Antonio Tabucchi
No dia em que aconteceu esta conversa, corriam os últimos ventos e as pessoas circulavam na rua sob uma chuva áspera. Por causa do tempo, Antonio Tabucchi questionava um exílio alentejano, onde deveria escrever o seu próximo livro. É por isso provável que esta entrevista só lhe vá parar às mãos muito mais tarde. Pelo sim, pelo não, acordámos que seria enviada para certa morada em Itália. Algures entre Pisa, Siena, Florença, as cidades onde nasceu, ensina, vive. Em Portugal, a casa fica numa rua íngreme para os lados do Príncipe Real. No cimo de umas escadas, entra-se para uma sala ampla onde se destaca um Pessoa pintado por Pomar. E uma mesa baixa preenchida de livros e de pequenos cadernos, quase cadernos de merceeiro fechados com um elástico, onde escreve os seus livros. Prefere-os porque são facilmente transportáveis. Não sei se por acaso, estava em cima da mesa uma edição especial que compilava os textos manuscritos de Jean Arthur Rimbaud. Foi uma conversa que se demorou pela tarde, interrompida por um café que decidiu preparar, talvez à hora do lanche. Fumou incontáveis cigarros que colocou pacientemente numa boquilha pequena e transparente e que se destina, como, por fim, confessa, à domesticação do vício, mais que aos benefícios prometidos à saúde.
Foi através de um poema chamado «Tabacaria» que o escritor soube de Portugal. Há trinta e cinco anos, ou coisa parecida: uma vida. O poema tinha sido escrito por um homem que, como ele, usava bigode e se chamava Fernando Pessoa. «Tabacaria» foi comprado num quiosque de Paris e trá-lo-ía ao nosso país no ano seguinte. O resto, presumo que saibam. Sobretudo depois de Antonio Tabucchi e a sua obra terem sido revolvidos em dias de colóquio, quando a primavera ainda ia no adro e as andorinhas estavam longe. Tudo dito? Eu diria que não.
Com quem almoçou hoje?
Com a Maria José, a minha mulher.
Ao telefone disse que a entrevista não poderia ser cedo porque tinha um almoço. Imaginei que pudesse ser um almoço de trabalho ou que aproveitasse a sua estada em Lisboa para rever amigos.
Na realidade, estávamos à espera de pessoas que não puderam vir. Vamos ter um jantar.
Cozinha habitualmente?
Gosto, mas não sei qual poderá ser o resultado das minhas andanças pelas cozinhas. Não garanto: às vezes dá, outras não dá. A actividade em si é uma forma de distracção. Ter o rádio ligado e tentar fazer uma receita é uma maneira de passar um domingo.
É também uma forma de amor: o resultado depende do que lá se coloca, para lá dos condimentos.
Sim. E tocar nos ingredientes básicos do que é o nosso corpo; as coisas que se transformam depois em células, em átomos, em vida. Tiram-nos a fome, o apetite, e dão-nos a linfa, o sangue.
A propósito do tocar, não escreve no computador. Imaginamos os escritores como pessoas muito cerebrais e desligadas do prazer do tacto. Até que ponto valoriza o seu trabalho que é feito pelas mãos, sem um intermediário que pode ser uma máquina?
A literatura está dentro da nossa vida quotidiana, não vive num sítio a que os platónicos chamavam «Hiper Urano» (para lá de Urano). Há várias formas de literatura e cada uma tem a sua plausibilidade de ser. Como a cozinha não tem só uma receita. Um dia temos vontade de ler um poema do Pessoa, outro uma reportagem sobre ciganos, noutro ainda as memórias sobre um campo de concentração, e noutros dias temos vontade de ler uns versos, sei lá, sobre a cenoura, como fazia o Neruda. A cenoura também existe, não é?
Quando falava das diferentes esferas lembrava-me de conversas com outros escritores que se diziam quase inibidos quando interpelados sobre os mundos da sua escrita, porque eram outros quando escreviam.
Não sei se somos a mesma pessoa quando estamos a conduzir o carro no meio do trânsito ou estamos a tomar banho no mar. O comportamento, o ambiente, a relação com o mundo, fazem com que tenhamos de ser diferentes. O nosso ser, e visto que o ser coincide com a maneira de ser, varia durante o comportamento quotidiano. Como varia durante a vida. Uma pessoa é muitos. Somos plurais e tem de ser assim.
Há uma coisa que aparece sublinearmente em todos os livros, e no «Afirma Pereira» chama-se «Confederação das Almas», que vai ao encontro desse ser plural. A «Confederação das Almas», elaborada pelos chamados Médicos Filósofos, implica vários eus e um eu hegemónico numa determinada altura da vida. Esta descoberta, que encaixa também no arquétipo do Pessoa, é anterior a Pessoa para si?
Essa sugestão vem antes do conhecimento do Pessoa. Vem, sobretudo, com o Pirandello.
Que idade tinha quando descobriu Pirandello?
Quando descobri o Pirandello, vírgula, sem o descobrir, vírgula, foi no liceu. Era uma leitura obrigatória. Mas logo a seguir, no intervalo que tive entre o liceu e a universidade, senti o desejo e a curiosidade de descobrir certas coisas e de reler certos autores, entre os quais o Pirandello. A partir daí as descobertas foram por analogias. Foram as leituras de uma analogia que me parece muito importante no século XX na literatura, na filosofia, na psicologia: a psicanálise. A descoberta que a alma cristã, que é o arquétipo, não é una e indivisível, mas que o homem tem dentro de si quase um exército que constitui nesta multiplicidade uma especificidade e unidade que é aquela pessoa. Isto passa-se com o Pirandello, com o Pessoa, com o Unamuno, com o Freud, enfim, com uma grande parte da grande literatura do século XX.
Se pensar quais são os seus pilares enquanto escritor, e no que é possível extrapolar para si enquanto homem, um dos traços fundamentais é essa «Confederação das Almas». O outro assenta numa errância permanente, numa procura desmesurada até atingir o fio do horizonte, que, por sua vez, é inatingível. Concorda com a minha análise? Esses nomes de que falou foram fundamentais nesta construção?
A sua análise tem uma certa razão de ser. Eu preferia falar de funções. Se pensarmos bem, essas pluralidades através das quais nos exprimimos e frequentamos, são as diferentes funções da vida. Num escritor exprime-se com vários livros, várias temáticas; não só com os diferentes personagens mas também com as várias atitudes. É uma espécie de salto nas trevas porque não sabemos onde nos vai levar. É uma ideia arbitrária, e é a minha, de que é este o fascínio da literatura: cada livro é uma coisa diferente. A pior imitação que podemos fazer, ou influência que podemos ter, é de nós próprios. Há pessoas que escrevem sempre o mesmo livro.
Não há um fundo de verdade nisso?
Acho que não. Há umas coisas básicas, claro, mas há pessoas que é como se tivessem aprendido uma receita de cozinha: são sempre os mesmos ingredientes e sabem ligá-los muito bem. As pessoas que se sabem imitar muito bem são os maneiristas. Há uns maneiristas de altíssimo nível. Eu gosto mais dos autores, dos pintores que tentam sempre uma aventura nova, mesmo que seja um falhanço.
É apologista da imperfeição?
Quando como fico cheio de manchas na camisa.
Agora não tem nada.
Era para dizer que não conseguiria conceber uma literatura depurada, perfeita.
Consegue dar um exemplo de uma obra imperfeita de que goste particularmente?
Mais do que imperfeita, prefiro falar de literatura com manchas na camisa. Poderia ser uma lista muito grande. O próprio Pirandello de que falávamos; o italiano dele é muito marcado pelo siciliano, não é o italiano que se adopta para se ensinar nas escolas. Sou capaz de gostar mais do português do António Nobre, que parece menos impecável para servir de paradigma nas aulas de liceu. Mas são só os meus gostos. E os gostos... non est disputando! (Do latim: De gustibus non est disputando - Os gostos não se discutem).
Estudou muito o latim?
Sim, no liceu, na faculdade. Os meus estudos foram clássicos.
No ano de intervalo, entre um e outro, foi para Paris. Como foi essa decisão?
Inscrevi-me como Ouvinte Livre nas aulas de Filosofia da Sorbonne. Era mais um álibi para os meus pais. Ia de vez em quando; mas gostava mais de ir ao cinema. Aqueles cineclubes de Saint Germain onde se podiam ver filmes de vários países do mundo... Paris era uma janela sobre o mundo inteiro.
No princípio dos anos 60?
63.
O cinema foi uma descoberta? Ou já era um fã?
Por acaso o filme que me enviou a Paris, que teve uma certa responsabilidade, foi «La Dolce Vita» de Fellini. Quando era criança as primeiras emoções vêm com o cinema, não vêm com a leitura. Ia ao cinema com os meus pais e o meu tio; tinha dez, onze anos, ou menos. Era o momento do grande neo-realismo italiano, do De Sicca, do Rossellini, etc.
Iam em família, como no «Cinema Paraíso»?
Anda perto. É uma imagem um pouco adocicada para os americanos verem e gostarem. Na minha infância era o pós guerra de um país que tinha sofrido muito. Era a primeira vez que os italianos podiam ver a imagem do seu país, que tinha sido proibida durante 22 anos pelo fascismo. Os meus pais tinham podido ver até então só os filmes dos telefones brancos.
Telefones brancos?
São as comédias que também se passavam aqui na época do Salazarismo: uma realidade virtual em que uma senhora anda de boquilha no apartamento, o telefone é branco e fala com o grande amor que vive em Londres.
Viu o «Alemanha Ano Zero» do Rossellini? É um filme muito cruel sobre os efeitos da guerra numa cidade e num país completamente devastados. Na Itália não seria tanto; mas não foi por acaso que o filme foi feito por um italiano.
Também era devastada, muito. Sobretudo nas cidades, que tinham sido bombardeadas.
Tem imagens vivas disso?
Quando nasci houve um grande bombardeamento sobre a minha cidade. Tenho recordação das cicatrizes que ficaram até, pelo menos, 1950. A reconstrução da Itália foi lenta e feita com certo esforço. Lembro-me perfeitamente de ir para a escola e ver feridas enormes dentro da cidade, casas que ainda não tinham sido reconstruídas. Sabe, aquelas paredes... Um papel de parede do que foi um quarto, ou então uma banheira, e o resto não existe. Mas voltando ao cinema, as primeiras emoções vieram com esses filmes. Um miúdo da minha idade não podia perceber o que se passava, mas ao mesmo tempo sentia as emoções. Sentia electricamente na plateia, por exemplo. As pessoas reagiam, ou mandavam injúrias contra o ecrã, coisas assim.
Quando é que começou a vibrar com a Sofia Loren? Ou era mais a Silvana Mangano?
Um pouco mais tarde, já nos anos 60, naquilo que se chama o segundo neo-realismo. A Silvana Mangano, do ponto de vista da imagem feminina no cinema italiano, talvez tenha sido das mais bonitas.
Se gostou tanto do «La Dolce Vita», o tipo da Anita Ekberg não o seduziu?
Um momento, não gostei do «La Dolce Vita»; desgostei, que é diferente. Deu-me um grande desgosto, ou, pelo menos, provocou em mim uma profunda reflexão. É de 1960, eu vi em 61 quando acabava o liceu. É um filme extremamente cruel, mas mantém uma grande força. Cortava com uma faca em sentido vertical a sociedade italiana.
Não se encaixava naquele quadro do mundo?
Ou talvez me encaixasse sem o saber. Não sei, não quero ser arrogante e dizer que estava fora. O filme incomodou-me de uma forma construtiva. Deu-me curiosidade de conhecer outros panoramas.
Pelo que sei, o seu berço não encaixa naquele universo felliniano. Vivia numa cidade de província e não na capital; e a sua família era laica, antifascista, republicana.
A imagem que dava de um país era chocante, provocava um certo traumatismo. Desassossegava o suficiente para dizer «Vou dar uma volta, vou ver». Depois há outros desejos subterrâneos, que não são tão extravagantes, pertencem àquela idade.
Desejo de liberdade?
Liberdade e, sobretudo, conhecimento.
Porque arranjou um álibi para os seus pais? Eram opressivos?
Na lógica de todos os pais, um rapaz acaba o liceu e inscreve-se na universidade. Se não há uma grande necessidade urgente, uma guerra...
Foi à tropa?
O exército italiano achou melhor não pôr nas suas filas uma pessoa como eu! Gozei de uma privilégio que ainda tinha a minha geração: a avó que tivesse tido o único filho varão morto na guerra, o neto tinha o privilégio de não fazer o serviço militar. Ele aparecia, no registo civil, como único sustento da mãe e da avó. Era o contrário, porque a minha avó e a minha mãe é que me sustentavam. Mas oficialmente era assim. Além deste tio, que não conheci e se chamava António como eu, tinha outro tio que também morreu quando eu tinha 15 anos. Acompanhou-me durante a minha adolescência, era um grande amigo. Era um pouco o intelectual da família. Morreu num desastre.
Foi uma figura tutelar para si?
Sim. Graças a ele descobri o prazer da leitura. Eu tinha tido um desastre que me obrigou a ficar de cama, de perna estendida, muitos meses. Naquela época, tinha 13 ou 14 anos, a ortopedia e a medicina em geral não eram tão sofisticadas. Tive que ficar com muita paciência, e gesso! Conheci o aborrecimento, o tédio.
O que é que fazia?
O meu tio começou a dar-me livros. Ele gostava muito de autores anglo-saxónicos. O meu primeiro livro, que continua a ser o meu «Livre de Cheveux» é «A Ilha do Tesouro», que acho soberbo. Depois foi Kipling, Jack London, um certo Conrad, mais aventuroso e que podia entender. Foram as minhas primeiras descobertas.
Começou a desejar escrever e ser escritor?
Não. Não fiz ideia do que queria fazer até muito tarde. Debutei na escrita e publiquei o meu primeiro livro quando já era um homem bastante madurinho. Escrevi o primeiro livro em 73 e publiquei-o dois anos mais tarde. Escrevia porque gostava, para me divertir. O prazer da escrita é fundamental; mas sem pensar em vir a ser escritor. Não era minha ambição.
Então era qual? Ser cineasta?
Não! Ser aquilo que sou agora, no fundo.
Ser professor?
Sim senhor!
Os meninos quando andam na escola primária querem todos ser professores.
Se está a falar dos meus sonhos infantis, teria gostado de ser astrónomo. Sempre sonhei com astronomia. O meu avô, na pequena quinta que tínhamos (não era bem uma quinta, porque dizer quinta em Portugal já é muito elegante; era uma pequena propriedade de uma pessoa que era pouco mais que um camponês), conhecia muito bem o céu. Lembro-me das noites de Verão, na eira, e das coisas que me contava. Isto depois fecunda a imaginação de um miúdo, mas não passa de um desejo infantil. Quando voltei de Paris e fiz os meus estudos clássicos e filológicos na universidade, o meu interesse era, não digo ser professor universitário como viria a ser, mas estudar. Pelo menos, posso dizer-lhe que não tinha ambição de vir a ser escritor. E foi um acaso. Escrevi o romance em 73, a minha mulher estava à espera do nosso segundo filho. Era um Verão, fazia um calor bastante grande na cidade, em Florença. Estava a fazer-lhe companhia porque não podíamos ir para lado nenhum e comecei a escrever um romance, o «Piazza de Itália», para passar o tempo.
Escreveu-o para ela, para lho ler?
A ela é dedicado, e aos meus filhos. Ficou aí porque não pensava efectivamente em publicar. Um dia veio jantar um amigo meu que naquela época dirigia uma casa editora. Viu em cima da mesa umas folhas e, como era curioso, perguntou: «O que é isto?», «É uma coisa que escrevi», «Então vou levá-lo». E pronto.
É um acaso espantoso. Não sei até que ponto acredita no acaso...
Às vezes as coisas estão aí à espera de alguém que as descubra. Telefonou-me a dizer: «Vou publicá-lo», «Está bem». Publicar significa tornar público um pensamento, uma maneira de ser, uma ideia. Já não fica para as paredes domésticas. A responsabilidade deste acto só vem depois.
Trata-se também de pudor? Justamente porque as partes íntimas deixam de estar confinadas às paredes domésticas.
Nos meus livros falo muito pouco de mim próprio e gosto mais de falar dos outros.
O que é uma excelente forma de defesa.
[sorriso] Eu também sou mais curioso dos outros que de mim próprio.
Ora.
Sim, gosto muito dos outros, e sou curioso. Aliás, conheço-me há 55 anos, quase.
A partir dos olhos dos outros vemos os nossos.
É um espelho.
Está farto, foi o que disse em surdina?
[risos] Acho que me conheço muito bem. De maneira que talvez seja mais interessante conhecer o outro. Talvez tenha a arrogância de me conhecer. Se calhar não me conheço e estou à procura de mim através dos outros. Mas enfim. Uma pessoa publica uma vez e depois...
Voltando à «Confederação das Almas». O seu eu hegemónico de há vinte anos não era seguramente o que tem agora. Portanto, essa coisa de se conhecer demasiado bem...
Não era. Mas não seria sequer aquele que foi ontem.
Considera que tem, pelo menos, duas vidas? Uma anterior e outra posterior à publicação.
Temos muitas vidas. Se penso nos livros que escrevi, é como olhar um álbum de fotografias da minha existência. Cada livro retrata a pessoa que era naquele momento e a relação que tinha com a vida de então, as pessoas de então. Sempre achei um perfeito disparate as teorias de um certo formalismo ou estruturalismo que pretenderia estudar o texto literário prescindindo completamente do ambiente em que nasceu e da pessoa que o produziu. Como se o texto fosse um balão que cai dos céus, uma dádiva dos deuses!
Mas consegue identificar o que mudou, se não estruturalmente pelo menos substancialmente, com o sucesso e a publicação?
Mudou pouca coisa. Não mudou nada.
Gosta de ser um escritor de sucesso?
Não sou, no sentido em que para ser um escritor de sucesso é necessário viver o sucesso.
Viver o sucesso é andar de país em país a dar conferências e autografar livros?
É seguir a onda. E começar a fazer uma vida diferente da que fazíamos antes. Continuo a dar as minhas aulas, a ter escrito no meu passaporte «Profissão: Professor Universitário» e não «Escritor» (que não considero profissão). Não quis aceitar profissionalmente esta actividade que até pode ser extremamente importante. Isso defende-me das editoras, dos contratos, dos compromissos.
Há os mínimos, presumo que tenha de fazer apresentações de livros.
Não, não faço.
Podia vender muito mais. Não tem essa gula de ter mais pessoas a lê-lo e admirá-lo?
Não é porque seja uma pessoa sem apetites, seria estúpido dizê-lo. Todos nós queremos ganhar uns tostões a mais. Acho que apresentar um livro não aumenta nada as vendas. São as ilusões que têm os editores e a máquina editorial nas quais é possível não cair. Uma apresentação o que seria em termos numéricos?, não seria nada. É muito mais cómodo ficar em casa e não gastar tempo e paciência.
É uma maçada dar entrevistas?
Se as pessoas são simpáticas como é a menina, não.
Obrigada.
Há pessoas que são demasiado não sei quê e começo a ficar encolhido, encolhido, encolhido, e desejo que termine rapidamente.
É verdade que comprou o Pessoa num quiosque de Paris, foi lê-lo para Itália, e ficou de tal modo estarrecido que decidiu aprender minimamente a língua?
Mais ou menos. Desconhecia completamente o português, o mundo português, a cultura portuguesa e até a geografia de Portugal. Estava a voltar para Itália, depois da tal passagem de um ano em Paris. Comprei por mero acaso um livrinho que era a primeira tradução francesa, e acho que em todas as línguas, do Pessoa. Mesmo que naquela altura não tivesse uma grandíssima intuição ou cultura, suspeitei que aquilo era um grande, grande poema («Tabacaria»). Como acontece naquela idade, a uma descoberta como esta seguiu-se o entusiasmo. Pensei que seria interessante aprender um bocadinho a língua na qual este senhor escreveu o seu poema. Regressando à universidade vi que entre as várias disciplinas, no âmbito da Filologia Românica, havia a língua portuguesa. Comecei a estudar português e, meses depois, cheguei a Portugal.
Veio de mochila às costas? Não é fácil imaginá-lo, jovem de 20 anos, à descoberta de Portugal com o «Tabacaria» do Pessoa.
Então, se não consegue imaginar, tenho aqui uma fotografia! Era assim!
Tinha um bigode farfalhudo!
Cheguei aqui com um Fiat 500 comprado em segunda mão.
Comprado com o seu dinheiro ou o dos seus pais?
Um pouco, um pouco.
Trabalhava nas férias para ganhar uns trocos?
Passei o meu ano em Paris trabalhando. Lavava os pratos na «Cité Universitaire». Não quero magnificar as épocas, mas na altura, quando os miúdos saíam de casa e iam viver os seus caprichos, tinham de se manter com os seus próprios meios. Claro que os pais ajudavam sempre, mas lavar os pratos era a minha tarefa.
Era suficiente para sobreviver?
Mais ou menos. Ter pequeno-almoço, almoço e jantar na cidade universitária já não era mau. Depois havia outras maneiras de ganhar dinheiro: dar aulas de italiano e outras pequenas coisitas.
Então veio no seu Fiat.
500, Fiat 500! Era um carrinho óptimo, mas era preciso muita paciência porque aquilo não corria. Grão a grão, cheguei. E conheci a Maria José, por acaso.
Foi um amor à primeira vista?
Agora está a fazer-me perguntas muito mais pessoais e íntimas! Não, foi à antiga. Pertenço a uma geração em que os namorados escreviam cartas e trocavam ideias sobre livros.
Também pertence a uma geração que viveu a euforia do amor livre e cujos casamentos foram definhando pelos anos fora.
Em 63, a minha geração ainda mantinha formas de tratamento interpessoais que não previam aquelas euforias. Um rapaz conhecia uma rapariga e começava a ter com ela umas conversas, uma amizade intelectual, uma troca de impressões. No ano seguinte viria com uma bolsa. Resultei num bom aluno e deram-me uma bolsa. Depois a vida faz o resto, encarrega-se ela.
Em que língua fala com a Maria José?
Como calha. Quando estamos com os filhos normalmente falamos em português. O meu filho vive em Itália; a minha filha neste momento está a viver em Portugal. A língua na nossa família é um pêndulo, oscila. Quando conheci a Maria José falávamos em francês; não conhecia suficientemente o português para ter uma conversa decente.
Nestes 30 anos andou sempre cá e lá. Nunca pensou viver em Portugal?
Porque não? Já pensei muitas vezes nisso. Mas provocaria uma mudança radical na minha vida. Gosto muito de ser professor universitário.
Não poderia ser professor aqui?
Já fiz a experiência no Instituto Italiano de Cultura e é outra coisa. Gosto de estar com os meus alunos, é um oxigénio bastante importante, conviver com gente daquela idade.
Vêem-no muito como o escritor Tabucchi?
Procuro ser o mais profissional possível. Quando dou as minhas aulas, aí, fala-se de Gil Vicente e aquilo tem de ser uma aula de Gil Vicente. É verdade que sendo Siena uma cidade bastante pequena, como Coimbra, e com um perfil bastante universitário, quando o curso acaba há uma parte de convívio. Há raparigas e rapazes que querem que leia as coisas que estão a escrever e aí nascem outras discussões.
Sente o peso da idade?
Não excessivamente. Fisicamente não. Do ponto de vista das recordações, do calendário, as pessoas não podem evitar sentir a idade. Sobretudo quando pensam nas pessoas que conheceram e já não existem. Os mortos pesam muito na avaliação da idade. Mais do que na morte, que é uma ideia muito abstracta na qual pensam os filósofos, pensamos nos mortos.
É a dor dos mortos ou o medo da morte?
Não é o medo da morte. É a saudade, a nostalgia. É o facto de estas pessoas já não estarem cá, e nós gostaríamos que continuassem a estar. O que é a morte? É um desaparecimento, uma ausência. É constatar este espaço que já não é preenchido.
Nos seus livros há sempre mortos.
E fantasmas. O meu «Requiem» está cheio de fantasmas. Que são alegres.
É um devaneio muito prazenteiro.
É verdade. Há uma oscilação: às vezes dão melancolia, outras alegria. Recordar é uma forma de recuperação, mesmo que não seja corpórea e seja só memorial, também isso alegra-nos. Como se num instante, como por magia, a pessoa que não existe voltasse a existir. É este miserável milagre que nos é concedido a nós, humanos: recordar. E continuar a manter a vida ou fazer viver dentro de nós o que já não existe.
Trata-se também de cortar o cordão umbilical. Justamente no «Requiem» o momento mais esperado é um encontro com Fernando Pessoa. Aquilo que lhe diz é que andou a vida toda a aventar hipóteses sobre ele, e que estava agora cansado e precisava de se libertar.
Aquele eu (que diz «eu» no livro) não corresponde necessariamente ao António Tabucchi como pessoa. Há sempre uma modificação romanceada e romanesca que torna o protagonista muito diferente de quem o escreveu, embora possa haver partículas ou quocientes de autobiografia. É claro que a autobiografia nos escapa sempre; nós fechámos a porta e ela sai pela janela. Mas aquele eu não sou eu. Estamos na alteridade da ficção.
Tendemos a olhar para o personagem central, mais ainda naquele caso, como o alter-ego do escritor. Até porque presumo que seria uma felicidade incomensurável para si ter uma ceia com o Pessoa.
Ah pois claro!
Seria o presente da sua vida?
Isso não sei, poderia haver más surpresas. Muitas vezes, nós escritores, do ponto de vista humano somos uma desilusão terrível, sabe?
Numa entrevista recente, Salman Rushdie dizia que a maior parte dos escritores tinha uma vida desinteressante porque, ou bem que escreviam, ou bem que viviam.
Há uma grande diferença entre as vidas muito extrovertidas e cheias de aventuras que são próprias dos escritores do século XIX e as vidas pardas dos escritores do século XX que tiveram, pelo menos aparentemente, vidas muito pouco interessantes ou mesmo desinteressantes.
Encontra alguma justificação para isso?
Não sei, seria necessário ser um sociólogo da literatura. Já nos séculos antigos, Camões tinha perdido um olho nas batalhas e salvo «Os Lusíadas» do naufrágio. O Schiller, o Byron, o D’Annunzio, toda esta gente, umas vidas extremamente agitadas. Joyce foi professor em Trieste e depois em Zurique, mais nada. Pessoa? Tradutor de cartas comerciais!, uma espécie de Bernardo Soares (seu semi-heterónimo e guarda-livros). E o Kafka? Empregado de escritório de uma companhia de seguros. As vidas deles são do mais banal possível. Mas não. As vidas interiores que tiveram é que são enormes. Se se põe a ler o diário íntimo do Kafka, que não teve uma vida prática de grande interesse, é que descobre uns abismos, uns universos, muito mais interessantes que o D’Annunzio que andou a pelejar para aqui e para lá. Então, como é que é? Como se pode sanear esta contradição? É difícil.
Como dizia o Freud, há esse infinito inconsciente.
Se calhar podemos dizer que no século XX, a vida imaginária, a vida virtual, a vida interior, é mais larga e mais importante que a vida exterior que se vive todos os dias.
Quanto à sua vida. Não corresponde ao italiano típico, que esbraceja e é muito extrovertido. Parece mais o português típico, melancólico e quase solipsista.
O italiano típico não existe, como não existe o português típico. É um paradigma normalmente apanhado no cinema e que acaba por ser uma caricatura que sobe um bocadinho de oitavas. Itália é um país mesclado e com proveniências culturais completamente diferentes. Vivi uma vida que não escolheu como umbigo e ponto referencial a cultura do seu país. Talvez esse facto me possa dar as características que me tornam diferente de um italiano segundo o qual Roma ou Florença, a Renascença italiana ou Dante são o umbigo do mundo. As minhas raízes, não quero renegá-las, mas também sei que é tudo relativo. Se lá há um Ariosto, aqui há um Camões. O sentido relativo significa não ter ficado sempre aí, agarrado à imagem paterna ou materna e pensar que o mundo é todo diferente. E é todo igual. [sorriso]
Considera-se solipsista?
Não. Detesto a solidão. Seria um escritor incapaz de fazer de si próprio o objectivo e objecto da sua escrita. Gosto mais de observar gestos alheios que escrever uma auto-análise. Acho mais interessante ver se a vizinha saiu, está a dar as migalhas aos pombos, se a neta chegou.
Não há uma aparente incongruência quando se pensa em Pessoa como a obra da sua vida? Ele sim, era tremendamente solipsista.
O Pessoa passou a vida a inventar vidas alheias, a criar personagens, como o Balzac fez de uma outra maneira. Cada personagem dele é um protótipo, deve corresponder a pessoas que conheceu. Talvez devesse dizer que o Pessoa é um autor muito importante, sim. Mas não é o autor da minha vida.
Ah não?
Foi um autor que privilegiei no sentido que foi o autor que ousei traduzir para italiano e sobre o qual tive também a ousadia de escrever os meus ensaios. De um ponto de vista do alimento poético, há outros autores que estão no mesmo plano e me forneceram inspirações e emoções que não são inferiores às que o Pessoa me deu.
Por exemplo?
Montale, Kavafis, Emily Dickinson. Há encontros na literatura que uma pessoa entranha e ficam-lhe cá dentro. Mesmo que não haja uma frequentação tão contínua como tive com o Pessoa, é um alimento substancial.
A imagem que se tem de si é, então, algo redutora: a de um italiano que chegou a Portugal e se apaixonou por Portugal através de Pessoa.
Mas isso está certo; uma coisa não exclui a outra. Como dizia o Pessoa, tudo vale a pena se a alma não é pequena. Dentro de mim não cabe só o Pessoa.
Qual o heterónimo de Pessoa com que se identifica mais?
Não sei.
O Álvaro de Campos talvez lhe fosse bem; é um niilista.
E de uma ironia muito cortante. Gosto muito do Bernardo Soares, também. Foi capaz de fazer metafísica nas barbearias!, não é fácil.
No essencial é o que acontece nos seus livros: há vulgaríssimas tramas policiais para, por detrás delas, desenvolver e apresentar teorias filosóficas (a «Grande Norma» ou a «Confederação das Almas»). Como se a salvação do homem estivesse na força das ideias. Acha que o homem tem salvação?
Diria que tem esperança de salvação, que é diferente, e que é bom ter. É como dizer: «Eu não sou pessimista, sou um falso optimista», seria o mesmo paradoxo. Acho que sou uma pessoa alegre.
Alegre?
Sim. E depois, todas as pessoas alegres têm as suas partes melancólicas.
Porque esconde tanto a cara ou as expressões ou os sentimentos com as mãos e raramente olha nos olhos a pessoa com quem está a falar?
Por timidez, talvez. E por miopia, porque sou muito míope. Agora tenho uns olhos um bocadinho fracos. Também é a idade; estávamos a falar da idade, está a ver?
Também é por causa da idade que põe essa boquilha que corta a nicotina?
Não, isso é um álibi psicológico. É obvio que não serve para nada. Dá só a sensação que estamos a domesticar o cigarro, mas o veneno entra na mesma.
Contrafóbico?
Sim. Como dizer, uma pequena mania. Como tantas que nós temos.
Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 2002
António Tabucchi morreu em 2012