Ana Margarida de Carvalho
Ana Margarida de Carvalho, licenciada em Direito, jornalista, escritora. O seu livro “Que Importa a Fúria do Mar” foi finalista em vários prémios, tendo vencido o Grande Prémio de Romance APE, em 2014.
“Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya”, de Jorge de Sena: “Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós”. O que deseja para os seus filhos, para o país, no novo ciclo que se anuncia?
A maior tragédia é se o ciclo que se anuncia não for novo. Se for velho, bolorento e destrutivo como o anterior. Não foi este o país que nos prometeram, não é este o país que eu quero para os meus filhos. Nem para mim.
Acredita deveras que será um novo ciclo?
O drama não está no futuro, já chegou, está no presente. Está no meio milhão de empregos destruídos, no meio milhão de emigrados, nos 800 mil portugueses em estado de pobreza, nas 600 mil crianças a quem foi retirado o abono de família, nas tantas e tantas famílias assaltadas, amputadas, no capital social delapidado, no património desbaratado, nos cortes trágicos na cultura, na educação e na saúde, no trabalho não remunerado, nos estágios infames…
Como alimentar a garra dos dias inaugurais? Estamos atados no “a gente vai levando”, de uma canção brasileira?
A canção do Chico não é uma canção de resignação, mas uma canção de resistência. Há um problema de sonambulismo por parte das pessoas, que tendem a deixar-se ir em manada e insistir em círculos viciosos eleitorais, sempre os mesmos, como se nos governassem por turnos. Eu não acredito em maldições. As manifestações espontâneas de 2012, as maiores desde o 25 de Abril, foram a prova de que os portugueses estão vivos. Depois caiu-se num torpor, as pessoas enfileiraram-se outra vez, obedientes e ordeiras, com mãos côncavas de pedir. E os tempos são de exigir. Por isso, mesmo com toda a fama, com toda a brahma, com toda a cama, como toda a lama, a gente vai levando essa chama!
Desemprego, Sócrates, a enorme disparidade na leitura dos números: estes são os grandes temas desta campanha eleitoral?
O Sócrates não é tema de campanha, é assunto de justiça, mas entrou na campanha. Não é todos os dias que temos um ex-primeiro-ministro preso, e por suspeita de práticas tão graves. E se chegar a haver acusação, e se se provar que um alto governante andou a enriquecer de forma obscena enquanto o país empobrecia drasticamente, devem-se tirar daí conclusões políticas sobre a desonestidade e o enriquecimento ilícito de políticos, a impunidade de outros casos, o fortalecimento das leis anti-corrupção… Seria bom que os eleitores elegessem gente com provas dadas de honestidade e seriedade. Parece-me o mínimo, a honestidade: ainda não chegámos ao faroeste.
Quais são, na sua opinião, os outros grandes temas em discussão?
Para além da austeridade, da troika e da crise financeira, a Segurança Social e o desemprego. E também o mito que se criou de que o aumento de salários retira competitividade e conduz a mais desemprego. E se em democracia as eleições são também um momento de prestação de contas, deveríamos relembrar a destruição do Estado Social e a incompetência com que fomos confrontados no nosso dia a dia, em coisas tão banais como a abertura do ano escolar ou a atribuição das culpas do caos na Justiça ao “informático”...
Quais são os grandes desafios da próxima legislatura?
Relançar a esperança, recuperar as competências dos jovens condenados à emigração, desempregos precários e estágios. Renegociar firmemente a dívida. Requalificar os serviços públicos, desburocratizando e modernizando-os. Construindo uma estratégia de desenvolvimento que ponha as pessoas, a educação, a produção e a cultura no centro.
Quer apostar em cenários?, vitórias, derrotas, coligações, protagonistas?
Penso que este governo PSD/PP perdeu há muito a legitimidade que tinha conquistado democraticamente nas eleições anteriores. Quando os líderes de um governo deixam de poder sair à rua e o grau do insulto mais levezinho, que eles escutam dos populares, é “gatuno”, quer dizer que a situação está insustentável. Ter vivido com um presidente da República hibernado e com sucessivas inconstitucionalidades também não ajudou nada. Espero que as pessoas não se revelem bipolares nas urnas.
As palavras “empobrecimento” e “pobres” podem ser reconduzidas a uma disputa político-partidária. Mas a questão foi concreta na vida de muitas pessoas. Pessoalmente, aprendeu a viver com menos?
Claro que o empobrecimento me atingiu mas sinto algum pudor em falar no meu caso, quando há pessoas em situações desesperantes. Prefiro falar de pessoas que vivem a ilusão de um emprego, em estágios não remunerados, em situações abusivas, numa espécie de escravatura consentida. Que é como quem diz: ”Olha, mais vale isto que nada”. Os nossos patamares estão tão rasteiros que já se toleram raciocínios destes como se fossem normais. E apareceram outros léxicos, expressões ultrajantes: quando nos chamaram ”piegas”, quando nos mandaram ”sair para fora da zona de conforto”, quando aquele caridosa senhora veio falar dos “profissionais da pobreza”. O que está em causa tem nome e vem no dicionário: chama-se desemprego, chama-se pobreza, chama-se indigência, chama-se miséria, chama-se afronta à dignidade.
O afastamento da população em relação à política não é novidade. Exercer cargos públicos pode transformar-se numa nódoa, facilmente, no currículo de uma pessoa? Como fazer a renovação e reaproximar o cidadão da res publica?
Até parece que neste país o melhor cargo é ser-se ex-ministro. Mas também vivemos numa terra que desde 1976 só foi governada por três partidos. Penso que o país precisa de uma injecção de auto-estima colectiva. O Eça dizia aquela célebre frase que toda a gente cita: “Este governo não se pode derrubar porque não é um edifício, tem de se remover com benzina porque é uma nódoa”. E esta nódoa de subalternidade a Bruxelas, à Alemanha, ao FMI tem de ser removida. Temos e nos sentir novamente donos de nós próprios. Soberanos e não uma espécie de protectorado, país pobre da Europa, de cabeça baixa. Pena que nunca chegássemos sequer aos calcanhares da Grécia, que manteve a dignidade, contra o medo, as chantagens, as ventanias da Alemanha e todas as marés contrárias dos países europeus.
O mundo não é o que era. Veja-se o que aconteceu na China, com a bolsa a provocar tremores de terra. Nos EUA há o aparente entretém Trump enquanto Obama faz grandes mexidas. Mais grave que tudo, a Europa a desmoronar-se? A crise de refugiados é um sintoma disso?
A catástrofe que a Europa agora descobriu tem responsáveis: a política de vistas muito curtas dos dirigentes norte-americanos e europeus. Ao desastre do Afeganistão, ao apoio aos Talibã, às invasões ao Iraque, ao apoio a grupos insondáveis contra países como a Líbia (aqui, para além do petróleo juntava-se uma pequena vingança ocidental), a Síria… Pobres os povos sujeitos a tão pequenos dirigentes mundiais. A elite mundial é o pior que o mundo tem.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Setembro de 2015