 

*A convidada preferiu que a sua lista fosse de nove elementos.

Ler no Chiado no Dia do Livro

21.04.18
Dia 23 de Abril é dia do livro.

No Ler no Chiado celebramos a leitura, o prazer do encontro com autores e livros seminais.

Com a Andrea Zamorano, João Tordo, Marta Hugon e Rita Taborda Duarte. Todos escrevem e publicam, excepto Marta, que é cantora e escreve, mas não publica.

Pedi-lhes que elaborassem a lista dos seus livros preferidos (entre 3 e 5); esse é o ponto de partida para a conversa, mas claro que os seus livros, o seu universo criativo e outros são convocados. 

Marque na agenda: segunda-feira, 23 de Abril, às 18.30, na Bertrand do Chiado.

Eu modero.

 

 

Curso de Cultura Geral - 15 Abril 2018

15.04.18

Imaginem um explorador alemão na América do Sul no século XVIII. Um homem de apetite voraz pelo mundo, que condensou numa obra, Kosmos, um imenso saber, e que se interessava por tudo. Da biologia à antropologia, dos vulcões à política. Para ele, a cultura era mesmo geral e as disciplinas não eram estanques. Alexander von Humboldt é o seu nome e é um dos ídolos da bióloga Patrícia Garcia Pereira, especialista em borboletas. Outro sujeito voraz: João Guimarães Rosa. Foi diplomata na Alemanha na Segunda Guerra, passou vistos que salvaram vidas (como o nosso Aristides Sousa Mendes), escreveu um livro que é, segundo ele, uma espécie de Fausto no Sertão brasileiro. Grande Sertão: Veredas é, coincidência, um livro central para duas convidadas do programa de hoje: a escritora Alexandra Lucas Coelho e Rita Natálio, também escritora e performer. Podíamos passar horas a discutir o universo, a linguagem, tudo o que há em Guimarães Rosa, mas aponto apenas duas frases: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. E: “Viver é negócio muito perigoso”.

 

A lista de Alexandra Lucas Coelho, escritora*

  1. Davi Kopenawa/Bruce Albert, A Queda do Céu;
  2. Um volume da Recherche (“Sodoma e Gomorra”), Proust;
  3. Le Clézio, Le rêve méxicain;
  4. Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas;
  5. Épico de Gilgamesh, tradução Francisco Luís Parreira e tradução de Pedro Tamen;
  6. Herberto, Photomaton & Vox;
  7. Orlando, Virginia Woolf.

 

A lista de Patrícia Garcia Pereira, bióloga

  1. Castro Verde: onde passei férias nas escavações arqueológicas dos meus tios em criança;
  2. Museo Nacional de Ciencias Naturales de Madrid. Passei 10 meses no museu a trabalhar com a colecção de borboletas;
  3. Avis: tem imensas potencialidades para trabalhar na construção de uma sociedade mais ecológica, mais sábia, mais rica e mais confortável para viver;  
  4. Fernando Catarino, Professor de Botânica da FCUL, já jubilado;
  5. Alexander Von Humboldt, um homem do séc. XVIII que junta Física, Geologia, Botânica, Antropologia e Política;
  6. Edward O. Wilson é o Humboldt do presente. Inventou a palavra Biodiversidade;
  7. Vandana Shiva: feminista, activista política, dedicou-se à conservação das sementes silvestres da Índia e escola para a promoção da agricultura em pequena escala, muito para mulheres;
  8. Floresta sintrópica: conceito que se baseia na junção de agricultura com floresta. A principal figura é Ernst Götsch, um suíço que foi para o Brasil há mais de 40 anos aplicar os seus princípios a uma fazenda;
  9. Rewilding Europe: podemos viver melhor se conseguirmos criar espaços selvagens em que não há intervenção humana. Não se trata de um retrocesso social, mas de uma forma de promover o conhecimento e contacto das pessoas com a natureza;
  10. Nabokov, já nos EUA, e antes de se tornar famoso como escritor, trabalhou no departamento de entomologia do Museu de Harvard. Fez desenhos.

 

A lista de Rita Natálio, performer e escritora**

  1. Descobrir Clarice Lispector, particularmente A Paixão segundo G.H. que deu origem a uma peça que realizei em 2012, "Não entendo e tenho medo de entender, o mundo assusta-me com os seus planetas e baratas";
  2. Ida para o Brasil em 2012. Uma viagem a Alter do Chão, no Pará, onde desenvolvi parte do projeto "Museu Encantador";
  3. Descobrir a antropologia de Viveiros de Castro e Tania Stolze Lima, o activismo poético de Ailton Krenak e a sabedoria de Davi Kopenawa;
  4. A minha primeira experiência em terreiros de Candomblé;
  5. Conhecer o cinema indígena nas aldeias, Corumbiara e Martírio de Vincent Carelli, que iniciou este projeto do vídeo nas aldeias nos anos 80;
  6. Ler em voz alta integralmente Grande Sertão: Veredas para a minha parceira;
  7. Ter lido e entrevistado Alberto Pimenta e Ana Hatherly;
  8. Enrolar-me na escrita de Gilles Deleuze;
  9. O choque de ler Artaud na adolescência, os Tarahumaras e Para acabar com o juízo de Deus.

 

 

*A escritora preferiu que a sua lista fosse de sete elementos.
**A convidada preferiu que a sua lista fosse de nove elementos.

Curso de Cultura Geral - 8 Abril 2018

09.04.18

Nos últimos anos de vida, o escritor Scott Fitzgerald viveu com uma jornalista, jovem, para quem compôs um curso de cultura geral, onde estavam as obras que ele achava que ela devia conhecer. Ela, Sheilah Graham, condensou a experiência no livro College of One. Foi um curso para um, para uma, e foi uma tentativa de fixar um cânone. A ideia é desafiadora: o que deve constar numa lista assim? Quais são as obras a partir das quais podemos dizer que uma pessoa é culta? Outra coisa é pensar nas referências particulares, nas obras, encontros, livros, experiências que formam cada indivíduo. Isso implica um entendimento de cultura mais abrangente e menos circunscrito à erudição. É daqui que parto para este programa. Muitas vezes há uma coincidência entre o Aristóteles ou a Capela Sistina, entre os indisputáveis do cânone, e os nomes apontados nas listas particulares. Muitas, muitas vezes, não. E as obras apontadas são, sobretudo, peças que tiveram um efeito detonador, um encontro que possibilitou uma expansão do mundo. É com esta imagem de granada e de revelação que começo a conversar com o historiador Rui Tavares, a antropóloga Antónia Pedroso de Lima e Maria Mendes, curadora de documentários.  

 

A lista de Antónia Pedroso de Lima, antropóloga

  1. 25 de abril: despertar da consciência política;
  2. Crescer em Alvalade, adolescência no final dos anos 70/80: os amigos, os cafés, os jardins, o rock português;
  3. A música dos pais: cantores portugueses de intervenção, Jazz, MPB e ópera; a minha música: Beatles e Rolling Stones, Pink Floyd, Doors, Tom Waits. Os concertos: o jazz de Cascais, o Ser Solidário do José Mário Branco, o regresso aos palcos do Miles Davis;
  4. Teatro/ Cinema: O Círculo de Giz Caucasiano de Brecht e A Mãe de Gorki e Brecht. Providence e Hiroshima, meu Amor de Alain Resnais, Ter ou Não Ter de Howard Hawks;
  5. Viver fora do país: Barcelona/Tarragona;
  6. Livros: Cem Anos de Solidão de Garcia Márquez, Memorial do Convento de Saramago, Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, Esteiros de Soeiro Pereira Gomes; O Pregador de Erskine Caldwell, Condição Humana Philip Roth, Americanah de Chimamanda Ngozi;
  7. Estudar Antropologia;
  8. Fazer pesquisa etnográfica: aprender/compreender como “os outros” vivem estando com eles;
  9. Viagens: os EUA, o Egipto, Bali, o Atlas em Marrocos;
  10. Organização de festival Olhares do Mediterrâneo – Cinema no Feminino. Misturar amigos, cinema, antropologia, feminismo, cidadania, luta pela igualdade e divertimento.

 

A lista de Maria Mendes, curadora de documentários

  1. Na infância, conviver com pai mais velho e um ambiente muito distinto dos amigos;
  2. Ler Lavoura Arcaica (1975) do Raduan Nassar na adolescência;
  3. O Casamento, romance do Nelson Rodrigues (1966), lido aos 14, a pedido da escola (contra alguns pais, não os meus);
  4. Documentário Santiago, do João Moreira Salles (2007);
  5. Música brasileira, Milton Nascimento, Minas Gerais, que é hoje a ponte com a memória e o país;
  6. Os vinis do Tom Jobim, que dão rumo quando sinto saudade de casa;
  7. O Evandro Teixeira e o fotojornalismo brasileiro, que me abriram os olhos sobre a política e o detalhe;
  8. O cinema do Eduardo Coutinho, indo ao contrário do que era a televisão;
  9. A vida em Londres como choque com o Rio de Janeiro, e o produto disso;
  10. A exposição Photography and Architecture, no Barbican.

 

A lista de Rui Tavares, historiador

  1. Álbum A Arte Maior de Chico Buarque;
  2. Regresso à Arrifana, no Ribatejo. Uma coleção incompleta da revista Tintin. 1975?;
  3. Regresso a Lisboa, regresso à Arrifana. Tom Sawyer de Mark Twain lido em cima das árvores. Il Cappotto de Alberto Lattuada baseado em Gogol. 1981;
  4. Regresso a Lisboa. A biblioteca municipal da Penha de França: os anarquistas, Proudhon, e uma vida de Tolstoi. 1985?;
  5. A Guerra das Salamandras, de Karel Čapek e uma viagem ao outro lado da cortina de ferro. 1986?;
  6. O Barão Trepador, de Ítalo Calvino 1990;
  7. O Queijo e os Vermes, de Carlo Ginzburg 1991;
  8. O Naufrágio do Minotauro, de Turner, no museu da Fundação Gulbenkian 1993;
  9. A História Trágico-Marítima e as coleções de folhetos de cordel da BNL, 1994-95;
  10. Os documentos da Inquisição de Évora e da Real Mesa Censória na Torre do Tombo, 1996-98.

 

(Quase) Toda uma Vida - Maria Emília Brederode Santos

05.04.18

Maria Emília Brederode Santos nasceu em 1942, formou-se primeiro em Letras, depois em Ciências da Educação (a sua área de estudo e trabalho). Estudou em Portugal e nos Estados Unidos. É uma reconhecida pedagoga, preside ao Conselho Nacional de Educação. 
Viveu intensamente os grandes momentos da História recente. As crises académicas dos anos 1960, o 25 de Abril, a construção da democracia, e, antes disso, a experiência do exílio, o desejo de mudar o país, o mundo. 
Coisas especiais de que podemos falar: o poema grego sobre o envelhecimento que António Sérgio lhe ofereceu, numa tradução feita por ele mesmo. Os pais consideraram o gesto pouco apropriado à criança que ela era então, ela ainda hoje sabe o poema de cor. Ou o poema Liberté, de Paul Éluard, dito pelo Gérard Philipe. Será Liberdade a palavra mais preciosa?

 

Falo com ela no dia 8 de Abril, domingo, às 17h, no pequeno auditório do Centro Cultural de Belém. 

 

O (Quase) Toda uma Vida é um ciclo de grandes entrevistas de vida a personalidades diversas, conhecidas e marcantes da vida portuguesa no último século, com periodicidade mensal.

Antonio Tabucchi

03.04.18

No dia em que aconteceu esta conversa, corriam os últimos ventos e as pessoas circulavam na rua sob uma chuva áspera. Por causa do tempo, Antonio Tabucchi questionava um exílio alentejano, onde deveria escrever o seu próximo livro. É por isso provável que esta entrevista só lhe vá parar às mãos muito mais tarde. Pelo sim, pelo não, acordámos que seria enviada para certa morada em Itália. Algures entre Pisa, Siena, Florença, as cidades onde nasceu, ensina, vive. Em Portugal, a casa fica numa rua íngreme para os lados do Príncipe Real. No cimo de umas escadas, entra-se para uma sala ampla onde se destaca um Pessoa pintado por Pomar. E uma mesa baixa preenchida de livros e de pequenos cadernos, quase cadernos de merceeiro fechados com um elástico, onde escreve os seus livros. Prefere-os porque são facilmente transportáveis. Não sei se por acaso, estava em cima da mesa uma edição especial que compilava os textos manuscritos de Jean Arthur Rimbaud. Foi uma conversa que se demorou pela tarde, interrompida por um café que decidiu preparar, talvez à hora do lanche. Fumou incontáveis cigarros que colocou pacientemente numa boquilha pequena e transparente e que se destina, como, por fim, confessa, à domesticação do vício, mais que aos benefícios prometidos à saúde.

Foi através de um poema chamado «Tabacaria» que o escritor soube de Portugal. Há trinta e cinco anos, ou coisa parecida: uma vida. O poema tinha sido escrito por um homem que, como ele, usava bigode e se chamava Fernando Pessoa. «Tabacaria» foi comprado num quiosque de Paris e trá-lo-ía ao nosso país no ano seguinte. O resto, presumo que saibam. Sobretudo depois de Antonio Tabucchi e a sua obra terem sido revolvidos em dias de colóquio, quando a primavera ainda ia no adro e as andorinhas estavam longe. Tudo dito? Eu diria que não.

  

Com quem almoçou hoje?

Com a Maria José, a minha mulher.

 

Ao telefone disse que a entrevista não poderia ser cedo porque tinha um almoço. Imaginei que pudesse ser um almoço de trabalho ou que aproveitasse a sua estada em Lisboa para rever amigos.

Na realidade, estávamos à espera de pessoas que não puderam vir. Vamos ter um jantar.

 

Cozinha habitualmente?

Gosto, mas não sei qual poderá ser o resultado das minhas andanças pelas cozinhas. Não garanto: às vezes dá, outras não dá. A actividade em si é uma forma de distracção. Ter o rádio ligado e tentar fazer uma receita é uma maneira de passar um domingo.

 

É também uma forma de amor: o resultado depende do que lá se coloca, para lá dos condimentos.

Sim. E tocar nos ingredientes básicos do que é o nosso corpo; as coisas que se transformam depois em células, em átomos, em vida. Tiram-nos a fome, o apetite, e dão-nos a linfa, o sangue. 

 

A propósito do tocar, não escreve no computador. Imaginamos os escritores como pessoas muito cerebrais e desligadas do prazer do tacto. Até que ponto valoriza o seu trabalho que é feito pelas mãos, sem um intermediário que pode ser uma máquina?

A literatura está dentro da nossa vida quotidiana, não vive num sítio a que os platónicos chamavam «Hiper Urano» (para lá de Urano). Há várias formas de literatura e cada uma tem a sua plausibilidade de ser. Como a cozinha não tem só uma receita. Um dia temos vontade de ler um poema do Pessoa, outro uma reportagem sobre ciganos, noutro ainda as memórias sobre um campo de concentração, e noutros dias temos vontade de ler uns versos, sei lá, sobre a cenoura, como fazia o Neruda. A cenoura também existe, não é?

 

Quando falava das diferentes esferas lembrava-me de conversas com outros escritores que se diziam quase inibidos quando interpelados sobre os mundos da sua escrita, porque eram outros quando escreviam.

Não sei se somos a mesma pessoa quando estamos a conduzir o carro no meio do trânsito ou estamos a tomar banho no mar. O comportamento, o ambiente, a relação com o mundo, fazem com que tenhamos de ser diferentes. O nosso ser, e visto que o ser coincide com a maneira de ser, varia durante o comportamento quotidiano. Como varia durante a vida. Uma pessoa é muitos. Somos plurais e tem de ser assim.

 

Há uma coisa que aparece sublinearmente em todos os livros, e no «Afirma Pereira» chama-se «Confederação das Almas», que vai ao encontro desse ser plural. A «Confederação das Almas», elaborada pelos chamados Médicos Filósofos, implica vários eus e um eu hegemónico numa determinada altura da vida. Esta descoberta, que encaixa também no arquétipo do Pessoa, é anterior a Pessoa para si?

Essa sugestão vem antes do conhecimento do Pessoa. Vem, sobretudo, com o Pirandello.

 

Que idade tinha quando descobriu Pirandello?

Quando descobri o Pirandello, vírgula, sem o descobrir, vírgula, foi no liceu. Era uma leitura obrigatória. Mas logo a seguir, no intervalo que tive entre o liceu e a universidade, senti o desejo e a curiosidade de descobrir certas coisas e de reler certos autores, entre os quais o Pirandello. A partir daí as descobertas foram por analogias. Foram as leituras de uma analogia que me parece muito importante no século XX na literatura, na filosofia, na psicologia: a psicanálise. A descoberta que a alma cristã, que é o arquétipo, não é una e indivisível, mas que o homem tem dentro de si quase um exército que constitui nesta multiplicidade uma especificidade e unidade que é aquela pessoa. Isto passa-se com o Pirandello, com o Pessoa, com o Unamuno, com o Freud, enfim, com uma grande parte da grande literatura do século XX.

 

Se pensar quais são os seus pilares enquanto escritor, e no que é possível extrapolar para si enquanto homem, um dos traços fundamentais é essa «Confederação das Almas». O outro assenta numa errância permanente, numa procura desmesurada até atingir o fio do horizonte, que, por sua vez, é inatingível. Concorda com a minha análise? Esses nomes de que falou foram fundamentais nesta construção?

A sua análise tem uma certa razão de ser. Eu preferia falar de funções. Se pensarmos bem, essas pluralidades através das quais nos exprimimos e frequentamos, são as diferentes funções da vida. Num escritor exprime-se com vários livros, várias temáticas; não só com os diferentes personagens mas também com as várias atitudes. É uma espécie de salto nas trevas porque não sabemos onde nos vai levar. É uma ideia arbitrária, e é a minha, de que é este o fascínio da literatura: cada livro é uma coisa diferente. A pior imitação que podemos fazer, ou influência que podemos ter, é de nós próprios. Há pessoas que escrevem sempre o mesmo livro.

 

Não há um fundo de verdade nisso?

Acho que não. Há umas coisas básicas, claro, mas há pessoas que é como se tivessem aprendido uma receita de cozinha: são sempre os mesmos ingredientes e sabem ligá-los muito bem. As pessoas que se sabem imitar muito bem são os maneiristas. Há uns maneiristas de altíssimo nível. Eu gosto mais dos autores, dos pintores que tentam sempre uma aventura nova, mesmo que seja um falhanço.

 

É apologista da imperfeição?

Quando como fico cheio de manchas na camisa.

 

Agora não tem nada.

Era para dizer que não conseguiria conceber uma literatura depurada, perfeita.

 

Consegue dar um exemplo de uma obra imperfeita de que goste particularmente?

Mais do que imperfeita, prefiro falar de literatura com manchas na camisa. Poderia ser uma lista muito grande. O próprio Pirandello de que falávamos; o italiano dele é muito marcado pelo siciliano, não é o italiano que se adopta para se ensinar nas escolas. Sou capaz de gostar mais do português do António Nobre, que parece menos impecável para servir de paradigma nas aulas de liceu. Mas são só os meus gostos. E os gostos... non est disputando! (Do latim: De gustibus non est disputando - Os gostos não se discutem).

 

Estudou muito o latim?

Sim, no liceu, na faculdade. Os meus estudos foram clássicos.

 

No ano de intervalo, entre um e outro, foi para Paris. Como foi essa decisão?

Inscrevi-me como Ouvinte Livre nas aulas de Filosofia da Sorbonne. Era mais um álibi para os meus pais. Ia de vez em quando; mas gostava mais de ir ao cinema. Aqueles cineclubes de Saint Germain onde se podiam ver filmes de vários países do mundo... Paris era uma janela sobre o mundo inteiro.

 

No princípio dos anos 60?

63.

 

O cinema foi uma descoberta? Ou já era um fã?

Por acaso o filme que me enviou a Paris, que teve uma certa responsabilidade, foi «La Dolce Vita» de Fellini. Quando era criança as primeiras emoções vêm com o cinema, não vêm com a leitura. Ia ao cinema com os meus pais e o meu tio; tinha dez, onze anos, ou menos. Era o momento do grande neo-realismo italiano, do De Sicca, do Rossellini, etc.

 

Iam em família, como no «Cinema Paraíso»?

Anda perto. É uma imagem um pouco adocicada para os americanos verem e gostarem. Na minha infância era o pós guerra de um país que tinha sofrido muito. Era a primeira vez que os italianos podiam ver a imagem do seu país, que tinha sido proibida durante 22 anos pelo fascismo. Os meus pais tinham podido ver até então só os filmes dos telefones brancos.

 

Telefones brancos?

São as comédias que também se passavam aqui na época do Salazarismo: uma realidade virtual em que uma senhora anda de boquilha no apartamento, o telefone é branco e fala com o grande amor que vive em Londres.

 

Viu o «Alemanha Ano Zero» do Rossellini? É um filme muito cruel sobre os efeitos da guerra numa cidade e num país completamente devastados. Na Itália não seria tanto; mas não foi por acaso que o filme foi feito por um italiano.

Também era devastada, muito. Sobretudo nas cidades, que tinham sido bombardeadas.

 

Tem imagens vivas disso?

Quando nasci houve um grande bombardeamento sobre a minha cidade. Tenho recordação das cicatrizes que ficaram até, pelo menos, 1950. A reconstrução da Itália foi lenta e feita com certo esforço. Lembro-me perfeitamente de ir para a escola e ver feridas enormes dentro da cidade, casas que ainda não tinham sido reconstruídas. Sabe, aquelas paredes... Um papel de parede do que foi um quarto, ou então uma banheira, e o resto não existe. Mas voltando ao cinema, as primeiras emoções vieram com esses filmes. Um miúdo da minha idade não podia perceber o que se passava, mas ao mesmo tempo sentia as emoções. Sentia electricamente na plateia, por exemplo. As pessoas reagiam, ou mandavam injúrias contra o ecrã, coisas assim.

 

Quando é que começou a vibrar com a Sofia Loren? Ou era mais a Silvana Mangano?

Um pouco mais tarde, já nos anos 60, naquilo que se chama o segundo neo-realismo. A Silvana Mangano, do ponto de vista da imagem feminina no cinema italiano, talvez tenha sido das mais bonitas.

 

Se gostou tanto do «La Dolce Vita», o tipo da Anita Ekberg não o seduziu?

Um momento, não gostei do «La Dolce Vita»; desgostei, que é diferente. Deu-me um grande desgosto, ou, pelo menos, provocou em mim uma profunda reflexão. É de 1960, eu vi em 61 quando acabava o liceu. É um filme extremamente cruel, mas mantém uma grande força. Cortava com uma faca em sentido vertical a sociedade italiana.

 

Não se encaixava naquele quadro do mundo?

Ou talvez me encaixasse sem o saber. Não sei, não quero ser arrogante e dizer que estava fora. O filme incomodou-me de uma forma construtiva. Deu-me curiosidade de conhecer outros panoramas.

 

Pelo que sei, o seu berço não encaixa naquele universo felliniano. Vivia numa cidade de província e não na capital; e a sua família era laica, antifascista, republicana.

A imagem que dava de um país era chocante, provocava um certo traumatismo. Desassossegava o suficiente para dizer «Vou dar uma volta, vou ver». Depois há outros desejos subterrâneos, que não são tão extravagantes, pertencem àquela idade.

 

Desejo de liberdade?

Liberdade e, sobretudo, conhecimento.

 

Porque arranjou um álibi para os seus pais? Eram opressivos?

Na lógica de todos os pais, um rapaz acaba o liceu e inscreve-se na universidade. Se não há uma grande necessidade urgente, uma guerra...

 

Foi à tropa?

O exército italiano achou melhor não pôr nas suas filas uma pessoa como eu! Gozei de uma privilégio que ainda tinha a minha geração: a avó que tivesse tido o único filho varão morto na guerra, o neto tinha o privilégio de não fazer o serviço militar. Ele aparecia, no registo civil, como único sustento da mãe e da avó. Era o contrário, porque a minha avó e a minha mãe é que me sustentavam. Mas oficialmente era assim. Além deste tio, que não conheci e se chamava António como eu, tinha outro tio que também morreu quando eu tinha 15 anos. Acompanhou-me durante a minha adolescência, era um grande amigo. Era um pouco o intelectual da família. Morreu num desastre.

 

Foi uma figura tutelar para si?

Sim. Graças a ele descobri o prazer da leitura. Eu tinha tido um desastre que me obrigou a ficar de cama, de perna estendida, muitos meses. Naquela época, tinha 13 ou 14 anos, a ortopedia e a medicina em geral não eram tão sofisticadas. Tive que ficar com muita paciência, e gesso! Conheci o aborrecimento, o tédio.

 

O que é que fazia?

O meu tio começou a dar-me livros. Ele gostava muito de autores anglo-saxónicos. O meu primeiro livro, que continua a ser o meu «Livre de Cheveux» é «A Ilha do Tesouro», que acho soberbo. Depois foi Kipling, Jack London, um certo Conrad, mais aventuroso e que podia entender. Foram as minhas primeiras descobertas.

 

Começou a desejar escrever e ser escritor?

Não. Não fiz ideia do que queria fazer até muito tarde. Debutei na escrita e publiquei o meu primeiro livro quando já era um homem bastante madurinho. Escrevi o primeiro livro em 73 e publiquei-o dois anos mais tarde. Escrevia porque gostava, para me divertir. O prazer da escrita é fundamental; mas sem pensar em vir a ser escritor. Não era minha ambição.

 

Então era qual? Ser cineasta?

Não! Ser aquilo que sou agora, no fundo.

 

Ser professor?

Sim senhor!

 

Os meninos quando andam na escola primária querem todos ser professores.

Se está a falar dos meus sonhos infantis, teria gostado de ser astrónomo. Sempre sonhei com astronomia. O meu avô, na pequena quinta que tínhamos (não era bem uma quinta, porque dizer quinta em Portugal já é muito elegante; era uma pequena propriedade de uma pessoa que era pouco mais que um camponês), conhecia muito bem o céu. Lembro-me das noites de Verão, na eira, e das coisas que me contava. Isto depois fecunda a imaginação de um miúdo, mas não passa de um desejo infantil. Quando voltei de Paris e fiz os meus estudos clássicos e filológicos na universidade, o meu interesse era, não digo ser professor universitário como viria a ser, mas estudar. Pelo menos, posso dizer-lhe que não tinha ambição de vir a ser escritor. E foi um acaso. Escrevi o romance em 73, a minha mulher estava à espera do nosso segundo filho. Era um Verão, fazia um calor bastante grande na cidade, em Florença. Estava a fazer-lhe companhia porque não podíamos ir para lado nenhum e comecei a escrever um romance, o «Piazza de Itália», para passar o tempo.

 

Escreveu-o para ela, para lho ler?

A ela é dedicado, e aos meus filhos. Ficou aí porque não pensava efectivamente em publicar. Um dia veio jantar um amigo meu que naquela época dirigia uma casa editora. Viu em cima da mesa umas folhas e, como era curioso, perguntou: «O que é isto?», «É uma coisa que escrevi», «Então vou levá-lo». E pronto.

 

É um acaso espantoso. Não sei até que ponto acredita no acaso...

Às vezes as coisas estão aí à espera de alguém que as descubra. Telefonou-me a dizer: «Vou publicá-lo», «Está bem». Publicar significa tornar público um pensamento, uma maneira de ser, uma ideia. Já não fica para as paredes domésticas. A responsabilidade deste acto só vem depois.

 

Trata-se também de pudor? Justamente porque as partes íntimas deixam de estar confinadas às paredes domésticas.

Nos meus livros falo muito pouco de mim próprio e gosto mais de falar dos outros.

 

O que é uma excelente forma de defesa.

[sorriso] Eu também sou mais curioso dos outros que de mim próprio.

 

Ora.

Sim, gosto muito dos outros, e sou curioso. Aliás, conheço-me há 55 anos, quase.

 

A partir dos olhos dos outros vemos os nossos.

É um espelho.

 

Está farto, foi o que disse em surdina?

[risos] Acho que me conheço muito bem. De maneira que talvez seja mais interessante conhecer o outro. Talvez tenha a arrogância de me conhecer. Se calhar não me conheço e estou à procura de mim através dos outros. Mas enfim. Uma pessoa publica uma vez e depois...

 

Voltando à «Confederação das Almas». O seu eu hegemónico de há vinte anos não era seguramente o que tem agora. Portanto, essa coisa de se conhecer demasiado bem...

Não era. Mas não seria sequer aquele que foi ontem.

 

Considera que tem, pelo menos, duas vidas? Uma anterior e outra posterior à publicação.

Temos muitas vidas. Se penso nos livros que escrevi, é como olhar um álbum de fotografias da minha existência. Cada livro retrata a pessoa que era naquele momento e a relação que tinha com a vida de então, as pessoas de então. Sempre achei um perfeito disparate as teorias de um certo formalismo ou estruturalismo que pretenderia estudar o texto literário prescindindo completamente do ambiente em que nasceu e da pessoa que o produziu. Como se o texto fosse um balão que cai dos céus, uma dádiva dos deuses!

 

Mas consegue identificar o que mudou, se não estruturalmente pelo menos substancialmente, com o sucesso e a publicação?

Mudou pouca coisa. Não mudou nada.

 

Gosta de ser um escritor de sucesso?

Não sou, no sentido em que para ser um escritor de sucesso é necessário viver o sucesso. 

 

Viver o sucesso é andar de país em país a dar conferências e autografar livros?

É seguir a onda. E começar a fazer uma vida diferente da que fazíamos antes. Continuo a dar as minhas aulas, a ter escrito no meu passaporte «Profissão: Professor Universitário» e não «Escritor» (que não considero profissão). Não quis aceitar profissionalmente esta actividade que até pode ser extremamente importante. Isso defende-me das editoras, dos contratos, dos compromissos.

 

Há os mínimos, presumo que tenha de fazer apresentações de livros.

Não, não faço.

 

Podia vender muito mais. Não tem essa gula de ter mais pessoas a lê-lo e admirá-lo?

Não é porque seja uma pessoa sem apetites, seria estúpido dizê-lo. Todos nós queremos ganhar uns tostões a mais. Acho que apresentar um livro não aumenta nada as vendas. São as ilusões que têm os editores e a máquina editorial nas quais é possível não cair. Uma apresentação o que seria em termos numéricos?, não seria nada. É muito mais cómodo ficar em casa e não gastar tempo e paciência.

 

É uma maçada dar entrevistas?

Se as pessoas são simpáticas como é a menina, não.

 

Obrigada.

Há pessoas que são demasiado não sei quê e começo a ficar encolhido, encolhido, encolhido, e desejo que termine rapidamente.

 

É verdade que comprou o Pessoa num quiosque de Paris, foi lê-lo para Itália, e ficou de tal modo estarrecido que decidiu aprender minimamente a língua?

Mais ou menos. Desconhecia completamente o português, o mundo português, a cultura portuguesa e até a geografia de Portugal. Estava a voltar para Itália, depois da tal passagem de um ano em Paris. Comprei por mero acaso um livrinho que era a primeira tradução francesa, e acho que em todas as línguas, do Pessoa. Mesmo que naquela altura não tivesse uma grandíssima intuição ou cultura, suspeitei que aquilo era um grande, grande poema («Tabacaria»). Como acontece naquela idade, a uma descoberta como esta seguiu-se o entusiasmo. Pensei que seria interessante aprender um bocadinho a língua na qual este senhor escreveu o seu poema. Regressando à universidade vi que entre as várias disciplinas, no âmbito da Filologia Românica, havia a língua portuguesa. Comecei a estudar português e, meses depois, cheguei a Portugal.

 

Veio de mochila às costas? Não é fácil imaginá-lo, jovem de 20 anos, à descoberta de Portugal com o «Tabacaria» do Pessoa.

Então, se não consegue imaginar, tenho aqui uma fotografia! Era assim!

 

Tinha um bigode farfalhudo!

Cheguei aqui com um Fiat 500 comprado em segunda mão.

 

Comprado com o seu dinheiro ou o dos seus pais?

Um pouco, um pouco.

 

Trabalhava nas férias para ganhar uns trocos?

Passei o meu ano em Paris trabalhando. Lavava os pratos na «Cité Universitaire». Não quero magnificar as épocas, mas na altura, quando os miúdos saíam de casa e iam viver os seus caprichos, tinham de se manter com os seus próprios meios. Claro que os pais ajudavam sempre, mas lavar os pratos era a minha tarefa.

 

Era suficiente para sobreviver?

Mais ou menos. Ter pequeno-almoço, almoço e jantar na cidade universitária já não era mau. Depois havia outras maneiras de ganhar dinheiro: dar aulas de italiano e outras pequenas coisitas.

 

Então veio no seu Fiat.

500, Fiat 500! Era um carrinho óptimo, mas era preciso muita paciência porque aquilo não corria. Grão a grão, cheguei. E conheci a Maria José, por acaso.

 

Foi um amor à primeira vista?

Agora está a fazer-me perguntas muito mais pessoais e íntimas! Não, foi à antiga. Pertenço a uma geração em que os namorados escreviam cartas e trocavam ideias sobre livros.

 

Também pertence a uma geração que viveu a euforia do amor livre e cujos casamentos foram definhando pelos anos fora.

Em 63, a minha geração ainda mantinha formas de tratamento interpessoais que não previam aquelas euforias. Um rapaz conhecia uma rapariga e começava a ter com ela umas conversas, uma amizade intelectual, uma troca de impressões. No ano seguinte viria com uma bolsa. Resultei num bom aluno e deram-me uma bolsa. Depois a vida faz o resto, encarrega-se ela.

 

Em que língua fala com a Maria José?

Como calha. Quando estamos com os filhos normalmente falamos em português. O meu filho vive em Itália; a minha filha neste momento está a viver em Portugal. A língua na nossa família é um pêndulo, oscila. Quando conheci a Maria José falávamos em francês; não conhecia suficientemente o português para ter uma conversa decente.

 

Nestes 30 anos andou sempre cá e lá. Nunca pensou viver em Portugal?

Porque não? Já pensei muitas vezes nisso. Mas provocaria uma mudança radical na minha vida. Gosto muito de ser professor universitário.

 

Não poderia ser professor aqui?

Já fiz a experiência no Instituto Italiano de Cultura e é outra coisa. Gosto de estar com os meus alunos, é um oxigénio bastante importante, conviver com gente daquela idade.

 

Vêem-no muito como o escritor Tabucchi?

Procuro ser o mais profissional possível. Quando dou as minhas aulas, aí, fala-se de Gil Vicente e aquilo tem de ser uma aula de Gil Vicente. É verdade que sendo Siena uma cidade bastante pequena, como Coimbra, e com um perfil bastante universitário, quando o curso acaba há uma parte de convívio. Há raparigas e rapazes que querem que leia as coisas que estão a escrever e aí nascem outras discussões.

 

Sente o peso da idade?

Não excessivamente. Fisicamente não. Do ponto de vista das recordações, do calendário, as pessoas não podem evitar sentir a idade. Sobretudo quando pensam nas pessoas que conheceram e já não existem. Os mortos pesam muito na avaliação da idade. Mais do que na morte, que é uma ideia muito abstracta na qual pensam os filósofos, pensamos nos mortos.

 

É a dor dos mortos ou o medo da morte?

Não é o medo da morte. É a saudade, a nostalgia. É o facto de estas pessoas já não estarem cá, e nós gostaríamos que continuassem a estar. O que é a morte? É um desaparecimento, uma ausência. É constatar este espaço que já não é preenchido.

 

Nos seus livros há sempre mortos.

E fantasmas. O meu «Requiem» está cheio de fantasmas. Que são alegres.

 

É um devaneio muito prazenteiro.

É verdade. Há uma oscilação: às vezes dão melancolia, outras alegria. Recordar é uma forma de recuperação, mesmo que não seja corpórea e seja só memorial, também isso alegra-nos. Como se num instante, como por magia, a pessoa que não existe voltasse a existir. É este miserável milagre que nos é concedido a nós, humanos: recordar. E continuar a manter a vida ou fazer viver dentro de nós o que já não existe.

 

Trata-se também de cortar o cordão umbilical. Justamente no «Requiem» o momento mais esperado é um encontro com Fernando Pessoa. Aquilo que lhe diz é que andou a vida toda a aventar hipóteses sobre ele, e que estava agora cansado e precisava de se libertar.

Aquele eu (que diz «eu» no livro) não corresponde necessariamente ao António Tabucchi como pessoa. Há sempre uma modificação romanceada e romanesca que torna o protagonista muito diferente de quem o escreveu, embora possa haver partículas ou quocientes de autobiografia. É claro que a autobiografia nos escapa sempre; nós fechámos a porta e ela sai pela janela. Mas aquele eu não sou eu. Estamos na alteridade da ficção.

 

Tendemos a olhar para o personagem central, mais ainda naquele caso, como o alter-ego do escritor. Até porque presumo que seria uma felicidade incomensurável para si ter uma ceia com o Pessoa.

Ah pois claro!

 

Seria o presente da sua vida?

Isso não sei, poderia haver más surpresas. Muitas vezes, nós escritores, do ponto de vista humano somos uma desilusão terrível, sabe?

 

Numa entrevista recente, Salman Rushdie dizia que a maior parte dos escritores tinha uma vida desinteressante porque, ou bem que escreviam, ou bem que viviam.

Há uma grande diferença entre as vidas muito extrovertidas e cheias de aventuras que são próprias dos escritores do século XIX e as vidas pardas dos escritores do século XX que tiveram, pelo menos aparentemente, vidas muito pouco interessantes ou mesmo desinteressantes.

 

Encontra alguma justificação para isso?

Não sei, seria necessário ser um sociólogo da literatura. Já nos séculos antigos, Camões tinha perdido um olho nas batalhas e salvo «Os Lusíadas» do naufrágio. O Schiller, o Byron, o D’Annunzio, toda esta gente, umas vidas extremamente agitadas. Joyce foi professor em Trieste e depois em Zurique, mais nada. Pessoa? Tradutor de cartas comerciais!, uma espécie de Bernardo Soares (seu semi-heterónimo e guarda-livros). E o Kafka? Empregado de escritório de uma companhia de seguros. As vidas deles são do mais banal possível. Mas não. As vidas interiores que tiveram é que são enormes. Se se põe a ler o diário íntimo do Kafka, que não teve uma vida prática de grande interesse, é que descobre uns abismos, uns universos, muito mais interessantes que o D’Annunzio que andou a pelejar para aqui e para lá. Então, como é que é? Como se pode sanear esta contradição? É difícil.

 

Como dizia o Freud, há esse infinito inconsciente.

Se calhar podemos dizer que no século XX, a vida imaginária, a vida virtual, a vida interior, é mais larga e mais importante que a vida exterior que se vive todos os dias.

 

Quanto à sua vida. Não corresponde ao italiano típico, que esbraceja e é muito extrovertido. Parece mais o português típico, melancólico e quase solipsista.

O italiano típico não existe, como não existe o português típico. É um paradigma normalmente apanhado no cinema e que acaba por ser uma caricatura que sobe um bocadinho de oitavas. Itália é um país mesclado e com proveniências culturais completamente diferentes. Vivi uma vida que não escolheu como umbigo e ponto referencial a cultura do seu país. Talvez esse facto me possa dar as características que me tornam diferente de um italiano segundo o qual Roma ou Florença, a Renascença italiana ou Dante são o umbigo do mundo. As minhas raízes, não quero renegá-las, mas também sei que é tudo relativo. Se lá há um Ariosto, aqui há um Camões. O sentido relativo significa não ter ficado sempre aí, agarrado à imagem paterna ou materna e pensar que o mundo é todo diferente. E é todo igual. [sorriso]

 

Considera-se solipsista?

Não. Detesto a solidão. Seria um escritor incapaz de fazer de si próprio o objectivo e objecto da sua escrita. Gosto mais de observar gestos alheios que escrever uma auto-análise. Acho mais interessante ver se a vizinha saiu, está a dar as migalhas aos pombos, se a neta chegou.

 

Não há uma aparente incongruência quando se pensa em Pessoa como a obra da sua vida? Ele sim, era tremendamente solipsista.

O Pessoa passou a vida a inventar vidas alheias, a criar personagens, como o Balzac fez de uma outra maneira. Cada personagem dele é um protótipo, deve corresponder a pessoas que conheceu. Talvez devesse dizer que o Pessoa é um autor muito importante, sim. Mas não é o autor da minha vida.

 

Ah não?

Foi um autor que privilegiei no sentido que foi o autor que ousei traduzir para italiano e sobre o qual tive também a ousadia de escrever os meus ensaios. De um ponto de vista do alimento poético, há outros autores que estão no mesmo plano e me forneceram inspirações e emoções que não são inferiores às que o Pessoa me deu.

 

Por exemplo?

Montale, Kavafis, Emily Dickinson. Há encontros na literatura que uma pessoa entranha e ficam-lhe cá dentro. Mesmo que não haja uma frequentação tão contínua como tive com o Pessoa, é um alimento substancial.

 

A imagem que se tem de si é, então, algo redutora: a de um italiano que chegou a Portugal e se apaixonou por Portugal através de Pessoa.

Mas isso está certo; uma coisa não exclui a outra. Como dizia o Pessoa, tudo vale a pena se a alma não é pequena. Dentro de mim não cabe só o Pessoa.

 

Qual o heterónimo de Pessoa com que se identifica mais?

Não sei.

 

O Álvaro de Campos talvez lhe fosse bem; é um niilista.

E de uma ironia muito cortante. Gosto muito do Bernardo Soares, também. Foi capaz de fazer metafísica nas barbearias!, não é fácil.

 

No essencial é o que acontece nos seus livros: há vulgaríssimas tramas policiais para, por detrás delas, desenvolver e apresentar teorias filosóficas (a «Grande Norma» ou a «Confederação das Almas»). Como se a salvação do homem estivesse na força das ideias. Acha que o homem tem salvação?

Diria que tem esperança de salvação, que é diferente, e que é bom ter. É como dizer: «Eu não sou pessimista, sou um falso optimista», seria o mesmo paradoxo. Acho que sou uma pessoa alegre.

 

Alegre?

Sim. E depois, todas as pessoas alegres têm as suas partes melancólicas.

 

Porque esconde tanto a cara ou as expressões ou os sentimentos com as mãos e raramente olha nos olhos a pessoa com quem está a falar?

Por timidez, talvez. E por miopia, porque sou muito míope. Agora tenho uns olhos um bocadinho fracos. Também é a idade; estávamos a falar da idade, está a ver?

 

Também é por causa da idade que põe essa boquilha que corta a nicotina?

Não, isso é um álibi psicológico. É obvio que não serve para nada. Dá só a sensação que estamos a domesticar o cigarro, mas o veneno entra na mesma.

 

Contrafóbico?

Sim. Como dizer, uma pequena mania. Como tantas que nós temos.

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 2002

António Tabucchi morreu em  2012

 

 

Pág. 1/2