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Anabela Mota Ribeiro

Loureiro dos Santos (s/ Portugal)

15.11.18

Abordam-no na rua. Abordam-nos na rua. A ele, Loureiro dos Santos, a eles, militares. Perguntam: “Foi para isto que os senhores fizeram o 25 de Abril?”. O descontentamento cresce todos os dias. E nós falámos dos fascismos que rondam, como hienas. De as suas hostes, paradoxalmente, serem engrossados pela classe média, letrada. De o lúmpen se ocupar a sobreviver, tarefa hercúlea. Falámos de uma guerra se fazer com pedras, se for preciso. Da indispensabilidade da moralização das tropas. Qualquer uma precisa de vitórias, de futuro. E de exemplo. Loureiro dos Santos explica por que razão Passos deve correr com Gaspar (e de caminho com Relvas). O general de quatro estrelas, que foi tudo na carreira militar, diz com brilho na voz: “Desde que juramos bandeira até que morremos somos militares. Nós, oficiais, quando morremos, levamos a bandeira nacional. Somos servidores do país. Não nos servimos do país. Basta ir à associação dos deficientes das Forças Armadas para ver o que é a condição militar.” Defende o serviço militar obrigatório. Tem uma biblioteca onde abundam os títulos ligados a esta temática. Em breve vão para Sabrosa. Nasceu numa aldeia ali perto em 1936.  

 

 

Quem é que em Portugal tem poder e quem é que representa autoridade?

O Governo representa autoridade. O presidente também representa autoridade. Tem mais poder do que o Governo – um poder que deriva da função, do cargo. O seu poder é a capacidade de influenciar por si, por quem é.

 

Porque é que considera que o presidente tem mais poder do que o Governo? Tendemos a olhar a figura do presidente da República (PR) como uma figura de referência, mas sem poder executivo.

Poderes, tem poucos. Acho que devia ter mais. O valor principal do poder é a sua capacidade de influenciar e de fazer cumprir. (Uma pessoa que tem muito poder em Portugal é o Adriano Moreira. As palavras que diz são ouvidas. Não tem é autoridade para fazer com que aquilo que diz seja cumprido.) O PR, pela palavra, pelo seu discurso, pode fazer cair governos.

 

Na manifestação de 2 de Março os grandes alvos foram o Governo e a Troika. Cavaco foi também referido, mas sem a mesma violência.

Porquê? Porque Cavaco não é visto como tendo culpa da situação. (Normalmente é assim, o Governo é aquele que tem as mãos na massa.)

 

Os cartazes contra Cavaco eram...

... um apelo. Relativamente ao Governo já não há esse tipo de apelos. Aqueles que se manifestaram já não acreditam que [o Governo] venha a mudar o seu rumo – que sentem como mau. Mas entendem que há uma pessoa que ainda pode alterar a situação, e para ela apelam. Essa pessoa [PR], neste momento, é a sede de maior poder em Portugal.

 

Apesar do seu tão falado mutismo ou excessiva reserva?

Sim.

 

Como é que olha para uma massa humana tão expressiva em termos numéricos quanto aquela que saiu à rua?

Há uma diferença entre a última manifestação e a de 15 de Setembro. Na última já houve um grupo que organizou, que disse a que horas se cantava o hino. O hino que hoje em dia se utiliza, o “Grândola”. O hino dos desesperados, dos que não vêem saída.  Da gente madura que perdeu a esperança e que veio dizer: “Alguém que nos acuda”. [A de 15 de Setembro] foi uma manifestação mais inorgânica, onde tudo surgiu por iniciativa individual (daqueles que sentiam que tinham de mostrar que estavam insatisfeitos). 

Espanta-me como é que este sentimento [de descontentamento] ainda não foi estruturado.

 

Estruturado por uma força política?

Sim. Ou por uma força nova ou por uma força que já exista. Há uma crise financeira, que se transformou numa crise económica (na forma como foi abordada, e não sei se seria possível abordar melhor). Essa crise económica originou uma crise social muito intensa e a crise social está a transformar-se numa crise política. Uma das faces da crise política é uma crise de legitimidade. As pessoas olham para muitos dos actuais partidos como não tendo legitimidade para as representar.

 

Isso deve-se a uma quebra da confiança entre políticos e seus eleitores?

[Deve-se] a vários factores. São estes actuais partidos, em especial os do arco da governação, que são os culpados por estarmos aqui. É um dos partidos do arco da governação que está a resolver isto, e de uma forma de que não gostamos.

Há muita gente que está à procura de alguém que os represente, um condottieri, alguém que os mobilize e fale por eles. Pode ser perigoso. Especialmente quando grande parte dos atingidos pela crise são elementos da pequena e média burguesa – a classe média. Sentem uma perda de estatuto (deixam de ter os bens que estavam habituados a ter). É assim que nascem os fascismos. Foi exactamente assim que aconteceu a seguir à Primeira Guerra Mundial. Os Mussolini’s são muito parecidos com os Grillo’s.  

 

É fácil fazer a deriva para um discurso fascista?

É. Mais fácil do que julgamos. A pequena burguesia é que alimenta os fascismos. É uma gente que sente problemas que nunca pensou vir a ter. Eles e os seus filhos. Por isso considero que os actuais partidos deviam fazer um esforço no sentido de diminuir os sacrifícios. Todos os partidos. Tem existido pouca preocupação com a moral das cidadãos.

 

Vamos supor que emerge uma nova força política ou um novo personagem que encarna essa solução. Aparece de um dia para o outro?

Não. Até pode ser um dos actuais partidos. Até pode ser alguém que já tem uma imagem pública. Foi o que aconteceu em Itália. Estes protagonistas, nomeadamente o Grillo, já estava no terreno. Como na Grécia o [partido de extrema-direita] Aurora Dourada. (Em Atenas já há bairros que são controlados à pancada.)

 

Simultaneamente as pessoas dizem que não há alternativas. Que outra solução há no caso de este Governo não cumprir a legislatura? António José Seguro poderia fazer diferente, estando obrigado ao cumprimento do memorando e ao pagamento da dívida?

Há muita gente que pensa que quer o actual Governo quer a oposição podem encontrar outras soluções; podem, dentro do actual quadro, fazer de uma maneira que não seja tão cáustica. Não é a gente desempregada, que já perdeu a esperança; é a gente que vive mal mas ainda vive (usando uma expressão dura). Essa é que deve ser a principal preocupação dos actuais partidos que estão no poder: mostrar que com eles ainda há esperança.

 

O crescimento das margens, até ao momento, não tem sido expressivo. O BE e o PCP não descolam nas sondagens.

Tem havido algum aumento do PCP, mas neste contexto é irrisório. O problema é sobretudo dos partidos do arco da governação.

 

Não há em Portugal, como em Itália, a figura do anti-político, sendo um político, como a de Beppe Grillo, que congregue esse descontentamento.

Ainda não apareceu. Os que aderem a Grillo são os da pequena-burguesia que expressam a sua necessidade de alguém que os salve. Gente letrada.

 

É inesperado que sejam estes que mais precisem de alguém que os represente?

Não. Foi o aconteceu nos anos 30 com a Alemanha nazi e com o fascismo italiano. Foi [a classe média] que fez engordar essas hostes. Não foi o lúmpen.

 

Porque o lúmpen está ocupado com a sobrevivência, é isso?

É. Além disso, o lúmpen não perdeu estatuto. As pessoas estão habituadas a ter um determinado estatuto, no seu bairro. Chegam ao limite de preferir o suicídio a pedir qualquer coisa para comer. A revolta vem destes. Revoltam-se ou tomam atitudes de força.

 

No último ano a situação agravou-se de tal maneira que não há quem não tenha na sua família alguém desempregado ou numa situação de carência. As pessoas passaram a levar comida de casa para poupar no almoço. Há uma quantidade imensa de comércio que fechou portas. Apesar de tudo, não há o sentimento se estarmos sozinhos na dificuldade.

E há a solidariedade entre as pessoas. Há especialistas que dizem que a cada desempregado correspondem quatro pessoas afectadas. Neste momento temos um milhão de desempregados. Quatro milhões de pessoas afectadas. Praticamente metade de população. Daí os problemas políticos que podem surgir. O aumento do desemprego é uma bomba ao retardador. É uma bomba pronta para explodir. Os responsáveis políticos deviam fazer esforços para, enquanto esta bomba não começa a funcionar, pôr cobro à situação.

 

Teme efectivamente a eclosão de fascismos mercê da situação que vivemos, nomeadamente em Portugal?

Acho que se a situação actual se prolongar durante muito tempo, é quase certo que isso venha a acontecer. Para já, nacionalismos, que podem não ter derivas fascistas.

 

As eleições no parlamento alemão são apenas no Outono. Daqui a uma eternidade.

Tudo está em suspenso até lá. A posição dos estados da União Europeia face à Alemanha é de enorme subordinação, de enorme dependência. Ninguém acredita que a França esteja disponível para ser governada a partir de Berlim. Mas agora está a fazer aquilo que Berlim acha que deve ser feito.

 

Isso deve-se sobretudo ao enorme poder económico e financeiro de Berlim? Isso pode ser dissociado do enorme poder político e carisma de Angela Merkel?

Deve-se a essas duas coisas e aos erros políticos enormes que todos esses países têm feito. É muito comum perguntarem-me: “Foi para isto que os senhores fizeram o 25 de Abril?” A nossa resposta, que não é dada, mas é sentida, é: “De facto, não foi para isto. Houve gente que estragou aquilo que se pretendia fazer”. Isto passa-se em vários países. Fizeram-se muitas asneiras. Os únicos que fizeram o trabalho bem feito foram os alemães (temos de reconhecer).

 

Como é que tão rapidamente se transformaram numa nação tão poderosa? E estou a pensar no que fizeram desde o fim da Segunda Guerra e desde a Queda do Muro. E isso deve-se essencialmente a quê?

Deve-se às características da população. São disciplinados, trabalhadores, organizados. Têm uma série de comportamentos que fazem com que tenham êxito nas tarefas que empreendem. A sua massa crítica é muito importante. É a maior nação europeia, a seguir à Rússia. Próspera, em termos de recursos naturais. Quando se dá a unidade dos principados alemães, no século XVIII,  cria-se um problema estratégico para os restantes países europeus (que não tinham capacidade, com excepção da Rússia, para equilibrar o poder alemão).

É-lhe muito conveniente, como expressão de poder, procurar fronteiras defensáveis. Tentou fazê-lo com a Primeira Guerra Mundial. Tentou fazê-lo com a Segunda Guerra Mundial. Não conseguiu. Neste momento, não é que haja uma intenção da liderança política alemã de utilizar os instrumentos económicos para o conseguir, mas em termos objectivos, isso está a acontecer. Criou-se uma situação tal, por mérito deles e demérito dos outros, que [se traduz no seguinte]: a zona euro depende de Berlim.  

 

Se o projecto europeu está em perigo, se o futuro é uma incógnita tremenda, isso deve-se sobretudo ao comportamento da Alemanha? Merkel não se importa de ficar como a má da fita?

Julgo que não. Ela é a má da fita para aqueles que não a elegem, mas é a boa da fita para os que a elegem.

Desenhamos cenários. Um deles é a situação consolidar-se – que os estados aceitem a liderança alemã num projecto europeu. Acho pouco provável. Outro é trazer para o projecto europeu elementos de natureza federativa. Acho que essa esperança não tem razão de ser.

 

Não acha que a solução pode passar pela criação de uma federação?

Passaria por uma federação. Mas neste momento julgo que não há condições para ir para uma federação. Uma federação exige uma participação política equitativa dos vários estados. Como acontece nos Estados Unidos. Ora o caminho traçado para a UE foi um desenho de natureza intergovernamental em que quem mandava era o directório das três potências (França, Reino Unido, Alemanha). Era um modelo que satisfazia os grandes estados e que os pequenos estados aceitavam. Ninguém pensou que passados alguns anos deixaria de haver três estados equilibrados e passaria a haver a Grande Alemanha.

O problema estratégico da Europa, que tinha desaparecido no final da Segunda Guerra, volta a emergir com a unificação da Alemanha.

 

Ainda não se conseguiu suturar essa ferida que tem mais de 20 anos? O muro caiu em 1989.

Nem consegue. A Grande Alemanha surgiu com todas as potencialidades que tinha no passado.

 

Qual é a grande diferença entre um militar alemão e um militar português?

Conheço mal os militares alemães. Quando ia a reuniões na NATO (onde nos encontrávamos todos), a Alemanha ainda não era a Grande Alemanha. Em 1989 era general de três estrelas e passei a chefe do Estado-Maior. Quando se deu a reunificação, segundos os meus camaradas, portugueses e não só, a postura dos alemães nas instâncias da NATO mudou. Passou-se a uma situação de maior à vontade, independência (não digo arrogância) – como quem: “Nós agora voltámos a ser nós, alemães”.

Desde então, há fenómenos a acontecer na Alemanha que devemos observar. Por exemplo, começam a surgir algumas tentativas de reconstituir a História.

 

Quer concretizar?

O incidente com a Polónia que originou a Segunda Guerra Mundial, e que foi montado por Hitler: começa a haver versões de que não foi bem assim... E os jovens alemães voltam a ter orgulho em pertencer ao povo alemão, na sua história. Há uma tendência nacionalista na Alemanha. Está a acontecer o mesmo com a outra potência que perdeu a Segunda Guerra, o Japão (por razões diferentes – o Japão tem o problema da China ali ao lado).

Ando a ler um livro do coronel David Martelo sobre os antecedentes da Primeira Guerra Mundial, e é muito preocupante. As declarações dos responsáveis políticos alemães: consideravam-se um povo “eleito”, com atributos que mais ninguém tinha.

Quando ouvimos o que os alemães pensam dos portugueses, dos italianos, dos gregos, faz lembrar esses tempos passados em que também olhavam para nós [com sobranceria].

 

Voltemos a falar de Portugal. Estratégia, segurança e defesa são as suas áreas de interesse. Estratégia parece ser, desde sempre, uma coisa que falta em Portugal.

Um país da nossa dimensão, aqui colocado, que consegue sobreviver com as mesmas fronteiras durante nove séculos e ter a expressão mundial que teve durante os descobrimentos – mostra uma grande capacidade estratégica. Visto num quadro restrito, podemos dizer que a estratégia é má. De um ponto de vista histórico, não.

 

Quando olhamos para o todos os dias, para o imediato, parecemos erráticos, quezilentos, desfocados.

São características nossas. Quando se trata de questões essenciais, conseguimos unir-nos. No nosso quadro histórico, conseguimos sempre a aliança certa na altura própria, e recorrendo à resistência armada – isto é, vendendo cara a dependência. Quando fazemos zoom, vemos essas quezílias, dificuldades, “fazem sempre tudo mal”, “os líderes políticos são umas bestas”.

 

Para termos esperança num momento tão aflitivo como este que vivemos, não devemos zoomar tanto, e devemos abrir o plano e ter uma visão mais global de quem somos?

Acho que sim. Não tenho dúvida de que vamos ultrapassar esta situação. As primeiras aulas que dei foram de História Militar. Sempre me espantou a determinação de Portugal. Tivemos momentos terríveis. Não podemos sequer imaginar como era Portugal durante as invasões francesas. Coisa louca. E lá conseguimos recuperar.

 

Quais são os nossos trunfos, aqueles que nos permitiram recuperar sempre?

A resiliência. Os portugueses são capazes de aguentar coisas terríveis e são capazes de coisas que não [condizem] com a dimensão do país. Portanto vamos recuperar desta. O nosso regime democrático vai permitir que surjam as soluções.

 

Insisto: dentro de um quadro democrático?

Sim. Mesmo que surjam outras forças políticas, outros protagonistas. Há uma mágoa que tenho relativamente à nossa democracia: a forma de recrutamento predominante do nosso pessoal político. Estive na política numa altura em que os políticos eram todos políticos com P grande. Pertenci a dois governos de cor diferente, o de Mota Pinto e o de Maria de Lurdes Pintasilgo. Não havia uma fractura que me impedisse de participar, mas no posicionamento político a diferença entre os dois era acentuada. Qualquer um dos governos tinha a nata do país.

Hoje, olhamos para os governantes e não lhes reconhecemos a mesma qualidade. Sei que não é só um fenómeno português, mas precisávamos de arranjar uma maneira de nos dar uma maior garantia de que o pessoal político tenha qualidade e que seja de uma honestidade impoluta.

 

Porque é que não se faz essa reforma?

Os actuais detentores do poder político sabem que perderão poder. Mas eles próprios, se estiverem interessados no bem comum – e há políticos nessas circunstâncias – devem perceber que esta situação não pode prolongar-se. É uma situação em que, no fundo, no fundo, dependemos dos líderes partidários. E os líderes partidários dependem do seu aparelho. Isto não é assim lá muito concebível.

 

Esses políticos a que aludiu, eram-no num tempo em que ser político era uma coisa prestigiante. Agora é uma nódoa no currículo.

É a pescadinha de rabo na boca. Isso surge pela qualidade das políticas, que resulta da qualidade dos políticos.

 

A ideia de exemplo e de cumprimento são fundamentais na organização militar – para que uma cadeia funcione. Ao comportamento dos políticos aponta-se uma falta de exemplaridade.

Volto a falar do tipo de recrutamento do pessoal político. Olhamos para determinados políticos; os que nos impressionam pelas suas qualidades estadísticas, normalmente não vieram das jotas.

 

Está a pensar em quem?

Paulo Rangel. Leio os artigos dele. Há outros. Em França existe a Escola Nacional de Administração por onde praticamente todos os presidentes passaram.

 

Em Portugal não temos uma escola com esse prestígio. Temos universidades privadas que aviam cursos a grande velocidade.

Pois. Há gente que conheço, de muita qualidade, que faz o curso de auditores de Defesa Nacional. Sei que isto não pode ser obrigatório... Não se pode fazer um exame para se ser político. Mas pode ver-se noutros países como é que eles fazem, quais são os filtros que adoptam. É das tarefas mais urgentes, para garantir que a nossa democracia  continue a ser uma democracia com qualidade. Se isto se acentua no sentido em que se está a acentuar, qualquer dia temos uma caricatura de democracia e não propriamente uma democracia.

 

Recentemente, na sequência do jantar dos militares, disse que “os militares estão no limite”. Exprimiu a sua “profunda preocupação pelo futuro das Forças Armadas”. Usou uma palavra grave: disse que temia a “desarticulação” das FA. Estamos tão no fio assim?

Disse isso em função de determinados acontecimentos que nos deixaram muito preocupados. O Governo promoveu um novo ciclo de planeamento estratégico. Com razão. Houve mudanças brutais. A crise, as revoltas árabes, o fim das guerras americanas, a ascensão da China, a mudança da estratégia dos EUA. Convidou 26 pessoas (nas quais eu estava incluído) para fazer este trabalho, um conselho estratégico de segurança e defesa nacional. O início do ciclo é o debate na Assembleia da República das grandes opções do conselho estratégico. Neste princípio de ciclo, o ministro da Defesa vai à televisão e diz que vão ser cortados 218 milhões de euros das Forças Armadas. Isso levou a que os militares, experientes, que tiveram responsabilidades, se interrogassem: qual é o racional para as FA que aí vem?

 

Somado a isso, há o corte nas pensões e o aumento de impostos que emagrece os salários, e que toca a todos.

Essa é uma outra questão. Os cortes que estão a ser feitos aos militares como cidadãos: não gostamos muito, não é?, passamos a viver pior, mas todos estamos no mesmo barco, temos de nos safar todos ao mesmo tempo. Achamos – uns acham mais, outros acham menos –, como cidadãos, não é como militares, que podia ser de outra forma. Mas há domínios que estão a ser afectados pela austeridade e que dizem respeito a uma questão que está expressa na lei: os direitos e os deveres da condição militar.

A estrutura militar tem dois componentes básicos: os equipamentos e as pessoas. Por melhores que sejam os equipamentos, se as pessoas não estiverem motivadas, não resulta. O moral dos soldados é o principal factor do potencial de combate.

 

Realmente?

É! As pessoas até podem combater com pedras desde que estejam motivadas para o fazer. Veja-se a Intifada. Uma guerra de anos, um dos melhores exércitos do mundo, e foi feita à base de pedras. Pergunta a qualquer militar e todos lhe dizem isto.

A lei da condição militar diz que os militares têm determinados deveres e sacrifícios, e que por causa disso têm determinados direitos. O direito à saúde: não é concebível que um militar português que está no Afeganistão e que hora a hora tem a vida em risco esteja a pensar num filho que está doente em Portugal, no seu tratamento. É esse tipo de questões que os militares temem que estejam a ser afectados.

 

Os militares são de um modo geral compreendidos pela população?

Sim. Os militares e as FA são das instituições em quem os portugueses mais confiam. Os políticos são aqueles em quem confiam menos.

Quando o primeiro ministro [PM] foi à associação dos deficientes das FA teve uma imagem feliz. Identificou a situação actual com uma guerra em que cada um de nós é um soldado. Só que um dos aspectos mais importantes na guerra é a motivação, o moral dos soldados. O combatente tem de ter sempre esperança na vitória. Essa deveria ser uma das principais preocupações do comandante chefe, que é o PM, digamos assim. Ora, quando o seu principal general, que é o ministro das Finanças, vai perdendo várias batalhas, porque sucessivamente não consegue atingir as metas que ele próprio se propõe atingir, que ele próprio calculou e definiu, isso desmoraliza os soldados.

 

Desmoraliza as pessoas, soldados desta guerra.

Sim. Imagine um militar de um general que perde uma batalha, e depois outra, e depois outra; é claro que o militar quando vai para a quarta batalha  já sabe que vai perder. Está completamente desesperançado. Não consegue ver sinais de vitória. Aquele general só consegue derrotas. Grande parte da tristeza que as pessoas sentem resulta disto: não vêem uma solução – pelo menos a curto prazo.  

Devia ter havido, deve passar a haver, algum cuidado no que respeita à motivação das pessoas. Não ir tão longe, tão fundo nos sacrifícios, para que as pessoas sintam que afinal isto tem futuro. Não seria mau que o primeiro ministro destituísse o general da frente principal.

 

Vítor Gaspar. Para dar um sinal?

Para dar um sinal de que é preciso fazer melhor. É preciso ser mais rigoroso nos resultados. Só esse sinal..., aliás: se fosse associado à destituição do ministro que está a corroer politicamente o Governo e em especial o PM, que é o ministro Relvas, se isto fosse feito, só por si, significaria um grande impulso na motivação dos portugueses.

Uma medida destas não deve ser fácil porque o actual ministro das Finanças tem o apoio de poderosos estrangeiros. Mas, também por isso, se o PM tomasse uma opção destas, seria altamente moralizador. Os portugueses diriam: “Afinal, este comandante-chefe é capaz de fazer estas coisas que são muito difíceis para ele”. Relativamente ao Relvas, se não fosse muito difícil, já o tinha mandado embora, não é?      

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2013