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Anabela Mota Ribeiro

Somos Douro: um balanço

14.12.18

Desde há semanas que penso no Somos Douro. Junho parece longínquo e, no entanto, foi ontem. Folheio o álbum de quase três semanas no Alto Douro Vinhateiro, na fotografia a nossa expressão é a de pessoas felizes.

Passou meio ano.

Entretanto a filha da Tatiana Salem Levy, que estava nos primeiros meses de gravidez, nasceu. A Maria Mota ganhou mais um prémio pela investigação do parasita da malária. A Ana Margarida de Carvalho foi publicada no Brasil, com sucesso. Há novo romance de Richard Zimler e uma antologia de poemas de Pedro Mexia. Os chefes de Estado reunidos em Paris para assinalar o armistício da Primeira Guerra levam-me até às configurações da Europa nos últimos 100 anos, traçadas por Fernando Rosas. Os nomes de Sophia de Mello Breyner, Miguel Torga, Aquilino Ribeiro levam-me aos dias gloriosos em que dezenas e dezenas de pessoas (crianças e jovens incluídos) ouviram falar destes autores, autores que nos ajudam a saber quem somos e a interrogar o mundo. As celebrações dos 20 anos do Nobel de Saramago estão agora em fase de conclusão. Fernando Pessoa, a literatura, a arquitectura, a História e o Património são uma marca identitária sublinhada no Somos Douro. Fizemos desenhos sobre desenhos rupestres, convidámos jovens a olhar e a pôr o Douro no mapa. Conjugámos os verbos:

Ser / Pertencer

Aprender / Fazer

Descobrir / Partilhar

Trabalhámos muito, percorremos um serpenteado de caminhos, pensámos uma região, envolvemos pessoas da região, levámos pessoas até à região. Não uso um plural majestático por usar, falo de um colectivo, disseminado pelos 19 municípios da CIM Douro, que, com a equipa da CCDR-N e a Liga dos Amigos do Douro, se empenhou na organização do festival, e participou nele.

Em Junho lançámos uma semente. Vou partilhar convosco o essencial deste processo de inseminação.

Pensei um programa a partir do enunciado que me foi dado pelo prof. Freire de Sousa, do qual recebi total liberdade e confiança no meu trabalho, o que agradeço muito. O objectivo era criar um programa que agitasse o Douro, que tivesse os jovens na mira e que incluísse um fórum que respondesse ao repto lançado pelo Prof. Miguel Cadilhe em Dezembro de 2016. A partir daqui, concebi um programa, configurei a sua expressão nos 19 municípios, dei-lhe uma identidade e coerência internas, dei-lhe a forma de festival multidisciplinar assente em conversas, roteiros, espectáculos e oficinas. Isto seria um modo de celebrar o Alto Douro Vinhateiro distinguido pela UNESCO. 

Neste projecto ambicioso, participaram pessoas de várias áreas e saberes, de inquestionável qualidade e reputação nacional. Pedi-lhes que me ajudassem a interpretar e valorizar o desenho do Somos Douro, e, nalguns casos, que me ajudassem a encontrar os melhores interlocutores, as pessoas mais qualificadas para determinados trabalhos; caso do politólogo Pedro Magalhães que me indicou o nome do Prof. Patrício Costa da Universidade do Minho para coordenar a sondagem do Somos Douro.

Parênteses: o resultado da sondagem, que teve, além da coordenação de Patrício Costa, o empenhamento da Daniela Monteiro, pode ser consultado aqui. 

Se conto isto, faço-o para dizer que há nomes visíveis e há também nomes que não vêm a público, mas que são indispensáveis para o bom curso dos projectos. Há um trabalho de formiga, infatigável, perseverante, nos meandros das instituições: este trabalho corresponde às fundações, aos pilares, à ossatura de projectos como o Somos Douro. Não consigo trazer as dezenas de nomes de pessoas que trabalham nas câmaras municipais e equipamentos de cada município, mas posso afirmar com certeza que sem elas, sem o seu contributo, isto não aconteceria assim. Então, publicamente, quero agradecer aos autarcas e suas equipas que acolheram o festival e se mobilizaram para que a população pudesse usufruir de cerca de 30 iniciativas. Vou mencionar os municípios por ordem alfabética: Alijó, Armamar, Carrazeda de Ansiães, Freixo de Espada à Cinta, Lamego, Mesão Frio, Moimenta da Beira, Murça, Penedono, Peso da Régua, Sabrosa, Santa Marta de Penaguião, São João da Pesqueira, Sernancelhe, Tabuaço, Tarouca, Torre de Moncorvo, Vila Nova de Foz Côa, Vila Real. Muito, muito obrigada.

Ao longo de meses extraordinariamente ocupados, contactei individualmente as dezenas de pessoas que participaram, expondo o figurino do Somos Douro e condições genéricas de participação; era uma abordagem curatorial que desde logo me permitiu sentir uma reacção calorosa. Pessoas tão ocupadas quanto o vice-reitor da Universidade de Lisboa, António Feijó, Pedro Mexia, assessor cultural do Presidente da República, ou o fadista Camané, que imediatamente disse sim ao desafio de interpretar dois fados com alunos do Conservatório de Música de Vila Real, estas e outras pessoas tinham disponibilidade para participar.

Logo depois fiz a ponte com a equipa da CCDR-N, coordenada pelo Vítor Devesa, com a Julita Santos, que fez a produção executiva, e as equipas de cada município que agilizaram as mais diversas questões, sobretudo de carácter orçamental e logístico, garantindo assim que o festival acontecesse meio ano após o seu anúncio. Por vezes, e apesar de não ser meu hábito o acompanhamento destas questões, acompanhei muitas delas de perto. Porquê? Porque me senti profundamente envolvida com o Somos Douro e com a responsabilidade que assumi quando o Prof. Freire de Sousa me convidou para ser comissária.

Ser comissária, como eu o entendo, não é apenas dar a cara, estar presente; é definir uma estratégia, assumir uma identidade, fazê-la acontecer. Gerar, acompanhar o parto e depois os primeiros passos da criança. 

Tenho noção de que muitas das pessoas que participaram, que fizeram esforços de agenda, que baixaram generosamente o seu cachet, o fizeram atendendo à relação pessoal que tenho com elas e à confiança que depositaram no projecto. Mas outras eram para mim desconhecidas e vieram também. Agradeço muito, por ordem de entrada no festival, a Camané, Orquestra de Câmara do Conservatório Regional de Música de Vila Real, Bárbara Reis, Capicua, Pedro Santos Guerreiro, Rita Ferro Rodrigues, Pedro Mexia, Leonor Baldaque, Bernardo Pinto de Almeida, Ana Margarida De Carvalho, Tatiana Salem Levy, Alberto Correia, Aquilino Machado, Serafina Martins, Maria Manuel Mota, María Salgado, António Feijó, Cláudia Costa Santos, António Belém Lima, Ana Vaz Milheiro, Richard Zimler, Joel Cleto, António Sá, Manuela Correia, Eduardo Souto Moura, Graça Correia, Carlos Mendes de Sousa, Carlos Pazos, Ana Luísa Amaral, Irene Flunser Pimentel, António Carvalho, Maria de Jesus Sanches, Fernando Rosas, António Jorge Gonçalves, Sofia Marques Da Silva, José Luís Peixoto, Álvaro Fernandes Andrade, Camilo Rebelo, Tiago Pimentel, Ângela Nunes, João Pinto Coelho, Filipe Raposo, Ana Brandão, Bandas Filarmónicas da Região, Patrício Costa, Daniela Monteiro.

No caso do Fórum Jovem, a equipa da CCDR-N interveio de forma mais directa na escolha do modelo organizativo, entregue à Territórios Criativos, e no convite aos jovens participantes. Foi um importante momento de reflexão. Pela minha parte, escolhi os dinamizadores de cada mesa, por serem nomes de enorme saber e prestígio no espaço mediático e cultural. São eles Bárbara Reis, jornalista e ex-directora do Público, Capicua, rapper e doutorada em Sociologia, Pedro Santos Guerreiro, jornalista e director do Expresso, e Rita Ferro Rodrigues, apresentadora de televisão e fundadora da associação feminista Capazes.

Abro já aqui um parêntesis para falar da causa feminista, que me é tão cara. Falei há um ano da preocupação com a paridade de género; faço agora as contas e concluo que ela não foi exacta, mas é equilibrada. Entre os participantes do Somos Douro, há 24 homens e 20 mulheres.

Isto abre espaço para falar da presença da Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, defensora das quotas, como eu, no encerramento do Fórum Jovem.

Além da presença de Rosa Monteiro, tivemos também connosco o então ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, no primeiro dia do festival.

Do ponto de vista institucional foi feito um trabalho de divulgação, nomeadamente junto dos gabinetes do Presidente da República e do Primeiro Ministro, e estabelecidas parcerias que enriqueceram o festival. Permitam-me destacar reuniões com Maria Manuel Leitão Marques, Ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, da qual resultou a acção In.Code, e também com Ana Mendes Godinho, Secretária de Estado do Turismo, que teve a ideia de declinar o concurso Ponha Portugal no Mapa do Turismo de Portugal num programa destinado a jovens youtubers da região duriense. Outras parcerias: com Teresa Calçada, directora do Plano Nacional de Leitura, Pilar del Río, presidenta da Fundação José Saramago, Javier Rioyo, director do Instituto Cervantes, Bruno Navarro, director do Museu do Côa. Foi especialmente frutuosa a nossa relação com a Ordem dos Arquitectos, secção regional norte, com a sua presidente, Cláudia Costa Santos, juntos fizemos um importante roteiro de arquitectura.  

A quase integralidade destas acções foi feita com um orçamento reduzido e assumido pela CCDR-N, na qualidade de entidade que tem a obrigação de cuidar do bem Douro – Património Mundial. Desde o princípio, pedimos aos autarcas que nos cedessem espaços e meios logísticos, apoio no terreno, ajuda para a mobilização de públicos, mas dissemos que o encargo financeiro para eles seria nulo ou muito, muito reduzido. Creio que foi assim.

Tenho a certeza de que concordam comigo se disser que, nestas condições, só com uma equipa eficaz todas as peças se conjugam. Além de agradecer à equipa da CCDR-N, gostaria de agradecer muito especialmente à Julita Santos. Ela é uma máquina! Sem este acompanhamento directo, município a município, que ela fez, laboriosamente, num período anterior ao festival, fazendo centenas e centenas de quilómetros, fazendo dezenas e dezenas de reuniões com autarcas e representantes autárquicos, e passando incontáveis horas ao telefone com eles, não haveria Somos Douro, este Somos Douro.

Mas um programa precisa chegar a muitas pessoas. Não só aquelas a quem se dirige num plano imediato, mas a pessoas que, através de diversas plataformas, acedem ao que se passa naqueles dias, naquela geografia. Gostaria de destacar, pelo seu alcance nacional e relevância, entrevistas na Antena 1 (programa de João Gobern e Margarida Pinto Correia), na TSF (Nuno Domingues), duas páginas e chamada de capa no Jornal de Notícias (texto de Helena Teixeira da Silva), e uma página na revista do Expresso (por Valdemar Cruz). Já agora: o post mais visto, no decorrer do festival, no meu Facebook foi com Richard Zimler em Torre de Moncorvo, e alcançou cerca de 11 mil pessoas.
O Somos Douro foi muito intenso, fisicamente desgastante, mala às costas, frio e calor, uma compreensão do tempo elástica. Entre 1 e 17 de Junho percorremos 19 municípios. Para mim foi um reviver da minha geografia (cresci em Vila Real), fez-me conhecer pessoas, aprender tanto. O fôlego era retomado com a gratificação de perceber que o festival fazia diferença. Talvez pela primeira vez, acontecia qualquer coisa que dava uma unidade àquele extenso mapa, que não deixava ninguém de fora, nenhum município. Com esta distância, depois de tudo maturado, arrisco dizer que a inclusão foi mesmo a ideia capital, aquela que para mim sobressai.

Como comissária do Somos Douro interrogo-me: um festival assim, medra? Se uma actividade medrar, uma que seja, se um destino for diferente por causa daqueles encontros, descobertas, fruição, potencialidades, que alegria. Se ficar uma centelha desses dias, se isso for um detonador de qualquer coisa, que mais se pode pedir? Chega?, não chega. Mas no mundo imperfeito em que vivemos só podemos empenhar-nos no impossível, e ver adiante a criança que nasce, o reconhecimento que chega, o andar continuado. Com a certeza de que a terra é fértil.

 

Texto lido no encerramento do Somos Douro, a 14 de Dezembro de 2018, em Santa Marta de Penaguião. 

 

 

Festival Somos Douro | 1 a 17 Junho | 19 municípios

05.12.18

Somos Douro é um festival de carácter multi-disciplinar, especialmente dirigido aos jovens da região duriense, que acontecerá entre 1 e 17 de Junho, nos 19 municípios que fazem parte da CIM Douro. É uma iniciativa promovida pela CCDR-N, pelos 16 anos da atribuição do selo da UNESCO ao Alto Douro Vinhateiro, com a Liga dos Amigos do Douro e a CIM Douro, que tem Anabela Mota Ribeiro como comissária.

Os verbos que servem de motor a todo o programa são:

Ser / Pertencer

Aprender / Fazer

Descobrir / Partilhar

Pretende-se, tanto quanto possível, envolver a comunidade local nas oficinas, passeios, espectáculos e conversas que compõem o programa e promover a relação (e estima) com o seu património. Todas as iniciativas são gratuitas. Teremos um autocarro a circular entre os 19 municípios e todos, todos eles têm pelo menos um evento (nenhum concelho ficará de fora desta celebração). 

O balanço das iniciativas far-se-á a 14 de Dezembro, um ano depois do anúncio deste projecto, e pelos 17 anos da distinção da UNESCO.

Inscrições e mais informações em http://www.ccdrn.pt/somosdouro/ 

 

SEXTA-FEIRA - 1 JUNHO

21.30h

Iniciativa: Concerto 

Convidado: Camané

Com a participação especial da Orquestra de Câmara do Conservatório Regional de Música de Vila Real

Local: Lamego (Teatro Ribeiro Conceição)

O clássico de Camané Sei de um Rio abre o festival Somos Douro e propõe uma viagem que se vai estender pelos 19 municípios do CIM Douro, entre 1 e 17 de Junho. O espectáculo condensa uma ideia capital no desenho do programa: envolver tanto quanto possível a comunidade local nas suas acções. Assim, convidámos a Orquestra de Câmara do Conservatório de Vila Real a interpretar este tema e outro com Camané.

  

SÁBADO - 2 JUNHO

10h - 18h

Iniciativa: Fórum  

Convidado: Vários

Local: Peso da Régua (Museu do Douro e Teatrinho da Régua)

O Fórum é especialmente dirigido a jovens e vai ouvir, em diferentes mesas de trabalho, pessoas de todos os municípios, escutar as suas preocupações, anotar as potencialidades, promover o diálogo também com aqueles que, sendo dali, estão na diáspora. Serão de vários escalões etários e áreas de intervenção, desde estudantes do secundário a empreendedores.Os dinamizadores das mesas de trabalho serão: Bárbara Reis, jornalista e ex-directora do Público, Capicua, rapper e doutorada em Sociologia, Pedro Santos Guerreiro, jornalista e director do Expresso, e Rita Ferro Rodrigues, apresentadora de televisão e fundadora da associação feminista Capazes. O Fórum, de uma maneira directa, responde a um repto lançado em 2015 por Miguel Cadilhe, um dos promotores da candidatura do Douro a Património Mundial, para que se fizesse um programa dirigido aos jovens desta região.

 

DOMINGO - 3 JUNHO

11h

Iniciativa: À Conversa Com

Convidado: Pedro Mexia

Local: Mesão Frio (Biblioteca Municipal)

Pedro Mexia é assessor para a cultura do Presidente da República, poeta e crítico literário. Grande conhecedor do universo de Agustina Bessa-Luís, vai dirigir o olhar para a força do território duriense nas obras da autora. Em 2018 passam 70 anos sobre a edição do primeiro livro de Agustina, Mundo Fechado.

 

15h

Iniciativa: À Conversa Com

Convidada: Leonor Baldaque 

Local: Armamar

Leonor Baldaque tem múltiplas ligações no Douro. É neta de Agustina, foi actriz nos filmes de Manoel de Oliveira. É escritora e publicou o seu primeiro romance na prestigiada editora francesa Gallimard. Vai fazer uma conversa a partir do filme e do livro Vale Abraão, não longe do local onde passou férias e aprendeu o que é ser do Douro. Vão ser exibidos excertos do filme.

 

18h

Iniciativa: À Conversa Com

Convidado: Bernardo Pinto de Almeida

Local: Peso da Régua (Museu do Douro)

Bernardo Pinto de Almeida nasceu no Peso da Régua. É professor catedrático da Faculdade de Belas Artes do Porto. É também poeta e ensaísta. Propõe-se dar a ver a Paisagem como tema dominante na História da Pintura. 

 

SEGUNDA-FEIRA - 4 JUNHO

18.30 - 20.30

Iniciativa: Oficina de Escrita (+ residência de uma semana) 

Convidada: Ana Margarida de Carvalho

Local: Santa Marta de Penaguião

Ana Margarida de Carvalho publicou apenas dois romances e com os dois venceu o mais prestigiado prémio literário português, o Grande Prémio de Romance APE. Respondeu com entusiasmo a dois desafios: viver uma semana em Santa Marta de Penaguião e fazer uma oficina de escrita na localidade, dirigida àqueles que gostam de escrever.

 

TERÇA-FEIRA - 5 JUNHO

10h - 13h

Iniciativa: Oficina de Escrita (+ residência de uma semana) 

Convidada: Tatiana Salem Levy

Local: Carrazeda de Ansiães

Tatiana Salem Levy é brasileira. Foi considerada pelo jornal inglês The Independent uma das mais importantes escritoras brasileiras de sempre. Além de fazer uma residência artística de uma semana, vai coordenar uma oficina de escrita, jogando com as potencialidades da língua portuguesa, falada do lado de cá e do lado de lá do Atlântico.

 

QUARTA-FEIRA - 6 JUNHO

15h30

Iniciativa: Roteiro

Convidados: Alberto Correia e Aquilino Machado

Local: Sernancelhe (Ponto de Encontro: Loja Interactiva de Turismo de Sernancelhe; chegada: Pátio Aquilino Ribeiro, Carregal)

Alberto Correia é historiador, antropólogo e um estudioso empenhado da obra de Aquilino Ribeiro. É também da confraria da castanha. O que lhe pedimos? Que celebrasse a geografia física, literária e gastronómica do escritor, que falasse a partir dos seus lugares: o Carregal onde nasceu, as ruínas do mosteiro de Tabosa e a magnífica Lapa. O neto do autor, Aquilino Machado, acompanhará o passeio e entrará em diálogo com Alberto Correia.   

 

18.30h

Iniciativa: À Conversa Com

Convidada: Serafina Martins

Local: Carregal - Sernancelhe (Pátio Aquilino Ribeiro)

A Prof. da Faculdade de Letras de Lisboa Serafina Martins estudou “Saber Viver para saber morrer. A imagem ficcional do amor em Aquilino Ribeiro” no seu doutoramento. Nas Terras do Demo fará uma leitura da sua obra, indo ao encontro dos seus temas centrais. A conversa acontecerá no Pátio Aquilino Ribeiro, à chegada do roteiro. Haverá depois um beberete aquiliniano.  

 

QUINTA-FEIRA - 7 JUNHO

15h

Iniciativa: À Conversa Com 

Convidada: Maria Manuel Mota

Local: Vila Real (Agência de Ecologia Urbana)

Nasceu em 1971 no norte, é cientista, directora do iMM, prémio Pessoa em 2013, apontada como uma das maiores especialistas do mundo em malária. Maria Mota tem paixão pela ciência e gosta de contagiar outros para a sua paixão. 

 

21.30h

Iniciativa: Concerto Abrazo-Abraço

Convidada: María Salgado

Local: Vila Real (Conservatório Regional de Música de Vila Real)

 A voz de María Salgado é apontada como uma peça-chave para entender a música castelhana. No centro do seu repertório está a herança cultural e musical de Castela e Leão. Em Vila Real, María far-se-á acompanhar de músicos espanhóis e de um músico português: Cesar Diaz, Amadeu Magalhães e María Alba. Esta iniciativa é feita em parceria com o Instituto Cervantes.

 

SEXTA-FEIRA - 8 JUNHO

18h

Iniciativa: À Conversa Com 

Convidado: António Feijó

Local: Vila Real (Palácio de Mateus) 

Professor de Literatura, António Feijó, com raízes nortenhas, é também vice-reitor da Universidade de Lisboa. Uma das suas áreas de investigação tem que ver com o Modernismo português. Evocando os 130 anos do nascimento de Fernando Pessoa (13 Junho), Feijó faz uma introdução à obra do poeta, figura maior da cultura portuguesa.

 

SÁBADO - 9 JUNHO

10h – 18h

Iniciativa: Roteiro - Prémios Arquitectura do Douro

Convidado: Acção levada a cabo com a Ordem dos Arquitectos – Secção Regional Norte.

Local: Região do Alto Douro Vinhateiro

Este roteiro tem cinco paragens, cinco edifícios assinados por nomes importantes da arquitectura portuguesa, e premiados. São eles: o Museu da Vila Velha (Belém Lima), a Adega Quinta do Portal (Siza Vieira), o Centro Cultural Miguel Torga (Souto Moura), o Museu do Côa (Camilo Rebelo e Tiago Pimentel) e Centro de Alto Rendimento do Pocinho (Álvaro Andrade). O programa será efectuado em várias partes. No dia 9, a visita é ao museu da Vila Velha. No dia 11, estaremos em Sabrosa, na adega de Siza e no espaço Miguel Torga, onde o autor, Souto Moura, nos guia. Os últimos dois edificíos são visitados dias 15 e 16. As arquitectas Ana Vaz Milheiro, Álvaro Fonseca, Cláudia Costa Santos, Graça Correia e a engenheira Ângela Nunes conduzem visitas guiadas, propõem uma leitura destes edifícios. 

 

16h

Iniciativa: À Conversa Com 

Convidado: Richard Zimler 

Local: Torre de Moncorvo (Igreja da Misericórdia)

O escritor Richard Zimler nasceu nos Estados Unidos, é judeu, licenciou-se em Religiões Comparadas. Mudou-se para o Porto em 1990. O tema das religiões é central no seu universo literário (basta pensar n’ O Último Cabalista de Lisboa, que vendeu milhares de exemplares no mundo todo). Na localidade onde existiu uma importante judiaria, Zimler falará da cultura e religião judaica.

 

Dia todo

Iniciativa: Oficina Fotografia - parte I

Convidado: António Sá 

Local: Freixo de Espada à Cinta

Radicado no nordeste transmontano há anos, António Sá é um fotógrafo que tem publicado com regularidade na revista National Geographic. A paisagem está muitas vezes no centro da sua objectiva. Numa oficina de dois dias, vai ensinar coisas básicas, como olhar, elaborar uma narrativa visual, além das questões técnicas que dizem respeito à fotografia.

 

DOMINGO - 10 JUNHO

15h

Iniciativa: À Conversa Com

Convidada: Manuela Correia

Local: Sabrosa (Casa Aires Torres - Parada do Pinhão)

Um dos livros mais lidos em todo o mundo foi escrito por Saint-Exupéry há 75 anos. O Principezinho é uma obra de arte com várias camadas de leitura, dirigido a adultos e crianças. A psiquiatra Manuela Correia, viúva do editor Manuel Hermínio Monteiro, de Parada do Pinhão, conhece bem a região duriense por causa desta convivência familiar. Vai fazer uma conversa sobre os mitos do livro, discutir as razões porque ele continua a fascinar geração atrás de geração.

 

Dia todo

Iniciativa: Oficina Fotografia - parte II

Convidado: António Sá 

Local: Freixo de Espada à Cinta

 

10h - 13h e 15h - 18h

Iniciativa: Roteiro

Convidado: Joel Cleto

Local:  Tarouca e Penedono

Toda a gente conhece o extraordinário comunicador que é Joel Cleto e os seus programas do Porto Canal, que promovem um conhecimento e relação directa com o património. Durante um dia inteiro, este historiador e divulgador vai revelar tesouros e contar histórias de Tarouca (10h - 13h) e Penedono (15h - 18h).

  

SEGUNDA-FEIRA - 11 JUNHO

11h

Iniciativa: Roteiro - Prémios Arquitectura do Douro

Convidado: Álvaro Fonseca e Cláudia Costa Santos

Local: Adega Quinta do Portal - Sabrosa

Acção levada a cabo com a Ordem dos Arquitectos – Secção Regional Norte

 

16h

Iniciativa: Roteiro - Prémios Arquitectura do Douro

Convidado: Eduardo Souto Moura e Graça Correia

Local: Sabrosa (Espaço Miguel Torga - S. Martinho de Anta)

Acção levada a cabo com a Ordem dos Arquitectos – Secção Regional Norte

 

18h

Iniciativa: À Conversa Com

Convidado: Carlos Mendes de Sousa

Local: Sabrosa (Espaço Miguel Torga - S. Martinho de Anta)

Carlos Mendes de Sousa é professor da Universidade do Minho, especialista em literatura brasileira e em autores portugueses como Miguel Torga. Numa conversa acessível a todos, fará uma incursão na obra e no imaginário do autor dos Novos Contos da Montanha. Na terra e na "casa" do escritor, como não podia deixar de ser.

 

21h30

Iniciativa: À Conversa Com

Convidado: Carlos Pazos

Local: Sabrosa (Espaço Miguel Torga - S. Martinho de Anta)

Através de uma parceria com o Instituto Cervantes em Lisboa, pretende-se abordar o tema das relações entre Portugal e Espanha, o rio que nos une, e revelar identidades e talentos de um lado e outro da fronteira. O escritor espanhol Carlos Pazos vai falar de Galegos em Portugal: Lisboa, Douro. Vai abordar a presença histórica de galegos em Lisboa (entre eles, Alfredo Guisado, que se deu com Pessoa e o movimento de Orpheu). Estará à conversa no espaço Miguel Torga, autor marcado pela influência de Cervantes.

 

TERÇA-FEIRA - 12 JUNHO

11h

Iniciativa: À Conversa Com

Convidada: Ana Luísa Amaral

Local: São João da Pesqueira

Ana Luísa Amaral é professora da Faculdade de Letras do Porto. É também poeta e uma grande estudiosa da obra de Sophia de Mello Breyner Andresen. A produção de Sophia para a infância foi o ponto de partida para esta conversa. Os clássicos A Menina do Mar e A Fada Oriana foram publicados em 1958, há 60 anos.

 

16h

Iniciativa: À Conversa Com

Convidado: Aquilino Machado

Local: Moimenta da Beira

O geógrafo Aquilino Machado, neto de Aquilino Ribeiro, conduz uma visita à Casa-Museu do escritor. 

 

21.30

Iniciativa: À Conversa Com

Convidada: Irene Flunser Pimentel

Local: Moimenta da Beira

A historiadora Irene Flunser Pimentel, prémio Pessoa em 2007, traça o tempo histórico de Aquilino, em especial o de “Quando os lobos uivam”, editado há 60 anos.

 

QUARTA-FEIRA, 13 JUNHO 

16h

Iniciativa: Roteiro

Convidados: António Carvalho e Maria de Jesus Sanches

Local: Murça

O director do Museu Nacional de Arqueologia fez uma visita ao Crasto de Palheiros e à Porca de Murça, promovendo uma leitura do território. E que dizem de quem somos e da história daquele lugar os vestígios ali existentes? A acção contou com a presença de Maria de Jesus Sanches, prof. da Faculdade de Letras do Porto, arqueóloga que coordenou os trabalhos e pesquisas em Palheiros.

 

21.30

Iniciativa: À Conversa Com

Convidado: Fernando Rosas

Local: Murça

No ano em que se assinalam os 100 anos do fim da Primeira Guerra, o historiador Fernando Rosas, professor catedrático da Universidade Nova, é o convidado que irá falar da Europa e dos desenhos que ela conheceu ao longo do século XX.

 

QUINTA-FEIRA, 14 JUNHO 

16h

Iniciativa: À Conversa Com

Convidado: José Luís Peixoto

Local: Torre de Moncorvo

José Luís Peixoto é um dos escritores mais conhecidos da sua geração. Foi vencedor do prémio José Saramago e é um grande leitor da sua obra. No ano em que se celebram os 20 anos da atribuição do Nobel a Saramago, e indo ao encontro dos caminhos do escritor no livro Viagem a Portugal, em que há uma menção explícita a Torre de Moncorvo, Peixoto fala do universo do criador de Blimunda e de outras personagens inesquecíveis.

 

11h

Iniciativa: Oficina de Desenho

Convidado: António Jorge Gonçalves

Local: São João da Pesqueira

Ensinar a desenhar no papel, ensinar a desenhar no computador, ensinar a desenhar com frutas! Podemos criar imagens a partir de todos os suportes, diz o ilustrador António Jorge Gonçalves, colaborador habitual do suplemento Inimigo Público, autor da banda desenhada As Aventuras de Filipe Seems e de livros como Desenhos Efémeros.

 

11h

Iniciativa: INCoDE 2030: Comunidades Criativas para a inclusão digital

Convidada: Sofia Marques da Silva

Local: Tabuaço

Sofia Marques da Silva, coordenadora do projeto "Comunidades Criativas para a Inclusão Digital" da iniciativa inter ministerial INCoDe.2030, apresenta um projeto que promove a competência digital e que procura alargar o acesso à internet a toda a população. O que pode resultar daqui? Uma coisa tão simples e significativa na vida de todos os dias como ensinar a população idosa a ligar o skype (e assim falar com familiares emigrados) ou abrir conta de email, ou como capacitar jovens ou minorias para a literacia digital.

 

SEXTA-FEIRA, 15 JUNHO

18h

Iniciativa: Roteiro - Prémios Arquitectura do Douro

Convidado: Álvaro Andrade

Local: Pocinho (Centro de Alto Rendimento)

Acção levada a cabo com a Ordem dos Arquitectos – Secção Regional Norte.

Visita ao museu conduzida pelo autor do projecto.

 

SÁBADO, 16 JUNHO

11h

Iniciativa: Roteiro - Prémios Arquitectura do Douro

Convidados: Camilo Rebelo e Tiago Pimentel

Local: Vila Nova de Foz Côa (Museu do Côa)

Acção levada a cabo com a Ordem dos Arquitectos – Secção Regional Norte

Visita ao museu conduzida pelos autores do projecto e pela engenheira Ângela Nunes. 

 

Iniciativa: Concurso

Convidado: Rita Ferro Rodrigues

Local: Vila Nova de Foz Côa 

O concurso "Ponha o Douro no Mapa" destina-se a jovens youtubers (sobretudo durienses) entre os 13 e os 30 anos, e tem a coordenação de Rita Ferro Rodrigues. A iniciativa, que declina o concurso "Ponha Portugal no Mapa", tem o apoio do Turismo de Portugal, da Câmara de Foz Côa e da plataforma Glymt. O anúncio do concurso faz-se durante o festival Somos Douro, o anúncio dos vencedores acontece em Setembro, no Festival de Cinema do Côa.

 

15h

Iniciativa: Roteiro

Convidado: João Pinto Coelho

Local: Vila Nova de Foz Côa (Parque Arqueológico)

João Pinto Coelho licenciou-se em arquitetura, vive em Murça, é professor do ensino secundário. É também escritor e o mais recente vencedor do importante prémio Leya. Vai conduzir uma visita ao parque arqueológico do Côa, contando com as suas capacidades romanescas e a sensibilidade visual que lhe confere a sua formação de base.

 

21.30

Iniciativa: Espectáculo de projecção de desenho digital ao vivo, piano e voz

Convidados: António Jorge Gonçalves, Filipe Raposo e Ana Brandão

Local: Vila Nova de Foz Côa

António Jorge Gonçalves criou uma técnica que lhe permite desenhar no computador e projectar em tempo real numa superfície de grande escala o traço que vai saindo da sua mão e da sua imaginação. Foi um espectáculo que partiu não de uma folha em branco mas das gravuras rupestres existentes no Côa. Aconteceu ao ar livre na parede gigante de xisto, virada para o Douro. Ao piano Filipe Raposo acompanhou a sintonia da mão de António Jorge e Ana Brandão encheu a noite com leituras de excertos e canto.

 

DOMINGO, 17 JUNHO

12h

Iniciativa: Parada - Desfile - Animação de rua

Convidado: Bandas Filarmónicas

Local: Alijó - Pinhão

Um final de festa, popular, envolvendo todos, com bandas de vários municípios a desfilar e a interpretar algumas peças do seu repertório junto ao rio, na rua, e com um piquenique onde todos possam dizer Somos Douro!

 

 

Ler no Chiado Pedro Mexia

01.12.18

A última sessão do ano do Ler no Chiado será dedicada a Pedro Mexia.

Nos seus poemas e crónicas encontramos Camões, Paolo e Francesca da Divina Comédia, Sandokan, Morrissey, vestígios de uma educação católica, Taxi Driver e outros filmes, retrato dos tios na parede da sala. Vamos falar sobre estes e outros encontros, fantasmas, obsessões, melancolia, sobre os poemas reunidos na antologia Poemas Escolhidos. 

O actor João Reis lê poemas e fragmentos de textos. Eu converso com Pedro Mexia. Dia 12 de Dezembro, às 18.30, na Bertrand do Chiado. 

O mundo das pessoas de pernas para o ar

01.12.18

Começámos o ano acabrunhados. A eleição de Trump, o Brexit, as vagas de refugiados, as imagens de destruição na Síria, os ataques terroristas, o arbitrário, o mapa visível, o mapa subterrâneo... Geringonça foi a palavra do ano em Portugal, Pós-Verdade foi a palavra eleita pelos Oxford Dictionaries. A palavra que não se usa: Esperança. Estamos perante uma crise de identidade? E do futuro, o que podemos esperar? Falámos com pessoas da Filosofia, do teatro, da academia, da política. Pedimos que nos ajudassem a ler o mundo em que vivemos.

 

1.

Carmen Miranda gravou em 1938 um samba-choro de Assis Valente. "Anunciaram e garantiram que o mundo ia-se acabar. Por causa disso, a minha gente lá em casa começou a rezar. Até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada. Por causa disso, nessa noite lá no morro não se fez batucada."

Um ano antes de rebentar a Segunda Guerra, com uma alegria feérica e uma graça mordaz, a cantora brasileira dava expressão a um sopro que era o do seu tempo. A um medo. O mundo ia-se acabar? Liberdade poética à parte, Assis Valente prenunciava que a ordem natural das coisas ia ser tão subvertida que até o sol ia nascer antes da madrugada?

O tal de mundo não se acabou, conclui-se na canção. Entretanto beijou-se a boca de quem não se devia, fez-se o excesso, o impensável. Recorreu-se à oração, a quem pode, a quem vale.

  1. Já estamos do outro lado da madrugada, o sol nasceu, o ano novo entrou. Uma certa ordem permanece intacta. Apesar dos balanços catastrofistas, dos presságios, da racionalidade que nos diz que Trump é Trump como dois e dois são quatro, da ameaça palpável, do medo que fustiga, da memória fresca dos atentados em Istambul, em Berlim, em França, uma certa ordem permanece intacta: temos de viver o dia presente, o dia seguinte, o outro. E, quem sabe, encontrar alegria, fazer batucada. Apesar de um tal de mundo, que conhecíamos desde o fim da Segunda Guerra, ter acabado, ou estar em ruínas. Falando da Europa, sobretudo, mas não só.

A atmosfera deste outro lado da madrugada não é de alívio ou de começo de mundo. Há poucos dias, todos trocámos mensagens (pífias), desejámos o melhor (o que quer que isso seja), fincámos os pés, queremos estar preparados, bem acordados. Já estamos no futuro, mesmo que não tenhamos futuro dentro de nós, mesmo que este não seja o futuro com que sonhámos. Nós somos estes que têm medo e não sabem o que esperar. Somos estes que não sabem bem quem são quando se vêem reflectidos no espelho, nem têm ferramentas para identificar o outro, o estrangeiro, o próximo, um outro diferente de si.

 

2.

O dia não é claro, há uma névoa que embacia, ares de pesadelo. O futuro é isso. Procuramos uma nova sintaxe que organize ou torne legível o novo caos. Procuramos entender.

Marina Costa Lobo, politóloga, investigadora do ICS. "A principal luta que vamos ter é a da defesa da democracia. Os desenvolvimentos recentes, sobretudo no mundo das democracias ocidentais, levam-me a acreditar que o que vai estar mesmo em causa é a defesa da democracia liberal, pluralista, assente em alianças internacionais. Inglaterra e EUA, deixaram de ser faróis, o que nos fragiliza enquanto grupo. Nos EUA elegeram alguém que é de fora dos partidos, que se propõe desfazer alianças internacionais que têm definido o século XX (nomeadamente a Nato ou a forma como ela está constituída, como é financiada). Também a relação com o México. O anúncio de construir um muro é simbólica de uma nova era.

Muro: é uma palavra que regressa."

O tempo é o da construção de muros. Mas como, se a queda do muro que separava as Alemanhas foi ontem? O horizonte temporal de que estamos a falar é estreito, muito estreito, e contudo inegável. Tudo ganhou aceleração. O tempo passou a ser uma matéria mais elástica, que nos escapa das mãos.

Prossegue Marina: "O Brexit é uma forma de construir muros, de limitar a livre circulação de pessoas. O que o Reino Unido está a dizer é que não quer participar do Mercado Único nos moldes em que ele existe. O que os que votaram no Trump e no Brexit estão a dizer é: 'Não nos revemos nisto, inventem outra coisa'. A crise da Zona Euro + Refugiados tem fragilizado muito a União Europeia. Crescem os partidos de extrema-direita. E este ano temos as eleições em França e na Alemanha. É fundamental, durante este período, manter princípios básicos do Estado de Direito. Pluralismo. Liberdade. Aceitação do outro."

 

3.

A terra treme. Pisamos território movediço. O antigo já não funciona e o novo ainda não é. Como é que nos aguentamos de pé durante o sobressalto? Um elenco de dificuldades por João Constâncio, professor de Filosofia da Universidade Nova.

"O actual estado do mundo é muito deprimente, e, de certa forma, muito óbvio, muito claro. Já muitas pessoas disseram que estamos a viver uma espécie de regresso aos anos 30 do século XX. Sentimos o regresso da ameaça nuclear. Sabemos da destruição ambiental, da extrema financeirização da economia, do crescimento das desigualdades. Acompanhamos a corrupção do sistema democrático americano, a crise das instituições europeias, os males da globalização, o terrorismo (incluindo o terrorismo de Estado). Sabemos da irrelevância do Direito Internacional. Da existência de cerca de 60 milhões de refugiados espalhados pelo mundo. E nada disto é novo: tudo isto é o que tem vindo a acontecer desde há muito tempo."

Não podemos dizer que fomos apanhados desprevenidos. Todavia, a montanha parece agora inultrapassável, e viver um exercício ciclópico. E o que resulta da conjugação de todos estes factores surge como um fenómeno recente, urgente, aflitivo. Uma arrepiante sensação de fim de mundo, sintetiza João Constâncio. "O que pode acontecer, e talvez esteja já a acontecer, é que, um pouco por todo o lado, as pessoas percam a esperança de que as coisas possam melhorar. Percam, no fundo, a ideia de progresso. Nesse caso, triunfará a lógica do pânico e do cada um por si. Isso bastará para que seja impossível resolver, por exemplo, a questão ambiental. (A possibilidade de tal acontecer foi recentemente pensada e muito bem descrita por uma pessoa muito inteligente, chamada Brian Eno)."

Ele tinha 18 anos em 1989, o ano em que caiu o muro de Berlim. Estudava Filosofia, interessou-se por Platão e Nietzsche, mais do que tudo. Lembra-se bem de como era fácil, nesse tempo e ao longo de todos os anos 90, acreditar na teoria do fim da História. A democracia liberal havia triunfado e, com ela, os direitos humanos, o direito internacional, a globalização e a liberdade individual. "Hoje, depois do 11 de Setembro, depois da invasão do Iraque, depois do que foram os anos Bush, depois da queda do Lehman Brothers e da crise financeira internacional, depois do Brexit e da vitória de Trump, não só essa visão dos anos 90 parece absurda, como é a própria ideia de progresso, a própria ideia de ser possível algum tipo de progresso e de fazer sentido pensar em algo como 'a humanidade', que está posta em causa." 

 

4.

A Europa. Os Estados Unidos. O mundo. Pedimos o auxílio de um verso de Manuel António Pina, para suster o pessimismo, ganhar fôlego: "Ainda não é o fim nem o princípio do mundo. Calma. É apenas um pouco tarde."

 

5.

O discurso é pré-apocalíptico, lúcido, sem exageros. São os fundamentos da democracia liberal que estão a ser abalados quando se elege um demagogo como Donald Trump (constatação que transparece de todas as conversas que tivemos). O único modo de o contrariar, defende o escritor Richard Zimler, é apostando na educação. Este americano-português, a viver em Portugal desde 1990, faz um longo excurso para falar de pilares da identidade europeia: a existência de uma rede protectora. Vale a pena acompanhá-lo nesta volta. "Os EUA têm uma cultura anti-intelectual. E os EUA têm as melhores bibliotecas, as melhores universidades, os melhores centros de investigação. Parece incompatível. Porém, para um americano de classe média, a palavra 'intelectual' tem uma conotação negativa. Significa uma pessoa longe da realidade quotidiana, que sabe alguma coisa sobre assuntos esotéricos. Esta tradição anti-intelectual nunca foi tão pronunciada. Ao contrário, em Portugal, é respeitado o saber. O professor é um senhor. Vejo isso quando as pessoas falam com o Alexandre [Quintanilha, o marido, professor catedrático]. É um respeito pelos anos que essa pessoa dedicou ao seu tema, ao aprender, e que está acima de discordâncias políticas ou outras.

Quando falo disto na Europa, as pessoas ficam estupefactas.

Mas pensemos bem. Nos EUA, as propinas de uma universidade privada custam 60 mil dólares por ano. Não inclui habitação e demais despesas. Quem é que pode pagar isto? A solução-sacrifício é contrair uma dívida gigantesca. Não é incomum uma pessoa passar os primeiros dez anos da vida adulta a pagar dívidas de 100 mil dólares, 300 mil dólares, refém de um sistema que não faz sentido.

Saúde. Vi isto com a minha mãe. Nos últimos anos de vida, as pessoas perdem todas as economias que acumularam ao longo dos anos para pagar despesas de saúde, para se manterem vivas. O Obama Care foi uma tentativa de criar um serviço de saúde público, mínimo, parece que Trump vai extingui-lo. Exemplo prático: a minha mãe e eu pagávamos a uma senhora que estava com ela mais de 3500 dólares por mês. São 40 mil dólares por ano. Fora o resto. Quem pode pagar isto? A minha mãe perdeu tudo o que tinha, felizmente não perdeu a casa.

Na Europa, temos uma rede protectora espectacular. Que se mistura com a identidade europeia. Os europeus nem são conscientes dos problemas provocados pela falta de uma rede protectora. Ainda bem que não compreendem, mas não compreendem. E têm a sorte de não ter de perder o seu tempo pensando nestas coisas. Dá uma liberdade... Como? Eu não tenho de fazer outros trabalhos para pagar o meu seguro de saúde privado."

 

6.

"Volver a los diecisiete

después de vivir un siglo

es como descifrar signos

sin ser sabio competente.

Volver a ser de repente

tan frágil como un segundo,

volver a sentir profundo

como un niño frente a Dios,

eso es lo que siento yo

en este instante fecundo."

Violeta Parra, cantora chilena, nasceu em 1917, matou-se em 1967.

 

7.

Pensemos simbolicamente no 17 como um ano inaugural, um momento em que a terra é fértil e o mundo uma aventura que queremos viver. Em que acreditamos. E, como uma criança, deciframos signos recorrendo à intuição, temos uma compreensão íntima das coisas, dominamos conceitos primordiais. Somos crianças e temos menos medo, temos um coração que não se parte na decepção.

Eduardo Paz Ferreira é professor catedrático de Direito na Universidade de Lisboa. Traz consigo um léxico de palavras-propostas para o novo ano. Palavras que caíram em desuso, assumiram tom moralista, e que são cada vez mais requeridas, como decente. (Por uma Sociedade Decente é o título do seu mais recente livro.) "John Le Carré resumiu assim: uma sociedade decente é uma sociedade que se ocupa em primeiro lugar dos derrotados e com a protecção dos mais vulneráveis. Cruza com a ideia de Estado Social, necessariamente.

Decente é a única coisa que podemos opor à barbárie."

Outras palavras: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. E luta. E esperança. E radicalismo, para dizer mais vigorosamente: NÃO! Nem é dizer, é gritar. Gritar não.

Comecemos o ano com vigor, observemos as linhas vermelhas que não podem ser pisadas. Por exemplo em matéria de refugiados. Os descartáveis de que falava o Papa Francisco, que foi a Lampedusa chorar os mortos no Mediterrâneo.

Francisco, líder inspirador, que toca em tudo o que é incómodo, considera Paz Ferreira. "Os imigrantes foram remetidos para a esfera da clandestinidade. São uma espécie de criminosos que andam a vaguear pelo mundo. É deplorável. O medo do outro é o resultado de políticas concertadas e activas no sentido de o estimular. Foi criado um inimigo comum, os índios que vêm assaltar o forte." Os índios são quem? Os que vêm da Síria?, os muçulmanos? "Os muçulmanos, de certa maneira, fizeram apagar o problema dos que vinham de África. O ódio está agora concentrado neles."

Os migrantes formam um corpo visível, doloroso, do desarranjo em que está o mundo. Não conseguimos esquecer a imagem do menino que dá à costa, naufragado, nem do menino coberto de poeira e sangue, em cuja cara está o absurdo de Aleppo, a violência, a destruição, o sofrimento. Vêm à memória imagens do filme de Rossellini Alemanha Ano Zero, rodado em 48, uma criança que vagueia pela Berlim de prédios esventrados, à cata de comida. Sabemos como termina esse menino.

Mas então, voltemos a citar Gramsci, exorta o advogado: contra o pessimismo da razão, o optimismo da vontade. Apesar de o velho custar muito a sair e o novo ter dificuldade em instalar-se. Vamos lutar. Vamos pensar em voltar aos 17 depois de viver um século, como na canção de Violeta Parra. Não nos deixemos apanhar na ratoeira do populismo, do apontar o dedo aos políticos, aos que estão na esfera do poder. O dedo que diz:

- Nós somos os sem mácula, os outros, os impuros. Nós somos a plebe honrada, a elite é uma corja que de alguma maneira se corrompeu. Nós somos os que não têm poder, os que querem destituir aqueles que detêm o poder. Seja de que maneira for. Mesmo que seja através de pessoas como Trump. Pessoas de poder que são diferentes das outras pessoas que têm poder.

Não nos deixemos apanhar em ratoeiras que nos gritam que são ratoeiras.

Ouçamos Paz Ferreira: "Não podemos não ver no populismo, de modo grosseiro, aquilo a que antigamente se chamava luta de classes. Ou seja, uma luta entre pobres e ricos. Os novos proletários são os excluídos da globalização. Estes anos de prosperidade e paz foram também anos em que a desigualdade cresceu brutalmente e a concentração de riqueza aumentou. Christine Lagarde [directora-geral do FMI] disse uma vez que 85 pessoas, ou seja, a lotação de um autocarro de Londres, de dois pisos, concentram uma riqueza igual à da metade da população mundial. Dado assustador. Carlos Farinha Rodrigues [professor do ISEG] fez um trabalho sobre os anos da Troika. Os mais sacrificados foram os mais pobres. Aos que seguem no autocarro?, ninguém lhes toca. E vemos Trump anunciar que vai desonerar ainda mais os impostos sobre os ricos, que já eram escandalosamente baixos!"

Inventemos novas narrativas. Participemos na res publica. É preciso meter as mãos na política. Não forçosamente nos partidos. "Mas não é opróbrio estar nos partidos. E nos partidos há outras condições de eficácia", sintetiza Paz Ferreira.

 

8.

"Eu não nasci para odiar, mas sim para amar" - Antígona, Sófocles.

Isabel Capeloa Gil é reitora da Universidade Católica. Na sua tese de doutoramento trabalhou três figuras femininas da tragédia grega, Antígona, Cassandra e Medeia. Pedimos-lhe que falasse de Antígona, partindo da afirmação célebre com que abrimos este capítulo. "O que leva Antígona a reagir não é a rebelião política. As suas motivações são de outra ordem. Assentam na defesa da coesão social, da esfera privada contra as intromissões de um Estado que sente como sendo ditatorial. O que a faz ir contra a lei da cidade é o desejo de sepultar o irmão (cujo corpo deve ficar fora dos limites da cidade, à mercê das aves de rapina). A lei de Creonte é a de punição do traidor (o irmão). Mas essa punição vai interferir na esfera da família. A lei da cidade contende com os sentimentos e com aquilo de define a humanidade e o bem comum (num sentido menos político e mais social).

Hoje em dia precisamos de nos reencontrar com os laços da nossa comunidade, com as formas de pertença. Não digo que sejam as tradicionais. Que nos entendamos a partir do que temos em comum. E isso não diz respeito apenas às pessoas do nosso grupo social, da nossa nação, que falam a nossa língua, que têm a cor da nossa pele. A tónica do discurso deve ser sobre o que o outro tem e que eu também tenho. Ou sobre o que o outro tem que é diferente de mim mas com o qual me posso relacionar. Isso é ser humanista. O problema é olhar para o outro como:

- Aquela gente que é etnicamente diferente, que me vai tirar o emprego, que vai pôr uma bomba, que ameaça o meu ecossistema, que eu não entendo.

Com estes medos estamos a perder-nos a nós próprios."

Uma das palavras que Isabel Capeloa Gil traz para a discussão é memória. Num cenário em mutação acelerada, ou mesmo voraz, falta espaço e distância para reflectir sobre os impactos das transformações a que assistimos. Ainda não decorreu tempo, por exemplo, para que as assimetrias entre alemães de leste e ocidentais fossem superadas. Ainda há, em certas atitudes, um muro. Mas o mais preocupante, para Capeloa Gil, é o esquecimento, é a ilusão de que todas as feridas estão cicatrizadas, é ver que um passado recente está tão enterrado que dele não resta memória. "Dou um seminário sobre Cultura Visual e mostro aos meus alunos um documentário feito pelo Billy Wilder, Moinhos da Morte, Die Todesmühlen, a partir de imagens recolhidas nos campos de concentração nazis. Este filme, durante um período de tempo, era de visionamento obrigatório para que os alemães pudessem ter acesso às senhas de racionamento. Era uma forma de reeducação pela imagem. Posso dizer que há nestes grupos muitos alunos que nunca tinham visto as imagens dos campos nazis. O efeito é de choque. O meu ponto: que tenhamos no século XXI uma geração de estudantes que vê na Segunda Guerra um acontecimento longínquo, distante, para quem o impacto daquele acontecimento, que representa uma cisão na História da Humanidade, está ausente, é preocupante. Representa o esboroar da História. Quando falamos com eles sobre o pós-Guerra, a construção da Europa assente numa ideia de pertença, igualitária, com justiça retributiva, uma partilha do mesmo ethos, estamos a falar com uma geração que não vê no projecto europeu um projecto salvífico, que não tem nem cultiva esta memória, que adultera a memória. E voltamos a ter narrativas semelhantes às que se urdem de ressentimento e desconhecimento. Ora esta dimensão contextual não pode perder-se para o cidadão comum."

 

9.

O escritor italiano Italo Calvino fez um conjunto de conferências em Harvard, em 1985. A sistematização dessas lições americanas resulta no livro Seis Propostas para o Próximo Milénio. No texto sobre a Leveza, falando sobre um mundo que já se amedrontava face à iminência de um novo tempo, podemos ler: "Em certos momentos parecia-me que o mundo estava a ficar todo de pedra: uma lenta petrificação mais ou menos avançada de acordo com as pessoas e os lugares, mas que não poupava nenhum aspecto da vida. Era como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa. O único herói capaz de cortar a cabeça à Medusa é Perseu, que voa de sandálias aladas [...]. Para cortar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu apoia-se no que há de mais leve, o vento e as nuvens; e fixa o olhar no que só poderá revelar-se-lhe numa visão indirecta, numa imagem captada num espelho." Calvino continua uma encantatória descrição do mito de Perseu e da Medusa, não nos deixa esquecer, por exemplo, que é do sangue da terrível Medusa que surge o cavalo alado Pégaso. Sobretudo, retira um ensinamento que importa para aqui: "Nas alturas em que o reino do humano me parece mais condenado ao peso, penso que como Perseu deveria voar para outro espaço. Não estou a falar de fugas para o sonho ou para o irracional. Quero dizer que tenho de mudar o meu ponto de vista, tenho de observar o mundo a partir de outra óptica, outra lógica, e outros métodos de conhecimento e de análise".

 

  1.  

Entrevista breve a Francisco Bethencourt, historiador, professor no King's College, em Londres, autor do livro Racismos: das Cruzadas ao Século XX.  

Estamos a viver uma crise de identidade? 

Não, estamos a viver uma crise política, na qual várias interpretações de identidade estão em conflito.

 

Apesar do nevoeiro denso, é possível perscrutar uma direcção em que avançamos? 

A História sempre desenganou os prognósticos.

 

Que palavras novas usamos para dizer a nossa vida? 

As palavras revelam mas também fluem de acordo com as circunstâncias e os grupos sociais envolvidos. Nova é a moda da vulgaridade e da ofensa em política, que deixou de estar ancorada no mínimo de consenso à volta de factos básicos. Outras dinâmicas irão resultar em novos equilíbrios. 

 

Reconhecemo-nos no outro ou temos simplesmente medo do outro?

O medo do outro cresce com a falta de contacto e de interacção. Quando estas condições existem, a compreensão aumenta.

 

Estamos mais isolados? 

Nunca tivemos este grau de interacção, sobretudo virtual. O que não significa que o isolamento tenha diminuído.

 

Os atentados terroristas, a conquista de espaço eleitoral por movimentos e líderes populistas, as sequelas deixadas pela crise económica: foi isso que nos trouxe aqui?

Há um cheirinho dos anos de 1920, mas as condições históricas não são as mesmas e o terrorismo fascista não está ao virar da esquina. Apesar de tudo existe uma sólida educação de boa parte da população e a capacidade de resistência a movimentos extremistas de extrema-direita é forte.

 

11.

Então. Discutimos o futuro? A identidade? Sentimo-nos a esfarelar? Perdemos horizontes, perdemos referências. É muita coisa. Tudo misturado. Mas evitemos as generalizações. E tenhamos claro que a memória que temos do mundo é sempre uma memória seleccionada. Seleccionada por alguns.

José Maria Vieira Mendes nasceu em 1976, é dramaturgo, membro de uma companhia que é também uma família artística, o Teatro Praga. Escreve, a páginas tantas, na peça Terceira Idade: "Então abandonamos este século e saltamos no tempo. Estou-me nas tintas. Estou farta de ser passiva, de aturar as palavras dos outros. A partir de agora só digo aquilo em que acredito. Poupem-me as máximas e dêem-me os mínimos. Vamos tratar de negócios. Temos de mudar o mundo. Alguma coisa havemos de conseguir. Quem é que escreveu isto?" (Esta é uma das peças coligidas no livro Uma Coisa.)

 

12.

O que caracteriza o nosso tempo? Uma ideia de velocidade. Que contrasta com a evolução lenta e silenciosa das coisas, no subsolo. Normalmente damos pela deflagração, a nossa reacção é imediatista, emocional, ao visível, o que nos ajuda a esquecer e ignorar esta ramificação e complexidade.

Outra ideia. A de abertura à informação. Uma fantasia de livre acesso às coisas, aos lugares, às pessoas, à informação (dominante e minoritária). Tudo potenciado pelas redes sociais. A visibilidade do que é alternativo passa muito pela internet. De certo modo, parece contraditório com o crescendo de discursos xenófobos, totalitários. Mas, muitas vezes, os próprios discursos xenófobos e totalitários vêm da alternativa, do underground, e sobrevivem à custa de redes sociais.

Outra e talvez decisiva ideia: a da manipulação da verdade. O conceito de pós-verdade [post-truth foi eleita pelos Oxford Dictionaries como uma das palavras do ano] é um modo de dizer que eu posso fazer o que eu quiser. Nesta, interessa o que a mim me parece, os sentimentos, há uma rejeição da informação factual. "É um discurso distinto do da pós-modernidade em que se diz que não há uma verdade, há pontos de vista sobre o mundo. É um discurso que aponta no sentido de abolir os totalitarismos, o é assim e acabou-se, abre espaço para a individualidade, para as minorias, para o que quer romper. A pós-modernidade é capturada por aqueles que proclamam o pós-verdade: se não há verdade, tu crias a tua própria verdade, e como crias a tua própria verdade, podes manipulá-la. Torna-se perigoso e perverso."

Estamos a voltar aos perigosos anos 30 do século passado? É possível estabelecer uma similitude ou ela é longínqua?, perguntamos. (José Maria Vieira Mendes viveu em Berlim.)

"Se quisermos podemos sempre estabelecer similitudes. Penso na crise financeira dos anos 30 e na emergência de populismos, de discursos anti-democráticos e xenófobos. Os pêlos começam a eriçar-se quando vemos discursos anti-refugiados, bloqueios, crise financeira. Mas depois, casos como o da Áustria, recentemente, em que o candidato de extrema-direita foi derrotado, fazem-nos dizer:

- Ah, espera aí.

Mesmo em Portugal, nunca vingaram movimentos populistas ou xenófobos. Mesmo quando tivemos imigração africana. Tivemos racismo, sempre, velado. Mas não a nível político.

Que há uma relação entre pobreza e discursos.., chamemos-lhes de inimizade para com o outro, é óbvio. Basta ir à Segurança Social naqueles dias em que as filas são intermináveis. Começa toda a gente a barafustar com toda a gente, e toda a gente é culpada. Ou entrar num autocarro cheio. E há sempre vítimas, que são sempre as minorias."

Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão.

"Foi uma das grandes lições da austeridade: a de que não serviu para nada. Só serviu para as pessoas ficarem muito zangadas. E alguns enriquecerem.

Mas há sempre a possibilidade de desligar. Como com a televisão. A escolha é minha. Não somos autómatos que estão a receber. Tenho uma escolha e uma responsabilidade. Por exemplo a responsabilidade de dizer que o meu mundo é outro. Esta honestidade, de olhar para si próprio enquanto pessoa que investe sentido no mundo, é fundamental. Muitas vezes esquecemo-nos disso, da nossa possibilidade de desligar. De interpretar. Não há nada que seja inalcançável. Não existe a coisa absoluta a que só alguns têm acesso. Todos temos capacidades de relação e percepção do mundo. Obviamente por cansaço, perdemos muitas vezes a vontade de nos mexermos, de dizer:

- Ok, eu posso fazer. Eu posso mesmo fazer."

 

13.

Faranaz Keshavjee nasceu em 1968 em Moçambique, tem origem indiana, é muçulmana, mudou-se para Portugal em 1974. Estudou Antropologia, viveu em Inglaterra, é especialista em estudos islâmicos.

"Quando começamos a falar muito de identidade, estamos, peixes dentro de água, a questionar a água, o modo de respirar. Estamos a questionar o modo como pertencemos a uma coisa. E quem define isso? Identidade não é coisa estática. É mutante. O que é certo: a nossa identidade constrói-se em relação com outro. Se não definir quem é o outro, não consigo ver-me a mim mesma.

Talvez as sociedades contemporâneas precisem de um outro que tenha uma face homogénea, que não dê trabalho a desconstruir, que seja fácil arrumar numa categoria. Talvez esse outro tenha sempre uma carga negativa, e de há uns séculos para cá esse outro é alguém que segue uma religião diferente. Hoje em dia, esse outro é eminentemente o que segue o islão.

De uma maneira diferente, neste lado do mundo onde nos posicionamos, até há pouco, o outro era o inimigo soviético. Cai o império, tudo fica diluído, a guerra fria não chega a acabar, usa peões diferentes. No cair de um modelo ideológico, é preciso arranjar um outro outro. O 11 de Setembro marca-nos indelevelmente, e muito por acção dos média. Podia ter sido um filme e aconteceu deveras. A importação da ficção para a realidade tem um poder extraordinário, muda a nossa percepção do mundo, da ordem das coisas. Percebemos que somos vulneráveis. Todos alvo. A nossa vida de todos os dias pode transformar-se, acidentalmente, imprevistamente, num campo de batalha. E o alvo não é alguém que está envolvido num processo de guerra, é alguém que está a fazer o seu quotidiano.

Aprender: não isolar as coisas. Perceber a teia. Não discriminar. Os baixos, os gordos, os de cor. O meu filho, quando era pequeno e pintava, queixava-se de não ter cor de pele.

- Mas, filho, o que é cor de pele? Há muitas cor de pele.

Ele dizia de si que era castanho, e que os seus amigos eram todos cor de pele.

Eu acho mesmo interessante que sejamos todos diferentes. O desafio é saber conviver com essa diferença. Mais, é saber construir com essa diferença. Esse é para mim o cerne do cosmopolitismo.

Palavra que emerge com força, ao revés dessa: nacionalismo.

A minha mãe ensinou-me a estar atenta à diferença entre sabedoria e instrução. É uma diferença enorme em relação à qual somos desatentos. Resumia assim: ele é estudado mas não é conhecedor. Isto para dizer que há cada vez mais informação a circular e cada vez menos conhecimento. O problema dos nacionalismos é o desconhecimento. O filtro parece que desapareceu. Tinha um professor que dizia assim:

- Leio um livro de História. Pergunto quem é este investigador. Quem paga para ele investigar. De onde vem o dinheiro que paga a investigação. O que é que lhe foi encomendado.

Isto orienta a informação. Não podemos ser ingénuos. Ensino aos meus filhos e sobrinhos a serem críticos, a questionar, a procurar saber mais, a cruzar informação, porque as coisas não são o que está à superfície."

 

14.

Mário de Sá Carneiro, poeta português, viveu entre 1890 e 1916. Escreveu estes versos:

"Eu não sou eu nem sou o outro,

Sou qualquer coisa de intermédio:

Pilar da ponte de tédio

Que vai de mim para o Outro."

 

15.

Num território de penumbra, ao contrário do poema de Sá carneiro, tendemos a afirmar-nos seres absolutos, margem de um rio que não se pode transpor. Não nos pensamos estrutura de uma ponte, uma ponte que liga margens como nós. Ficamos encapsulados, movimentamo-nos em círculos, os nossos círculos, que confirmam o que pensamos, quem somos. Adquirimos de facto informação nova?, estamos de facto abertos a discutir perspectivas diferentes ou até antagónicas?, estamos de facto disponíveis para rever o que pensamos? Consumimos informação no Facebook, prescindimos de peritos, de filtros, de testes mínimos. Medimos a nossa acção social pelo número de likes. Descremos do establishment, descremos do intelectual que está fechado na sua torre de marfim, como o americano de que falava Richard Zimler, descremos do inculto que nunca leu o New York Times. Ficamos circunscritos a determinados cubículos. Emparedados. Polarizamos o mundo. Os que pensam como nós. Os outros. Que é feito da palavra pluralismo ou mesmo diálogo?

 

2017, parece que no mundo as pessoas estão todas de pernas para o ar, para aludir a um texto antigo e para a infância de Manuel António Pina.

 

Mas depois somos como Cabíria, a prostituta interpretada por Giulietta Masina, no filme Noites de Cabíria de Fellini (1957). Somos essa mulher que acreditou num amante, que acreditou no paraíso, que descobre com horror que foi enganada, que quer morrer, ser lançada no precipício. E que depois, por um instinto vital que não se sabe de onde vem, talvez por milagre, regressa à estrada, ouve risos de jovens e uma música que convida. Regressa à estrada, esboça um sorriso tíbio. Pronta para acreditar e talvez ser enganada, de novo.

Assim estamos nós: pessimistas, pesadamente pessimistas, e prontos para apurar os ouvidos e ouvir uma música que nos permita calcorrear a estrada, alimentar o sonho de estar vivos e de querer o dia que vem.  

 

Publicado originalmente no Público, a 8 Jan de 2017.