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Anabela Mota Ribeiro

Dia da Mãe

04.05.18

Houve um tempo em que estes homens e estas mulheres foram simplesmente “o menino de sua mãe”, para usar o título de um poema de Fernando Pessoa. Foram uma esperança e um desígnio. Foram aqueles que aprenderam com o que foi dito, com o que ficou por dizer, com o que não foi dito.

No próximo domingo celebra-se o Dia da Mãe. O Jornal de Negócios decidiu evocar a mãe de cada uma das pessoas das próximas páginas. Recortou excertos de entrevistas que foram concedidas ao longo dos últimos (quase) quatro anos e compôs um mosaico com esses momentos.

A selecção tem em atenção o facto de estas pessoas serem especialmente marcadas pela figura da mãe (nuns casos), visa uma alternância em relação aos entrevistados que o ano passado evocaram o Dia do Pai (outros), ou constam, simplesmente, pela força do que dizem, pela maneira como falam da mãe.

De quantas letras precisamos para falar da nossa mãe?

 

ANDRÉ JORDAN

Falava polaco com a minha mãe e o meu pai. Eu nem sei mais como é que é o “Parabéns a você” em polaco. O meu pai morreu há quarenta anos, e a minha mãe morreu em 91. Nunca mais cantei o “Parabéns” em polaco.

O meu pai morreu no Rio de Janeiro, está sepultado no cemitério de São João Baptista e fui lá uma vez. Voltei uma vez uns anos depois, me emocionei muito, fui com a minha mulher para um café e me embebedei. A minha mãe está aqui em Lisboa, numa caixinha, no cemitério do Alto de S. João. Nunca fui lá. Não preciso de ver a caixinha, a minha mãe está dentro de mim, como o meu pai também está”.

 

 

ANTÓNIO COSTA

“A minha mãe é a extroversão em pessoa. Era jornalista do “Século Ilustrado” e tinha entrado para o “República” na véspera do fim do jornal. Até aí, para mim, havia dois mundos: os bons, que tinham lutado contra o fascismo, e os fascistas. De repente, tudo se tornava mais complexo. Porque entre os bons, havia aqueles que tinham a liberdade e aqueles que ameaçavam a liberdade dos outros. Foi um choque. Sobretudo tendo em conta que o meu pai era, e foi até ao fim da vida, militante do PC e os amigos dele eram grandemente do PC. Essa ruptura que aconteceu na esquerda portuguesa entrou com muita força na minha vida. Para mim, a política era o meu pai, era a minha mãe. [Aprendi com eles que] fazer política é ter um empenhamento cívico”.

 

ANTÓNIO DE ALMEIDA

“Sou uma fotocópia do feitio da minha mãe. A minha mãe não se ficava, respondia, era uma trabalhadora incansável. Não há dia nenhum que não os recorde [os pais] e não utilize frases deles. Quando nós nos portávamos muito mal – e eu costumo dizer isso aos meus netos – dizia: “Estão a portar-se como uns húngrios”. Não húngaros, mas húngrios”.

 

 

ANTÓNIO RAMALHO

“Eu sou do estilo da minha mãe: bem-disposto de origem. O meu pai derretia-se com as netas. Ao contrário da minha mãe, que gostou imenso de ter filhos rapazes, e depois teve cinco netas! Uma parte gaga. A minha mãe ainda é viva. Nunca se recompôs da morte do meu pai, e foi decaindo”.

 

ANTÓNIO VITORINO

“A minha mãe era professora de francês. Tinha o hábito de nos contar, durante a hora do almoço, o último filme que tinha ido ver com o meu pai ao cinema. A mim, ao meu irmão e aos meus avós maternos que também estavam em casa. Aquilo era uma espécie de telenovela clássica: tínhamos um bocadinho do filme e no almoço do dia seguinte a continuação. Nós, que não tínhamos idade para ver aqueles filmes de crescidos, acabávamos por ter uma imagem do filme através da descrição. O que é muito curioso do ponto de vista imagético. Mais tarde tive ocasião de ver alguns filmes que tinham sido previamente narrados pela minha mãe... Por exemplo, O Grande Ditador, do [Charlie] Chaplin, que é difícil de descrever, tem uma parte importante que é física...”

 

ARTUR SANTOS SILVA

“A minha Mãe era uma pessoa de eleição. Completava e compreendia admiravelmente o meu Pai. Aliava uma sólida inteligência a uma grande lucidez e pragmatismo, a par de uma austeridade no comportamento, um carácter íntegro e um grande sentido de dádiva aos outros”.

 

CARLOS MOREIRA DA SILVA

“Admito que o [filho] mais velho tem privilégios que os outros não têm. A minha mãe é que tinha o comando da casa, com dez filhos! Sempre teve pulso para manter as coisas sob controlo, e era empreendedora”.

 

CARVALHO DA SILVA

“Já tinha 15 meses de tropa aqui, com mais 18 meses lá [no Ultramar]… Estava revoltado com aquilo, havia tensões entre nós, na companhia. Um amigo, imensamente solidário, convenceu-me a não fugir. Mas o mais determinante foi a minha mãe. Um dia, já muito próximo do fim das férias, regressei a casa de madrugada; a minha mãe estava sentada na entrada para o meu quarto, numa salazita. Pediu-me para não fugir”.

 

DANIEL BESSA

“Fui muito marcado por uma mãe, a quem devo quase tudo. Era uma família modestíssima de quatro filhos, pai e mãe. A mãe era doméstica, o pai era empregado comercial e tinha o antigo quinto ano da Escola Comercial – que já era um activo interessante. O pai tinha traçado um caminho: que eu entraria numa escola comercial para, aos 15 anos, ir trabalhar e ganhar a vida. Foi a minha mãe que se impôs e disse que talvez o menino pudesse ir mais além. Fazer o ensino técnico ou o ensino liceal podia fazer a diferença em termos de expectativa de vida. O Liceu era uma promessa de ascensão social.

Foi o tema em que pensei hoje na viagem, de carro, do Porto para Lisboa: a mãe. Tenho uma dívida incomensurável. Não tem hipótese de ser saldada. Nunca falei com ela sobre isto. Nunca esteve à espera de grandes carícias ou reconhecimento. Foi sempre bastante austera e contida na manifestação dos seus afectos.”

 

DIOGO VAZ GUEDES

“Tenho um enorme orgulho na minha mãe. Educou-nos de uma forma rigorosa, espartana, exigente. Ensinou-nos a valorizar aquilo que é realmente importante”.

 

HORÁCIO ROQUE

A maior identificação seria com a minha mãe, que me compreendia melhor, que tinha mais cuidado comigo. Quando chovia muito, havia uma ribeira que eu tinha de passar e que tinha apenas umas tábuas... Ela levava-me a passar a ribeira... Uma história interessante: quando se falou de ir para Angola – tinha lá família – o meu pai disse que não mo permitia! Ele tinha um sonho: que alguém continuasse a obra que tinha realizado. Mas a minha mãe disse: «Fazes muito bem em ir, meu filho, que isto aqui não é vida para ninguém». Ora, são duas maneiras completamente diferentes de ver o futuro e de ver o futuro de um filho”.

 

JOSÉ MARIA RICCIARDI

“A minha mãe tinha uma personalidade diferente; era corajosa, frontal, espontânea. Esta parte que eu tenho, vem dela. Era também generosa; era até um bocado descontrolada nesse sentido, não tinha limites.

Tive choques grandes com a minha mãe. De tal maneira que fui morar para casa da minha tia, mãe do Ricardo Salgado. Sou quase irmão deles, mais do que primo: vivi lá alguns anos. Ela foi a minha segunda mãe. Entre os sete, 12 anos. Depois voltei. A minha mãe, apesar de gostar de mim, fez sempre algumas diferenças entre mim e os meus irmãos. Talvez porque tivesse uma personalidade parecida com ela. Achava, como criança, que ela não gostava tanto de mim como gostava de outros meus irmãos. E como sempre fui um lutador, como nunca me agachei, nunca me resignei perante as injustiças ou aquilo que achava que não estava certo, a minha reacção foi ir viver com a minha tia. Mais tarde, o relacionamento com a minha mãe foi extraordinário. Em vez de ficar azedo, dei a volta por cima. Curiosamente, fui o filho em quem ela se apoiou nos seus últimos largos anos”.

 

 

JOE BERARDO

“Fui um engano! A minha mãe tinha 46 anos quando nasci. A minha mãe ia à missa todos os dias rezar pelos irmãos e por todos que emigraram. Adoeceu, com leucemia, ficou cega. E eu dizia-lhe: «Se há Deus, e Deus é seu amigo, porque é que a mãe ficou cega? E vai à missa todos os dias, e é boa pessoa...», e ela: «Meu filho, olha que Deus usa os seus amigos para dar exemplos». Cheguei a levá-la à África do Sul, a ver se a curava. Eu compreendo bem o que ela estava a dizer. Lá por a mãe estar a sofrer, não quer dizer que vá abandonar Deus.

Há uns que nascem com os genes da mãe, outros com os genes do pai. Eu nasci com os genes da minha mãe. Era uma mulher culta. Sabia ler e escrever – o meu pai, não. Era ela que lia para o meu pai.

Ela morreu há 22 anos. Já estava muito bem na vida, felizmente.

Dizia:«Não deixes o materialismo subir-te à cabeça». Mas sentia-se orgulhosa por eu ser um winner.

Lidei com my mother’s dead, que foi a coisa pior para mim. Enchi a igreja de cima a baixo de flores branca, que a minha mãe gostava de flores. A única coisa de que tive pena foi que ela não pudesse ver as flores. [toca o telemóvel com a música “Nothing compares to you”]. Foi a coisa mais triste que aconteceu na minha vida. Depois disso, I’m ready for everything”.

 

JORGE ARMINDO

Não sou da classe A, mas não tive privações. E a minha mãe, coitadinha, fazia muito sacrifício, que eu era vaidoso... Sempre arranjava dinheiro para eu andar com as “sweat-shirts” da moda e as calças da moda. Eu realmente era [vaidoso], como aliás sou, quando estou mais magro.”

 

LUÍS PORTELA

“A minha mãe sempre acreditou em mim. Achava-me um miúdo com grande capacidade e interiorizou-me isso. «Tu tens capacidade, tu vai, tu luta, tu faz». Eu tinha 14 ou 15 anos e sentia-me capaz. Era interiormente muito forte, mas foi uma mulher que abdicou da vida.Por causa do filho. A minha mãe terá amado profundamente o meu pai e dedicou-se-lhe totalmente na pessoa do filho. Recusou várias propostas de casamento porque não queria dar outro pai ao filho que tinha, do amor da vida dela.O meu pai e a minha mãe cortaram completamente a relação entre eles quando eu tinha três anos; mas a minha mãe entendeu manter-se fiel. Dedicou-se a ajudar o filho a crescer e a desenvolver-se.

Vive comigo, em minha casa. Hoje sinto necessidade de a apoiar e minimizar o desconforto dos seus 88 anos”.

 

MARIA DE BELÉM

“A minha mãe, embora não tivesse tirado nenhum curso superior – fez a educação das senhoras da época, tocar piano e falar francês – sempre defendeu em nós a aquisição de uma situação de independência financeira, para podermos verdadeiramente sermos nós próprias. [Não se licenciou] porque queria tirar um curso com o qual o meu avô não concordava; e entendeu não fazer aquilo que ele queria. É este o ambiente das mulheres da minha família. Eu não poderia ter um feitio diferente daquele que tenho, porque é esta a minha matriz.

A minha mãe dizia-nos que éramos como ela gostaria: nem muito bonitas nem muito feias. Convivi com pessoas lindíssimas [para quem a beleza foi] factor de infelicidade. Sempre convivi bem com esta minha anormalidade em termos de tamanho”.

 

MÁRIO LINO

“A minha mãe era doméstica e fazia trabalhos de costura para lojas que vendiam camisas e coisas assim. Às vezes, ajudava-a. Vem-me daí um certo à vontade com que hoje passo a ferro, lavo qualquer peça de roupa, coso botões. Sou o filho mais velho; éramos dois, e depois nasceram mais dois, dos mesmos pais. Competia-me ajudar e fazia isso com gosto”.

 

MEDINA CARREIRA

“A minha mãe era uma pessoa muito original. Muito virada para si própria. Pouco contemplativa da realidade social. Mulher muito bonita, que se conservou bonita quase até à morte. Aparento alguma juventude que já não tenho – herança da minha mãe.

A minha mãe roía as unhas. Eu corto peles. Acho que há um superávit de energia que não é canalizada para o sítio certo – para a cabeça, para os pés – e que vem desembocar na ponta dos dedos.

Da minha mãe tenho uma costela de grande ponderação. Aos olhos das pessoas, umas vezes apareço como um sujeito sem limites naquilo que diz, outras como um homem triste e ensimesmado, reflexivo – é a minha mãe. Quando sou mais espalha brasas, é o meu pai”.

 

NUNO AMADO

“A minha mãe, que tem 77 anos, ainda hoje trabalha mais do que a maioria das pessoas que conheço. Se conhecesse a minha mãe… É extraordinária.

A minha mãe não tinha a quarta classe. Fê-la já crescida. Fê-la já minha mãe.[Lembro-me de a minha mãe] ter aulas com uma professora para fazer a quarta classe, devia ter uns 35 anos. Eu estava também a fazer, ou já tinha feito.

A minha mãe é uma pessoa com muita força – até demais. Eu não tenho o nervo que ela tem. O que é que tenho dela? Capacidade de trabalho, emotividade (habituei-me a não tomar decisões a quente), e alguma da sua força.”

 

PASSOS COELHO

A minha mãe ficou [no Caramulo] porque o pai morreu tísico. A mãe dela, minha avó, era a chefe das copeiras no sanatório Sameiro. Recordo-me de ir ao Sameiro lanchar com ela, de a ver alisar a toalha muito branca que ia buscar aos armários do hospital, puxava as pontas da mesa de maneira a que a toalha ficasse muito bem esticada…

A minha mãe é uma pessoa de grande força; olhando para trás, percebo que [passou] muitas dificuldades, porque não recebia o dinheiro que o meu pai mandava de África, e foi com a ajuda de muita gente que se conseguiu sobreviver durante todo esse tempo. Mas não creio que os filhos se tenham apercebido dessas dificuldades.

[Gostaria de ser] alguém suficientemente atento às pessoas, como foi sempre a minha mãe.”

 

RUI RIO

Essa parte, [o mimo], tenho-a com a minha mãe. Tinha na minha mãe e na mãe dela um refúgio, que, não sendo um refúgio contra o meu pai, dava esse complemento. Para a minha avó materna, o Ruizinho era tudo. E havia a minha tia-avó, que era solteira. Um triunvirato de mulheres”.

 

TERESA CAEIRO

“A minha mãe penaliza-se muito por não ter tido uma carreira. Tem o curso de biologia, que nunca exerceu. Foi a nossa educadora, e foi uma função que assumiu inteiramente. Decidiu em que colégio andaríamos (primeiro o inglês, depois o alemão), decidiu tudo.

A única coisa que me lembro de ter querido ser foi florista! Tinha cinco anos quando o disse, e a resposta foi: “Muito bem, mas primeiro tiras um curso”. Sobretudo da parte da minha mãe, era isto. A família dela tinha tido uma vida abastada e de repente viu-se destituída das propriedades, muito abalada naquilo que entendia que eram os seus alicerces.

No dia em que tomei posse como Secretária de Estado da Segurança Social, telefonei à minha mãe: “Olhe, mãe, logo à tarde vou tomar posse...”; e a minha mãe: «Ah. Mas olha, não te esqueças de mesmo assim passar no correio e pôr aquela carta que te pedi...».”

 

 

VIEIRA DA SILVA

“A minha mãe cantava canções do Carlos Ramos. Cantava quando estava a passar a ferro. Gostava muito de a ouvir cantar as canções do Carlos Ramos quando estava a passar a ferro.

Nasci quando a minha mãe tinha 39 anos, o meu pai 40 e poucos. Eu tive um filho com 25 anos.

Vivi muito rodeado de mulheres. Mas não sei se isso tem influência na forma como exerço as minhas actividades públicas.

Admito que a minha mãe tenha pensado: “O teu pai gostaria de te ver [ministro]”. Mas eu nunca pensei nisso. Não considero a política uma carreira”.

 

VITOR BENTO

“O pai era o chefe da família. Mas as mães tiveram sempre uma influência muito grande. As supporting role eram muitas vezes mais actuantes, penetrantes e eficazes do que quem tinha o papel principal”.  

 

ANTÓNIO DE SOUSA

“A minha mãe era professora de Matemática. Lembra-se dos livros de exercícios do Palma Fernandes? Fazia competições com ela. Por exemplo, fazer o exercício de cabeça, sem fazer contas. [risos] Ela não gostava muito, achava que eu estava pura e simplesmente a jogar, a ser competitivo. Mas a minha mãe ajudou-me muito nisso. Ser capaz de saber tanto só oralmente fazia com que achasse que não era preciso estudar mais. Já me dava confiança para ir jogar à bola outra vez”.

 

NOGUEIRA LEITE

“A minha mãe verificava se estudávamos, acompanhava-nos à natação, à ginástica, interessava-se por saber em que parte da matéria íamos. Sobretudo, estimulava-nos, desafiava-nos. Até vir para Lisboa, ela controlava bastante o que acontecia. Nesse sentido acabou por, directa e indirectamente, moldar muito o meu percurso. Quando vim para a Católica, o meu pai pôs-se na posição de que eu fizesse o que queria; a minha mãe aprovou, achou que era uma boa escolha. Foi sempre mais proactiva.

Sempre fez com que tudo aparecesse tratado.

Ainda hoje nos controla os dias, [a mim e à minha irmã], não numa visão policial, mas para saber se nos estamos a tratar bem, se estamos a comer bem (o meu problema é sempre comer bem demais…), se descansamos o suficiente. Tem opiniões fortes sobre os actores políticos, que não coincidem necessariamente com as minhas. Ainda hoje me admiro com a velocidade com que consegue fazer julgamentos, sobre circunstâncias e sobre pessoas. Tem uma clara vantagem sobre mim.

Acho que já a desapontei, mas mais por questões da minha vida sentimental. Não gosta que me meta em actividades políticas – diz-mo claramente. À parte isso, tenho sido um filho querido.”

 

MÁRIO ASSIS FERREIRA

“Nasci de um pai que era secretário de finanças e chefe de finanças em Arganil e que nessa qualidade conheceu a minha mãe. A minha mãe vinha de uma família da nobreza rural. Nasci num solar lindíssimo de uma aldeia ao pé de Arganil chamada Sarzedo, que não vem no mapa, mas fica debruçada sobre o Rio Alva.

A minha mãe é um produto da minha avó Máxima. A minha mãe era uma pessoa com um grau de sensibilidade e inteligência que ainda hoje me fazem ter por ela uma admiração ímpar. Foi a pessoa que mais me influenciou”.

 

MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO

“Vi o meu pai chorar duas vezes em momentos trágicos, e a minha mãe a chorar uma única vez. Naquela geração ainda se tinha a ideia de que chorar à frente dos filhos era afligi-los. E não é. Muitas vezes são os filhos que nos amparam.

A minha mãe é uma mulher muito inteligente e prática. Fui criada por várias mulheres extraordinárias. Uma tarde fomos, com a minha tia e madrinha, para o quarto conversar. A minha mãe fez um teste: como é que sabe que este é o homem da sua vida? Disse assim: «É o homem da minha vida porque se o encontrasse daqui a uns anos ia-me embora com ele. O que era uma grande chatice... Naturalmente, já estava casada e ele já estava casado... Assim, vamos agora, que não fazemos mal a ninguém».

Jamais casaria por casar. A minha mãe sempre disse que a monogamia é contra-natura, por isso «vejam lá com quem casam»...”

 

GONÇALO RIBEIRO TELLES

“[A minha mãe chamava-se] Gertrudes Guilhermina, um nome horrível, não se pode arranjar pior! É uma figura importantíssima. Era inteligente, gostava de ir ao São Carlos.

Não se abria com facilidade. Era capaz de gostar muito de uma criança porque tinha uns olhos bonitos ou porque era magrinha.

A minha mãe gostava das pessoas humildes.Talvez fosse para ela um drama ainda viver numa sociedade em que uns eram humildes e outros não. Era filha única, e como filha única vivia bem.

Para mim, era muito afectuosa. Gostava mais de rapazes, dos sobrinhos, do que das raparigas. Achava-as impertinentes. Coisa espantosa: na família do meu pai, a primeira menina que nasceu, ao fim de 70 anos, foi uma filha minha”.  

 

Joana Villaverde

04.05.18

No seu princípio, está o desenho?

O desenho, a força que posso usar com o lápis, o riscar, o gastar energia liberta-me. E sobretudo diverte-me! A seriedade no brincar, brincar a trabalhar começa quase sempre com o desenho, seja o que for que isso quer dizer. Muitas vezes martelo, corto com tico-tico, colo, invento cadeiras tortas que me parecem pessoas e a esses momentos também lhes chamo desenhar.

 

Frequentemente os seus personagens têm um ar acossado, aflito. Concorda? Vem de onde esse grito surdo?

No meu trabalho, assim como julgo no de qualquer artista, há um pouco do reflexo do que sou, do que não quero ser ou do que quero ser. É toda essa complexidade que há numa pessoa. Eu como artista hoje, mulher, mãe, sinto-me uma artista de resistência, de luta e de força. “Mulher aflita” chamou um dia Eduardo Prado Coelho a um texto que escreveu sobre o meu trabalho; hoje penso que se representei uma mulher aflita, e representei, foi porque essa mulher vinha de uma outra com muita força. É assim como essa coisa de não ser um e nem o outro...

“Eu não sou eu nem sou o outro,

Sou qualquer coisa de intermédio:

Pilar da ponte de tédio

Que vai de mim para o Outro.”

 

up side down 2011 A5 oil bar and grafite

 

Mulheres e animais, sobretudo? Caras? E animais porquê?

Tento traduzir no meu trabalho essa necessidade de gastar energia, de rosnar talvez. Ou pelo tamanho que uso nos trabalhos, muitas vezes de grandes dimensões, ou pelas cores fortes com que brinco, ou pelas personagens que uso serem precisamente aquilo que conheço melhor, pessoas e bichos. Ao que dou mais atenção, acho que é isso que faço na vida. Se me perguntasse: “Profissão?” Gostava de poder responder: “Sou atenta”.

 

O sentido narrativo, a força da história, é fundamental no que faz?

Sem dúvida, é fundamental no sentido em que parto sempre de uma narrativa, normalmente narrativa emocional, sem grande princípio, meio e fim, mas sempre com muita história, muita gente dentro. Carlos Paredes tem um disco, uma música que se chama “Uma guitarra com gente dentro”: gosto muito. Um dia os meus desenhos vão ter muita gente dentro também.

 

Fez um vídeo em que faz uma espécie de auto-retrato, e diz que gosta de erros, abraços, de chorar quando vê… Pode explicar algumas destas (ou outras) coisas?

Gosto de erros, acho que quero dizer que não acredito nada na perfeição, gosto de me enganar e voltar a fazer, e fazer errado de novo e com isso fazer qualquer coisa mais perto da vida, das pessoas. Das dúvidas e não responder nunca a nada definitivamente. Deixo sempre tudo em aberto, inacabado. Tenho muito ainda para fazer e isso deixa-me feliz. Gosto muito de pessoas, sou muitas vezes muito física, gosto de agarrar com força alguém que gosto, abraços com força, verdadeiros. Choro principalmente quando vejo coisas bonitas, choro muitas vezes.

 

Recentemente tem trabalhado sobre pás. Interessa-lhe explorar a superfície?, que desafios é que esta traz? Interessa-lhe a ideia de recolha e de lixo?

Interessa-me a ideia de Ser, de Ser Humano. Estas pás fazem parte do trabalho que estou neste momento a produzir para a exposição que inauguro a 4 de Abril em Avis, onde vivo a maior parte do meu tempo. Trabalho neste projecto há quase dois anos, acho.

É sobre a Palestina. É sobre ser artista hoje e resistir. É sobre estar ao lado. É sobre pessoas. Estas pás só se vêem individualmente na internet. Na “realidade”, vão estar todas amontoadas como corpos e corpos no lixo. Na maioria das pás pintei, roubei, um personagem dos “Desastres de Guerra” de Goya. Numa das suas gravuras, Goya escreveu “yo lo vi”. Eu de certa maneira também vi.

 

joana 2

 

Viveu uma temporada em NY e mais recentemente na Palestina. Disse que em NY aprendeu a olhar o tempo de outra maneira. O que quer isso dizer?

A minha estadia no Location One em Nova Iorque mudou a minha maneira de trabalhar e sobretudo a minha maneira de olhar o tempo. O tempo foge. Aprendi a não ter medo: a não ter medo de gastar material, não ter medo de usar materiais errados, não ter medo de rasgar, colar e voltar a rasgar. Não ter medo de errar.

 

Pode explicar como é que estes dois períodos na Palestina interferiram consigo e com o seu fazer?

Estive na Palestina no verão passado dois meses, Junho e Julho. Fui como artista residente da Qattan Foundation em Ramallah com o apoio Português da Fundação José Saramago. Foram dois meses muito difíceis para a Palestina.

Fui para saber se o meu projecto ia no caminho certo. Percebi que não, que não estava a ir no caminho certo. “Animals’ Nightmare” é o título, título roubado a um capítulo de “Nothing to lose but your life”, um livro de Suad Amiry, arquitecta e escritora palestiniana, hoje uma amiga, acho que para a vida.

Nos dois meses de Verão muito duros, o que mudou em mim como pessoa, mais do que agora que estive 15 dias a dar aulas e num workshop com artistas estrangeiros, acho que foi o deixar de condescender. Os direitos humanos são um assunto sério e infelizmente esquecido, não consigo ficar calada. Não procuro discussão, não. Mas se quero dizer, digo. Sinto-me talvez mais livre.

 

Que pessoas apontaria para falar da sua família artística? Aqueles que mais a inspiram, nas artes plásticas, no cinema, na literatura… 

Adoraria ter realmente essa família artística de que fala, juntá-los todos à mesa, passar férias juntos, dar mergulhos no mar.

Gostava de levar comigo de férias o William Kentridge, um artista que mexe em tudo, desenha muito, faz animações, cenografias para óperas e teatros, constrói marionetas. E sobretudo pensa nas pessoas e nos direitos humanos. Levava, melhor, fazia-lhe um jantar à Carla Bley. Dizia à Geena Rowlands e ao John Cassavetes para aparecerem na praia que íamos fazer um churrasco. Dizia ao Dostoiévski: vem que aqui está mais quentinho. Ao Chico e ao Caetano dizia: apareçam que o Zeca vai voltar. Gritava para os irmãos Joubran: por favor apareçam com os alaúdes, vai haver festa!

Já andam para lá há algum tempo, na azáfama da organização da festa, o Noé, o Rui, o Edgar, a Cristina, o Ricardo, o Serge, os meus irmãos Manuel e Teresa, a Inês, o João, o Zé Pedro. Estão a tratar da caipirinha na panela, está já para lá uma confusão, de que eu gosto!

 

Tem trabalhado para teatro. Desenhar cenários é mais ou menos fazer um desenho animado? É dar-lhe vida?, é servir a representação da vida? Explique como chega ao resultado. 

Há muito tempo que não faço cenários. Tudo o que fiz para trás em teatro foi para servir o texto e sobretudo para servir o encenador. Tento perceber o que lhe vai na cabeça, como lê aquele texto, o que é que precisa. No processo, muitas angústias, até chegar a algum lado parecido com o que se quer, como em todo o meu trabalho. Também aqui com muito ainda para fazer.

Não será um desenho animado, não será uma representação da vida porque é vida, assim mesmo, com personagens, com ficções, é o teatro, espectáculo efémero como as pessoas. É uma ilusão muito real, é sonho, é aquilo a que devíamos ter todos direito.

 

O que deixou de desenhar para responder a estas perguntas?

Deixei de desenhar/pintar umas quantas pás (e pisco o olho...) porque gostei de responder!

joana v

 

Entrevista feita por escrito propositadamente para este blog em Fevereiro de 2015.

http://www.joanavillaverde.com