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Anabela Mota Ribeiro

Joana Vasconcelos (exp. Versalhes)

17.02.19

Não serão servidos brioches em Versalhes. Mas pastéis de nata, sim. Ministro Álvaro e estratégias de internacionalização do que é nacional e bom à parte. O menu está decidido? “ O Avillez é que sabe”. O Avillez é o José Avillez, uma estrela Michelin no currículo e dois restaurantes referenciados como tesouros de Lisboa num artigo recente do The New York Times. E será servido pão. “Os franceses são tarados com o pratinho do pão? É um pratinho bué estúpido. Vocês têm?”. Vocês é a Vista Alegre. É preciso cuidar do pratinho do pão. Do tamanho. E dos pratos, travessas, saladeiras, terrinas. “Uma bela terrina para fazer vista na mesa de apoio”. Um serviço inteiro, que de momento “está com um ar chato como o raio”. Demasiado clássico. Versalhes é Versalhes, dourado, vetusto, imponente. E Joana Vasconcelos é Joana Vasconcelos, exuberante, irreverente, iconoclasta. Capaz de meter o isomorfismo de Escher e o kitsch na mesma peça. Nas calmas.

O serviço Vista Alegre em que será servido o jantar de inauguração incorpora os elementos de Perruque, a peça mais icónica da exposição em Versalhes. Aquela que evoca as perucas escultóricas de Marie Antoinette e que ficará no quarto desta. Aquela que se inspira vagamente num ovo Fabergé e que é chamada por todos, no atelier e na Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, onde foi feita, “o ovo”. Os pratos têm folhas pretas (em ébano, na Perruque) e desenhos a ouro. Paula, da Vista Alegre, trouxe um exemplar de cada peça.

Joana usa uma caneta de feltro para desenhar directamente num prato. Daqui a pouco mais de uma semana será servido o banquete na Orangerie. “Um dos luxos que ela curtia era laranjas”. Marie Antoinette mandou vir de Portugal centenas de laranjeiras e no jardim, ainda hoje, há áleas de laranjeiras. La reine por estes dias será a artista plástica portuguesa. Foram enviados 300 convites.   

O ministro Álvaro vai? Apoiar Joana Vasconcelos é bom para a economia portuguesa? Joana Vasconcelos montou uma exposição de dois milhões e meio de euros. O ministro Portas vai? Joana Vasconcelos é uma embaixadora da cultura portuguesa. Joana Vasconcelos leva a Versalhes as rendas do Pico (a revestir lagostas e leões), as tapeçarias de Portalegre (na peça Vitral), os têxteis de Nisa (nas Valquírias), a iconografia de Bordalo Pinheiro, a filigrana de Viana recriada em talheres de plástico, a louça da Vista Alegre, o trabalho de mestre Pena que trabalha na Fundação Ricardo Espírito Santo Silva desde os 12 anos, o trabalho de dezenas de pessoas, “uma equipa de luxo”, apoios institucionais, um imaginário colectivo. O secretário se Estado da Cultura vai? Mariza vai cantar. Valter Hugo Mãe escreve o texto do catálogo. Os criadores portugueses Dino Alves, Filipe Faísca e Storytailors vão vestir toda a equipa. “O Dino disse que está a fazer um vestido com cauda!”. Quem é que não vai estar?  

Joana Vasconcelos é a primeira mulher e a mais jovem artista a expor no Palácio de Versalhes. Versailles, como ela sempre diz. Talvez por ter estudado na école française. Talvez por ter nascido em Paris. Talvez porque tem mais sainete dizer Versailles. O mais certo: porque os interlocutores dela dizem Versailles. Versailles é universal. Versalhes, não.

Como é que ela chegou lá? “Só consigo chegar a Versailles porque Portugal me apoiou e porque levo o melhor de Portugal”. O país está no centro do seu discurso artístico. Le pays c’est moi? O presidente Cavaco falou em Joana no discurso de 25 de Abril. Um ano e meio de trabalho são traduzidos numa exposição-embaixada que pode ser vista a partir de 19 de Junho.

Primeiro dia de Junho, 18 dias antes da inauguração. O atelier parece subitamente desolador. De manhã havia ainda marcas de pó desenhadas no chão, resquícios da agitação dos últimos meses. A um canto estão os castiçais que são também porta-garrafas, “estruturas verticais gémeas, que resultam da acumulação de milhares de garrafas de champanhe iluminadas do interior”, lê-se na descrição feita pela artista. “Alguém sabe quantas garrafas são?”. À volta de cinco mil.

A obra, uma hommage-piscadela de olho ao célebre porte-bouteille de Duchamp, será instalada nos lagos rectangulares do Parterre d’Eau. As garrafas são de champanhe porque destinam-se a França. Seriam de sake no Japão. De cerveja na Alemanha. De vinho, em Portugal (a primeira declinação da obra, Néctar, feita em 2007, pertence à colecção Berardo).

Os castiçais são a última peça que resta no atelier, entre o Tejo e o Museu do Oriente. Um espaço onde há espaço para tudo. Deitados no chão, desmembrados, parecem um corpo que jaz. Ou então era a melancolia que se detectava no ar e que resultava do espaço deserto. O grosso da equipa estava fora. Trabalham ali em permanência 25 pessoas. “Vieram mais cinco dar uma forcinha” nos últimos tempos. Daí a dois dias partiriam para Versailles.

Joana está na secretária cor de laranja, posicionada no coração do atelier. Visível da porta de entrada. Graceja, diz que está a ver o expediente. Atrás de si, uma pega de cozinha, em tamanho gigante, tricotada – peça de 2002. Está a dar uma entrevista em modo relax. As interrupções são consentidas.

Um assistente mostrou uma imagem do garrafão e do bule, em ferro forjado, oxidado, “como se estivesse lá desde sempre”. As obras, à entrada do Parterre du Midi, “surgem como representações do homem e da mulher”. Madame de um lado, monsieur do outro. São as primeiras a ser montadas em Versailles e a imagem acabou de chegar. E por isso, ela tem de saber. A máquina está oleada, muito bem oleada. E por isso, ao mesmo tempo que desenha num caderno de capa dura, ao mesmo tempo que responde de modo articulado, pergunta a que horas o camião vem buscar os castiçais.

Joana Vasconcelos controla tudo. Faz, sabe fazer, manda fazer. Como quem respira. Ou seja, aparentemente sem esforço. Sem esbracejar e ameaçar que vai ter uma síncope. Como é que ela consegue? “É uma ginástica. É a chamada versatilidade”. 

A entrevista prossegue. Joana veste uma longa túnica de linho, uma flor tricotada, as unhas cor de tijolo. Ouvem-se desde a sala do lado Clarice e Ui, os pássaros, um amarelo, um azul. Não se ouvem as agulhas de crochet. Não se ouve o barulho da metalurgia. Quem está? Nuno Barão, “Baronette”. (No atelier ninguém é chamado pelo nome. Joana é facilmente “Juanita”. Ana Pedro, responsável pela engenharia financeira, é “a ministra” das finanças.)

Barão é o assistente pessoal que estende um rebuçado, um extraordinário rebuçado: “Quem é que tem duas malas Louis Vuitton à espera na loja da avenida [da Liberdade]?”. A artista é patrocinada pela marca. Nos dias de Versailles, entre uma visita guiada e uma entrevista, andará com elas. O sucesso de Joana Vasconcelos confirma que as portuguesas em França deixaram de ser a concièrge que usa uma valise en carton. Portanto, será uma valise Vuitton.

Os detractores olham-na como uma artista-empresa. Demasiado inclinada para o marketing. Ou uma pop star. E não, pop star não é um elogio. Estes atributos são usados em tom pejorativo. Apesar de Gilles Lipovetsky, o filósofo que disse que o trabalho dela materializava as análises dele. Apesar do sucesso repetido em Veneza – “onde nunca estive a convite do Governo português”, faz questão de sublinhar. Apesar de ser reconhecida na rua, o que não costuma acontecer com artistas plásticos. Apesar das exposições no mundo todo. Apesar de Versailles.

Porquê é que o meio artístico não gosta dela nem com molho de tomate? Porque a obra é demasiado imediata, pop, superficial? É da obra que se trata ou da persona Joana Vasconcelos?

A dissecação do fenómeno é complexa, e não vem ao caso. Entre as respostas possíveis, há quem aponte para o final d’Os Lusíadas – isto é, para a palavra inveja.

Joana Vasconcelos é uma one woman show que tem uma rigorosa noção de quem é, do que quer, do que é preciso para lá chegar. Se lhe deu o nervoso quando a convidaram para Versailles? “O nervoso é insegurança. E a insegurança não é bem vinda nestas coisas. Não posso gastar dois milhões e meio de euros com insegurança. Seria um atentado, não é?”. Demasiado dinheiro, demasiado prestígio. “Isto é once in a lifetime”.

Como é que adquiriu esta resistência psicológica, “por muito que gelem as mãos e que os nervos subam à cabeça”? Nos dois meses em que a equipa do Público acompanhou a artista, nunca foi visível um momento de pânico, o descontrolo. “Tive três experiências importantes. Uma família em que o culto da personalidade é forte. O karaté, que aprendi dos 8 aos 28 anos, e que me ensinou a ser resistente, a trabalhar em equipa, a liderar. E ter trabalhado no Lux durante dois anos. No Lux tive que lidar com pessoas nos estados mais improváveis. Convencê-las a descer aquelas escadas sem se matarem tornou-se um desafio [riso]. Era chefe de segurança. Tive de sair do pedestal intelectual e burguês a que estava habituada. Grande escola.”  

A caravana chegou a Versailles no dia 3 de Junho. Sete ou oito camiões, toneladas de material, dezenas de pessoas. Como é que tudo começou? “O convite vem da parte do Jean Jacques Aillagon, que contactou a minha galeria francesa, a Nathalie Obadia, e que chegou à conclusão de que o meu trabalho se integraria bem em Versailles.” O diálogo com artistas contemporâneos fez-se em anos anteriores com Jeff Koons ou Takashi Murakami. Aillagon era então o presidente do château. “Desde o princípio que estabeleci com as minhas galerias [a francesa e a inglesa Haunch of Venison London] que, ou me apoiavam na realização deste projecto, ou não tinha capacidade económica para o montar. A partir desse acordo, que se fez com as galerias e com Versailles, estabeleceu-se com o Jean-François [Chougnet] duas linhas: quais são as obras e quanto é que vão custar. Depois foram feitos contratos com as galerias, complicadíssimos. Há todo um jogo económico... Como é que se vai pagar. Quem é que fica a ganhar o quê, e como.”

A somar a isto, que representa a parte substancial do orçamento, há o patrocínio de instituições ou empresas: a Fundação Gulbenkian, a Fundação EDP, a Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, o Turismo de Portugal e a marca francesa de perfumaria Annick Goutal.

Chougnet é o comissário da exposição. Foi na qualidade de primeiro director do Museu Berardo que conheceu o trabalho de Vasconcelos. Um trabalho onde se inscreve uma “reapropriação de objectos do quotidiano” transformado com “técnicas inventivas e inesperadas”. No texto-porta de entrada para a exposição, o comissário fala de “uma reivindicação feminina, sem dogmatismos” que está presente na sua obra, “de um modo mais irónico que militante”.

Tradução: vamos lá pegar no coração de Viana e reproduzir a filigrana com talheres de plástico. Sim, talheres de plástico – por falar em quotidiano e em inesperado. Garfos e facas como os que se usam num piquenique. Ou nas festas das crianças. Em vermelho, em preto, em amarelo.

Para Versailles, vieram os corações vermelho e preto, símbolos de paixão e de morte. Um para o salon de la Paix, o outro para o salon de la Guerre. Suspensos do tecto abobadado. Imponentes, a despeito do material. Com Amália a cantar Coração Independente (título da peça) no áudio-guia do visitante.

E de permeio, entre a sala da paz e a sala da guerra, a sumptuosa Galerie des Glaces, a sala dos espelhos, com lustres que quase podemos tocar com as mãos, tão baixo estão.

Das janelas vê-se o infinito. A imensidão dos jardins de Versailles, de geometria invariável, os lagos que parecem chatos mas são profundos (Joana chegou a pensar em trazer uma caravela, mas a exorbitância do preço fê-la desistir do projecto), as árvores retocadas em forma de rectângulo, outras árvores, mais ao fundo, cujas copas parecem soltas, a perder de vista.   

É nessa galeria – outra tradução – que encontramos Marilyn. Vamos lá pegar em panelas Silampos, sobrepô-las e fazer com elas uns sapatos. Vamos pegar num objecto-símbolo atávico do papel das mulheres em casa/na sociedade, e vamos transformá-lo num objecto-símbolo de emancipação. É uma obra poderosa que promove uma oposição entre a cor do aço e o dourado de Versailles. “É uma ode às conquistas da mulher nos domínios público e privado”. Em 2010 foi vendida pela leiloeira  Christie’s por 573.964 euros.

O feminino é o músculo principal da exposição. “Interpretar a densa mitologia de Versailles e transportá-la para a contemporaneidade, evocar a presença de importantes figuras que habitaram o palácio, apoiando-me na minha identidade e na minha experiência como mulher, portuguesa, nascida em frança, será certamente o desafio mais fascinante da minha carreira”, escreve Vasconcelos no texto de apresentação da exposição.

A opção da artista foi ocupar a ala da rainha. “Ouço ainda o eco dos passos de Marie Antoinette, a música e o ambiente festivo dos salons”. As 17 obras que leva a Versailles podem ser lidas, sumariamente, como um elogio à presença da mulher no palácio. Perruque é a jóia da coroa.

Peça bizarra. É um ovo que é uma peruca que é um móvel que é uma obra de arte.

Quando o Público visitou a montagem da exposição, Perruque estava já instalada, mas coberta com uma caixa de tecido cru. Um biombo que a esconde até à inauguração. Ao contrário de Coração Independente, o bule e o garrafão de ferro forjado, os castiçais ou a valquíria Mary Poppins, que ficam visíveis para o público assim que são montadas, Perruque é resguardada (como se fosse um tesouro) até dia 19.

O quarto da rainha é o espaço mais fotografado de Versailles, a par da sala dos espelhos. É provável que as duas salas sejam o espaço museológico mais visitado do mundo à terça-feira. A explicação é simples: todos os museus parisienses fecham à terça e o tipo de público que corre ao Louvre para ver a Mona Lisa ou ao Museu d’Orsay para ver os Impressionistas, desloca-se para Versailles.

Enxames de pessoas. Milhares de orientais, milhares de brasileiros, milhares de americanos, milhares de crianças em visita escolar, milhares de famílias inteiras. Não raro, é difícil mover uma perna, um braço, chegar sequer à barreira de vidro que permite ver a dois metros a cama de Marie Antoinette.

É exactamente ao lado que fica Perruque.

A forma oval da escultura remete para os nascimentos que aconteceram naquele quarto. Dezanove crianças. Entre elas, Luís XV e Luís XVII. O ovo, feito em madeira vinhático vinda do Brasil, mais mole e fácil de trabalhar, tem incrustações e aplicações, em preto e metal dourado. Demorou meses a ser feita. A ideia da artista, desde o princípio, é que tivesse a escala do mobiliário do quarto. Para que harmoniosamente se integrasse nele. Como uma cómoda ou um toucador.

Perruque, como o nome indica, faz também alusão às perucas inventivas de Marie Antoinette. Uma espécie de colmeia onde todos os adornos são permitidos. É aí que entram as protuberâncias cónicas das quais saem mechas de cabelo. Um cabelo solto, indómito, de uma mulher que o afirma como uma conquista.

Recordar que foram comprados numa loja duvidosa da avenida Almirante Reis dá vontade de rir. Nessa tarde, como quem está subitamente no recreio, Joana cantava os hits dos anos 80 que passavam no canal de música VH1. Na televisão do canto sucediam-se Madonna, Kate Bush, Sade. E escolhia um cabelo, e outro. E experimentava perucas. “Olhem para mim loura!”.

Já agora: a cama parece um canteiro. A parede de fundo, a colcha, o dossel são de um tecido floral. Com um ar tão aprumado como se as flores tivessem sido regadas e estivessem viçosas.

Quando montaram Perruque, foi preciso mexer na franja do cortinado e quiseram chamar conservadores para o efeito. “Olham para aquilo como se a Marie Antoinette estivesse ali na cama!, pá!”, exaspera-se Joana. (Ela diz pá. E bué. E cena. Tem um modo particular de se exprimir.)

Talvez seja o momento de falar da relação da artista com Versailles. “Não fomos recebidos como normalmente somos. Nos museus e nas galerias, as pessoas querem-nos lá. Em Versailles, a equipa não nos quer lá. Versailles tem um simbolismo, como eles dizem, universal. Trabalham ali 1000 pessoas; e a sua opinião é que a arte contemporânea não pertence ali. Acham que o local não deve ser profanado.”

Não muito depois do convite a Joana Vasconcelos, Jean Jacques Aillagon foi substituído na presidência da instituição por Catherine Pégard. 

“Passei de uma pessoa de direita, mas liberal, para uma pessoa de direita, conservadora, que olhou para aquilo de outra maneira. Ela é amiga do Sarkozy, trabalhou no Eliseu. Tomou algumas decisões para se defender. Mas foram decisões que iam dando cabo da minha exposição.”

O primeiro embate aconteceu a peça mais famosa de Joana Vasconcelos, o lustre de tampões. “A Noiva foi censurada. Em termos conceptuais, não conseguem decidir onde estão. Não há regra nenhuma. [Decide-se em função de] um estado de espírito. Primeiro a peça foi aceite, depois não foi aceite. Quando ela [Pégard] me disse que não podia levar A Noiva estive dois dias de cama-psicológico. Foi uma morte. Até reconstruir a minha confiança, levou uma semana.

Depois mudou o helicóptero [Lilicoptère], que estava numa sala muito melhor do que aquela em que está – um cochicho. Mudou porque não conseguiu acordo com os sindicatos dos trabalhadores de Versailles. Depois foi a peça do quarto da Marie Antoinette... Pensei: acabou. Não faço.”

Foi para casa pensar no que perdia. “Perco a exposição, mas não perco as peças. Criei peças fantásticas, com ou sem Versailles fico sempre com a obra.”

Pégard cedeu, Perruque está no quarto da rainha. Se pesou no recuo de Pégard a vitória de Hollande nas eleições francesas? “Teve influência. Permitiu mais maleabilidade, mais tolerância. [Se Sarkozy tivesse ganho] ela teria endurecido o discurso e eu não teria feito a exposição.”

Catherine Pégard foi jornalista do Le Point. É muito fácil identificá-la, de sapato Ferragamo, saia rodada e coquette, casaco vermelho pela cintura. Estilo bem comportado. Segue-a uma corte de homens de fato e gravata, que caminham muito direitos, pasta debaixo do braço.

Ao longo do dia de montagem aparece no momento de içar Mary Poppins num cenário neoclássico ou para ver Lilicoptère, um helicóptero emplumado, todo cor de ouro e cristais Swarovski. Uma carrosse d’or para Marie Antoinette adaptada aos tempos modernos. Um coche que parece um pássaro, revestido a penas salmão e rosa. E um tapete no interior feito segundo uma técnica antiga de Arraiolos. “Ça est impressionnante!”. De facto. Mas é uma peça cujas imagens só podem ser divulgadas depois da inauguração.

Pégard não se cruzou com Alice.  

Entretanto chegou Alice.

Entretanto nasceu Alice.

Alice e Versailles aconteceram na mesma semana. “Soube no dia anterior à ida para a reunião em Paris que estava grávida.” Coisas do destino. Joana tem 40 anos. Como é que se tem um primeiro filho e se concebe e organiza uma exposição com a dimensão da de Versailles? “Tenho o apoio do meu marido. Sem ele, não tinha conseguido isto. Isto não é um emprego. É vida e obra, é tudo junto e a mesma coisa. Quando chegamos a casa, a coisa continua. Continuamos a falar.”

Mas não havia dúvidas quanto a prioridades. “Pensei: não há coisa mais importante do que ter esta criança. Trabalhei a gravidez inteira e fui fazendo a exposição ao longo da gravidez. Percebi que não podia continuar a trabalhar das oito às oito, e seja o que Deus quiser. Tive que controlar esse meu lado de fazer tudo e mais alguma coisa.

Tive montes de exposições no ano passado – no Mónaco, na Dinamarca, em Nova Iorque, em França, em Moscovo – a que não fui. Estou muito habituada a acompanhar a minha obra, e adoro. Países, culturas, pessoas. E de repente, tive que ficar quieta. Foi bom. A equipa tornou-se mais autónoma e mais forte. Estavam muito dependentes de eu estar sempre a decidir tudo.”

Alice nasceu em Setembro de 2011. E Joana é uma mãe apaixonada pela filha igual a todas as mães apaixonadas pelos filhos. No atelier, em Lisboa, junto à sua secretária está uma ovelhinha de balouço, no refeitório uma cadeirinha. No meio de uma viagem de carro pela cidade, interrompe a conversa para se perguntar, perguntando alto: “Será que este externato é bom?”.

Alice passa os dias com a avó materna. Instalaram-se em Versailles com toda a equipa. Chegaram pelo meio da tarde à Galerie des Batailles.

É um corredor imenso onde se percorre a glória de uma nação. As batalhas que definiram a história, os heróis que as travaram, o resfolegar os cavalos, os feridos tombados – tudo isso forra as paredes de um lado e de outro. Toda a história militar francesa está lá.

Delacroix foi um dos que pintaram este longo poema épico que vai ser acompanhado de três Valquírias. A Royal, a Dourada e a Valquíria Enxoval. São corpos exuberantes, volumosos, “indisciplinados de texturas, impondo no espaço o poder do hedonismo e da sensualidade”. Os tecidos podem ser uma chita barata, um brocado da melhor loja parisiense, os têxteis e o ponto tradicional de Nisa. Fitas, pendentes, franjas. Uma explosão de cor.

Estão por ora desmembrados, no chão, embrulhados em sacos vermelhos. Alguns homens trabalham no cimo de estruturas metálicas e preparam os cabos de aço que vão suster as peças. (“Estes espaços não-museológicos” – como Versailles, na sua essência, é, mesmo que exponha a obra de artistas contemporâneos desde 2008 – “levantam problemas técnicos. Será que o tecto aguenta? Será que a peça passa?”.) As mulheres retocam um tecido que esgarçou, um pedaço que descoseu. Por momentos, fazem uma transplantação do atelier para Versailles. Há recipientes com missangas, berloques, tecidos, linhas. Uma retrosaria em miniatura. A retrosaria gigante ficou em Lisboa, onde há uma caixa de plástico para cada coisa– até para “crochés sujos”!

Alto e pára tudo quando chega Alice.

Dá-se uma espécie de suspensão colectiva. Joana pega-a no colo. Alguém desempacota o andarilho. Duarte Ramirez, o pai, junta-se à mulher e à filha.

Não importa nada que Duarte seja arquitecto, que Joana seja artista plástica, que estejam em Versailles e que o mundo vá saber daquela exposição em breve. O que importa são os passos que Alice quer dar, pondo uma perna à frente da outra, a olhar muito atenta e curiosa para tudo à volta. Ficaria bem na história dizer que aprendeu a andar na Galerie des Batailles, mas não. Foram passos titubeantes, num andarilho cor de rosa. Peça anacrónica naquele mundo dourado e antigo.

O que ali se passa é aquilo a que os psicólogos chamam “quality time”. Dez minutos de quality time. Bem, talvez meia hora de quality time. Porque depois chegaram-se a um canto, banhados pela luz das quatro da tarde, e deram a papa a Alice. Joana, Duarte, a mãe e o pai de Joana. Esparramados no chão como quem está em casa. Casa pode ser onde uma pessoa quiser. Ou onde conseguir. Uma criança torna tudo mais imperioso e instantâneo.  

Teresa e Luís Vasconcelos exilaram-se em França em 1968 por razões políticas. “Havia a guerra colonial...”, refere o foto-jornalista que esteve na fundação do Público e que trabalha com outro fundador, o designer gráfico Henrique Cayatte, no catálogo da exposição, num ritmo de jornal diário. Fotogravam as peças depois das seis da tarde, quando saem os turistas, e fazem a paginação horas depois, num hotel em Versailles.

Joana nasceu em 1971 em Paris. Regressaram a Portugal logo depois da revolução, a 29 de Abril de 74. A primeira coisa que Luís Vasconcelos fotografou em Portugal foi a manifestação do 1º de Maio.

- “Se tivéssemos ficado, seria uma artista francesa em Versailles.”  

- “Se tivéssemos ficado, se calhar não estarias aqui, o curso da nossa vida teria sido diferente”.

- “Teria ido para uma école des beaux-arts e teria sido uma artista francesa. É muito mais giro ser uma artista portuguesa!”.

Ao contrário da mãe, Joana não põe sequer a hipótese de não ser artista, e de não estar ali. A confiança e a ambição são indisfarçáveis. Algum problema com isso? Foi esta confiança e esta ambição que a trouxeram a Versailles, um dos maiores palácios do mundo, mandado erigir pelo Rei Sol-Luís XIV, que recebe em média dez milhões de turistas por ano. (É quase Portugal inteiro). Multidões compactas vão estar de olhos postos nela até 30 de Setembro. Espera-se que a exposição receba mais de dois milhões e meio de visitantes, que acedem aos espaços interiores e exteriores; mas se a contabilidade integrar os que apenas acedem ao exterior, cujo acesso é gratuito, a estimativa é de quatro milhões.

Como é que tudo funciona? “Funciona como toda a criação: dentro de nós. Aprendi a pensar com o desenho. Na joalharia, que também estudei, aprendi o projecto. Decido tudo à partida, a peça quase não sofre alterações. As únicas mudanças a que sou aberta são as mudanças técnicas.”

Come uma bolacha de Alice. Ao almoço serviram carnes. A sala era bonita e havia peónias numa jarra. Foi em Versailles que Marie Antoinette disse para a posteridade: “Se não têm pão, dêem-lhes brioches”. Mas o tempo é de pastéis de nata. “Trataram dos vinhos? É preciso falar ao Comendador [Berardo]...”.

 

 

Publicado originalmente no Público em Junho de 2012

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Joaquim Pires de Lima

17.02.19

Joaquim Pires de Lima, advogado. O filho de um homem do Regime que virou à esquerda e tresmalhou. O estóico que venceu as limitações do físico e não limitou a vida a uma cadeira de rodas. A incrível história de um homem que viveu de perto a História portuguesa das últimas décadas.

A casa: um rés-do-chão em Cascais. O trinco abre-se e ele está à secretária. A sala está mergulhada numa quase penumbra. O seu piano preto está à esquerda, quem entra – fácil de alcançar. A secretária onde nos sentamos, como quem se senta num sofá, amontoa papéis, livros, remédios. Os comandos estão por perto. Tiger Woods na televisão.

Em volta. As paredes estão revestidas a quadros. Um desenho a lápis que o amigo Pomar fez de Quiqui – Joaquim sempre foi Quiqui. Um corpo de criança, uma cabeça de gente adulta. Os auto-retratos: bolachudo, como todos são na família. Igual à mãe, num quadro à esquerda, num desenho à direita. O cabelo em desalinho.

Passa o dia neste rectângulo, apesar da escada e do dispositivo para a cadeira de rodas.

E entre os livros há os seus álbuns. Onde estão condensados retratos que fez dos amigos: Vera Jardim, Manuel da Fonseca, João Lobo Antunes. Jorge Sampaio, Jorge Sampaio, o amigo e o presidente. Também há os não amigos, o Papa e a Madre Teresa, Arafat, Saddam, Santana Lopes com a cara verde.

Há nisto uma amostra de mundo. Arte, música, cultura. A família omnipresente. A política e o tempo em que esse foi um modo de vida. As memórias, os nomes, o conviver com este e com aquele, o tempo em que ele era ouvido. O tempo em que foi advogado de Luandino Vieira, em que o Crespo o chamava a Moçambique, em que acusava o Estado português de violar os direitos humanos em Estrasburgo.

É o segundo de oito irmãos. É uma figura iconoclasta. Não fica nada por dizer.

 

 

É um Pires de Lima diferente dos outros. Essa originalidade começa por ser uma afirmação em relação ao físico e às limitações que o físico lhe trouxe?

Queria deixar vincado que é espontâneo e fruto de uma visão do mundo que toda a família seja de direita e eu de esquerda. É uma família que tem imensos problemas entre os seus membros, havendo mesmo irmãos que não se falam. Sou talvez o tio mais estimado pelos meus 19 sobrinhos. Todos me confidenciam coisas inimagináveis. O que se verifica também com os três filhos da minha ex-mulher, que me falam como a um pai. Não sou de esquerda por alinhar com um partido político – nunca fui do PC. Politicamente sou pouco activo.

 

Agora.

Agora. Mas quando era, era fora dos carris. Sempre tive a ideia de não pertencer a nenhuma carneirada. Na minha família, os núcleos familiares são vistos como rebanhos. Há um pai e uma mãe, os filhos, que depois casam e têm mais filhos; Natal já se sabe com quem é que se passa, o Ano Novo também. E constituem grandes dramas viver um homem com uma mulher, casar fora da Igreja e coisas assim. Passei por tudo isso.  Foi contra isso que lutei.

 

Como compreender a originalidade com que, nesse meio, vê o mundo?

No fundo, é uma tentativa de recuperar uma liberdade que me foi amputada aos dois anos. A partir dos dois anos tive dificuldade em dizer “Não” a alguém que me compreendesse bem, a alguém que dissesse “sim”, que me desse uma ordem com amor, com compreensão. Durante os dois anos e meio em que estive internado no sanatório, se queria obedecer, tinha que obedecer às enfermeiras. A minha mãe e o meu pai estavam a 300 quilómetros de distância.

 

Como é que resumiria a sua história?

Durante dois anos e meio fui uma criança feliz. Sou o segundo filho.

 

Alguma recordação desse período?

Não me recordo. Mas há fotografias. Resulta das fotografias que eu era maior e mais forte do que o meu irmão mais velho. Aos dois anos e meio, de repente, comecei a andar de gatas. Doenças não faltavam, e não se sabia a origem. Tive uma tuberculose óssea, que me atingiu as vértebras. Se fossem as cervicais seria dramático: corresponderia a uma tetraplégia, e assim foi uma paraplégia. Fiquei imobilizado; era a única maneira que se conhecia de não ficar com uma malformação para toda a vida. A chamada corcunda. Fui internado.

 

Como reagiu a criança que foi?

Sei que reagia mal. Contaram-me episódios: como arrancar à dentada um dedo a uma enfermeira. Atirar um bloco de madeira a um outro doente na enfermaria. Dizer os piores palavrões de que me lembrava. Aos cinco levantei-me, meteram-me num colete de gesso até ao pescoço. Comecei a aprender a andar a pé. Os meus pais foram buscar-me a Francelos, Vila Nova de Gaia.

 

Os seus pais ainda viviam em Barcelos? A família é do norte.

Os meus pais tinham vivido em Barcelos. O meu pai tinha exercido funções na Câmara de Barcelos, depois Aveiro, depois Setúbal, depois Braga. Foi sempre autarca. Ser autarca era ser político. Hoje também é, mais era mais. Era um eleito, não direi da União Nacional, mas de Salazar e das relações de Salazar.

 

Sentia-se um eleito?

Sim, e eu testemunhei várias vezes que ele era. Quando já estava na Faculdade de Direito, ele mandava buscar-me às oito da noite e [a seguir] passávamos pela Estrela, pela casa de Salazar. Várias vezes vi o Presidente do Concelho, com a sua manta aos pés, que se levantava para me falar; e o meu pai levantava-se para sair, para irmos para a Parede, onde vivíamos. Quando o meu pai saiu de Setúbal foi para Director Geral do Ministério do Interior; era uma espécie de sub-Ministro do Interior. O que dava para controlar toda a administração pública. Tinha uma relação particular com o Prof. Marcelo Caetano.

 

E o senhor, que relação tinha com Marcelo, com esse mundo?

Tinha com Marcelo uma relação íntima. Por simpatia. Ele vivia em Carcavelos. Sofria muito porque a mulher era deficiente. Humanamente era uma pessoa sensível. Preocupava-se com a minha tendência para alinhar com a esquerda política, dando a mão a pessoas revolucionárias. Tenho várias cartas dele, de fim de vida, dizendo que gostaria que eu não pisasse…, que eu não tomasse actividades de natureza política perigosa. O que ele menos desejaria era que me acontecesse alguma coisa, pela amizade para com o meu pai e para comigo.

 

Fale-me da relação directa com ele.

Depois de ser advogado trabalhei com ele num processo. Nunca fui aluno dele, fui aluno do Marques Guedes. Marcelo estava no Governo quando fui aluno de Direito. Fui dirigente académico. Foi uma fase em que o movimento académico foi notável. Os nomes dos senhores que hoje estão na política, no PS, são os dos líderes do movimento estudantil dessa época. E outros, como Jaime Gama e Medeiros Ferreira, também estavam nesse movimento. Sofreram a prisão e a perseguição da PIDE. Eu, nem tanto.

 

Porquê?

Por causa da posição do meu pai.

 

Não era vexatório, para si?

Não. Evitava expor-me demasiadamente. E tinha acesso, para efeitos de diálogo e para evitar a repressão, a pessoas que estavam acima do meu pai. Por exemplo, ao Ministro do Interior, o Arnaldo Schultz. Eu pegava no telefone e ligava ao Schultz quando havia bronca. Pedia-lhe para não fazer isto, para fazer aquilo. Na grande revolta académica que houve no Campo Grande, fui metido numa cabine telefónica pelos estudantes a falar com o Schultz, e evitei grandes sarilhos. A PIDE ainda não estava totalmente autónoma do Ministro do Interior. O meu pai é que já não tinha mão em nada. Se eles me quisessem prender, prendiam. E prenderam, por duas vezes.

 

Pergunto se era vexatório porque parecia fazer um certo jogo duplo. Por um lado era de esquerda e militava com os outros. Por outro, tinha as costas quentes.

Tinha favor. Mas isso nunca se traduziu para mim numa diminuição. Comportava-me com isenção. Nunca aproveitei o facto de ter o parentesco que tinha para me proteger. Pelo contrário. Quando o meu pai me foi buscar a Caxias, no dia seguinte, todos os que estavam presos comigo estavam cá fora. Quando fomos presos no Forte de Elvas, cinco ou seis, na tentativa de assistir à autópsia do General Humberto Delgado, viemos numa carrinha para Caxias, onde passei a noite. No dia seguinte estavam todos cá fora, oito dias depois estava o Mário Soares.

 

Como foi a sua estada prisão?

Estive dois dias preso. Quando saí a primeira coisa que fiz foi dirigir-se ao presidente da Ordem dos Advogados, procurei gente ligada ao Governo que me parecia que podia influenciar. Gente como o Antunes Varela, o Ministro da Justiça.

 

Aí, interveio o filho do seu pai, e não o esquerdista Pires de Lima. Falava a pessoas que tinham relações de amizade com a sua família.

Havia uma cisão na família, entre o meu primo Fernando, que tinha sido Ministro e era professor em Coimbra, e o resto da família. Eu era amigo do Fernando. (E o Varela dependia muito do Fernando. Foi o Fernando que deu a mão ao Varela. O Varela era filho de um sapateiro). No período em que tive o primeiro balanço político e os problemas com a PIDE, recorri a pessoas do Governo. Fi-lo com o conhecimento dos mais directos amigos, que eram de esquerda. Essa esquerda a que estava mais ligado era católica, progressista, como o João Bénard e o Alçada [Baptista]. Convivíamos muito. O meu escritório era perto da Livraria Morais, onde levava a vida.

 

Como era quando o seu pai o ia buscar à prisão?

Da primeira vez que estive preso foi buscar-me à António Maria Cardoso. Para me torturarem, bastava que não me pusessem uma cadeira…, não me aguentava nas pernas.

 

Nessa altura andava.

Com muletas. Recordo-me da viagem que fiz de carro: eu vinha à frente e todos os outros vinham no chão, atrás. O [inspector] Sachetti veio à sala buscar-me, invocando a sua amizade pela família, o ter andado comigo ao colo, e o desgosto que eu tinha dado ao meu pai por ter-me metido em política. O ser advogado no caso [Humberto] Delgado, para ele, era política. Vim então a uma sala onde estava o [director da PIDE] Silva Pais e o meu pai. Penso que não cumprimentei nem um nem outro.

 

Não falavam?

Conforme. Se estivesse sozinho com ele, falava. Se estivesse com gente daquela natureza, não o cumprimentava sequer. Ele não se aproximava e eu também não. Não era o filho que se aproximava do pai para dar um beijinho.

 

Quando é que a vossa relação começou a degenerar?

Oscilou muito, sempre. Estive muitos anos sem falar com o meu pai. Quando me casei sem ser pela igreja, em 1967. Depois divorciei-me e logo a seguir veio o 25 de Abril. Eu tinha tido duas participações terríveis em plenários – o caso da [Revolta de] Beja e o dos Estudantes, em 1965; nessa altura ainda estava em casa dos meus pais. Em 1967 saí, vim para esta mesma casa onde vivo hoje. Voltámos a falar em 78, 80. Por isso estive uns bons 10 anos sem falar com o meu pai. Também não falava com a minha mãe.

 

Temos à nossa volta desenhos que fez da sua mãe. São iguais. Sou levada e pensar que tinham uma relação especialmente forte, identificativa.

Eles eram totalmente diferentes um do outro. Tinha uma relação mais fácil com a minha mãe, mas a relação difícil que tinha com o meu pai era compreendida por mim – eu mantinha-a, apesar de tudo. O meu pai sofria com o meu problema e sacrificou-se muito para que nada me faltasse enquanto eu estava paralisado. Depois dos sete anos, estive mais sete ou oito anos na cama. E foi aí que estudei, com professores particulares. Caríssimos. Numa altura em que a economia familiar não era pêra doce. O meu pai subordinou a comodidade e as facilidades materiais à minha cultura. A primeira vez que fui ao estrangeiro foi com ele.

 

Que idade tinha?

Dezassete anos ou 18. Foi um Congresso de Ciências Administrativas, onde esteve o Marcelo, em Madrid. Enfrentava o meu pai. Os meus irmãos praticamente não se sentavam à mesa com ele. Eu esperava e sentava-me com ele à mesa.  

 

Nunca lhe teve medo?

Nunca. Nem pouco mais ou menos.

 

Ele tratou-o com especial deferência por causa da deficiência física?

Não.

 

O seu petit nom é Quiqui. Quiqui por ser um menino especial?

Fui tratado assim sempre, pelos meus irmãos e pelos meus pais. QuimQuim, Quiqui. O pai sempre me tratou assim. Nos últimos anos, já nos dávamos.

 

Mesmo que estivesse envolvido politicamente.

O meu pai sabia que eu estava metido em política. Veio no jornal a minha ida a Moçambique, [depois do 25 de Abril]; o [Victor] Crespo chamou-me lá, depois chamou o [Jorge] Sampaio. Quando havia boa disposição, o meu pai tinha a sua ironia. “Então, estás satisfeito? Isto agora está melhor!”. Quando estava mal. Eu não lhe respondia. Nem ele esperava que eu lhe respondesse.

 

Estavam sempre nessas ferroadas.

Frequentes vezes. As injustiças que se cometeram depois do 25 de Abril, mesmo em relação a pessoas que não tinham funções políticas, não as nego. Foi um mal desnecessário. O meu pai sofreu isso. Teve uma reforma muito baixa. Não posso dizer que me sentisse bem estando a ganhar três ou quatro vezes mais do que ele numa profissão liberal. Ofereci-lhes a primeira televisão a cores.

 

Explique melhor o ritmo da relação com o seu pai.

Durante a adolescência, o meu pai foi o meu companheiro de solidão. Para o mal e para o bem, era a pessoa que estava perto de mim. Quando chegava, mudava-se para o meu quarto, e era ali que trabalhava. Quando recebia amigos, eu tinha categoria para assistir às conversas. Tudo isto até aos 15, 16 anos, quando dei os primeiros passos.

 

O que motivou essa melhoria?

Uma reconstituição dos ossos e o aparecimento de antibióticos.

 

Como era a sua vida interior nos anos que passou na cama?

Tinha o maior interesse em estudar. Tinha à minha volta os meus irmãos, que me distraíam e irritavam sempre que podiam. Fora disso, não havia grandes alterações. Quando estava na cama, em tratamento, frequentava uma praia entre a Praia Grande e a zona de S. Pedro. Sujeitava-me ao solário, a horas certas de banhos de sol. Ali ficava, no tabuleiro.

 

Tabuleiro?

Umas macas, com rodas. Os meus irmãos andavam na areia, na praia. Recordo esse tempo como um tempo em que não sofri especialmente. Comia na cama, davam-me de comer. Tinha condições para viver bem, tinha apoio do pessoal. A minha mãe sempre teve empregadas domésticas em quantidade; vinham raparigas do Minho, que ganhavam mal e porcamente, e que a minha mãe conhecia de toda a vida. Educava-as, tratava-as como família.

 

Era falador?

Sempre fui muito falador, brincalhão, tocava gaita de beiços, acordeão. A minha mãe procurava que me distraísse o mais possível. Tive uma professora de violino que foi uma desgraça. Quando me levantei e pude optar comecei a ter aulas de piano. Somos todos bolachudos e parecidos com a minha mãe; o mais parecido com o meu pai é o meu irmão Zé; o mais parecido com a minha mãe é o meu irmão António. De feitio também.

 

Como era o feitio da sua mãe?

Muito bem disposta. Sempre a rir ou a chorar. Era uma pessoa melodramática. Preenchia o espaço. Era 50% espanhola. Era uma casa cheia, com a avó, as tias. Tinham uma quinta no centro de Barcelos.

 

É temperamental como a sua mãe?

Penso que não. Não sei se por pudor. As crises de gritos, de nervos são menos frequentes nos homens que nas mulheres. A minha mãe tinha crises muito grandes. Passavam por desmaios. O que a deixava neste estado? Um acumular de preocupações, problemas. Porventura o drama maior era eu estar imobilizado. Admito que tenha sido o problema mais grave que teve em toda a vida dela. Nunca deixei de dar esse desconto, ao meu pai e à minha mãe. O meu pai quando estava a morrer disse-me que compreendia então o que eu passei, o que eu tinha sofrido.

 

Mas já se tinham reconciliado, quando lhe disse isso.

Eu não era castigado. Não tinha razões para cortar com a família. Cortei porque o ambiente familiar não era propício à minha liberdade. O que eu queria fazer cá fora – tocar, conviver com raparigas, juntar-me – com os meus pais não se admitia. “Se tens respeito por essa senhora vais à igreja e casas-te com ela…”. Quer dizer, o respeito pela senhora equivalia a ter de lhe dar o tratamento de esposa, asseado, passando pelo padre. Outra coisa era ir à missa ou não ir à missa. Fui à igreja da Parede até ao dia em que pude deixar de ir. A partir dos 16 deixei de ir sem dar satisfações. Não ia, não me confessava, não comungava. Todos os meus irmãos e irmãs eram de comunhão semanal, pelo menos.

 

Disse que talvez fosse a grande preocupação da sua mãe. Isso constituiu um peso, que carregou a vida toda? E uma certa culpabilidade.

Sempre fiz, desde miúdo, e em graúdo também, as contas ao orçamento da casa dos meus pais colocando-me no meio. Procurando compreender a minha posição nesse orçamento. Aos 10, 12 anos tinha essas preocupações. “Quanto é que o pai ganha ali, quanto ganha acolá?”. Não era um sentimento de culpa. Mas sabia quanto é que os meus pais gastavam com o meu ensino. Gastavam o mesmo que gastavam com o ensino de quatro ou cinco irmãos.

 

Nos períodos de zanga teve vontade de ressarci-los disso?

Nunca chegámos a esse nível de zanga… Quando deixei de falar com o meu pai foi a propósito do casamento fora da igreja. Não vinha muito a propósito invocar os encargos que tinha tido comigo. Não podia insultá-los dessa maneira. Há limites para tudo.

 

Ter-se envolvido com a política, num lado oposto ao do seu pai, era para ele sentido como uma forma de insulto?

Não creio. No último momento de vida, em que me disse: “Agora é que te compreendo”, deu-me a impressão que percebia o meu grito de liberdade mesmo no meio da opressão política. O meu pai nunca considerou um insulto ter-me dedicado a certos processos políticos. Eu estava no julgamento do Assalto ao Quartel de Beja, no julgamento dos Estudantes, no princípio dos anos 60, e ia a casa. Era advogado de um jovem conhecido, o Salgado de Matos. [Outros jovens desse processo]: o Fernando Rosas, a Antonieta Alves, o filho do Mário Neves, o Alfredo Caldeira. Teriam menos seis, sete anos do que eu. O Salgado de Matos era aquele de quem tinha preocupação.

 

Salgado de Matos era um católico progressista.

Foi ele que arrastou aquele bloco de testemunhas, que serviram para outros. Como dirigente da JUC, teve o privilégio de lançar no seu rol de testemunhas membros do clero, Bénard da Costa, Alçada Baptista, Sophia de Mello Breyner. 

 

Nessa altura andava com muletas. Como era em julgamento?

Sempre falei sentado. Ter cadeira de rodas ou não, era indiferente. Ia até ao lugar, acompanhado ou não, com quem me levasse a toga e os livros.

 

A sua atitude era provocadora. Olhavam para si como “o maluco”?

Estou convencido de que sim. Os juízes quando falavam comigo não me davam desconto porque me consideravam privilegiado intelectualmente. Não sei se era um elogio para me compensar, se era para preparar a conversa. Eu comportava-me bem, de uma maneira geral, nos tribunais. E justificava a razão por que estava a falar sentado. Eles sabiam. Conheciam mais de mim do que eu. Tive alguns episódios humorísticos… Em Beja, um magistrado perguntou-me o que é que eu preferia: pedir ao notário que dispusesse de uma sala cá em baixo ou chamar os bombeiros para subir de maca ao terceiro andar, onde funcionava o tribunal. Respondi-lhe que me era indiferente; se o juiz fosse também de maca ao meu lado, que podia ser lá em cima!

 

Nunca quis que olhassem para si como um coitadinho.

O que quis dizer ao juiz foi que tivesse juízo. Ele riu-se, levou aquilo para a brincadeira. Não eram pessoas destituídas de senso.

 

Investiu na componente intelectual, numa afirmação a esse nível. Como se essa fosse a coluna principal da sua vida e desviasse, ou apagasse, o peso da diminuição física.

É legítimo que me acusem de fazer show off com as minhas qualidades intelectuais ou artísticas (estas não são tão notáveis assim, embora para mim sejam mais notáveis que as intelectuais). Se quis desviar a atenção das deficiências físicas e colocar-me em pé de igualdade, ou mesmo acima, das pessoas com quem me estava a relacionar? Não penso. Tirando o caso do ceguinho que toca bem violino, o que sei de música não tem que ver com estar numa cadeira de rodas. É certo que quando estava amarrado a uma cama e obrigado a tratamentos – e ainda hoje assim é, acabei por cair no mesmo buraco – procuro ultrapassar esses limites com a arte, com a cultura. O que sei da música, verdadeiramente, foi sozinho que aprendi. O que aprendi com o professor foi a sentar-me no piano e a não pôr os dedos uns em cima dos outros.     

 

Foi um aluno de excepção?

Na faculdade, não. Era aluno voluntário, não ia às aulas. No primeiro ano tive 14, no segundo 16, no terceiro tive dificuldade porque começava a meter-me na política. Acabei com média de 15 ou 16. O meu curso foi o melhor daqueles anos. Era o Miguel Galvão Teles, o Vera Jardim, o Brás Teixeira (que, coitadinho, já foi…); o Sampaio era mais fraco, tinha média de 12, 13.

 

Desse grupo, Jorge Sampaio é o seu amigo mais próximo? Tem expostas fotografias e pintou retratos dele.

Agora, talvez seja. O meu amigo mais próximo é o Vera Jardim. A última vez que o Vera Jardim esteve aqui em casa fui para o piano tocar Haydn. Ele comoveu-se. Eu estava comovido de ele estar comovido.

 

Teve uma educação religiosa. Quando é que descreu?

Não deixei de acreditar quando deixei de praticar. Achei que a prática não era necessária para cumprir com a minha parte e ter um lugar no Céu. Com o tempo, comecei a descrer. Embora reconheça a necessidade de acreditar numa coisa qualquer que preencha esse espaço. Ainda não consegui encontrar nada. Continuo a não achar lógico que tudo isto não tenha uma ordem, uma regra, não tenha ninguém a comandar. Mas não sei qual.

 

Recentemente pintou uma Última Ceia. Algo debochada.

Já é a gozação… Neste momento sou um ateu puro. O medo da morte é relativo. Isso alterou muito a minha vida.

 

Essa amarra, quando foi cortada, deixou-o ainda mais livre.

Sim, mas é um problema. A liberdade total não é um bem em si. Temos que ter um caminho que nos leve a algum lado. Temos de ter uma motivação para estar neste mundo. Os sacrifícios, as chatices são de tal ordem que a gente sente-se no direito de pôr termo a isto. Suicidando-se.

 

Quando é que pensou suicidar-se?

Várias vezes, em momentos diferentes, e por razões diferentes. Desde os 15, 16 anos. Todas as limitações me apontavam isso. A prática de deporto, viajar sozinho, auto-determinar-me. Consegui ultrapassar algumas barreiras e com isso adiei o problema. As pessoas à minha volta conseguiram convencer-me de que não estou tão longe da liberdade de escolha. Não estamos tão longe uns dos outros quanto eu possa pensar.

 

A cada um a sua cruz, os seus constrangimentos?

Sim, sim. Isso ajudou-me a viver. “Onde é que tu vais, com essa falta de Fé?”. Não foram os meus pais que me interrogaram assim; a religiosidade deles era relativamente fácil de responder. Nem nunca acreditaram que a minha falta de Fé fosse tão profunda.

 

Era também a pergunta que se fazia – para onde vou?, o que é que justifica isto?” –, com ou sem Fé.

Pois. Para todas estas coisas era suposto haver uma compensação. Mas vivo com gosto e de momento não se me põe a necessidade de pôr termo à vida. O que é que queria da minha vida? Foi uma pergunta que fiz cedo. Quis deixar de ser um peso para a família. Quando fui para a faculdade, e com o sucesso que tive, pensei: isto serve. Tinha necessidade de me afirmar como jurista. Na família havia um grande número de juristas.

 

Começou a trabalhar, a ganhar dinheiro, a gozar a vida. Uma compensação?

Eu tinha uma grande atracção pelo que a vida me pudesse trazer. Era uma compensação para aquilo que não tinha vivido. Conhecia pessoas que tinham uma raiz em Paris, por razões políticas, como o Júlio Pomar, o Fernando Echevarría, o José Augusto Seabra. Mal acabei o curso comecei a viajar, a ir a Paris duas e três vezes por ano. Não para estar três ou quatro dias e gastar as reservas, mas para fazer um esbanjamento de dinheiro escandaloso. Ganhava bem cá e gastava melhor lá fora.

 

Gosta de carros e de velocidade. É uma urgência em viver? A excitação do risco?

Não era bem isso. No fim, era a liberdade, o despenteado, o cabelo comprido. Uso cabelo comprido desde cedo. Descurei o cortar o cabelo. E no tribunal juízes amigos faziam-me assim [gesto de cortar]… Para ver a que ponto vai a amizade e a compreensão. Havia uma certa ternura na nossa relação. Nos julgamentos políticos, às vezes, extremavam-se posições, mas havia por detrás uma relação de respeito. Senão, não me tinha aguentado. A maior parte da velhada do plenário era gente de sensibilidade.

 

Foi com esses que teve de lidar quando defendeu as vítimas do caso Ballet Rose?

Não. As vítimas do Ballet Rose não foram defendidas, nem os arguidos acusados, numa audiência pública. Tudo se manteve numa base secreta. Não foi feita prova de que, algum deles, alguma vez, tivesse violado uma rapariga. Todo o processo dos Ballet Rose é um contra-censo.

 

Porquê?

Tudo começou quando uma moça dos seus 16 anos me procurou, com a mãe e o namorado, porque estava a ser apertada na Polícia Judiciária para prestar declarações. Acerca das razões que a levavam a casa de uma senhora modista, que era tida como uma desencaminhadora de menores. E para identificar os indivíduos que estavam relacionados com essa senhora. Tinha receio que a levassem presa. Isso levou-me a telefonar ao director da Polícia Judiciária, com quem tinha boa relação, bem com ao Antunes Varela. Provoquei um grande escândalo dizendo que com a minha cliente, à PJ, ia eu! Não conhecia o instrutor do processo. Mais tarde detectei quem ele era; era um que estava ligado ao assassinato do [Humberto] Delgado, o agente Parente. Quando soube, denunciei-o. Obriguei a miúda a dizer os nomes de toda a gente. Ficou a saber-se que desde os nove anos andava a ser aproveitada por indivíduos como o Conde Monte Real, o Conde Caria, o Conde da Covilhã, uma data de gente da alta sociedade.

 

Com aproveitada quer dizer abusada sexualmente?

Sim. Se tinham relações completas, isso não averiguei. A PJ, o que queria, era que ela não dissesse os nomes. “Quero que ela dite para os autos o que ela me disse a mim”. Quando se soube a idade das meninas envolvidas, percebeu-se que isto não era um processo de Ballet Rose à maneira do caso Profumo [Inglaterra], cuja mais nova tinha 17 anos, mas um processo de corrupção de menores, com impúberes de nove anos. E miseráveis. Filhas de mulheres-a-dias. Eu queria que a PJ instaurasse um processo-crime contra os corruptores de menores e retirasse o nome Ballet Rose da história. Foi isso que o Mário Soares e o [Francisco] Sousa Tavares não perceberam. O caso veio em jornais estrangeiros.

 

Como é que acabou?

Para abafar o caso, uma vez que estavam metidos no assunto indivíduos como Correia de Oliveira, o Quintanilha Mendonça Dias (que era Ministro da Marinha), acharam que, se não era Ballet Rose, também não era nada de grave. Todos tentaram aliciar as meninas, mas não consumaram. Elas não eram susceptíveis de serem ofendidas. Não passou de uma tentativa de estupro e todos prestaram caução de boa conduta. Para que não houvesse punição dos arguidos. A rapariga [que desencadeou o processo], continuou por aí. Já depois do 25 de Abril perguntou-me se tinha direito a uma indemnização. Uma oportunista.

 

É como se o sistema ao qual o seu pai pertencia fosse posto em causa, de modo chocante?

Não estava preocupado. O meu pai era alérgico a tudo o que dissesse respeito a ofensas à honra de mulheres, de crianças. Não temi que houvesse uma dúvida. Mesmo à esquerda, era impossível que nos acusassem de colaborar numa corrupção de menores.

 

Porque é que a determinada altura se retirou e, para usar uma expressão sua, preferiu “sopas e descanso”? Concentrou-se na música e na pintura.

Corresponde a uma altura em que me desiludi com a política. Direi que foi quando o [Salgado] Zenha morreu. Foi o último membro da oposição que eu tinha como líder válido. Comecei a achar que a política não tinha mais nada para me dar, que a minha actividade na política não iria enriquecer o país. Devo dizer que isso coincidiu com a morte dos meus pais, sobretudo da minha mãe; e com dois grandes sustos que apanhei, principalmente o primeiro, um cancro na próstata em 2002. Vi entrar para o Parlamento e para o Conselho do Estado indivíduos que não me davam garantias nenhumas.

 

O mundo passou a ser outro e deixou de se entender com ele?

Sim. Fui chamado pelo [Victor] Crespo, pelo Conselho da Revolução. Era ouvido. No tempo do Vasco Gonçalves era ouvido frequentes vezes. Depois, nunca mais ninguém se lembrou de mim. Conforme fui chamado, fui dispensado. Portanto, não tenho mais a fazer politicamente. Entretanto estou velho e cansado. 

 

  

 

Publicado originalmente no Público em 2009 

 

  

João César Monteiro

06.02.19

João César Monteiro é o maior cineasta português da sua geração. Nasceu na Figueira da Foz há cinquenta e oito anos, o que não conta muito para o caso. Tem um filho rapaz com treze anos. Criou alguns  dos mais belos filmes do nosso cinema e neles apresentou-nos o senhor João de Deus, personagem criado por si que muitos consideram ser um prolongamento manifesto da sua loucura. Se me permitem, prefiro chamar-lhe extravagância. O João César não se importa nem um bocadinho com o que lhe possam chamar. Filhos da Puta é uma expressão que lhe é particularmente cara.

O encontro no Príncipe Real, numa Lisboa cálida e luminosa, perto da casa que comprou com o dinheiro do novo filme, era, justamente, para começar por falar do que acabou de rodar e que está agora a ser montado. Le bassin de John Wayne é um título ainda provisório e aparentemente pouco revelador. John Wayne é, curiosamente, um dos preferidos de João César. Conta o realizador, horas mais tarde e já levemente toldado pelo whisky, que um dia o cowboy se envolveu numa luta com um outro actor, de porte consideravelmente inferior. Achou este que tinha conseguido bater aquele. Puro engano, na perspectiva de João César. John Wayne é que deixou ser agredido pelo outro. Teve a  delicadeza de perceber que não seria justo envolver-se com quem não era da sua igualha.

Lamento que não possam ouvi-lo dizer o que vão ler a seguir.         

 

Quer começar por apresentar o filme?

O filme apresenta-se a ele próprio. A minha cabeça esvaziou-se. O filme saiu-me da cabeça e está registado. Não tenho a noção de conjunto, do que está feito. Se calhar daqui a uma semana já tenho; é que ainda não o vi.

 

Nesta fase de montagem não tem, paradoxalmente, uma ideia muito mais precisa? Há um visionamento do que foi feito.

Mas é parcelar e descontínuo. Trabalha-lhe sobre parcelas e não sobre a totalidade.

 

Também se filma em parcelas. O filme corresponde ao que idealizou, ao que começou por existir na sua cabeça?

Sim. É um filme cheio de peripécias que deveria ter sido feito em 92. Foi inicialmente pensado para ser rodado em Paris e depois andou em bolandas. Por razões que têm a ver com produção, orçamentos, etc, foi-me proposto que fosse feito em Évora. Mas achei que não dava, a minha relação com a cidade... Depois pensei no Porto; andei a ver lugares e chegou a ser escrita uma versão portuense. Mas faltaram-me alguns apoios locais, nomeadamente da parte de cenografia, e optei por Lisboa.

 

Não deixa de ser interessante que, apesar de todas as peripécias, Lisboa continue a ser a sua cidade; mesmo sendo uma cidade diferente da que filmou nas «Recordações da Casa Amarela».

Sim, mas o filme tem muito pouco de Lisboa porque ao fim da primeira semana de rodagem levou uma grande volta. Apareceu-me um actor, muito bom actor, que vinha para fazer um papel pequenino; achei que seria uma pena desperdiçá-lo e resolvi confiar-lhe a parte que me estava destinada. Era para ser uma viagem numa carroça puxada por um burro, uma espécie de périplo joyciano com visita a vários lugares. Resolvi mandar tudo às urtigas e o périplo ser confortavelmente narrado.

 

Mas continua a ser um périplo joyciano, no sentido de falar da condição humana?

Sim, sim. O filme é maioritariamente falado em francês. Ainda pensei em fazer uma versão portuguesa mas não pude contar com os actores com quem me apetecia trabalhar, não estavam disponíveis.

 

Voltando à essência do filme e ao périplo joyciano. Quais são, no filme e para si, os pontos chave do percurso?

É preciso que eu faça um pequeno preâmbulo. O objectivo era fazer o filme para comprar uma casa, não sei se me faço entender, ganhar massaroca. A fórmula que me deu dinheiro foi um contrato, vantajoso financeiramente, que eu assinei com o meu produtor para fazer este filme.

 

Filma, então, para comprar casas?Fiz este filme para comprar uma casa. Pode ser que faça outro para comprar uma segunda residência. Portanto, parece haver da minha parte um certo interesse no chamado investimento imobiliário. Isto é uma coisa muito segura; o filme é mais duvidoso. Para já há um pequeno paradoxo: não faço a mais pequena concessão ao comércio, ao público, embora um filme seja um objecto comerciável, com um determinado valor enquanto mercadoria. Mas eu aí já ganho muito pouco.

 

Como assim?

Poderia ganhar se me fossem pagos os direito de autor, se houvesse uma sociedade que se ocupasse disso e não há. Posso dizer-lhe que até hoje, em direitos de autor, ganhei trezentos e quarenta escudos e tenho mesmo o recibozinho que vou emoldurar.

 

Mas vive-se hoje uma fase diferente no cinema português. Com este filme ganhou dinheiro para comprar uma casa.

Ouça, se me pagam para poder comprar uma casa suponho que não é pelos meus lindos olhos. Suponho eu.

 

Nunca questiona o seu talento?

Eu não sei se tenho talento, começo por aí. Não me ponho essa questão, nunca na vida, quero lá saber. A única coisa que faço questão... Como eu costumo dizer, é merda mas é a minha. Deixar as minhas marcas. Num filme, no mundo.

 

Mas esse é um processo que envolve prazer? Os filmes dão-lhe prazer?

Não me dão nenhum particular prazer. A não ser episodicamente. Posso entusiasmar-me com determinados planos, porque sinto que há uma conjunção de factores múltiplos favoráveis a um bom resultado. Dá-me imenso prazer ver o jogo de actores e a relação que estabelecem com a luz e com o resto.

 

Faz filmes exclusivamente porque precisa de ganhar dinheiro, não os faria de outra forma?

Não.

 

O que é que gosta de fazer?

Nada. A sério.

 

O que é o seu ideal de um dia perfeito?

[Hesita] Não sei se há dias perfeitos. Sou sensível aos ruídos, à luz, às pessoas, mas não sou antropocêntrico. Estou cada vez mais céptico em relação aos seres humanos.

 

Está desencantado?

Eu nunca gosto de ser muito afirmativo. Digamos que estou pouco encantado. Desgosta-me a sociedade da qual me tento excluir na medida do possível. Mas isso tem um preço, não é muito agradável. Não tenho à minha volta as pessoas que eu queria.

 

Essa margem de desencanto foi-se agudizando com a idade? Deixou de ser ingénuo?

Não sei se perdi inteiramente a inocência. Se não perdi inteiramente estou em vias de. Mas tento preservar o meu lado infantil. O mundo é das crianças.

 

O princípio das crianças é o princípio do prazer.

Não tenho tido muita convivência com crianças. Sinto-lhes a falta. Acho que é o meu mundo. A sua espantosa capacidade de curiosidade e sua espantosa incapacidade de verbalizarem o que vêem, o que ouvem e o que sentem.

 

Olhando para si não se consegue imaginar como foi o João César Monteiro Criança.

Eu venho de uma pequena cidade de província, uma pequena cidade chamada Figueira da Foz, e estabeleci logo uma reputação que não era boa, devo confessar. Diziam que eu tinha comprimidos atómicos dentro do corpo, que era muito endiabrado. E dizia-se pior ainda: que eu era o terror da cidade. Fazia, em suma as piores patifarias, coisas mesmo atrozes. Uma vez pus uma cana na porta de saída do autocarro para as peixeiras caírem. Outra coisa que também me agradava muito era apalpar mamas, sobretudo a criadas. E por isso fui punido com um bofetão. Tinha sete, oito, nove anos.

 

Uma hiper-sexualidade?

Não diria tanto. Seguramente era a sexualidade difusa da idade. Outra coisa que eu gostava muito de fazer era levantar saias às meninas. Fui suspenso do liceu quinze dias.

 

Dava-se com rapazes ou com raparigas?

Com rapazes. As meninas era só para espreitar debaixo das saias.

 

Qual é para si a grande diferença entre ter uma amiga mulher e um amigo homem?

Bom, eu não tenho... A pergunta é embaraçosa. Como não tenho amigos, nem amigos homens nem amigas mulheres, isso coloca-me alguns embaraços. Eu aceito mal algumas expressões, como “gosta de mulheres, gosta de homens”. Não é verdade que eu goste de mulheres. É rigorosamente verdade que posso gostar de algumas mulheres. Poucas. E homens a mesma coisa. Mas isto não responde à questão da amizade. Tratando-se de amizade não há diferença nenhuma. Só que, às vezes, com as mulheres acontecem outras coisas que já não têm a ver com amizade. Têm a ver com desejo ou com paixão. Evito falar na palavra amor. A diferença entre amizade e amor é que o amor é sempre, sempre exclusivo.

 

É um homem de muitas paixões? O cepticismo de que falou também se estende ao campo amoroso?

Sou sensível às fraquezas da carne e normalmente fico-me por aí. A minha rota é uma rota de gratidão, Obrigadinho por este bocadinho. Vai-se além disso uma, duas vezes na vida. Sei do que estou a falar porque já tenho cinquenta e oito anos - embora não pareça... Homens, nada!

 

Transporta sempre essa sexualidade à flor da pele para os seus filmes?

Ah! Pois com certeza.

 

Neste filme como se inscreve o desejo?

O desejo está inscrito no corpo do filme e na cabeça das personagens masculinas.

 

Parece que na sua cabeça as mulheres não têm desejo, são só objectos de desejo.

Trouxeram-me uma vaca francesa para este filme, o que é que poderia fazer? Não tenho culpa nenhuma. Os actores eram muito mais interessantes que as actrizes e isso conta. Digamos que este é o meu primeiro filme misógino. O que não quer dizer que suceda no próximo.

 

Na sua cabeça está sempre tudo a mudar.

Ai isso está.

 

Ao cabo de uma semana de rodagem decidiu alterar tudo com a chegada de um actor francês.

Repare que foi ele que decidiu. Se não fosse aquele actor...Foi ele que fez mudar o curso das coisas.

 

Mas foi você que orientou a mudança das coisas.

Mas esse é o papel de um cineasta.

 

Qual é a sua atitude? Mudar diariamente, adaptando-se às circunstâncias?

Exactamente. É um processo muito pouco egocêntrico, isto é, há um ego que não impõe nada, que se deixa visitar como uma fêmea e que recebe as coisas.

 

Eu diria que é terrivelmente egocêntrico, está nos seus filmes de todas as formas. Mas enquanto cineasta há aqui uma pequena incoerência. No começo da nossa conversa falámos de si enquanto general e da equipa que existe para executar as suas ordens; agora estamos a falar das sugestões da equipa e da sua relação com o general.

Eu faço uma distinção entre equipa e actores. A um fotógrafo eu peço que seja feita uma fotografia assim e não assado; isto é acordado e não tem discussão. Este é um filme feito com um projector e o resto com luz natural. O som acordou-se que era directo. Isto são coisas traçadas desde o início do filme. O relacionamento com actores é de outra ordem. No meu caso recuso a palavra director de actores, não sei dirigir actores, não quero dirigir actores, é uma relação de cumplicidade e empatia para que as coisas funcionem. Ou não. Se não se estabelece uma troca não há funcionamento possível. Foi o que aconteceu com a vaca francesa que me foi impingida pelos produtores. Neste filme, por circunstâncias várias, houve um óptimo relacionamento.

 

É mais sensível ao talento ou à componente humana?

Sou sensível às duas coisas, tenho preferência por uma humanidade talentosa. Ainda agora tive um susto com um actor. Sabia que era talentoso, simplesmente apareceu-me num estado inconcebível, a cair de bêbedo e sujo. A minha primeira reacção foi Este tipo vai para Paris, já, e cheguei a falar-lhe nisso. Depois dormi sobre o assunto e preparei-me para o aguentar três ou quatro dias, era um papel pequenino, podia transformar a personagem dele num bêbedo insuportável. No dia seguinte ele apareceu-me lavadinho, vi-o num primeiro plano, fulgurante, pensei que ia bem com o outro e poupava-me trabalho a mim - porque era eu que ia fazer o papel...

 

Você não gosta mesmo de trabalhar, pois não?

Não tenho o direito de dizer que não gosto de trabalhar porque o meu trabalho num filme é privilegiado, sou omni-senhor. Nesse sentido gosto. O que acontece é que eu não estava em condições físicas de suportar a dureza de um filme. Adaptei-o à minha debilidade física e até, de certa maneira, psíquica. Fiz um filme em cinco semanas trabalhando quatro horas diariamente.

 

Qual é o seu esquema, ensaia as coisas, prepara-as minuciosamente?

Nem sempre sai, mas tento filmar à primeira. As coisas estão devidamente preparadas, sobretudo neste filme com sequências bastante longas – alguns planos têm dez minutos. Para os actores é formidável, nem sequer têm aquele aparato da luz...

 

A luz e a música são elementos fundamentais nos seus filmes.

Sob esse ponto de visto este tem coisas fabulosas. Tive sorte, apanhei dias de nuvens com vento e, como os planos são longos, as variações luminosas são muito grandes.

 

Filmar com a luz natural...

É o grande iluminador, o Nosso Senhor...

 

Isso prende-se com uma ligação maior à vida e às pessoas de todos os dias?

Sobretudo permite rodar com uma grande rapidez. Chegámos a filmar vinte, vinte e cinco minutos por dia. É mais que nas telenovelas sem ter o ritmo das telenovelas. Há só um ângulo, que foi aquele que eu escolhi, e não há mais nada, não há rede.

 

As coisas já estão grandemente definidas quando chegam à montagem?

A montagem de imagem fez-se numa semana. O som dá mais trabalho.

 

Mas voltando à luz e às pessoas. De que estímulos é que se alimenta para a sua construção, enquanto cineasta e enquanto pessoa?

Onde vou beber? Tirando a parte alcoólica da questão alimento-me do que fui sedimentando ao longo dos anos, das minhas memórias, das coisas com que me fui cultivando. Livros, músicas, filmes, bacalhau com batatas...

 

E observa muito as pessoas?

Agora menos.

 

Não me diga que as personagens da Comédia de Deus ou da Casa Amarela saem todas desses livros, dessas músicas e desses filmes. Você está com essas pessoas?

Um bocadinho. Quer dizer, há umas camadas sociais que eu não aprecio assim muito. O que resta de certas camadas populares, certas tascas antigas...

 

Porquê essas camadas populares, é a procura da simplicidade?

Há um certo modo de estar, que curiosamente não é preconceituoso, um certo à vontade, até no modo de expressão, por vezes grosseiro, que me agrada. Não é um modo simples, é um modo franco.

 

Estava a pensar que todas as entrevistas suas que li foram feitas por homens e que a sua linguagem era, por vezes, grosseira – para usar o seu termo – e mais próxima daquela que é a sua linguagem fílmica.

Mas eu posso ser extremamente delicado.

 

O que é que o faz ser delicado?

A alteridade, isto é, o reconhecimento do outro.

 

Significa que se eu fosse um homem e usasse outras palavras...

Não, significa que eu posso ser extremamente delicado quando sou afectuoso, quando há um embrião de afecto. Sou uma pessoa doce, de um modo geral. Mas também tenho fúrias.

 

Tem um conhecimento e um controlo de si na doçura e na agressividade?

Normalmente controlo-me; ou faço as coisas deliberadamente. Quando não gosto de uma pessoa, cinco minutos depois dou-lhe a entender isso mesmo, para que não haja equívocos; e quando gosto, utilizo os meus estratagemas.

 

Vai treinando?

Um bocadinho. Agora como descobri que sou actor, um péssimo actor, mas enfim...

 

Acha mesmo que pode dizer isso de si? Até já ganhou um prémio muito sério...

Acho que não sou um bom actor.

 

E realizador?

Acho-me francamente bom, atendendo ao que há para aí...

 

Agora é actor...

Sim, faço os meus exercícios. E como criei uma personagem dá-me um certo prazer, na vida real, de vez em quando, comportar-se como o senhor João de Deus.

 

Mas ele não é uma parte de si, um dos seus heterónimos? Há o Max Monteiro – Actor, o João César Monteiro – Realizador, o João de Deus – Personagem...

É um personagem com determinadas características, um ser livre. Praticamente tudo lhe é permitido. Utilizo-o como um teatro. Por vezes torna-se chocante. É verdade que isto incide sobretudo em meninas ou em senhoras.

 

E como é que elas reagem ao seu treino de senhor João de Deus?

Digamos que em cada dez há uma que marcha. As outras nove manifestam pouco interesse na personagem e a personagem não se torna demasiado insistente. Não vale a pena pregar no deserto.

 

Você é muito mais lúcido do que parece.

Toda a gente que me conhece sabe isso. De maluco tenho muito pouco.

 

Gosta de representar, então.

Mas não acha que o nosso quotidiano é muito cinzento? Eu raramente me aborreço. Um dos meus prazeres é olhar para as meninas, vê-las passar, cheirá-las, extasiar-me com elas.

 

De alguma forma é uma relação unilateral.

Felizmente é uma relação unilateral, senão não tinha mãos a medir!

 

Esse é o seu primeiro pensamento? Estamos aqui na esplanada...

Sim, pode dizer-se. Se eu fosse um sucesso total tinha de abdicar, não fazia mais nada. Tenho de catar melhor a vizinhança, talvez haja alguma mãe solteira nas redondezas.

 

Poderia viver num outro país, numa outra cidade?

Eu pensei em ir viver para o Porto. Noutro país nem pensar! Não me imagino a viver em Paris ou em Barcelona.

 

É assim tão português?

Sim, sim.

 

Os nacionalismos preocupam-no?

Os nacionalismos preocupam-me. E o Bundesbank também. Mas eu não sou um nacionalista; tenho é ligações com isto. Por acaso, não especialmente com Lisboa.

 

Não especialmente com Lisboa? Quase parece um contra-senso, depois de o ver e de o ler.

Eu cheguei à conclusão de que podia viver no Porto. Não poderia viver, ou viveria mal, em Évora ou na Figueira da Foz.

 

Do que é que precisa nos sítios para lá viver?

Preciso de uma casa.

 

Também pode ter uma casa em Évora.

Uma segunda residência, para os fins-de-semana. Preciso de uma ou duas mulheres, não mais, e de crianças, que até já podem estar feitas.

 

E crianças um bocadinho mais crescidas? Raparigas tenras como as que apareceram nos seus filmes.

Gosto de crianças. As adolescentes da Comédia [de Deus] sabem mais do que eu, foram muito bem industriadas e já não são assim tão novas como parecem. Não é que eu tenha um gosto especial por crianças; gosto de algumas. Até suponho que tenho uma; por acaso é rapaz.

 

Se fosse rapariga mudava alguma coisa?

Mudava porque se trataria de um outro Ser.

 

O que é que tenta passar ao seu filho?

Eu tenho uma boa relação com o meu filho. Neste momento não faço grande coisa com ele porque não o tenho visto. Mas gosto de levá-lo a passear, impingir-lhe umas coisas, o gosto pela leitura, desviá-lo da televisão na medida do possível – o que é difícil para um pai hoje em dia. Temos alguns gostos comuns, não necessariamente cinematográficos.

 

Ele vê os seus filmes?

Vê, não estou seguro que goste de todos; mas isso para mim não tem importância nenhuma.

 

Há alguém a quem mostre os seus filmes e cuja apreciação crítica seja relevante para si?

Tenho imenso respeito por alguns críticos de cinema. Que já morreram. Aqui há uns dez anos atrás havia uma pessoa que tinha bastante importância a quem eu mostrava os argumentos que escrevia, o Carlos de Oliveira. Morreu e não encontrei substituto.

 

Não me diga que nunca se sente inseguro?

Acho que sim. Num filme, por exemplo, é uma coisa que toda a equipa sente. Tenho uns truques. Normalmente passam por... Bom, não devia estar a revelar isto... Faço umas birras e não sei quê. O intuito é, quase sempre, ganhar tempo, se se trata de uma cena mal pensada ou qualquer coisa no género.

 

Além da insegurança, revela sentimentos como a sensibilidade extrema ou a comoção?

Por vezes sinto-me empedernido, mas ainda me consigo comover.

 

Lembra-se da última vez que chorou?

Lembro-me que chorei depois de ter sido agredido por três ou quatro polícias. Chorei de raiva e de humilhação. Ainda por cima foi uma história disparatada. Eu encontrei um tipo que é deputado do Partido Socialista, por acaso um rapaz do Porto, e entrei com ele em S. Bento, na Assembleia, a conversar; depois, ele deixou-me num corredor e eu andei para ali sozinho até que, de repente, me saltam três ou quatro polícias em cima.

 

E agridem-no sem você fazer nada?

Exactamente.

 

Está a falar a sério?

Estou a falar a sério. Chamei-lhes logo Filhos da Puta, uma expressão que eu utilizo muito. Gosto imenso da expressão Filho da Puta. Tenho uma engatilhada há anos. O meu sonho é ser julgado em tribunal e quando o juiz disser “levante-se o réu” a minha resposta é “levante-se você, seu filho da puta”. Agora, como para chegar até ao tribunal é uma maçada, estou a pensar em metê-la num filme.

 

Seria óptimo para si viver numa anarquia.

Seria bom para todos. A anarquia é uma coisa muito ordenada.

 

Qual é o seu ideal de sociedade?

Eu sou por uma transformação radical da sociedade, por meios violentos. Se pudessem ser pacíficos tanto melhor, mas já se sabe que assim não se vai lá. Vai haver uma nova revolução, mas não nos mesmos moldes das fracassadas revoluções.

 

Não se sabe é quando.

Todo o sistema capitalista está agónico, é um sistema autofágico. A revolução será menos classista e, se calhar, serão os próprios ricos – deixe-me usar esta linguagem simples - que vão ter de a fazer. O mal-estar está perfeitamente instalado na classe dominante. A classe dominada tem os problemas do costume, de sobrevivência, etc; a outra tem toda a estrutura familiar desfeita, os filhos tresmalhados... Se não lhe quiser chamar revolução chamo-lhe, pelo menos, reciclagem do sistema.

 

Consegue imaginar-se daqui a vinte anos, com ou sem essa revolução?

Consigo. Imagino-me na mesma.

 

Há vinte anos imaginava que iria ser o que é hoje, fazer o que faz hoje?

De maneira nenhuma. Fazia uns filmezecos, sem pretensões nenhumas. Eu não melhorei; os outros é que pioraram. Piorou o cinema. Emergi por desmérito dos outros, não tanto por mérito próprio.

 

Vai fazer o culto do antigo? Dantes é se faziam bons filmes, escreviam bons livros, compunham boas músicas. Não há coisas que agora se façam que aprecie?

De um modo geral não. Não vou ao cinema. Gosto de um iraniano, o Kiarostami, até lhe mandei um telegrama a dar-lhe os parabéns pelo prémio. Na poesia fiquei-me pelo Herberto Helder e gosto do Joyce.

 

Nós começámos por falar de um périplo joyciano. Se tiver de procurar a essência de si, como o Ulisses, o que é que encontra?

O que eu encontro é uma coisa muito confusa e muito diversificada. O ser humano é múltiplo, tremendamente contraditório e não gostaria de catalogá-lo em termos de bem e de mal.

 

 Quem estipula as balizas de bem e de mal?

Como sou evidentemente ateu sou eu que estipulo as minhas balizas de bem e de mal.

 

Nunca se agarra a nada quando se sente desesperado?

Agarro-me à Ana! [a namorada, que está ao lado]. E agarro-me a uma garrafa de whisky. Enquanto cineasta é a mesma coisa; só que não me agarro à Ana, agarro-me aos filmes. Não é importante ter uma mente sã; só é importante ter um corpo são. Odeio a ideia de ser imobilizado pela doença.

 

Tem medo da doença?

Tenho medo por várias razões. Inclusivamente porque não tenho assistência social, os médicos são uma fortuna, os hospitais, como diria o Baudelaire, são matadouros, e, como tenho medo, nunca adoeço. Apanho umas bebedeiras e no dia seguinte estou bom.

 

Do que é que tem medo, além da doença?

Para ser franco, da miséria, da fomeca, de não ter onde cair morto – e não tenho medo de morrer.

 

Tudo isto vinha a propósito das noções de bem e de mal.

Sim. As noções remetem para uma atitude moral, não exclusivamente da esfera pessoal, também toca o cinema. Para mim o cinema não tem nada a ver com a moral, mas sim com o que é sagrado e o que não é sagrado.

 

O seu cinema, curiosamente, está cheio de rituais. O que é sagrado para si?

O sagrado é o que toca a criação. Quer seja um filme, quer seja um filho. São os meus limites, a fasquia que eu não devo ultrapassar. Ultrapassar isso é matar, ou, se quiser, matar-me matando.

 

 

O filme. Algumas notas da ficha técnica.

Le bassin de John Wayne (A bacia de John Wayne) é uma co-produção da portuguesa Fábrica de Imagens e da francesa Euripide Films. Ainda não há certezas quanto à distribuição, mas o autor gostaria que fosse Paulo Branco a fazê-la. O Festival de Veneza abriu uma excepção e, fora de tempo, aceitou ver o filme. Quase todos os intervenientes têm papeis duplos ou mesmo quádruplos. João César Monteiro interpreta nada menos que quatro personagens. Pierre Clementi e Hugues Quester, os outros dois protagonistas, interpretam dois cada um. Manuela de Freitas, actriz fetiche do realizador, dá corpo a uma puta de cabaret. Joana Azevedo é descoberta para este filme e interpreta duas personagens. É da boca dela, enquanto Ariene, que podemos saber do estranho mistério que envolve a bacia de John Wayne. “Não há mistério nenhum. É muito simples: O John Wayne arrasta ligeiramente a perna esquerda, porque é mais pesada que a direita. Os velhos alfaiates sabiam-no e, por isso, provavam as calças sempre à medida. Na perna esquerda, junto aos órgãos genitais, desenhavam a giz uma bolsinha e perguntavam escrupulosamente aos clientes: “Está bem assim, ou quer um nadinha mais folgada?”. Ora aí tem!”

A ideia para o filme surgiu a partir de uma conversa com um crítico francês entretanto morrido (segundo o autor, grande filósofo destes tempos) de nome Serge Daney. Um dia este telefonou a João César e contou-lhe: “ J’ai rêvé que John Wayne jouait merveilleusement du bassin au Pôle Nord.”

A sinopse do filme é longa, aparentemente confusa e irreproduzível. O João César Monteiro ainda não sabe quando vai ser possível saber da história no grande ecrã. Como foi muito simpático cedeu-nos estas fotografias de rodagem para poderem ver, antes dos outros verem, algumas das mais belas imagens de Le bassin de John Wayne.  

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 1997

João César Monteiro morreu em  2003

 

 

Nápoles

05.02.19

É fácil não gostar de Nápoles. Mas depois há Caravaggio.

Mas depois há aquela jovem mulher que dá o peito a um velho homem. Cena perturbantíssima. Alimenta-o, misericordiosa. Um homem que podia ser o seu pai. Dizem os estudiosos de Caravaggio que é o pai. Como podem saber? A possibilidade torna a pintura mais inquietante.

Só por causa desta cena, para a ver de perto, vale a pena ir a Nápoles.

No mesmo quadro há um morto retirado de um cenário de peste, cores tenebrosas, perplexidade. Anjos feitos de uma carne que apetece tocar. O mundano a imiscuir-se no espaço do sagrado. A Bíblia está no meio de nós, poderia dizer Caravaggio, defendendo-se. E há uma macieza voluptuosa nos tecidos. Pescadores, batoteiros, brigões. Forasteiros a quem se mata a sede e saram as feridas. Músculos, estranheza, espanto.

Só por causa de Caravaggio já vale a pena ir a Nápoles. Ir a Nápoles é entrar num quadro de Caravaggio.

Vamos por partes. Caravaggio chegou a Nápoles em 1606, condenado à morte. Morreu sem honras fúnebres em Porto Ercole, enquanto esperava. Febre amarela, presume-se. Nos anos de fuga – quatro – errou por Nápoles, Sicília, Malta. Sobretudo Nápoles.

Era, como a cidade, litigante, frequentador de casas de má fama, impetuoso. O tipo de pessoa que dorme com a adaga debaixo da almofada. Que a usa se necessário. (Matou um homem numa taberna – dívidas, jogo – e daí a condenação). E que conhece de perto as coisas impensáveis da vida (como uma filha matar a fome ao pai dando-lhe leite do seu peito).

A tela é gigante e foi feita para a igreja Pio Monte Della Misericordia. Está no altar principal. Ao lado há Ribera, Giordano, outros artistas, arquitectura barroca.

Há outras telas de Caravaggio pelas quais vale a pena ir a Nápoles. O Martírio de Santa Úrsula, que consta ser a última obra que pintou, e que pode ser vista como jóia única no centro cultural de um banco, quase a chegar à Piazza Plebiscito, ainda na Via Toledo. Ou o Cristo flagelado, sensual como um herói, quase demasiado bonito para um Cristo flagelado, em exposição no Museu Capodimonte.

A Flagelação ocupa o ponto nevrálgico de uma sequência de salas. Quando se olha de longe, é ainda reconhecível o corpo luminoso de Cristo, a emergir de um fundo escuro. Apesar do título e dos carrascos que o ladeiam, não é um corpo mortificado. O movimento podia ser o de uma dança triste.

Caravaggio buscou em Nápoles, sob a alçada do vice-rei espanhol, distância e protecção. É acolhido pela família Colonna. Confia que em Roma o Cardeal Scipione Borghese, sobrinho preferido do Papa Pio V e coleccionador de arte, possa interceder por ele. Espera o perdão papal.

Enquanto isso vive como pinta. A inversa também é verdadeira. E Nápoles é o cenário perfeito para esse balanço desregrado, profundamente desrespeitador. Partilham uma têmpera que em nada se parece com o ambiente lustroso de Roma. Os pintores maneiristas, as convenções, a representação de anjos rubicundos pertencem ao passado. O ar que se respira é ameaçador e sexual ao mesmo tempo. Contagia, como uma peste a que não se quer resistir. Parte do fascínio da cidade está aqui, nesta tensão. No medo e no sexo. Caravaggio soube captá-lo, traduzi-lo.

É difícil não gostar de Caravaggio. Através dele, é fácil gostar de Nápoles. 

A cidade não mudou tanto assim desde os primeiros anos do século XVII. Fora já não ser uma das mais poderosas cidades do mundo, como foi no período dos Bourbons. (Há retratos da família real pintados por Goya no Capodimonte.)

O carácter indómito, que não chamou Caravaggio a Nápoles, mas que lhe assentou como uma luva, mantém-se. Mais o orgulho. As caras das pessoas, agrestes, fustigadas, curtidas, coincidem com as que Caravaggio pintou (estão nos carrascos do Cristo flagelado). Ostentam uma rudeza passional que não se encontra em mais nenhuma Itália.

As ruas também são assim. E o chão, escuro, vulcânico, irregular. As fachadas denotam a passagem de espanhóis, italianos, normandos. Séculos de sedimentos, riqueza civilizacional. A imponência do Vesúvio, erguido sobre o golfo, traz a memória de Pompeia, do que é destruído.

Tudo pode estar prestes a entrar em erupção. Tudo se passa na rua. Sem cerimónias. A roupa pendura-se no pátio. A vida íntima fica disponível para inspecção. A exaltação é assumida como um atributo honroso. “Putana” é uma palavra para gritar bem alto. A abjecção, que por natureza não é palpável, é palpável – e não é forçosamente má.

Nápoles é isto. É fácil ter medo. É fácil não gostar.

Contudo, o mundo está ali concentrado. O mar, a terra, a fertilidade, as pessoas. O frémito da morte. Na Odisseia de Homero há versos que falam de a costa estar pejada de sereias. Goethe escreveu: “Consigo entender bem todos aqueles que perdem a cabeça em Nápoles, e lembrei-me emocionado do meu pai que ficou com uma impressão indelével precisamente daquelas coisas que eu agora vejo com os meus próprios olhos. E, do mesmo modo que se diz que quem alguma vez viu um fantasma nunca mais tem alegria, também dele se poderia dizer o contrário, que nunca mais poderia ser infeliz porque se lembrava sempre de Nápoles” (Viagem a Itália, 1787).

O que toda a gente sabe de Nápoles: elevado grau de pobreza, as mortes da Camorra, a sentença que pende sobre Roberto Saviano (que descreveu a organização mafiosa no livro Gomorra). As greves de recolha de lixo. A imundice geral. A densidade populacional que faz que a privacidade seja um luxo. Os carros invariavelmente amolgados, raspados. As motas que surgem do nada e que têm prazer na poluição sonora. Os gritos ferozes de mulheres desavindas, os cabelos rodados como crinas. A feiura que não se tenta disfarçar.

Mas depois há Pompeia, ali o lado.

Outra porta para entrar em Nápoles: o Museu de Arqueologia, na Piazza Cavour, onde estão os tesouros de Pompeia.

É incompreensível que milhões de pessoas visitem o parque arqueológico de Pompeia e não o Museu de Arqueologia de Nápoles. É certo que em Pompeia se tem uma noção de escala que não se pode ter senão lá. E tem aquelas figuras que foram apanhadas pela lava enquanto faziam vida de todos os dias. Um casal abraçado. Um homem que chora, dobrado sobre os joelhos. Um cão. Vê-los petrificados é uma experiência estranhamente comovedora.

Mas os frescos, os mosaicos, as estátuas, pequenos artefactos, estão no museu.

Para se saber, antes mesmo de ir, que aquele é um dos melhores museus do mundo (palavras bem medidas) só é preciso ir ao youtube e ver uma sequência de Viaggio in Italia, de Roberto Rossellini.

Ingrid Bergman, então mulher do realizador, visita o museu e é guiada por um homem de sobretudo. Começa por ver o grupo de dançarinas, esculpidas em bronze, a harmonia dos seus movimentos. Têm diferentes posições; uma aperta o vestido, como se o vestido tivesse subitamente descaído; outra, segundo o guia, “tem a expressão da minha filha Mariana”. São caras como aquelas que encontramos na rua. Por acaso, têm 2200 anos.

A visita prossegue. Um sátiro de uma vila de Pompeia, divindade pagã, perigosa criatura dos bosques. Outro sátiro, este embriagado, imagem do deboche. A seguir dois atletas, em posição de corrida. Estão colocados, no filme de há quase 50 anos e agora, ao nível dos nossos olhos, e têm um olhar penetrante. A impressão que causam é a de uma interpelação directa, quase intimidatória.

Depois são apresentados os imperadores. Caracala, cujo busto veio das termas com o seu nome; testa franzida, expressão enigmática. “Este é Nero, deve ter ouvido falar dele. Tem a cara de um bebé, mas era um louco. Incendiou Roma, matou a família inteira, até a mãe”, explica. Tibério, que passou uma boa parte da vida na vizinha ilha de Capri.

Para o final da sequência, as duas peças mais importantes do museu, já então: o Touro Farnese e Hércules a Descansar (também da colecção Farnese).

O Touro é a maior peça da Antiguidade feita a partir de um único bloco de mármore. Uma verdadeira montanha onde são esculpidos dois homens valentes, uma mulher suplicante, cães que ladram, personagens que assistem. Foi restaurada por Miguel Ângelo e diz-se que é pesada demais para ser mexida. Veio das termas de Caracala, não é fácil descortinar como. 

No lado oposto da mesma sala, Hércules é a encarnação da virilidade. Colossal, músculos desenhados, pernas elegantes. É arriscado usar a palavra encarnação quando se descreve uma estátua. Mas a este Hércules apetece acariciar. E também a mão dele parece pronta a acariciar. 

Rossellini filma-o de cima para baixo, fá-lo desmesurado. Ingrid observa-o, seduzida, “oh, it’s wonderful”. E só depois se mostram as maçãs que Hércules guarda na mão, atrás das costas, num gesto delicado. As maças, três, tornam Hércules mais humano. Apesar da força. É uma escultura prodigiosa e há quem tenha vontade de ir a Nápoles só para a ver. (Sim, sou eu.)

A Viagem a Itália de Rossellini, que leva o título do livro de Goethe (a personagem de Ingrid lê-o estirada ao sol), e que é adaptado por Scorsese no documentário A Minha Viagem a Itália, não mostra outros tesouros do museu. Nomeadamente os frescos e os mosaicos.

O mais famoso dos mosaicos ocupa uma parede e retrata Alexandre na batalha de Isso. Bucéfalo parece galopar. Alexandre tem na cara o ímpeto que o fez ser O Grande.

O mais intacto dos frescos ilustra O Sacrifício de Ifigénia, mito da Antiguidade, posto em tragédia por Eurípedes. 

Há o retrato da poetisa Safo. A cabeça de Sócrates ou Homero. Um casal burguês que posa para a posteridade. Aves e peixes e vegetais. Peças de vidro azul, verde-água, amarelo.

Há o gabinetto secreto. Ninfas e sátiros em animado forrobodó. Serviços anunciados à porta de lupanares. Gladiadores em pose priápica. Amuletos com forma de pénis. Casais a copular. Até 1967 era proibido vê-los.

Os vigilantes do museu conversam entre si como se estivessem a comer um panini ou a discutir o génio de Maradona. Que importam os frescos? Ouve-se o barulho dos carros. Dá a sensação de estarmos no que o edifício originalmente foi: um palácio onde podem ser vistas maravilhosas peças de arte, e não um museu. 

A rua é outro mundo. Na rua está-se no teatro da vida.

A dois passos fica o centro histórico, o emaranhado de ruas onde quase tudo acontece. Uma igreja em cada quarteirão (é lá que fica a tela de Caravaggio). Palazzos arruinados onde vivem vinte famílias. Ruas estreitas. Spaccanapoli, a artéria interminável que corta a cidade ao meio. Mercearias onde prometem “vera mozzarella di bufala”, e azeite e vinagre e especiarias para la pasta. Pequenas fábricas de limoncello. E apesar dele, pastelarias onde o babá é embebido em rum. Babá mini, normal, gigante como um falo gigante (os napolitanos são como aquelas pessoas que dizem uma brejeirice e piscam o olho). Bolo delicioso, o babá.

E as pizzas. As melhores pizzas do mundo, na Sorbillo, por três euros e meio.

E a pasta. Um linguine com courgette e queijo, feito em dez minutos, no ristorante E Come Sarà (abriu há pouco na Via S. Chiara. Marilisa, a cozinheira, é uma jovem arquitecta).

E as pessoas hiperbólicas. As que transformam um carrinho de bebé num carrinho de venda ambulante. As obesas, desdentadas cedo demais. As que sucumbem a uma sociedade que rouba e desfigura. As que vivem em clã (todas!). As que fazem da transgressão um modo de vida, como os seus pais e os seus avós, e os pais e os avós destes. (Goethe ouviu a um homem: “Se vocês fazem novas leis, nós temos de começar de novo a pensar como é que as podemos infringir; com as velhas, já há muito tempo que o sabemos”.)

E as que vivem “numa espécie de abandono extático” – como resumiu o poeta alemão – e que são todas, também.

Totò personifica esta gente. Lembram-se dele?, aldrabão e adorável, irrompia pelo ecrã a gritar: “I io pago!” De Filippo e a commedia dell’arte personificam esta gente. Intoxicante, enigmática. De quem é fácil não gostar.

Mas depois as caras perpetuam-se na nossa memória. Continuamos a ouvir as discussões que presenciámos. O merceeiro que respondeu com uma canção quando comentámos que fazia frio – che freddo fa a Napoli! A imagem de Capri a meia hora de barco. A ideia de Pompeia a 20 minutos de comboio. O barco que parte para a Sicília todas as noites. O caminho sinuoso da costa amalfitana, a dois passos. O Vesúvio que se vê de todo o lado. Dois homens que se cumprimentam como n’ O Padrinho, em pleno meio dia. O olhar desdenhoso de Marilisa em relação aos italianos do norte – tudo na forma, pouco na substância. (Goethe anotou: “As pessoas vêm todas para a rua, ficam sentadas ao sol enquanto este brilha. O napolitano julga estar de posse do paraíso e tem das terras do norte uma ideia muito triste: é só neve, casas de madeira, grande ignorância, mas dinheiro não lhes falta.”) 

Ninguém citou a mais famosa das frases sobre a cidade: “Vedi Napoli e poi muori”. Vê Nápoles e depois morre. Talvez não se possa falar de Nápoles sem falar de morte. Deve ser porque já se pode morrer depois de ver a vida de perto. 

 

 

 Publicado originalmente no Público em 2012