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Anabela Mota Ribeiro

Pedro Magalhães

24.04.18

Pedro Magalhães é cientista político. Nasceu em 1970. Encontrámo-nos para falar do país que somos 40 anos depois do 25 de Abril. A despeito da crise e do desencanto com os políticos, a democracia esgotou o seu prazo de validade?

Talvez a frustração seja inevitável. A promessa era grande. Na entrevista faz-se a anatomia de um sonho e tenta-se perceber o  que ficou por cumprir. A esmagadora maioria dos portugueses aponta o sistema judicial como o espinho da flor e uma boa parte deixou de ver a Europa como uma coisa “benigna”.

Muitos cravos para sentir até Abril. O país é olhado pela lupa de um politólogo, desde a revolução até aos nossos dias: “Os nossos partidos são instituições fracas. Quem é que me diz que no momento em que o PSD muda de liderança o discurso do PSD não muda completamente?”

 

40 anos depois, estamos prontos para uma revolução?, precisamos de uma revolução? São duas questões, comecemos por ambas.

Não sou fã de revoluções. As revoluções têm aspectos muito destrutivos, geralmente, e tendo a ser conservador. Gosto de reformas, gosto que as mudanças sejam incrementais. Até porque uma das coisas maravilhosas das democracias é a possibilidade de resolvermos os nossos conflitos de uma maneira pacífica, que aliene o menor número possível de pessoas e de interesses, que gere compromisso.

 

A nossa revolução foi atípica.

Foi, teve um carácter peculiar. Houve vencidos e vencedores (e houve uma sequência em que aqueles que foram vencedores num determinado momento acabaram por ser vencidos noutro). Foi pacífica ou relativamente pacífica. Teve um efeito transformador, não apenas em Portugal, mas em outros países (dos quais éramos potência colonizadora). É sem dúvida uma revolução no sentido em que teve uma grande componente de mobilização popular, teve uma ruptura em relação a um regime que estava estabelecido, avançou de forma muito rápida uma agenda política, de mudança. Mas não foi uma revolução com o potencial de destruição de outras revoluções históricas.

 

Não se cortou a cabeça ao rei.

Não se cortou a cabeça ao rei, não se cortou a cabeça aos que derrubaram o rei. Conseguiu-se uma transição que parecia em muitos pontos quase impossível (devido à intensidade do conflito, aos interesses que não eram apenas domésticos [que estavam em jogo]) e que chegou a um regime democrático em que as nossas diferenças se resolvem dentro das instituições.

 

Há uma ruptura efectiva e uma promessa de mudança. Que se faz?, que fica aquém do esperado?

Ah, é uma questão enorme... A comparação entre Portugal e Espanha é interessante. São dois momentos de mudança de regime quase contemporâneos e contrastantes. Em Portugal há uma ruptura e há um conjunto de ideias e poderes que ficam deslegitimados (pela sua ligação ao regime anterior). Em Espanha há uma transição pactada, e alguns dos principais actores do regime anterior conseguem, através da negociação, construir uma democracia. Outro contraste tem a ver com as promessas. A transição portuguesa, desde o princípio, desde o manifesto MFA, contém uma promessa da mudança das instituições, dos direitos, dos procedimentos, de diminuição das desigualdades, com uma componente social muito forte.

 

As questões que se levantavam na transição espanhola estavam mais confinadas à política?

Sim, à dimensão política e institucional. Em Portugal isso esteve também presente, e gerou conflitos e dilemas e avanços e recuos, mas a componente de mudança social e económica está presente desde o princípio.

 

Basta ver os casamentos que se desfizeram e fizeram de novo, o estilhaçar da família tradicional para perceber como, na sua célula, a sociedade portuguesa se transformou.      

A ideia de que as mulheres precisavam de autorização dos maridos para sair do país, as licenças de isqueiro... Vivíamos num mundo de tal maneira opressivo... Essa mudança nos costumes, na relação das pessoas com o Estado (o que é que o Estado nos pode dizer e não pode dizer, o que é que nos pode proibir ou não de fazer), estava presente na matriz. Os nomes dos partidos...

 

Espelham isso?

Em conferências internacionais, tenho de explicar que o partido de centro-direita em Portugal se chama “Social Democrata”. E que o partido mais à direita é um partido de centro. Em parte é um fait-divers, em parte é importante. Apesar de ter havido mudança geracional nos partidos, apesar de ter havido mudança ideológica, quando comparamos o que é a direita portuguesa com a direita espanhola, vemos diferenças muito grandes. A direita espanhola é muito mais conservadora, inclusive no plano das políticas económicas, mas sobretudo no plano dos valores. Temos esse legado da revolução – uma direita especial no contexto europeu.

 

Pensemos numa figura mítica como Sá Carneiro. Além da influência da social democracia nórdica, eventualmente sublinhada na relação com Snu, com quem vivia, a pergunta é: ser social democrata era a possibilidade, naquele momento, de ser de direita?

Os partidos apresentaram-se constrangidos pelo ambiente da altura. Não era possível com a deslegitimação que houve do regime anterior apresentarem-se como sendo de direita.

 

Ser de direita era ser fascista.

Basicamente era estar ligado ao regime anterior. Se observarmos quem eram as pessoas, vamos encontrar afirmações, textos programáticos, documentos de Sá Carneiro, por exemplo, que são claramente de centro-esquerda. Vale a pena recordar que foi sob o PSD que o Estado-Providência e as políticas sociais mais cresceram. Temos partidos de direita mais heterogéneos internamente do que muitos partidos de direita na Europa. O simétrico disto é dizer que temos um Partido Socialista que é dos mais conservadores da Europa.

 

Porquê?

Em Portugal, a principal clivagem durante a revolução foi entre o PC e os outros partidos. Muita gente que normalmente votaria num partido de direita votou PS.

 

Como opção moderada?

Como opção da luta contra o Partido Comunista. Ainda hoje, o PS, o seu eleitorado, é heterogéneo. O mesmo sucede com o PSD.

 

Tivemos um primeiro ministro socialista, António Guterres, católico praticante.

E socialistas anti-clericais.

 

Quando é que se percebeu que íamos ficar aquém do que tinha sido prometido e sonhado com a revolução?

Diferentes pessoas sonharam coisas diferentes.

 

Mas quase todas estavam envolvidas – e vale a pena destacar isto. Não foi um projecto confinado à política ou às elites de Lisboa. As pessoas aderiram, globalmente.

Sim. Algumas das promessas eram irrealizáveis. E, a meu ver, nem todas eram desejáveis. Um legado negativo da nossa transição foi o papel do Estado na economia das empresas públicas, na nacionalização do tecido económico. (Isto não tem nada a ver com o Estado-Social.) Veio-se a perceber que essas empresas não só não eram bem geridas como permitiam uma circulação endogâmica entre partidos e empresas públicas cujas consequências estamos ainda a viver. Portanto, essa promessa inicial, de que era possível ter uma economia que produzisse bem estar, crescimento, com um papel tão grande do Estado, era irrealizável, e teve que se desfazer ao longo do tempo.

Houve outros aspectos da promessa que se foram realizando. Quando (nas celebrações dos 30 anos) comparámos os dados estatísticos do Portugal de 73 e o de 2003, as mudanças eram extraordinárias.

 

No acesso à educação, índices da saúde?

Essa promessa realizou-se. O declínio da mortalidade infantil – a melhor coisa que podemos pôr no nosso poster, é o resultado mais espantoso. Muito disto não tem a ver com melhores hospitais, tem a ver com os direitos das mulheres; este resultado não teria sido conseguido sem a emancipação das mulheres.

As promessas que não se cumprem: não é apenas um fenómeno português. Nas novas democracias há sempre um momento de desencanto. Quando se luta por um novo regime todas as pessoas têm expectativas diferentes, e a democracia não permite que um grupo ou um interesse realize tudo o que quer em desfavor do outro. É uma vantagem da democracia e uma fonte de frustração. A democracia é o mundo do second best.

 

Por isso é que é o pior sistema com excepção de todos os outros, como dizia Churchill.

É. Todos conseguem e não conseguem exactamente aquilo que querem. Conseguem muitas vezes uma segunda e terceira opção [em relação ao que pretendiam]. “O novo regime vai ser aquilo que nós queremos.” Mas o “nós”, em vários sentidos, não existe. “Portugal deve”, “os portugueses querem”, “é preciso que os portugueses façam”... Os portugueses são um conjunto diverso de pessoas com interesses contraditórios. Quando o Fernando Ulrich falava dos sem abrigo e dizia que eles aguentam, dizia também: nós, nós, nós. Não há um “nós” no sentido em que o Fernando Ulrich o usava. O Fernando Ulrich partilha tantos interesses comigo como eu partilho com a empregada que trabalha em minha casa. Infelizmente há muitos interesses que não partilhamos, temos interesses em conflito, temos estatutos sociais diferentes. Isto para dizer que a frustração de expectativas é inevitável.

 

Há então um inevitável desencanto que sucede a um tempo de magia.

Sim. E uma coisa é garantir liberdade de expressão, de voto, de associação, protecção mínima dos direitos cívicos, liberdade religiosa – é desses direitos que faz a democracia e é uma conquista que não é de somenos. Mas depois vem o resto. O resto é aquele momento em que nos damos conta que uma coisa é a construção desta democracia, feita de procedimentos e de direitos, outra coisa é a qualidade da democracia.

 

O que leva alguns a dizer frases do tipo: “Isto nem é democracia nem é nada”.

As democracias mais antigas (Inglaterra, Estados Unidos, Europa do norte), com todos os seus problemas, foram resultado de processos de baixo para cima. Dou um exemplo. Temos partidos de centro-esquerda, como os alemães também têm, o SPD. Mas nesses países os partidos de centro-esquerda são uma emanação dos sindicatos. Em Portugal os sindicatos foram criados pelo Estado.

 

E hoje estão ligados ao PC, no caso da CGTP...

E a UGT ao PS e ao PSD. Isto dá-nos logo uma ideia de que o processo não foi o mesmo. Isto mostra-nos porque é que em Portugal, na Grécia, nas democracias da América Latina os sentimentos das pessoas em relação aos partidos e a sua sensação de não serem representadas pelos partidos são mais intensos do que nas antigas democracias. A mesma coisa com o centro-direita. Há muitos partidos de centro-direita nas democracias mais antigas que são uma emanação das igrejas, são uma manifestação política do poder da igreja.

 

O que é que não temos na nossa democracia, se temos liberdade de expressão e outras formas de liberdade, como já apontou?

Temos um sistema judicial que funciona mal. Temos um aparelho de Estado que elabora más políticas, que é rapidamente colonizado pelos partidos.

 

Está a dizer que o sector da justiça é o mais deficiente da nossa democracia? Aponta isso à cabeça?

Aponto eu e apontam as pessoas. Nos inquéritos, quando perguntamos: “Qual é o aspecto mais deficiente na nossa democracia?”, as pessoas convergem para várias coisas; aquela para que convergem mais rapidamente é o sistema judicial. Essas deficiências são heranças de longo prazo. A transição para uma democracia onde há eleições livres, competição partidária, direitos cívicos, pode fazer-se de uma forma relativamente rápida. É no resto que a História, a sociedade, a interacção com as instituições mostra as nossas deficiências. E por isso é difícil continuarmos felizes e realizados pelo facto de termos eleições livres ou liberdade religiosa. Não temos muito do resto que nos outros países faz parte do pacote, que foi desenvolvido historicamente durante muito tempo.

 

Temos uma cidadania pouco participativa.

Pouco envolvida, passiva. As pessoas desconfiam muitíssimo umas das outras.

 

Pensei que desconfiavam, mais do que tudo, do Estado.

Não. A seguir à Bulgária, somos o país europeu em que o cidadão, quando se lhe pergunta: “Acha que pode confiar nos outros ou que todo o cuidado é pouco?”, [mais] responde que todo o cuidado é pouco. 75%, 80%. Experimente perguntar isto a um sueco. É o contrário. Se as pessoas apenas confiam no seu círculo familiar ou de vizinhança mais restrito, e não confiam em pessoas que não conhecem, isto tem consequências que atravessam a sociedade toda. 

 

De que tipo? Fechamento ao estrangeiro, ao diferente?, provincianismo?

Quem é que investe numa empresa se está sempre com medo de um parceiro que não conhece? “E se o outro me vai enganar?” Quem é que se junta para um movimento político, para defender os interesses da sua cidade? Para mitigar isto precisaríamos de instituições do Estado, como o poder judicial, que [funcionassem]. “Eu posso não confiar em ti. Mas se houver algum problema, alguém resolve. Há alguém que vai fazer cumprir este contrato.”

 

As duas coisas estão ligadas...

Estão. “Eu vou organizar os canteiros e limpar a rua porque sei que os outros também farão, que os outros não vão tirar partido de mim.” Toda a gente acha que se fizer alguma coisa vai estar a ser explorado pelos outros e não temos as instituições que nos permitiriam pensar: “Eu desconfio, mas se correr mal, há alguém que vem de cima e faz justiça.”

 

Por mais anos que passem, se algumas coisas não mudarem radicalmente – e, se calhar, à cabeça, o sistema judicial – continuaremos a ser uma democracia (e nesse caso já antiga) mas imperfeita. É isso?

É uma das questões mais interessantes que se podem levantar hoje. Dizemos: novas democracias. Não somos assim tão novos... Quarenta anos já é bastante tempo. Mas os legados históricos demoram muito tempo a desfazer-se. São características quase intrínsecas da sociedade. Por muito que mudemos regime – de ditadura para democracia – as suas consequências continuam a ser visíveis porque são extremamente profundas.

 

As pessoas já viveram mais satisfeitas com a democracia.

Já. Neste momento, somos os europeus mais insatisfeitos com a maneira como funciona a democracia. Só os búlgaros e os romenos estão ao nosso nível. Mas se olharmos para os gráficos da confiança, em dez, vinte, trinta anos, são linhas rectas. Isso não muda. Os emigrantes de segunda geração mantêm a desconfiança [que foi inculcada pelos pais]. Arriscamo-nos a tornar-nos uma velha democracia e uma velha democracia deficiente. Não tenho sinais de que possa ser diferente.

 

Face a isso, retomo a minha primeira pergunta: estamos prontos para um revolução, precisamos de uma nova revolução? Isto está evidentemente ligado ao desencanto que se tem acentuado nos últimos anos, fruto da crise que estamos a viver.

Não quero desvalorizar o que se passou nos últimos anos. Mas se quisermos ter uma visão mais distanciada, esta insatisfação não é dos últimos dois anos. Acentuou-se bastante [com o agravamento] das condições financeiras. Em relação à Europa tínhamos a ideia de que íamos pertencer a um clube selecto, bem frequentado, de países ricos e desenvolvidos. Entrámos nesse clube, mas o nosso cartão não tem tantos pontos nem dá tantos privilégios como outros. Agora descobrimos uma coisa que aprofundou isto: os donos do clube não têm necessariamente os nossos melhores interesses em mente. São mais egoístas do que pensámos.

 

Por “donos do clube” devemos entender, essencialmente, a Alemanha?  

Os países mais ricos e dominantes na União Europeia.

Volto ao princípio: esta insatisfação não é recente. Fala-se de uma década perdida... Não foi perdida. Temos os indicadores da Educação e do PISA para mostrar coisas positivas que aconteceram nos últimos dez anos. Mas do ponto de vista do crescimento económico, da possibilidade de Portugal continuar a convergir com a Europa, são anos de desilusão. Quero chamar a atenção para isto: uma coisa é a desilusão com quem nos governa, e a desilusão sucessiva com vários governos, outra coisa é a atitude em relação ao regime como um todo.

 

Globalmente os portugueses continuam a preferir a democracia.

Uma larga maioria, quando lhes perguntamos nos inquéritos: “Acha que a democracia esgotou o seu prazo de validade? Acha que há regimes melhores?”, continua a apoiar um regime democrático. O que temos é um entendimento do que é a democracia que é mais exigente e mais maximalista do que se verifica em outros países. O último European Social Survey (o inquérito mais importante que se faz na Europa de dois em dois anos) tinha perguntas sobre liberdade de expressão, eleições livres, tribunais que tratam todas as pessoas da mesma maneira, controle da corrupção, igualdade social, combate à pobreza. Perguntávamos: “Até que ponto considera cada uma destas coisas essencial para que um regime se diga democrático?”

 

No fundo, é uma maneira de perguntar a que é que corresponde a ideia de democracia.

Sim. Depois perguntávamos: “Até que ponto acha que o seu país corresponde a esta [ideia]?” Em Portugal, a ideia de que a democracia é também reduzir igualdade social, combater a pobreza, ter tribunais que tratam as pessoas, independentemente do seu estatuto, da mesma forma, faz parte do conceito de democracia. Isto é tão essencial como eleições livres, como liberdade de expressão. Se em Portugal isso é tão essencial, quando perguntamos às pessoas se estão satisfeitas, é claro que estão insatisfeitas.

 

Em Portugal, esse entendimento de democracia, é assim porquê?

Em parte, é um legado do 25 de Abril.

 

Sobre o sistema judicial, uma das queixas que se ouvem é: “Os ricos safam-se sempre, quem se lixa é o mexilhão”. Traduz o sentimento de as pessoas não serem iguais perante a lei.

É um sentimento esmagador na sociedade portuguesa, e que junta a ineficiência do sistema e a iniquidade do sistema. Ouço comentários de juízes que dizem que a imagem do sistema é pior do que o sistema. Admito que seja verdade nalguns indicadores. Mas a percepção não é apenas de ineficiência. É de iniquidade!

 

Há uma classe média que engrossou nos últimos 40 anos e que tem sido especialmente afectada pelas medidas de austeridade. Se olharmos para as manifestações dos últimos anos, foram sobretudo esses que saíram à rua. As pessoas que vivem do rendimento de inserção parecem mais marginalizadas dos movimentos cívicos. Isto vai conduzir a quê?

Não vejo assim tanta participação cívica...

 

Manifestaram-se milhares de pessoas. Em Lisboa, fizeram um percurso, desaguaram na Praça de Espanha e depois cada um foi para sua casa. Não havia uma força política aglutinadora.

“Cada um foi para sua casa” – é um ponto importante.

 

Olhamos para o lado e vemos que o vizinho fez o mesmo que nós. É possível que isto, mais à frente, não produza um resultado?

Em primeiro lugar diria que o grupo dos pobres mais pobres não terá sido tão afectado. Também não havia muito mais para fazer..., quando se faz a fronteira nos 500 euros... Quem de facto perdeu rendimento e qualidade de vida foi a classe média. Na função pública (pelos cortes salariais) e no sector privado (por via do desemprego). Importa ter em mente que as consequências disso ainda não são completamente visíveis.

[A manifestação] da Geração à Rasca, a do 15 de Setembro [de 2012]. Em Espanha, na Grécia, a mobilização é mais activa, mais recorrente do que em Portugal. É impossível que não tenha consequências? O que vejo são diferenças. A grande questão para mim é saber porque é que essas consequências não são tão grandes em Portugal [como são noutros países].

 

Que explicação encontra?

O aumento da desigualdade e pobreza em Espanha foi mais abrupto. Na Grécia, um terço da população não consegue pagar a renda de casa, declara não ter dinheiro para comer proteínas. Em Portugal, os efeitos da austeridade não são, ainda, tão dramáticos. Isto pode ser uma primeira pista explicativa. Segunda pista: em Portugal não há tradição de esse tipo de mobilização produzir resultado. Em França, na Itália, na Grécia, sim, e por isso as pessoas mais rapidamente se mobilizam. Mas não tenho uma resposta clara para isto: “Porque é que os portugueses são tão passivos?”. Posso juntar uma terceira pista: como já falámos, os partidos de esquerda são muito heterogéneos de um ponto de vista social e ideológico. E são pouco independentes do Estado; vivem do financiamento partidário. Excluindo o PC, são pouco encaixados em clivagens sociais reais. Têm menos capacidade de mobilização.

 

Em Portugal vivemos no centrão. Como compreender que durante 40 anos tenha sido assim? Com excepção do CDS, que esteve em governos de coligação, as forças hegemónicas foram o PS e o PSD, e a percepção é a de que “eles são todos iguais”.

A grande clivagem inicial da política portuguesa era entre o PCP e os outros partidos, o que ajudou à heterogeneidade eleitoral de cada um deles, o que ajudou a que durante muitos anos essa fosse a principal luta política. Vemos PS, PSD, CDS juntarem-se em revisões constitucionais – numa oposição ao PCP. Também ajuda [a compreender esse fenómeno analisar] as relações íntimas entre o Estado e os partidos. PS e PSD juntaram-se para criar uma central sindical. PS, PSD e CDS em vários momentos se juntaram para distribuir os despojos dos cargos de liderança das empresas públicas e das direcções gerais. PS, PSD, CDS, PCP juntaram-se para garantir um sistema eleitoral em que nada muda – toda a gente diz que quer mudar, ninguém muda coisa nenhuma. Facilmente entrámos num sistema em que as continuidades não são postas em causa. Dito isto, temos sinais de mudança.

 

Mudança profunda?

Temos um PSD e novos quadros do PSD com posições, no domínio das políticas económicas, mais à direita do que era tradicional. É hoje muito menos verdade dizer que os partidos fazem o mesmo e propõem o mesmo.

 

Por exemplo.

É evidente que este Governo tem políticas de educação muito distantes das políticas de governos anteriores. Exames, transferência de recursos para o ensino privado, o que é que significa o ensino público e que missão deve ter.

 

É uma coisa deste Governo?

É uma coisa desta liderança do PSD.

 

No futuro, e a partir deste momento de encruzilhada, estes partidos têm de se redefinir por dentro? O PSD vai consolidar esta opção mais à direita?

Vamos ver. No PSD, sobretudo na economia, temos um discurso mais liberal, mais a favor do mercado e mais contra o Estado. Mas os nossos partidos são instituições fracas. Quem é que me diz que no momento em que o PSD muda de liderança o discurso do PSD não muda completamente? Se tivesse que apostar, diria que é isso que vai acontecer. Que quando houver um combate político dentro do PSD, vai ser em torno disto, e o PSD pode voltar a ter um discurso semelhante ao que tinha. Basta ver o discurso de figuras do PSD hostis a esta liderança...

 

Pacheco Pereira parece de esquerda.

Manuela Ferreira Leite. Pacheco Pereira. Bagão Félix. Em vários aspectos parecem de esquerda.

Este momento de maior diferenciação política e ideológica, devido à debilidade dos partidos, devido à sua reduzida ligação a interesses reais na sociedade – mudam os líderes, mudam os discursos. O exemplo máximo disso é o CDS. O CDS é aquilo que o seu líder achar que o CDS deve ser naquele momento. [Portas] demite-se do Governo sem perguntar ao partido. As coisas são decididas de cima para baixo.    

 

Não apareceram partidos de extrema-direita. Porquê? Seria natural que eles aparecessem e reunissem as franjas de descontentes com o centrão?

Uma parte do descontentamento é captada pela extrema-esquerda. (Não quero usar “extremistas” como um qualificativo negativo.) Falámos do 25 de Abril: acho que é mais um legado relevante. Há determinado tipo de discurso de extra-direita que é aceitável, plausível e imaginável em Espanha, em França, e que em Portugal não é imaginável. Terceira explicação: a entrada desses movimentos no espectro político é muito difícil. Os partidos que existem estabeleceram barreiras à entrada de novas forças; tem a ver, em particular, com a questão do financiamento. Último ponto: a extrema-direita na Europa combina um discurso que é xenófobo, anti-imigração com um discurso anti-política, anti-partidos e anti-Europa.

 

Os portugueses são racistas e anti-imigração?

Nos inquéritos, vemos que são. O discurso é que não é politicamente aceitável. Não éramos anti-Europa porque a Europa era uma coisa bestial, de pessoas esclarecidas, que nos mandava dinheiro, que governava muito bem os seus países – porque é que não vinha governar o nosso? Estou a ser caricatural... Mas essa ideia de a Europa ser uma força benigna está a desaparecer. Há seis, sete anos, 80% dos portugueses diziam que confiavam muito na Comissão Europeia. Hoje em dia são 20%.

 

Continuamos à espera de um Sebastião que, vindo das brumas, nos vem salvar? Especialmente agora, que estamos perdidos, e em perda.

Reajo contra a ideia da singularidade portuguesa. Não digo que não haja, mas o meu material de trabalho não é esse. Somos parecidos com certos países e diferentes de outros. Não vejo a nossa singularidade, vejo a nossa comparabilidade. Preocupam-me as semelhanças com outros países destas novas democracias, todas elas com muitas promessas e muitas incertezas. O forte sentimento anti-partidos não aparece por acaso, a forte desconfiança dos outros... O mito sebastianista surge sempre porque muitas dessas promessas (de sermos iguais aos países com os quais nos comparamos) não se realizam. Como não se realizam, esse desencanto está mais presente aqui do que noutros países. Não tem a ver com o sebastianismo.

 

Tem a ver com o que não temos.

Tem a ver com o facto de, muito do que imaginávamos que fazia parte do pacote (um Estado Providência desenvolvido, mais igualdade, menos pobreza...) não se estar a realizar. Inclusive há sinais de que estamos em inversão em muitos destes aspectos. A frustração é inevitável. E ainda é maior porque a promessa era muito grande. Temos democracia, mas não temos o resto do pacote.    

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014

 

Curso de Cultura Geral - 22 Abril 2018

22.04.18

O mundo de Manuel Sobrinho Simões foi modificado mais por pessoas, casas, lugares, países, do que por obras de arte. Neste programa, falará mais do avó e do bisavô, médicos, de uma casa onde leu tudo o que havia para ler, das pedras parideiras da sua terra, Arouca; se tivermos tempo, daremos uma guinada até à Noruega, onde Sobrinho fez um pós doutoramento e viu de perto outra cultura, outra forma de viver as estações do ano.

Tatiana Salem Levy nasceu por acaso em Portugal onde os pais estavam por razões políticas e agora vive cá, tem um filho português. É brasileira, judia, ouviu canções sefarditas em crianças. O seu primeiro livro, A Chave de Casa, editado em 2007, constituiu a sua tese de doutoramento e apresentou o fulgor da sua escrita. O jornal inglês The Independent considerou-a uma das melhores escritoras brasileiras de sempre.

O mundo dos livros e das bibliotecas são a casa e a chave de Teresa Calçada, actualmente coordenadora do Plano Nacional de Leitura. Muito do que traz para a conversa é revelador do Portugal em que cresceu: opressivo, anquilosado, machista; e de repente, o espanto, por exemplo, num filme de Antonioni ou numa pessoa com Rui Mário Gonçalves..  

 

A lista de Manuel Sobrinho Simões, cientista

  1. As casas de Arouca e do Bombarral, com o meu Avô e o meu Bisavô, ambos médicos. Li tudo o que havia para ler nas diferentes casas, até Max Du Veuzit;
  2. Arouca pelo Aquilino Ribeiro d’ O Malhadinhas e Um Escritor Confessa-se;
  3. Bombarral e Camilo Castelo Branco;
  4. As pedras parideiras de Arouca;
  5. O pós-doutoramento em Oslo, Noruega. Circulo polar ártico;
  6. O meu Pai (sempre com cachimbo) e o Eça (A Ilustre Casa de Ramires e Os Maias);
  7. Jacques Brel e alguns cantores franceses (mais do que os Beatles…);
  8. A Sorbonne em Paris: o Hotel St. Pierre na Rue de l'École de Médecine e o café Les Deux Magots;
  9. O Brasil: Rio de Janeiro, Chico Buarque, Amazónia, a noção de excesso;
  10. África em 1990/91. Hotel Polana em Moçambique.

 

A lista de Tatiana Salem Levy, escritora

  1. Memórias de uma moça bem comportada de Simone de Beauvoir;
  2. A paixão segundo G.H. de Clarice Lispector;
  3. Viagem à Itália com 15 e com 18 anos (e podemos incluir os Caravaggio da igreja francesa de Roma) e a viagem pela Sicília em 2017;
  4. Viagem ao Vietnã e a procura por Marguerite Duras;
  5. Concerto “Do cóccix até o pescoço”, da Elza Soares, no Mistura Fina;
  6. Cravos, Pina Bausch, no teatro municipal do Rio de Janeiro;
  7. E se elas fossem para Moscou?, Peça de Christiane Jatahy, a partir de As três Irmãs, de Tchekhov;
  8. Cantigas sefarditas;
  9. Caminho Inca, no Peru, e a descoberta da América Latina;
  10. Os diários e as cartas de Kafka.

 

A lista de Teresa Calçada, directora do Plano Nacional de Leitura*

  1. Ouvir muitas histórias. O sotaque brasileiro de um tio-avô: as palavras eram iguais e eram verdadeiros brinquedos. Depois, aprender a ler essas palavras, antes mesmo de ir para a escola;
  2. As inundações de Novembro 1967 em lisboa: a brutalidade da miséria urbana, o encobrimento político, a luta, o imperativo de agir. Revolta pela diferença social entre rapazes e rapariga. O início da consciência política;
  3. Uma amizade com uma mulher livre. Uma biblioteca aberta, que eu podia ler em liberdade. Um biquini vestido às escondidas. Ou o amor livre sem ser no vão de escada;
  4. O Deserto Vermelho (1964), de Antonioni, o primeiro que fui ver sozinha, no Tivoli. Não perceber nada, ter vergonha e ter a certeza de que aquilo é que era preciso vir a perceber...;
  5. A Filosofia: protestos por um curso anquilosado que não correspondia às expectativas e reconhecer que dava ferramentas para a vida;
  6. A Arte: a importância do Rui Mário Gonçalves;
  7. O 25 de Abril. O limite das experiências e emoções. Não ter que sair do país, ter causas, agir, acreditar e desacreditar em liberdade;
  8. Como professora, trabalhar umas horas na biblioteca do liceu de Leiria e descobrir o maravilhoso mundo das bibliotecas;
  9. O campo, os campos de flores, de trigo, de papoilas. As árvores. A terra. O silêncio. A aurea mediocritas.

 

*A convidada preferiu que a sua lista fosse de nove elementos.

Ler no Chiado no Dia do Livro

21.04.18
Dia 23 de Abril é dia do livro.

No Ler no Chiado celebramos a leitura, o prazer do encontro com autores e livros seminais.

Com a Andrea Zamorano, João Tordo, Marta Hugon e Rita Taborda Duarte. Todos escrevem e publicam, excepto Marta, que é cantora e escreve, mas não publica.

Pedi-lhes que elaborassem a lista dos seus livros preferidos (entre 3 e 5); esse é o ponto de partida para a conversa, mas claro que os seus livros, o seu universo criativo e outros são convocados. 

Marque na agenda: segunda-feira, 23 de Abril, às 18.30, na Bertrand do Chiado.

Eu modero.

 

 

Curso de Cultura Geral - 15 Abril 2018

15.04.18

Imaginem um explorador alemão na América do Sul no século XVIII. Um homem de apetite voraz pelo mundo, que condensou numa obra, Kosmos, um imenso saber, e que se interessava por tudo. Da biologia à antropologia, dos vulcões à política. Para ele, a cultura era mesmo geral e as disciplinas não eram estanques. Alexander von Humboldt é o seu nome e é um dos ídolos da bióloga Patrícia Garcia Pereira, especialista em borboletas. Outro sujeito voraz: João Guimarães Rosa. Foi diplomata na Alemanha na Segunda Guerra, passou vistos que salvaram vidas (como o nosso Aristides Sousa Mendes), escreveu um livro que é, segundo ele, uma espécie de Fausto no Sertão brasileiro. Grande Sertão: Veredas é, coincidência, um livro central para duas convidadas do programa de hoje: a escritora Alexandra Lucas Coelho e Rita Natálio, também escritora e performer. Podíamos passar horas a discutir o universo, a linguagem, tudo o que há em Guimarães Rosa, mas aponto apenas duas frases: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. E: “Viver é negócio muito perigoso”.

 

A lista de Alexandra Lucas Coelho, escritora*

  1. Davi Kopenawa/Bruce Albert, A Queda do Céu;
  2. Um volume da Recherche (“Sodoma e Gomorra”), Proust;
  3. Le Clézio, Le rêve méxicain;
  4. Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas;
  5. Épico de Gilgamesh, tradução Francisco Luís Parreira e tradução de Pedro Tamen;
  6. Herberto, Photomaton & Vox;
  7. Orlando, Virginia Woolf.

 

A lista de Patrícia Garcia Pereira, bióloga

  1. Castro Verde: onde passei férias nas escavações arqueológicas dos meus tios em criança;
  2. Museo Nacional de Ciencias Naturales de Madrid. Passei 10 meses no museu a trabalhar com a colecção de borboletas;
  3. Avis: tem imensas potencialidades para trabalhar na construção de uma sociedade mais ecológica, mais sábia, mais rica e mais confortável para viver;  
  4. Fernando Catarino, Professor de Botânica da FCUL, já jubilado;
  5. Alexander Von Humboldt, um homem do séc. XVIII que junta Física, Geologia, Botânica, Antropologia e Política;
  6. Edward O. Wilson é o Humboldt do presente. Inventou a palavra Biodiversidade;
  7. Vandana Shiva: feminista, activista política, dedicou-se à conservação das sementes silvestres da Índia e escola para a promoção da agricultura em pequena escala, muito para mulheres;
  8. Floresta sintrópica: conceito que se baseia na junção de agricultura com floresta. A principal figura é Ernst Götsch, um suíço que foi para o Brasil há mais de 40 anos aplicar os seus princípios a uma fazenda;
  9. Rewilding Europe: podemos viver melhor se conseguirmos criar espaços selvagens em que não há intervenção humana. Não se trata de um retrocesso social, mas de uma forma de promover o conhecimento e contacto das pessoas com a natureza;
  10. Nabokov, já nos EUA, e antes de se tornar famoso como escritor, trabalhou no departamento de entomologia do Museu de Harvard. Fez desenhos.

 

A lista de Rita Natálio, performer e escritora**

  1. Descobrir Clarice Lispector, particularmente A Paixão segundo G.H. que deu origem a uma peça que realizei em 2012, "Não entendo e tenho medo de entender, o mundo assusta-me com os seus planetas e baratas";
  2. Ida para o Brasil em 2012. Uma viagem a Alter do Chão, no Pará, onde desenvolvi parte do projeto "Museu Encantador";
  3. Descobrir a antropologia de Viveiros de Castro e Tania Stolze Lima, o activismo poético de Ailton Krenak e a sabedoria de Davi Kopenawa;
  4. A minha primeira experiência em terreiros de Candomblé;
  5. Conhecer o cinema indígena nas aldeias, Corumbiara e Martírio de Vincent Carelli, que iniciou este projeto do vídeo nas aldeias nos anos 80;
  6. Ler em voz alta integralmente Grande Sertão: Veredas para a minha parceira;
  7. Ter lido e entrevistado Alberto Pimenta e Ana Hatherly;
  8. Enrolar-me na escrita de Gilles Deleuze;
  9. O choque de ler Artaud na adolescência, os Tarahumaras e Para acabar com o juízo de Deus.

 

 

*A escritora preferiu que a sua lista fosse de sete elementos.
**A convidada preferiu que a sua lista fosse de nove elementos.

Curso de Cultura Geral - 8 Abril 2018

09.04.18

Nos últimos anos de vida, o escritor Scott Fitzgerald viveu com uma jornalista, jovem, para quem compôs um curso de cultura geral, onde estavam as obras que ele achava que ela devia conhecer. Ela, Sheilah Graham, condensou a experiência no livro College of One. Foi um curso para um, para uma, e foi uma tentativa de fixar um cânone. A ideia é desafiadora: o que deve constar numa lista assim? Quais são as obras a partir das quais podemos dizer que uma pessoa é culta? Outra coisa é pensar nas referências particulares, nas obras, encontros, livros, experiências que formam cada indivíduo. Isso implica um entendimento de cultura mais abrangente e menos circunscrito à erudição. É daqui que parto para este programa. Muitas vezes há uma coincidência entre o Aristóteles ou a Capela Sistina, entre os indisputáveis do cânone, e os nomes apontados nas listas particulares. Muitas, muitas vezes, não. E as obras apontadas são, sobretudo, peças que tiveram um efeito detonador, um encontro que possibilitou uma expansão do mundo. É com esta imagem de granada e de revelação que começo a conversar com o historiador Rui Tavares, a antropóloga Antónia Pedroso de Lima e Maria Mendes, curadora de documentários.  

 

A lista de Antónia Pedroso de Lima, antropóloga

  1. 25 de abril: despertar da consciência política;
  2. Crescer em Alvalade, adolescência no final dos anos 70/80: os amigos, os cafés, os jardins, o rock português;
  3. A música dos pais: cantores portugueses de intervenção, Jazz, MPB e ópera; a minha música: Beatles e Rolling Stones, Pink Floyd, Doors, Tom Waits. Os concertos: o jazz de Cascais, o Ser Solidário do José Mário Branco, o regresso aos palcos do Miles Davis;
  4. Teatro/ Cinema: O Círculo de Giz Caucasiano de Brecht e A Mãe de Gorki e Brecht. Providence e Hiroshima, meu Amor de Alain Resnais, Ter ou Não Ter de Howard Hawks;
  5. Viver fora do país: Barcelona/Tarragona;
  6. Livros: Cem Anos de Solidão de Garcia Márquez, Memorial do Convento de Saramago, Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, Esteiros de Soeiro Pereira Gomes; O Pregador de Erskine Caldwell, Condição Humana Philip Roth, Americanah de Chimamanda Ngozi;
  7. Estudar Antropologia;
  8. Fazer pesquisa etnográfica: aprender/compreender como “os outros” vivem estando com eles;
  9. Viagens: os EUA, o Egipto, Bali, o Atlas em Marrocos;
  10. Organização de festival Olhares do Mediterrâneo – Cinema no Feminino. Misturar amigos, cinema, antropologia, feminismo, cidadania, luta pela igualdade e divertimento.

 

A lista de Maria Mendes, curadora de documentários

  1. Na infância, conviver com pai mais velho e um ambiente muito distinto dos amigos;
  2. Ler Lavoura Arcaica (1975) do Raduan Nassar na adolescência;
  3. O Casamento, romance do Nelson Rodrigues (1966), lido aos 14, a pedido da escola (contra alguns pais, não os meus);
  4. Documentário Santiago, do João Moreira Salles (2007);
  5. Música brasileira, Milton Nascimento, Minas Gerais, que é hoje a ponte com a memória e o país;
  6. Os vinis do Tom Jobim, que dão rumo quando sinto saudade de casa;
  7. O Evandro Teixeira e o fotojornalismo brasileiro, que me abriram os olhos sobre a política e o detalhe;
  8. O cinema do Eduardo Coutinho, indo ao contrário do que era a televisão;
  9. A vida em Londres como choque com o Rio de Janeiro, e o produto disso;
  10. A exposição Photography and Architecture, no Barbican.

 

A lista de Rui Tavares, historiador

  1. Álbum A Arte Maior de Chico Buarque;
  2. Regresso à Arrifana, no Ribatejo. Uma coleção incompleta da revista Tintin. 1975?;
  3. Regresso a Lisboa, regresso à Arrifana. Tom Sawyer de Mark Twain lido em cima das árvores. Il Cappotto de Alberto Lattuada baseado em Gogol. 1981;
  4. Regresso a Lisboa. A biblioteca municipal da Penha de França: os anarquistas, Proudhon, e uma vida de Tolstoi. 1985?;
  5. A Guerra das Salamandras, de Karel Čapek e uma viagem ao outro lado da cortina de ferro. 1986?;
  6. O Barão Trepador, de Ítalo Calvino 1990;
  7. O Queijo e os Vermes, de Carlo Ginzburg 1991;
  8. O Naufrágio do Minotauro, de Turner, no museu da Fundação Gulbenkian 1993;
  9. A História Trágico-Marítima e as coleções de folhetos de cordel da BNL, 1994-95;
  10. Os documentos da Inquisição de Évora e da Real Mesa Censória na Torre do Tombo, 1996-98.

 

(Quase) Toda uma Vida - Maria Emília Brederode Santos

05.04.18

Maria Emília Brederode Santos nasceu em 1942, formou-se primeiro em Letras, depois em Ciências da Educação (a sua área de estudo e trabalho). Estudou em Portugal e nos Estados Unidos. É uma reconhecida pedagoga, preside ao Conselho Nacional de Educação. 
Viveu intensamente os grandes momentos da História recente. As crises académicas dos anos 1960, o 25 de Abril, a construção da democracia, e, antes disso, a experiência do exílio, o desejo de mudar o país, o mundo. 
Coisas especiais de que podemos falar: o poema grego sobre o envelhecimento que António Sérgio lhe ofereceu, numa tradução feita por ele mesmo. Os pais consideraram o gesto pouco apropriado à criança que ela era então, ela ainda hoje sabe o poema de cor. Ou o poema Liberté, de Paul Éluard, dito pelo Gérard Philipe. Será Liberdade a palavra mais preciosa?

 

Falo com ela no dia 8 de Abril, domingo, às 17h, no pequeno auditório do Centro Cultural de Belém. 

 

O (Quase) Toda uma Vida é um ciclo de grandes entrevistas de vida a personalidades diversas, conhecidas e marcantes da vida portuguesa no último século, com periodicidade mensal.

From Russia (exposição na Royal Academy)

02.04.18

Entra-se e encontra-se à esquerda Tolstoi de pés descalços. Há nele vestígios de uma imensa melancolia, e o ascetismo de uma figura monástica. Na parede oposta, madame Nadezhda Polovtsova incarna Anna Karenina: o colo muito alvo, o vestido de cetim azul, o enlace singular das mãos: a pele translúcida de uma delas, a luva posta na outra.

Transpõe-se a porta de entrada e está-se num mundo que já acabou. Inventaram uma nova ordem social. Leram outros livros. Implementaram outros modelos. Fizeram revoluções. Já não há heroínas românticas, nem impressionistas, nem fauvistas, nem cubistas, loucos, modernos, vanguardistas. Já não há coleccionadores como Shchukin ou Morozov. Vivia-se um fim de império. Era um mundo em ruptura.

A Royal Academy, em Londres, recebe a exposição From Russia. Sem amor, com amor. Uma mostra de 120 quadros para ver até Abril. Os cartazes anunciam obras- primas da pintura francesa e russa, produzidas entre 1870 e 1925. Os textos dos directores de museus falam da contaminação e da fertilização mútua – do que aconteceu entre um país e outro, nesses anos. Os jornais falam do estado das relações Londres- Moscovo e da ameaça que pendeu sobre a exposição. As estações de metro estão revestidas com “A Dança”, de Matisse, e envolvem os londrinos nesse movimento sensual e ondulante. Alguns amantes de arte falam da qualidade exemplar das pinturas que ali se vêem. Entra-se e à esquerda encontra-se Tolstoi.

Once upon a time, dois empresários do têxtil, compradores compulsivos, de gosto educado, competiam entre si na Rússia do virar do século. Sergei Shchukin e Ivan Morozov construíram colecções de arte prodigiosas. Um tinha mais Picassos do que o próprio Picasso. Outro tinha as paredes do quarto forradas com 18 quadros de Cézanne. Inimaginável! Inimaginavelmente bom.

“A Dança?” Aquela dança é uma variação da Dança que o mundo ocidental conhece e vê em museus desde as últimas décadas. Esta, a russa, é ligeiramente diferente. O ocre parece mais ocre, o contraste com o azul mais vívido, os elementos estão ligados por uma pulsão dionisíaca. É uma sagração da vida. O quadro resultou de uma encomenda expressa de Shchukin a Matisse. Em 1909, o pintor escreveu uma carta ao industrial russo explicitando a intenção da tela: nela se fala do poder da música. Monsieur, le proprietère pagou 15, 000 francos e seguiu viagem de comboio com um sentimento ambivalente em relação à tela: seria ela excessivamente arrojada, primitiva, fracturante? Comprou-a, em todo o caso, e exibiu-a na Rússia. Bem como outras peças famosas de Matisse – entre elas, um quarto vermelho, intenso, paradoxalmente sanguíneo e harmonioso. Uma cena doméstica, um vaso com flores ao fundo, uma mulher fechada no seu mundo, uma imensidão de vermelho bordado a flores que passa um conforto uterino.

O interior da mansão de Morozov em Moscovo: as paredes com quadros alinhados, uns sobre os outros, ao lado dos outros. Como se formassem uma segunda parede. Sem recuo suficiente para ver as telas de grandes proporções, sem espaço para que a beleza pudesse respirar. Um museu em casa. Atolado. Sem o despojamento que os museus têm nos nossos dias. Sem a luz certa. Organização incerta. Que importa. Morozov tinha uma das mais fabulosas colecções de pintura do mundo, e usa-a no quotidiano como se usa um objecto de que se gosta muito. “Ver” é uma conjugação possível para o verbo usar.

Os dois magnatas faziam incursões a Paris. Nessa Paris fervilhante, os artistas transformavam Montmartre um bairro instigante. Picasso e Matisse ficam como ícones desse período revolucionário. Os russos chegavam e compravam tudo. Compravam as paisagens de cores impossíveis de Monet, a joie de vivre dos quadros de Renoir, a dilaceração e o tormento de Van Gogh, a cidade romântica de Pissarro, a imersão exótica de Gauguin no Haiti, a reinvenção de um mundo a partir da cor operada por Cézanne, a poesia sublime das telas de Bonnard. Mais tarde, compraram Braque e outros cubistas, compraram artistas cujo nome não chegou ao século XXI, compraram, compraram, compraram.

E mostraram. A pintura russa das primeiras décadas do século XX não seria a mesma se não fosse este convívio com a vanguarda parisiense. Não existiria Kandinsky, nem Chagall, nem Malevich. Sem Picasso e a sua geração, o retrato de Anna Akhmatova, que figura no catálogo da exposição, não seria como é. Não se pintariam retratos como o da bailarina Ida Rubinstein. Nem se faziam figurinos como os que foram feitos para a companhia de Sergei Diaghilev. A fertilização, a mútua contaminação de que falam os directores dos museus exprime-se nisto mesmo. O diálogo foi profícuo.

Shchukin e Morozov eram personagens da literatura. Da melhor literatura russa. As suas colecções tiveram durante décadas um destino funesto. Em 1918 as colecções foram apropriadas pelo Estado – decreto assinado por Lenine. Uma “apreensão” acompanhada de uma nota delicada: “Uma colecção exclusiva de grandes mestres europeus, sobretudo franceses, do fim do século XIX e começo do século XX”.

Quatro anos mais tarde, o espólio das duas colecções foi integrado no museu de arte moderna ocidental. Contudo, o museu foi simplesmente liquidado em 1948 sob sentença de Estaline. A justificação era a de que fomentava pontos de vista formais e deferentes a uma cultura burguesa decadente. Durante décadas, os quadros permaneceram em armazéns cavernosos na Sibéria. A reabilitação foi tardia.

A disseminação das obras fez-se pelas cidades de Moscovo e St. Petersburgo e pelos museus Pushkin, Hermitage, Estatal e galeria Tretyakov. Os herdeiros dos magnatas têxtil reclamaram desde sempre a devolução das obras. O imbróglio com Londres surgiu, justamente, a pretexto deste problema não resolvido – um pretexto sério, ainda que a questão de fundo seja o adensar das relações entre os dois países depois do envenenamento do espião Letvinenko. Gordon Brown, o primeiro ministro britânico, interveio e assegurou que a devolução das obras seria feita aos museus. Uma resolução que contentou as autoridades russas e permitiu que se mostrassem pela primeira vez peças únicas de um período irrepetível.

À saída, Malevich faz-nos mergulhar no seu quadrado preto. Também no vermelho. Deixa-nos num tempo onde ainda estamos. 

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2008       

  

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