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Anabela Mota Ribeiro

Mia Couto

21.03.19

Mia Couto define-se como biólogo a tempo inteiro e escritor nos intervalos. É casado e tem três filhos. Vive em Moçambique, onde nasceu. Vem a Portugal duas ou três vezes por ano. Foi uma sorte tê-lo encontrado disponível numa das vezes.

A história desta entrevista, ou estória, como ele gosta de dizer e escrever, começa num encontro mais ou menos acidental dois dias antes da manhã em que supostamente conversaríamos. No dia do meio, que começou demasiado cedo e terminou demasiado tarde, acompanhei-o num périplo de escritor de sucesso, como pomposamente lhe chamei. Sucesso quer dizer milhares e milhares de pessoas que lêem os seus livros, plateias rendidas, conversas inesquecíveis, filas intermináveis de autógrafos. Por fim, sentado num estúdio improvisado, agarrou-se a uma chávena de chá. Seriam duas da manhã. Enquanto o fotógrafo lhe roubava restos da alma, caracterizou cientificamente flores surripiadas a uma das conferências. 

Serve a história para dizer que, quando finalmente nos sentámos para a entrevista, já sabia da sua extraordinária timidez, do seu amor violento a Moçambique. E estava também contagiada pela mística de África. Pareceu-me, por isso, suspeito que na mesa onde se depositou a conversa estivesse, sozinha, uma moeda de cinco escudos.  

 

Como veio aqui parar esta moeda de cinco escudos?

É um esquecimento. Se fosse de mais valor não tinha esquecimento.

 

Foi você que a esqueceu aqui?

Quer saber se é uma coisa supersticiosa? Não é. Embora tenha as minhas superstições, não estão ligadas com moedas. É uma coisa que bebi do meu lugar, de Moçambique. O dinheiro não está ligado nunca às coisas do espírito. Os antepassados, que organizam o mundo dos vivos, nunca aceitam que a relação com eles passe pelo dinheiro.

 

É a antítese do mundo real onde tudo é comprável e as pessoas têm sempre um preço. Mesmo em Moçambique, apesar da importância que se atribui aos espíritos e à relação com os antepassados.

O tempo dos antepassados era um tempo em que não existia este dinheiro, como moeda de troca. Usava-se comida e, sobretudo, bebida. A bebida está ligada aos rituais, sempre. Em todas as grandes festas é um passo para a alienação e para a desordem colectiva. Há algumas em que os homens podem fazer amor com as mulheres que quiserem e vice-versa.

 

Você bebe?

Bebo meio copo e caio fulminado! Através do álcool instituo a desordem só em mim próprio.

 

É uma coisa que lhe agrada?

Não me agrada nem desagrada. Tenho um corpo chato que não me deixa portar mal. Põe sempre policiamentos e tem uns vigilantes à entrada. Sinto-me mesmo mal com a bebida. Por outro lado, tenho umas coisas interiores, uns truques, umas hormonas, que me fazem ter acesso a essa viagem que se tem quando se está embriagado. Posso embriagar-me sem beber.

 

Sem recurso a subterfúgios, sejam eles quais forem?

Os meus amigos dizem que caí no caldeirão.

 

Como o Obelix?

Sim. Todos nós temos essa possibilidade.

 

Os livros podem ser uma maneira, muito correcta e aceitável, de se evadir de si. A bebida implica, normalmente, uma transgressão.

Fico muito atrapalhado quando as pessoas se dirigem a mim e comentam os livros como se tivesse feito aquilo num acto de consciência. Sou uma outra pessoa quando se dirigem a mim. Aquilo corresponde a um momento quase de transe, em que viajei para outra parte de mim.

 

Sente necessidade de explicar isso?

Sinto. Não acho que seja uma romantização do acto de criação.

 

O que despoleta o processo criativo?

Há muitas situações: pessoas que encontro, viagens que faço.

 

...

Já respondi. Não respondi à sua pergunta?

 

É suposto isto ser um rígido exercício de pergunta-resposta?

Daqui a bocado está a fazer-me psicanálise. Se escorrego, começo a contar a história da minha vida e dos meus traumas.

 

Qual é o problema?

Não estou muito preparado para desatar a fazer uma espécie de catarse dos meus traumas da infância, escondidos.

 

Já houve um processo catártico para chegar a essa consciência.

Tenho consciência que um dos temas a que recorro é a chamada identidade sexual. Está muito presente nos meus textos. Quando os leio, longe do acto de criação, entendo que usei o texto para resolver isso dentro de mim de uma maneira tranquila e serena.

 

Antes de mais, acredita na psicanálise?

Tanto quanto acredito numa relação entre duas pessoas que passe pela feitiçaria ou pela religião. O que está em causa, em cada um dos casos, é a crença que aquele outro tem poderes terapêuticos que te fazem chegar além de ti próprio, para te explicar de uma outra maneira. É o poder que depositamos no relacionamento que faz essa relação verdadeira.

 

Então, o psicanalista é uma pessoa treinada para desenvolver uma determinada relação com o outro como pode ser uma feiticeira ou um padre?

Um amigo. Acho que se podem equivaler.

 

Tem um melhor amigo?

Tenho vários.

 

O que é que eles fazem?

São diversos. Quase todos têm um traço comum: são pessoas irrequietas, têm uma pequena dose de loucura de maneira que não sejam completamente loucos. Vão de camponeses até jornalistas, escritores. A vida em Moçambique teve momentos tão duros e tão extremos que aprendi a revalorizar a amizade com critérios que não eram os meus.

 

Os seus amigos são todos homens?

A maior parte sim. Porquê?

 

Porquê pergunto eu.

Também me interrogo. Se calhar porque vivemos num mundo em que é complicado um homem ter grandes amigas, sem que isso passe por mil explicações e não se converta noutra coisa.

 

Há uma vulnerabilidade em si que as mulheres adoram porque, supostamente, lhes desperta o instinto maternal. Sente-se muito alvo da cobiça feminina?

Um amigo meu diz que organizo esta aparente fragilidade como um truque de sedução, como coisa apelativa. É provável que aconteça, não nego. Por outro lado, cresci no meio desta tribo, que se chama «Os Homens», e desenvolvi em relação a características ditas masculinas uma espécie de rejeição. Uma certa petulância, uma auto-suficiência, um sentido prático na relação com o dinheiro. Gosto muito de ser homem. Mas para ser homem, não preciso de ser aquilo.

 

No Ocidente os valores da masculinidade e da feminilidade estão cada vez mais diluídos. Em Moçambique a masculinidade é muito exaltada. De onde vem essa resistência?

Vem, por exemplo, dos rituais de iniciação masculinos. Mudaram muito, eu sei. No meu tempo implicavam uma certa violentação. 

 

Para os homens ou para as mulheres?

Era uma violentação no sentido duplo. Era como se desligava as questões sexuais das afectivas, uma coisa que não conseguia aceitar. Pertenço à geração que se iniciava com as prostitutas. [risos] Corte, corte!

 

Corto esta frase?

Não. Não me pergunte mais sobre isto. Há uma coisa curiosa que queria dizer: na tradição moçambicana, a que não pertenço senão parcialmente, os homens, dentro dos rituais dessa masculinidade, podem passar por relações homossexuais. Recordo uma coisa que me chocou na altura, tinha 14 ou 15 anos; um amigo meu disse: «Esta noite vou dormir com um homem porque isso me dá força». Ele não era de todo homossexual nem se iria nunca assumir como homossexual. 

 

Qual era o papel que ele ia assumir, o do activo ou o do passivo?

Não sei. Os mineiros, e quase todos os homens do sul trabalharam num período das suas vidas nas minas da África do Sul, têm um ritual em que se casam. Cada um tem a sua mulher, que é um homem, e vivem maritalmente durante o período em que estão nas minas. Mantêm as suas mulheres, voltam para as suas mulheres e não se convertem em homossexuais.

 

Num dos seus livros, «Terra Sonâmbula», há um velho que masturba um rapaz que tinha adoptado. É uma situação que suscita múltiplas leituras. Fica mais ou menos evidente o incesto, que é recorrente noutros livros; há a iniciação que pode comportar a homossexualidade mas que não implica que ela seja continuada; e há uma mística que envolve o acto e o torna mais bonito, sem a secura com que uma relação deste tipo seria apresentada.

Sobre o tom encantatório, é essa a tarefa da literatura: pegar nas coisas e tentá-las encantar. É uma cena simbólica que retrata dois Moçambiques que a guerra fez separar. O velho que representa uma raiz longínqua; e o miúdo que representa a hipótese de futuro (que está doente). O livro começa com este menino que, por causa da guerra, está desumanizado, não sabe andar, escrever, ler, não sabe nada. Há toda uma reiniciação que é feita por este velho. Da mesma maneira que o ensina a falar uma outra vez, ele o ensina a ter prazer, também. A cena da masturbação tem, desse ponto de vista, o mesmo valor que o velho ensinar o menino a marchar. Não é que o velho retire daí um prazer, ele não está instrumentalizando o menino.

 

Como é o incesto visto em Moçambique?

Também é interdito. Mas em certas circunstâncias, muito raras, um feiticeiro pode recomendar que um pai faça amor com a filha.

 

Num outro livro, «A Varanda do Frangipani», uma personagem assume que matou um homem porque o julgava portador do espírito do seu pai, que havia abusado dela. Na sua resistência a essa forma de masculinidade parecem sucessivas maneiras de matar a figura masculina.

Qual é a primeira construção da nossa masculinidade? É a figura do pai. A do meu pai, que felizmente está vivo e amo muito, contradiz o estereótipo do macho. É uma pessoa gentil, de modos suaves sem ser feminino, que valorizava muito o que era descontabilizado na altura. Trocava tudo para ver um poente bonito. Enquanto as pessoas olhavam para um jogo ou um carro, ele olhava para uma garça. Eu via como isso fazia com que ele entrasse em choque com o mundo que o rodeava. Aderi a essa figura, a essa maneira de estar, como qualquer coisa que descobri que também a mim me dizia.

 

Tem irmãos?

Tenho um irmão dois anos mais velho, que é advogado. Era com ele que brincava, chorava, e com quem andava à porrada. O meu outro irmão, mais novo sete anos, é um veterinário com um estranho gosto pelo trabalho. Nós brincamos e dizemos que, com essa dedicação ao trabalho, ele não deve ser da família...

 

Vivem em Moçambique?

Vivem. Somos quase vizinhos, os meus pais, eu, os meus irmãos. É uma família muito nuclear, quase clãnica. Como os meus pais foram daqui [Portugal] muito novos, aquela coisa dos primos e dos avós, não usufruímos disso.

 

Falam-se todos os dias?

Todos os dias não. Temos os fins-de-semana onde nos juntamos. A minha mãe é a coluna vertebral desta pequena família. Não se concebe fora do círculo dos filhos. Os meus pais tentaram quatro vezes refazer a sua vida em Portugal depois da Independência. O meu pai é de Rio Tinto (Porto) e a minha mãe de uma aldeia de Trás-os-Montes. Voltaram sempre para Moçambique e agora estão lá, acho que definitivamente.

 

É curioso. Porque são portugueses, não retornaram à metrópole em 74, e resistiram numa situação de guerra. Ficaram pelos filhos?

Não só. O meu pai contribuiu ele próprio, à sua dimensão, para que a Independência acontecesse. Desde o princípio nos fez acreditar que aquele era um outro país. Perguntam-me muitas vezes: «Optaste ficar moçambicano, ficar lá?» Não optei ficar lá, não optei ser. A vida optou por mim. Sem que soubesse, desde menino estava sendo preparado para ser parte daquela coisa. Nunca me ocorreu: «Vou ser o quê?» Já estava decidido.

 

Você sente-se a jóia da família e a jóia da coroa? Como é que familiarmente gera o facto de ser conhecido, de dar entrevistas?

Começo por esclarecer como isto funciona. Na minha família era tido como o menos hábil, o que prometia provavelmente menos. Em certos momentos tinham dúvidas se era realmente...

 

Inteligente?

Às vezes me chamavam com ternura «Atrasadeco», mas era evidentemente com grande amor.

 

Porque é que lhe chamavam? Era molenga?

Perdia tudo, esquecia-me de tudo. Apesar de ser fácil de temperamento, devo ter sido um filho que dá trabalho e chatice. Conto uma estória. Uma vez mandaram-me comprar pão; poucas coisas me mandavam fazer, já sabiam que não valia a pena. Fui à padaria, eram duas da tarde e os senhores me disseram: «O pão acabou, a próxima fornada é só às cinco». Sentei-me na escada e fiquei à espera, sem que isso constituísse grande problema porque estava embevecido a ver as pessoas a passar e, se calhar, a contar estórias para mim próprio. Os meus pais, vendo que não voltava, mandaram uma expedição para me rebuscar. Contavam a estória com uma certa graça, «Nem pão o rapaz sabe ir buscar! Como é que se pode ficar à espera três horas?»

 

Como é que a família olha agora para o seu sucesso?

Têm uma grande vaidade, um grande orgulho. Às vezes sacodem-me, «Fizeste, ganhaste, apareceste!» Eles é que recortam coisas.

 

Quando começou a escrever e a publicar, estavam à espera que chegasse tão longe, no sentido de ter tanto sucesso?

Não esperava eu, não esperava ninguém. Estas coisas acontecem por um conjunto de acidentes. É como haver vida na Terra. Publiquei um livrinho, «Vozes Anoitecidas», num papel miserável, numa edição muito pobre.

 

Foi na editora do seu pai?

Não. Ele trabalha como gerente, a editora não é dele. O livrinho saiu pela Associação de Escritores Moçambicanos. Um deles veio para aqui e uma Maria Lúcia Lepecki apanhou-o acidentalmente na secretária de alguém e o leu. Um dia recebi uma crítica de página inteira; a senhora via ali coisas que nunca imaginei que alguém pudesse ver, nem mesmo eu! Mas fiquei muito grato, queria conhecê-la e mandei-lhe uma carta de agradecimento. Foi esta circunstância que fez com que alguém olhasse para esta coisa e pensasse em republicar aqui.

 

O que aconteceu a seguir?

A Caminho também olhou. Contactou-me, propôs edição.

 

Lembra-se em que dia foi, o que estava a fazer?

Não me lembro bem. Primeiro foi um telefonema. Depois vim cá de férias e nem queria bem acreditar no que estava a acontecer. Pensava que ia ficar ali, ser editado num papel mais bonito e numa edição mais cuidada.

 

O eco do editor e dos leitores não lhe traz uma pressão?

Quando escrevo o livro não escrevo pensando em alguém, nem penso em agradar ou desagradar. O livro sai assim mesmo.

 

Não há uma figura em quem pense e no juízo que vai fazer?

Não. Aí, é uma coisa comigo. Se não gosto, o livro não sai, mesmo que pense num segundo momento que talvez calhasse bem. Fiz coisas que não publico e que eventualmente nunca publicarei.

 

São experiências demasiado arrojadas?

Não gosto por razões diversas.

 

São demasiado pessoais?

Algumas.

 

Dá a impressão de se esconder. A catarse que faz na escrita é uma coisa que só você entende.

É verdade. Não sou uma pessoa assim tão transparente como transpareço.

 

Apesar de não gostar do peso da responsabilidade, quando está cá fora sente que é o representante da terra, da gente?

Não me sinto representante. Mas sinto-me com responsabilidades. O meu país é muito conhecido por coisas que não são propriamente as mais positivas. Ficaria muito contente que fosse conhecido por outras razões. Há gente que escreve e com muito valor. Se alguma missão tenho e quero realizar, é essa: se sou o primeiro a chegar a alguns lugares, tenho de lutar para que outros entrem pela mesma porta.

 

Não é nada invejoso?

Não, tenho outros defeitos. Acho mesmo que no céu cabem muitas estrelas.

 

É uma visão muito poética.

Mas é verdade.

 

Em que se traduz o sucesso para si? Dinheiro, entrevistas, viagens, admiração?

Representa coisas boas e más. Algumas não quero, outras gosto de ter. Uma coisa boa é que o mundo fica mais pequeno de repente, como uma aldeia onde as pessoas todas se conhecem e te saúdam. Tem logo um lado mau porque é muito unilateral. Gostava de conhecer as pessoas que me param e querem falar comigo. Não quero ter fãs; quero ter amigos.

 

Isso é inviável.

Quero conhecer as pessoas. Se calhar é um bocado romântico. Nas sessões de autógrafos, com a família, a minha mulher, o meu editor, tenho às vezes algum desencontro porque eles dizem: «Assine lá isso». Mais ou menos como quem diz: «Despache-se». São momentos demorados.

 

Não é um frete nem um bocadinho, ser inundado de gente a roubar partes de si?

Às vezes se transforma nisso.  

 

Quem é que o acompanha nestes périplos de escritor de sucesso?

Ando cada vez mais com a minha mulher. Faço questão que me acompanhe e que a gente encare isto juntos. Não no sentido «Venham ver como o vosso pai ou marido é reconhecido». Nada disso. Acho importante que cada um de nós visite o trabalho do outro. A minha mulher trabalha num hospital. É importante que eu experimente as condições terríveis em que ela trabalha para entender como chega a casa todos os dias.

 

É médica, não é?

É hematologista, a única de Moçambique. Acho também que devia participar num dia de escola dos meus filhos para perceber como é que aquilo funciona.

 

Há quanto tempo está casado?

Há doze. Tenho três filhos: um de 21, uma de 17 e uma de 8.

 

Foi pai muito cedo.

O meu filho estuda Ciências Ambientais na África do Sul, na Cidade do Cabo.

 

Porque é que estuda na África do Sul?

O ensino, em geral, se degradou. Não é uma questão técnica. A relação professor-aluno deixou de ter o sentido sagrado que a deve envolver. Queria muito que os meus filhos finalizassem os seus estudos em Moçambique. Agora talvez seja possível porque a nível do ensino superior as coisas estão melhorando. Mas não posso sacrificar mais o destino deles àquilo que são as minhas opções. Já o fiz e isso deixou-me um sabor amargo.

 

Como assim?

Vivi os anos terríveis em que não havia nada. Saíamos de casa de manhã com aquela terrível pergunta: o que iremos trazer hoje para os nossos filhos comerem? Isso tinha um sentido enquanto éramos todos a experimentar privações. Mas depois, quando se propôs uma certa hierarquização, o sofrimento deixou de ter carácter épico. Explico: eu era da Frelimo. Os membros da Frelimo receberam, numa dada fase, um cartão de abastecimento especial. Dava-lhes privilégio de acesso a lojas onde se adquiriam algumas, poucas coisas. Por causa dos meus princípios éticos recusei aquele cartão, deitei-o fora. Não queria ter tratamento especial. Mas isso introduzia em mim uma questão moral gravíssima: iria sacrificar o bem-estar dos meus às minhas opções morais. Os meus princípios podiam provocar nos outros, neste caso nos meus filhos, a continuação de uma situação intolerável.

 

É uma equação violentíssima.

Foi resolvida assim: a Patrícia, porque era médica, recebeu também uma licença para ter acesso a uma loja menos especial. E aceitámos.

 

Já passou fome?

Já. Mas era uma fome transitória, ligada ao facto de trabalhar no mato e o meu regresso à cidade ter ficado atabalhoado.

 

Parece subvalorizar a sua fome. Como se ela não pudesse ser chamada assim por assistir à fome gritante dos outros.

Uma coisa é ter fome e saber que daqui a três dias quando vier a avionete, o carro ou o mau tempo passar, se pode comer. Outra, é saber que a avionete não vem, que não há nada.

 

Muitas vezes a ajuda humanitária é desajustada. Os problemas resolvem-se muito pontualmente sem se criarem situações estruturais. 

O trabalho que faço como biólogo é tentar reabilitar estratégias internas, indígenas, que farão as pessoas depender menos da ajuda externa em períodos de crise.

 

Estava a ocorrer-me um excerto de um livro carregado de humor onde é muito evidente a corrupção ao mais alto e ao mais baixo nível. Há uma cadeira de rodas da ajuda humanitária usurpada por um dos personagens que a aluga a outros que queiram dar umas voltinhas. E há o tráfico de armas conectado com os administradores, que são brancos e portugueses. A corrupção grassa no país de alto a baixo?

Não de maneira diferente que grassa noutros casos. É mais descarada. Tal e qual como a escravatura ou a colonização, a corrupção é a continuação de uma relação que tem sempre dois lados. Não há os corruptos de um lado e os honestos do outro. A escravatura foi feita com cumplicidades internas. Havia elites africanas que enriqueceram muito. Esta leitura da história que hoje há é muito simplista. Como há um certo sentimento de culpa dos europeus, ela passa bem. Mas deve ser interrogada, porque criou da parte dos africanos o discurso vitimista, de ser preciso fazer valer na Europa aquilo que perdemos durante séculos. 

 

Porque é que esteve ligado à Frelimo? E como passou ao lado de toda esta corrupção?

Porque acreditava e tinha um grande empenho.

 

Já não está ligado?

Sou simpatizante, mas não sou membro. Custa muito cortar alguns laços que foram muito importantes na minha vida. Nasci numa cidade em que o colonialismo estava ali, à vista. Ninguém me explicou, ninguém veio com um discurso político para me incorporar num sentimento de militância anti-colonial.

 

Os seus pais eram burgueses?

Não. O meu pai era jornalista e poeta. Tínhamos uma vida dura, difícil. Mesmo do ponto de vista da inserção social e política era difícil num meio politicamente tão arrumado. Eu e a minha família entrámos em ruptura com aquilo. Foi fácil aderir a qualquer coisa que representava o fim daquilo; principalmente o que me chocava era o racismo. Quando fui para Lourenço Marques (Maputo dantes chamava-se Lourenço Marques), comecei a estudar Medicina.

 

Mudou-se para estudar?

Sabia que não ia exactamente para estudar. O movimento estudantil era muito forte. Havia fracções de estudantes que tinham ligações com a Frelimo e já orientavam a sua actividade em função dos objectivos da Frelimo. Estive ligado a esses grupos. A minha vida passou a ser toda norteada pelas razões da causa. Em 25 de Abril de 74 estava num jornal chamado «A Tribuna», estudava e trabalhava. Pediram-me que ficasse, deixasse de estudar e permanecesse a tempo inteiro. Rapidamente, e infelizmente, converti-me em director da agência de informação. Eu e um grupo criámos a primeira agência noticiosa dentro de Moçambique. Andei pelas províncias a criar redes de correspondentes populares, etc.

 

Como é que funcionava essa rede? Visitavam os sítios e procuravam a pessoa que melhor se expressasse e pudesse contar o que lá se passava?

A Frelimo tinha uma rede muito forte desde a base até ao topo. Nos primeiros anos houve uma adesão imensa. Os núcleos de base escolhiam pessoas dos locais mais remotos (que vinham de bicicleta). Mandavam as notícias escritas num papel que demorava até dois meses a chegar a Maputo. As notícias eram: «Um elefante atacou uma machamba [horta] do meu vizinho». Havia ali mundos diversos que se chocavam. A seguir fui director da revista «Tempo» e, durante anos, do «Jornal de Notícias», que era o órgão oficioso. Depois, deixei de ter alguma crença no projecto. Havia um grande divórcio entre o que se fazia e o que se dizia que fazia.

 

São as inevitáveis contradições político ideológicas. As guerras são sujas.

Aconteceram coisas que me traumatizaram. Como amigos meus serem presos. De repente, e sem entendermos porquê, nos tornámos vítimas do poder que defendíamos. O que era traumático era a falta de lógica disso tudo. Pretendia-se um socialismo parecido com o soviético, o chinês, qualquer outro; mas Moçambique nunca foi capaz de criar um sistema, fosse ele qual fosse.

 

Nisto tudo passou um tempo valente.

Mais de dez anos. Para lhe mostrar o que é a ausência desse regime, não trabalhava no jornal e o meu nome continuou a sair quase durante um ano no cabeçalho como sendo director. Repare no nível de desorganização e irresponsabilidade que não seria possível num outro regime.

 

Foi então que decidiu voltar a estudar?

Fui para Biologia. Tinha 30 anos.

 

Isso foi em 85. Em 87 «Vozes Anoitecidas» saiu cá. Quer dizer que andava no segundo ano de Biologia quando os seus livros começaram a ser publicados em Portugal.

Sim, era um jovem estudante universitário [risos].

 

Como foi esse retorno à escola? Porque foi para Biologia e não voltou para Medicina?

Ainda me matriculei em Medicina. Queria ser psiquiatra. Eu escrevia, tinha ligação com grupos de teatro. Já me tinha distribuído por várias coisas e, na altura, sabia o que era viver com uma médica. Tinha esta percepção de que lá, ou se é médico ou se é outra coisa. O regresso à escola foi muito interessante porque convivi com jovens que, na quase totalidade, eram de outra raça e com idades que orçavam entre os 17, 18 anos. Foi um convívio muito profundo porque tínhamos actividades de campo que demoravam semanas.

 

Tinham uma adolescência diferente da sua, que foi muito mais politizada.

Nasci num contexto colonial em que 95% dos colegas eram brancos. Depois foi o inverso. Mas nunca senti que houvesse qualquer problema de rejeição, de exclusão.

 

Nunca foi alvo de racismo?

Não posso dizer que não. Moçambique não é um país ingénuo nesse aspecto. Mas nunca foi nada de tão grave assim que desse para me colocar no papel de vítima.

 

Os colegas olhavam-no como um irmão mais velho?

De facto. Eles me perguntavam coisas até do domínio da sexualidade. Uma vez estávamos numa camarata e havia uma grande discussão. Quando entrei disseram: «Já chegou o Mia, vamos perguntar como é». E a pergunta era: «Quando um homem beija uma mulher quem é que tem de fechar os olhos?»

 

Qual é a resposta?

Respondi: «Se o beijo é apaixonado, ninguém sabe se está com os olhos fechados ou abertos». Olharam-me com o olhar mais desconfiado que possa imaginar, «Este gajo não percebe nada de beijos!» [risos] Já na altura sabia que o beijo não faz parte dos rituais de namoro por tradição. É uma coisa muito recente. Descobriram o beijo há uma ou duas gerações. Saltaram para dentro do beijo e não saem mais de lá!

 

Beijam-se na rua?

Não é muito frequente. Só os mais jovens, sim. Fazem-no até com uma certa ostentação.

 

Beijou as suas namoradas na rua?

Não. Corríamos o risco, inclusivamente, de ser presos; advertidos, pelo menos. Depois da Independência, os polícias, os guerrilheiros que patrulhavam a cidade, tinham valores morais das zonas rurais e achavam que aquilo não se fazia em público.

 

Ainda a propósito da escolaridade, gostaria de recuar mais no tempo porque soube que o Zeca Afonso foi seu professor. Num dos livros há um personagem que se chama Pastor Afonso, um mestre, que é uma das referências morais do personagem principal. 

Já é a segunda pessoa que acredita que o Pastor Afonso é de origem portuguesa. Mas não é. É um preto. Construí-o assim.

 

O Zeca Afonso foi seu professor na Beira ou em Maputo?

Na Beira. Queria ensinar outras coisas. E ensinou. Tinham a ver com a situação política, com o despertar para o momento que estávamos a viver. Como professor de Geografia, não me recordo de nenhuma coisa que tenha ficado [risos]. Gostávamos muito dele por causa da irreverência. Uma vez partiu a perna e foi para a escola de calções.

 

Não é fácil perceber porque é que obstinadamente se manteve em Moçambique, sabendo-se que viveu o grosso da vida em situações de guerra.

Achava que se saísse, de alguma maneira, eu morreria. Vivi algumas situações muito difíceis, extremas. Vi pessoas morrerem.

 

Justamente, torna-se ainda mais incompreensível.

É óbvio que há ligações minhas com o lugar e as pessoas e seria muito difícil refazer as raízes num outro qualquer lugar. Depois, há quase um sentimento religioso que nos liga à missão de construir qualquer coisa.

 

Esse altruísmo...

Não é altruísmo. Estou a pensar em mim, na maneira como posso ser feliz. O contrário era aceitar uma missão neste mundo onde não me reconheço e as pessoas compram a felicidade a prestações.

 

Portanto, não comprou o seu frigorífico a prestações?

Não.

 

Como é a sua vida material? Vive numa casa, com quintal?

Com um quintal pequeno, sim. Não vivo mal.

 

É uma imagem colonialista; mas imaginamos que os brancos que vivem em África têm casas brancas com alpendres enormes e terrenos a perder de vista.

Não há, sobretudo nas ex-colónias portuguesas. A construção espaçosa, o usufruto dos terrenos, é muito da colonização inglesa. A minha é uma casa vulgar aqui, não tem nada de especial: uma sala, uma cozinha, quatro quartos. É uma casa relativamente boa, mas não tem nada de luxo.

 

Tem vídeo?

Tenho vídeo, computador, isso tudo.

 

Perguntei porque sei da sua dificuldade em ver cinema.

Só agora é que há uma sala de espectáculo da Lusomundo. Estou muito grato à Lusomundo (aproveito para agradecer!). Estivemos anos e anos sem cinema. Quando vinha à Europa uma das coisas que queria respirar era cinema.

 

Que coisas levava no regresso?

Trazia listas de encomendas dos amigos e da família.

 

Que género de encomendas?

Agora já há quase tudo. Naquela altura pediam as coisas mais incríveis. As pessoas do povo, por exemplo, pedem muito azeite de oliveira e bacalhau, duas coisas que os portugueses deixaram lá e que têm muita força. As outras pessoas pedem coisas muito variadas, como telemóveis.

 

São marcas muito visíveis da ocidentalidade.

As pessoas, mais do que ocidentais, querem ser americanas.

 

A americanidade chega através da televisão?

Chega. É muito forte. Os filhos da elite moçambicana sonham todos ser americanos, vestem como os negros americanos, cantam como os negros americanos.

 

Rap?

Rap.

 

A imagem que têm é que ser moçambicano é ser pobre? Quando a guerra acabou era o país mais pobre do mundo.

Ser moçambicano não é ser pobre, ao contrário.

 

Então de onde vem essa vergonha?

A vergonha deles é porque Moçambique praticamente não existe. Só a Maria de Lurdes Mutola, a nossa corredora, ganha.

 

Não produz estrelas de Hollywood: não tem mulheres lindíssimas a aparecerem nos filmes, nem galãs por quem as senhoras se apaixonam. Tem a Mutola e o Mia Couto.

Tem mais. Tem o Malangatana, muito conhecido fora, e alguns nomes que estão a despontar e são importantes nas artes plásticas.

 

A plasticidade da linguagem é uma das suas características mais fortes. Você que gosta tanto de desmontar as palavras, tem algum vocábulo sagrado e imutável?

Talvez «Mulher». Tenho esta ideia de que a mulher tem uma relação especial com o mundo que passa pela sua capacidade de gerar vida.

 

Há muita gente que o julga mulher. Por causa do seu nome.

Ocorre esse equívoco. Às vezes é ainda mais engraçado: confundem-me o sexo, a raça, a idade, tudo ao mesmo tempo. Uma vez na Bulgária tardavam em me apanhar no aeroporto, estava a ficar aterrorizado porque não tinha dinheiro, não conhecia a língua, não sabia quem me vinha buscar. Junto ao balcão percebo que alguém diz a palavra Moçambique e, em francês, tento explicar que sou eu. O outro diz: «Não, não, venho buscar uma escritora africana». E até me explicar foi difícil. Ainda por cima sou António.

 

Porque é que se chama Mia?

Por causa de gatos. Os meus pais contam que quando tinha dois, três anos vivia com os gatos, misturava-me com os gatos, achava que era um gato. Temos em casa fotografias em que estou comendo com os gatos. Disse que queria ser chamado de Mia; os meus pais aceitaram e ficou.

 

Ninguém lhe chama António?

Não. Se me chamarem António, tenho de pensar duas ou três vezes. Hoje não tenho essa relação com os gatos. Prefiro os cães. 

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 1998

 

 

Maria Manuel Leitão Marques

21.03.19

A entrevista revela um quadro social e um tempo. O tempo em que o alfaiate ia a casa e os linhos de melhor qualidade chegavam por um portador. O tempo em que Coimbra fervilhava em torno da associação académica, do teatro, do cinema, da política.

Maria Manuel Leitão Marques pertence a uma geração que acreditou que o futuro podia ser o que fizessem com ele.

Foi convidada por António Costa para se ocupar da modernização administrativa. É Secretária de Estado desde 2007.

 

Maria Manuel, a Secretária de Estado da Modernização Administrativa. A cara do Simplex ou do cartão do cidadão. Mas não é disso que se fala. A não ser para dizer: “Aqui posso pensar e decidir, e mudar, e ver o resultado amanhã. Posso voltar atrás, corrigir e melhorar.” Convidada por António Costa, ascendeu a Secretária de Estado, quando o então ministro saiu do executivo de Sócrates para se candidatar à câmara de Lisboa. Há cinco anos que vive em Lisboa, numa casa pequena, junto à artéria principal da cidade.

Do que se fala aqui? De ter sido uma aluna exemplar numa Coimbra onde as mulheres não se doutoravam em Direito. Da vida numa cidade onde parecia mal ir ao cinema sozinha. Da vida que está para trás, em Moçambique, onde o colega de carteira era indiano e onde não se brincava com a filha da empregada. De como era vestir nesse tempo, dos códigos sociais, de um pai que contava histórias. Fala-se de ser “a mulher do Vital”, que começou por ser seu professor. De uma carreira não colidir com a outra, não competir com a outra. De não ser preciso prescindir da ambição, de quem se é. Do privilégio de viver com uma pessoa de quem se gosta.

Maria Manuel Leitão Marques nasceu em 1952. Não tem filhos. A entrevista aconteceu no primeiro feriado de Dezembro. Foi quando houve tempo. Na casa há alguns objectos de África, de incontáveis viagens. Há fotografias. É uma casa de passagem. A conversa, não.

 

 

Queria começar por Coimbra, 1975, e pedir-lhe que olhasse para si nesse período da sua vida.

Foi o ano em que me licenciei. Foi um ano em que vivemos no ar. No ano a seguir ao 25 de Abril andámos na rua, na Praça da República, até às quatro da amanhã, conversando sei lá de quê, na campanha eleitoral. Era militante do Movimento de Esquerda Socialista. Acabei o curso, sem grande pompa e circunstância.

 

Diz isso apesar da média final... Já lá vamos.

Tudo foi mais fácil nesse ano; não havendo passagens administrativas, houve coisas parecidas com isso. Tive de escolher entre a Faculdade de Direito, a escolha para onde muitos me empurravam (era muito prestigiada, só havia a de Coimbra e a de Lisboa); e a Faculdade de Economia, que era um projecto. Aberta no ano anterior, tinha meia dúzia de professores, não se sabia o que ia ser, tinha de ser feita de raiz. Escolhi o risco. O momento também se prestava a isso.

 

Formou-se em Direito com 17, o que não é propriamente comum. Todo o seu percurso a seguir, onde dá aulas, onde se doutora, onde faz a sua carreira, é em Economia. Porque é que não quis ficar em Direito? Ou será que não a quiseram em Direito?

Podia ter ficado e podia ter escolhido qualquer das áreas. Uma das razões [da escolha] foi a seguinte: nessa altura achávamos que íamos mudar o mundo. E achávamos que a universidade tinha que mudar nas suas formas de ensino, de organização. Fui da comissão de reestruturação da Faculdade de Direito, ainda como aluna, uma comissão mista de professores e alunos. Fizemos um projecto, nada radical, de inspiração anglo-saxónica, permitindo aos alunos trabalhar mais e não ter a aula magistral em que se repete o que está no livro. Ainda experimentei no último ano como é que essa reforma era passada para a prática. A minha sensação é que na Faculdade de Direito não ia mudar nada. Na Faculdade de Economia tinha a hipótese de trabalhar com uma perspectiva mais aberta. Foi razão determinante. Muitas pessoas diziam: “Mas ali tens uma carreira assegurada, com a tua nota…, como é que vais para o desconhecido?”.

 

Não houve uma sombra de discriminação pelo facto de ser mulher numa instituição secular e conservadora?

Nunca senti discriminação. No meu curso havia bons alunos, e sempre estive entre os melhores. Na primeira linha concorria com homens. Mas a mulher do Lucas Pires, a Teresa Almeida Garrett, era do meu curso e era boa aluna. A Anabela Rodrigues, que é do curso seguinte.

 

Sentindo ou não essa discriminação, a verdade é que esse era um tempo, e aquela era uma universidade, em que as mulheres não se doutoravam, nem davam aulas. Mesmo em Letras, Maria Helena da Rocha Pereira foi a primeira mulher a doutorar-se em 600 e muitos anos, prestando provas (antes dela, Carolina Michaëlis tinha sido doutorada, mas noutras condições). Em Direito, é difícil perceber como é que a ausência de doutoradas não era sentido pelas alunas como um peso.

Quando estive na Faculdade de Direito já havia muitas mulheres como alunas, embora a maioria fossem homens. Entro para a faculdade depois de 1969. As coisas estavam diferentes. Como estudante, trabalhei na redacção da Vértice, e era a única mulher. Na Faculdade de Economia, creio que estive algum tempo como a única mulher. Não é uma coisa que me amedronte. Já estive em vários conselhos, dirigi situações, em que só havia homens.

 

Foi educada para ser uma entre iguais, independentemente do género?

Não sei se fui educada para isso. A minha mãe diz que era muito refilona, desde pequena. Fui educada num ambiente de esquerda. O meu pai era anti-salazarista militante, passou-nos isso.

 

Não há rapazes? Foram educados da mesma maneira?

Tenho um irmão mais velho. Era comum a minha mãe ser mais exigente em termos da arrumação da casa com as duas filhas do que com o filho, mas nunca houve discriminação nenhuma. Acesso a bens culturais, estudo, investimento em educação, foi rigorosamente igual para os três filhos. Vivemos os três sozinhos quando estudávamos em Coimbra e também distribuíamos as tarefas de forma igual. Provavelmente até sou mais parecida com o meu irmão do que com a minha irmã, não apenas fisicamente, mas também naquilo que fazemos e de que gostamos.

 

Quelimane foi onde nasceu. Explique-me que marca é que Moçambique tem em si, como é que a formou?

Vivi metade da minha vida lá e metade da minha vida cá, em casa dos meus avós, numa aldeia ao pé de Aveiro, Alquerubim. África marcou-me muito. Pelo espaço, de que não vemos o limite. Pela liberdade, não em termos políticos, mas em termos pessoais. Nas cidades novas, (quando vamos ao Brasil ou aos Estados Unidos temos essa sensação), são mais abertas porque estão sempre pessoas a chegar e a sair. Isso toca o relacionamento social. Os países quentes são mais livres de preconceitos. Vestimos de acordo com o clima, se está muito calor não usamos meias. Quando vínhamos cá, o código vigente era muito conservador, apertado, old fashion. Não sei se Moçambique sofreu, e provavelmente sim, alguma influência da sua proximidade à África do Sul e à então Rodésia, agora Zimbabué, e à cultura inglesa. Viajava-se muito de um lado para o outro.

 

Sobretudo o que sentiam lá é que não havia o puritanismo, a preocupação com a reputação, que havia cá?

Disse tudo: a preocupação com a reputação. Lembro-me de a minha mãe aqui nos dizer, quando queríamos ir ao cinema à noite, sozinhas: “Não fica bem”. Era uma coisa que estávamos habituadas a fazer lá.  

 

Viveram sempre em Quelimane?

Sempre, com excepção dos oito meses em que vivemos em Lourenço Marques, agora Maputo. Fiz o 7º ano no Liceu Salazar. O meu pai era médico. Tinha a chamada licença graciosa, que fazia de cinco em cinco anos. Nessa altura vinha a família de navio, passar férias com os avós. O meu pai conseguia vir menos vezes mas ficar mais tempo, e acabávamos por fazer o ano lectivo cá.

 

Uma recordação de uma dessas viagens de navio.

Da primeira não me recordo, fiz com 17 dias. Mas recordo-me da última que fiz, já com 16 anos, no Príncipe Perfeito. Era um hotel de luxo sobre a água. Tínhamos um camaroteiro, que era aquele que tratava do nosso camarote. Almoçávamos, sempre na mesma mesa (as mesas eram distribuídas previamente). Havia as famílias que ficavam na mesa do comandante, as que ficavam na mesa do imediato. À tarde líamos, tomávamos banho na piscina, ficávamos a ver o mar no deck. Tocava a campainha para o lanche, com pãezinhos quentes. Dançávamos todas as noites. Vestíamo-nos a preceito para jantar.  

 

Como é que era com as roupas, tinham uma costureira que ia a casa?

Em Quelimane, para as roupas do dia-a-dia, tínhamos um alfaiate que ia a nossa casa, creio que se chamava Américo; a minha mãe desenhava os vestidos e ele executava. Quando éramos um bocadinho maiores íamos à modista que ela usava também. Não havia pronto-a-vestir. A minha mãe mandava vir linhos de Blantyre, que era uma cidade próxima, no Malawi, sempre que havia portadores. Tinha vários fatos, de manga curta, e vestidos de linho ou bordado inglês, que eram tecidos mais sofisticados, de melhor qualidade. Guardava-os numa mala de cânfora.

Nas viagens, o barco parava em Luanda, no Lobito, onde estava o meu tio, e depois na África do Sul, que era a paragem mais desejada, porque íamos aos grandes armazéns. O meu pai deixava-nos escolher uma boneca. Ainda me lembro da primeira que comprei no Cabo, mais pequenina, com sete anos. Na segunda viagem disse: “Podem escolher um vestido”. Era uma grande catedral de consumo. Era ver uma outra sociedade a que não estávamos habituados.

 

É filha daqueles que eram chamados de colonos. Brancos, com determinado estatuto social, numa sociedade muito estratificada. A maneira como descreve os lugares que ocupavam no barco é sintomático disso.

O barco era uma estrutura de classes. Mesmo dentro da primeira classe havia distinção. Nunca brinquei com nenhuma criança nem tenho memória de ver as pessoas que iam nas outras duas classes.

 

Em Quelimane, tinham essa organização social muito vincada?

Na nossa vida, tanto no liceu como no colégio, havia pessoas de diferentes origens. Quando voltei, [depois da licença graciosa], com oito anos, tinha colegas indianos; na verdade uns eram paquistaneses, outros eram goeses. Frequentavam o mesmo colégio, apesar de ser católico. A colonização de Moçambique é elitista, é uma colonização de funcionários. Os professores, os directores de finanças, os médicos. O pequeno comércio é dominado pela comunidade indiana, paquistanesa, goesa, que era forte em termos económicos. Lembro-me de o meu pai dizer: “Ali vive o senhor mais rico aqui da terra”. Era uma família indiana, os filhos eram nossos colegas e amigos. Não havia nenhum sinal exterior de riqueza.

 

Para além dos amigos do colégio, com quem é que brincava? Podia acontecer brincar com filhos de empregados, com negros, numa igualdade de circunstâncias? Ou aquilo estava organizado socialmente para que essa contaminação não se desse?

Podia, mas não era muito frequente. A organização não favorecia. Como em todo o lado, relacionamo-nos com os colegas do colégio ou do liceu, com os filhos dos amigos dos nossos pais, com os vizinhos.

 

Com aqueles que tinham uma vida como a vossa.

E nesses, havia indianos, não havia muitos negros. Uma história muito importante na minha vida: um dia, a Madre Superiora apareceu no meio de uma aula. Era raro vê-la. Falou com a nossa professora, mandou levantar três pessoas indianas, mas não todas as que eu julgava que eram indianas. Nesse dia vimos passar uns camiões de caixa aberta cheios de indianos dentro. Os saris esvoaçavam, as pessoas iam em pé. Tudo aquilo era estranho. Foi a seguir à Invasão de Goa. A comunidade de origem indiana, não a de origem paquistanesa, foi metida em campos de concentração, junto à praia. Começou por ser o meu colega de carteira a explicar-me porque é que não tinha ido. Um jovem de nove anos contou-me toda a história da Índia e do Paquistão. O Paquistão estava com Portugal. Aliás, isso foi colado nas janelas de todos os paquistaneses que viviam em Quelimane.

Nessa noite fomos ver doentes ao campo de concentração. Estava lá um senhor indiano, riquíssimo, que, quando da independência da Índia, ficou com o passaporte inglês. Estava a ajudar os seus conterrâneos e amigos presos naquele campo. Aprendi nessa altura que uns eram de religião muçulmana, que comiam cabrito e frango, e que outros eram vegetarianos. E também que se podia ser inglês sem ser loiro de olhos azuis.

 

José Gil, que também nasceu em Moçambique, falava de uma espécie de consciência que se instala sub-repticiamente, a de que se pertence a uma classe poderosa. E de como é difícil extirpar essa raiz que é inculcada cedo, sem que isso seja um processo consciente. Em Coimbra quando o país está em revolução e a sua vida também, olhou para a vida de privilégio que tinha vivido? Como é que olhou para as desigualdades sociais de Moçambique?

Vimos para aqui e parece que é outro percurso de vida. É o percurso das lutas políticas, das lutas anti-coloniais. Não me lembro de ter passado por essa sensação que descreveu. Posso dizer que tive uma infância privilegiada – alguém que pode estudar, sem fazer por isso, que tem quem lhe pague estudos, que pode vir para a universidade. Não voltei a sentir-me de África durante aquele período de Coimbra.

 

Como é que era o seu pai?

O meu pai foi marcante por esta educação de mundo que nos deu. Foi estudante de Coimbra. O meu avô tinha uma livraria, a minha avó era professora. Até acabar a licenciatura, a grande viagem que tinha feito tinha sido aos Açores. Tocava violino muito bem. Resolveu fazer a tropa em Timor, a seguir à [Segunda] Guerra. Acho que isso o marcou, e marcou a família toda.

 

Foi imediatamente em 1945?

Foi a seguir à saída dos japoneses. Vai com o primeiro grupo de militares portugueses que entram na ilha. Faz a viagem de navio por Moçambique. Pararam em Lourenço Marque, ele gostou muito. Vão pela Índia, ficam em Timor. Contou-nos muito as histórias de Timor que viveu. E aqueles amigos, foram amigos para o resto da vida. Iam ver os doentes à montanha, de burro. Foi com o avião do correio à Austrália. E depois Macau, Hong Kong, Canal do Suez. Na minha casa há objectos desses pontos todos. Imagine o que é para um jovem médico, que nunca tinha saído de Portugal, fazer uma viagem dessas... Esse gosto de saber do mundo, ficou-lhe. (Em minha casa toda a gente lia jornais. Leio jornais desde os 11 anos.) Quando veio, casou-se com a minha mãe, que era professora primária. Depois deixou de trabalhar. Foram para Moçambique.

 

E assim nasce em Moçambique.

E assim nascemos em Moçambique, os três irmãos. O meu pai estava sempre de serviço. Era o único cirurgião que existia na cidade. A minha mãe tomava conta de nós e da casa. Tínhamos a vantagem de tomar o pequeno-almoço, o almoço e o jantar juntos. Dávamos um passeio de carro à noite. A praia era a 20 quilómetros. Falávamos de tudo. Na minha casa festejava-se o fim do Ramadão porque tínhamos ofertas de comida nesse dia. Comecei a comer comida picante muito cedo, a comer o queijo Roquefort que vinha nos barcos noruegueses com a manteiga. O meu pai ensinava-nos muita coisa porque sabia muita coisa. Gostava muito de música, especialmente clássica, aprendemos a ouvir música com ele. Ouvia-se muito alto. O nosso vizinho dizia que não precisava de comprar [aparelho]: a música servia para a rua e para os vizinhos também.

 

Do que é que se falava que seria o vosso futuro, o seu futuro?

O que quisesse. Que íamos para a faculdade era um dado adquirido.

 

Podiam ter cedido à influência da África do Sul e da Rodésia ou essa hipótese nunca se pôs?

Na minha casa nem sequer alguma vez se levantou outra hipótese que não vir para Portugal. A minha grande família, daquelas em que o primo em décimo lugar é como se fosse primo direito, é do lado da minha mãe. A minha mãe criou-nos sempre nessa grande ligação à família.

 

Como é que se dá o salto desta pessoa, que vive neste meio que acaba de descrever, para Coimbra?

Entrar em Coimbra era fácil na ambientação. Quase toda a gente vinha de fora. Os meus pais, uma vez por ano, vinham ver-nos, nas férias do verão. Do ponto de vista financeiro era mais económico, e também não fazíamos grande pressão para ir. Só volto muito mais tarde, na década de 90, a Moçambique.

Lembro-me de ter tido um problema burocrático com a matrícula, no 1º ano, e de o meu irmão ter dito: “Resolve!”. Até ali, até tirar o passaporte, era o meu pai que tratava.  

 

Não tinham grande autonomia naquilo que era a vida prática...

Nenhuma. Estive duas horas fechada na secretaria a fazer requerimentos. Fui para ali pequenina, cheia de medo, não sabia como é que aquilo se fazia, papel azul, selado; e de repente, ao fim da tarde, com o problema resolvido, disse: “Cresci. Fiz isto sozinha, não tive apoio”.

 

Como é que se envolve nos movimentos contestatários?

Já sabíamos que éramos de esquerda. Em minha casa tinha de se ser do Benfica e de esquerda. Uma vez a minha irmã ousou vestir-se do Sporting e ir com umas amigas receber o ministro do Ultramar ao aeroporto…, e ia sendo expulsa de casa [riso]. Tínhamos uns primos que tinham fugido da PIDE, tinham-se escondido em casa do meu avô. O meu irmão também nos enquadrou no conjunto de amigos dele. Tenho uma universidade muito politizada. Tanto à direita como à esquerda, as pessoas que tinham opção afirmavam-na muito claramente. Só havia ou ser de direita, ou ser de esquerda. Não ser nada é uma coisa que não me está na massa do sangue.  

 

Quando é que leu Marx e O Capital pela primeira vez?

Tive a sorte de aprender Marx na faculdade, antes do 25 de Abril, embora o director fosse uma pessoa de direita, mais à direita do que Marcelo [Caetano]. O Prof. Queiró fez tudo o que estava ao seu alcance para que todos os bons alunos pudessem ser assistentes da faculdade, mesmo aqueles cujas opções políticas eram já conhecidas. Há com certeza excepções a esta regra, mas também há factos que a confirmam. O Avelãs Nunes, o Vital [Moreira] foram contratados. E quando o Vital foi expulso, a seguir a 1969, o Queiró ajuda à sua reintegração na faculdade.

O resultado foi que o Avelãs Nunes foi meu professor de Economia Política e também ensinou Economia Marxista. Ouvi falar de Marx nas aulas de Direito Constitucional com o Joaquim Gomes Canotilho. Ouvi depois o Vital nas aulas de Direito Corporativo, por estranho que pareça.

Havia A Centelha, que editava livros que comprávamos antes que desaparecessem; havia aqueles que comprávamos atrás das livrarias e que vinham de França. Tudo isso aconteceu; mas também aconteceu isto que lhe estou a explicar.

 

Imaginava coisas concretas em relação à sua vida, a reprodução de um certo modelo familiar, social, fazer uma vida pelo mundo fora, que fosse diferente daquilo que conhecia cá? Justamente porque tudo estava em aberto e era possível escolher, configurava cenários mais concretos?

Não me lembro. Tudo era possível e variável. Fui boa aluna desde o primeiro ano, porque estudei, trabalhei para isso. Isso significou que uma parte do meu tempo foi investido ali. Mas nunca quis perder nenhuma oportunidade de viver intensamente. Não fiz planos de vida, nem de sair, nem de ficar, nem de casar e ter filhos.

 

O que, por um lado, é sinal de um tempo. As meninas da geração anterior à sua…

Estavam determinadas a casar e ter filhos.

 

Isso nunca foi para si uma pressão?

Não. Nem a seguir, depois de me licenciar.

 

Como é que conhece o Vital, como é que se apaixona por ele?

Fui aluna dele. Depois fomo-nos encontrando ao longo da vida. Até que fomos viver juntos, com muito sucesso. É muito bom viver com uma pessoa de quem se gosta muito. É um privilégio. Talvez o maior que se possa ter, porque não é fácil.  

 

O que é que foi na Coimbra conservadora de então um romance entre uma aluna e um professor?

Encontrámo-nos muito mais tarde. Mas na Coimbra conservadora dessa altura, um caso desses custou o lugar a um professor. Encontrámo-nos muito depois do 25 de Abril. Vivo com o Vital desde 1987.

 

Apesar de ter sido mais tarde, sendo ele professor, sentiu que tinha de se afirmar socialmente, academicamente, em relação àquela pessoa que estava ao seu lado?

Tinha a minha carreira determinada, feita e escolhida. Não quer dizer que ele não me tenha ajudado – ajuda-me muitas vezes. No final da tese [de doutoramento] ficou comigo o mês de Agosto a rever as provas, em 1989. Mas tinha a minha opção de vida feita, estava numa universidade diferente.

 

No fundo, já existia enquanto Maria Manuel Leitão Marques quando passou a ser também mulher do Vital.

Sim, sim. Não quer dizer que muitas vezes não digam “a mulher do Vital” [riso].

 

Digam ou diziam? Como é que lida com isso?

É possível que digam ainda. Quando vim para Lisboa, para o Governo, perguntavam-me com grande frequência: “Então e o Vital, como é que fica?”. E eu dizia: “Fica em casa”. O Vital já esteve em Lisboa e eu em Coimbra e nunca ninguém lhe perguntou: “Então e a Maria Manuel, como é que fica?”. Ou mesmo agora, que está em Bruxelas.

 

Isso são as pessoas das vossas relações. Está ainda enraizado um modelo familiar e social no qual a mulher, apesar de tudo, não é o elemento dominante.

Essa era a grande discriminação. Nunca a senti na faculdade, mas senti, e lutei contra ela, por exemplo, quando estava no café até à meia-noite numa mesa onde já só havia homens. Ou ia estudar para casa de uma colega e vinha às quatro da manhã para casa sozinha. Era socialmente reprovável, no prédio.

 

Na raiz dessa reprovação, estava o perigo de uma gravidez, era sobretudo isso? E tudo o que rodeava a sexualidade.

Estava, tudo isso. As frases que se ouviam com frequência: “Já é o segundo namorado, namora muito” – mesmo em meios de esquerda, mesmo em meios supostamente mais liberais. Nunca se dizia de um homem que “namora muito”, só se dizia para elogiar. Estas coisas são ditas por mulheres, consentidas por mulheres, e até apoiadas.

 

Uma das questões que aqui se levantam é a da proeminência social e profissional das mulheres, por vezes penalizada aos olhos do seu grupo. Em relação ao marido, é preciso que aceite que ela também tem uma carreira, que se destaca socialmente.

Acredito que seja um problema existente, ainda. E provavelmente aquele que justificou que muitas mulheres não tivessem sido professoras na universidade. Mas tenho essa sorte, o Vital sempre me apoiou muito, mesmo para fazer coisas que não quis fazer, que não quis aceitar. Entusiasmou-me, disse: “Vais conseguir”.

 

Nunca houve competição?

Não competimos um com o outro. Nunca vi aquela frase triste: “Caramba, toda a semana em Lisboa…”, qualquer coisa dessa natureza. Também, teria uma boa resposta... É muito reconfortante saber que quem está ao nosso lado festeja aquilo que nos corre bem.

 

É uma questão séria, mesmo nos tempos que correm: que fazer quando os dois têm carreiras e egos que precisam de grande investimento e de ser permanentemente reforçados?

Presumo que seja um problema, mas não é um problema em minha casa. Não sei quem vai sacrificar-se, mas admito que na maioria dos casos sejam as mulheres. Na administração pública, no Governo, há mulheres; mas vá ver quantas mulheres há em cargos de topo nas empresas. Ainda ontem estive numa reunião com empresários, de topo, e eu era a única mulher na sala. Porquê?

 

O facto de não ter tido filhos mexeu com a sua vida e com a sua carreira? Muitas dessas mulheres podem dizer que não subiram profissionalmente porque a dada altura foi preciso resolver um surto de febre.

Provavelmente isso favoreceu-me, não tive que passar por essa dificuldade. Mas tenho no meu gabinete mulheres, e algumas com filhos pequenos, que gerem muito bem a sua carreira.

 

Quantas vezes se marcam reuniões para as seis da tarde? As mulheres que têm filhos, a essa hora, já estão a pensar nos banhos e no jantar…

Devíamos cuidar de não ter reuniões ao fim da tarde em nome dos homens e das mulheres que têm filhos. Não gosto que se diga: “Não devíamos fazer reuniões ao fim da tarde por causa das mulheres”. Já estamos a admitir que são elas que os têm que ir buscar, dar banho e dar comida.

 

Estou só a reproduzir expressões correntes e a descrever o grosso das situações.

Estas é que são as lutas difíceis, as lutas que nenhuma lei pode fazer pelas mulheres. É cada uma, em sua casa, que tem que decidir que chega às quatro da manhã, não importa o que os vizinhos pensam. Tem que conciliar e tem que conflituar com o marido, que sempre viu a mãe estar em casa, e que vê a mulher dos colegas ir para casa. Vai ter que o enfrentar. Boa sorte.

 

Posso perguntar porque é que não teve filhos?

Não gostava de responder a essa questão. Sou muito positiva, resiliente, aguento bem a adversidade. Não vivo a chorar pelo que não tenho. A minha mãe também é assim, enfrenta. Herdei isso dela. O meu pai deprimia mais com mais facilidade. Tive sempre emprego, sempre gostei daquilo que faço, trabalho com gente que considero (detestaria ter que obedecer a uma pessoa que não considero. Posso discordar, e até zangar-me, mas considero a pessoa). Tenho muita coisa para ser feliz, muita.

 

Voltando atrás: envolveu-se politicamente, no sentido de militar num partido, tão profundamente quanto o Vital foi do PC?

Não. A seguir ao 25 de Abril todos andávamos a ver para onde é que íamos, particularmente os que eram politicamente activos. Não tinha nenhuma envolvência partidária. Do meu grupo de amigos muitos foram para o PC. Também fui convidada para ir para a UEC, a União dos Estudantes Comunistas. Um amigo, um conhecido militante do PC, o Rui Namorado, disse-me: “Se quiseres vai, mas para o PC é muito fácil entrar, é muito difícil sair”. Nunca me esqueci desta frase, que foi sábia. Como tinha dúvidas, não fui. E ainda bem. Vi quando o Vital saiu do PC, em 1986, como é difícil sair, como se atiram à pessoa, não à ideia.

 

O que quer dizer quando diz que se atiram à pessoa é que se atiram ao carácter, a quem ela é?

Sim. Tentam destruir a pessoa. Depois apareceu o Movimento de Esquerda Socialista, que era uma coisa mais aberta, com muita gente de que gostava, e fiz essa experiência. Mas não gostei muito. Num partido mandam-nos defender coisas com que não concordamos, de que não estamos convencidos, e tenho muita dificuldade em fazer essas coisas. É melhor estar de fora para poder escolher as causas em que verdadeiramente acredito.

 

Esta questão é um preâmbulo para lhe perguntar se nunca pensou em si como uma política a tempo inteiro. Muitas das pessoas que hoje vemos na cena política vêm desse movimento, são da sua geração. Seria legítimo, ainda por cima destacando-se na vida académica, pensar que essa era uma via para si.

Quando era estudante, não. Nós não víamos o 25 de Abril no dia seguinte. Vimos o 16 de Março, vimos a antecâmara. Para mim, e para muitos daqueles com quem conversava todos os dias, em Coimbra, o 25 de Abril foi uma surpresa. Foi um amigo que estava na tropa que ligou para casa às seis da manhã, a contar. Perguntámos: “De direita ou de esquerda?” Foi um dia inesquecível, mas foi uma surpresa. No dia 24, no dia 23 nenhum de nós, tirando aqueles que militavam politicamente, e que sabiam que iam passar à clandestinidade ou que iam fazer política profissional de oposição, pensava na sua carreira política. Nenhum de nós pensava ser deputado. Também nenhuma mulher pensava ser diplomata, porque era uma carreira que não nos estava aberta. Não estava no nosso mapa de possibilidades.

 

Apesar de todo o envolvimento político daqueles anos…

Eu já tinha assinado muita coisa. Quando andava no terceiro ano assinei um abaixo-assinado no Congresso da Oposição Democrática, o último que houve, em 1973. Disseram-me ao lado: “Estás a assinar a tua sentença de morte, na universidade já não ficas”. Até esta porta me poderia ter sido fechada nesse dia. Era muito difícil pensar na carreira política. Depois do 25 de Abril, sim. Mas esta minha primeira experiência não me deixou entusiasmada, e as carreiras políticas fazem-se pelos partidos, é assim que a democracia está organizada. Nunca me arrependi de não ter entrado por aí.

 

Começámos a entrevista por 1975, estamos agora em 1974, o ano em que tudo muda. Teve vontade de vir para Lisboa, de viver aqui onde parecia que tudo se passava?

Tinha uma vontade louca e uma inveja enorme. O meu irmão, no 25 de Abril, meteu-se no carro com uns amigos e veio para Lisboa. Não me trouxeram. (Tem fotografias espectaculares do dia 25 no Largo do Carmo. O meu irmão tira muitas fotografias, o meu pai e o meu avô também). Depois queria vir no 11 de Março. No 1 de Maio também houve uma grande manifestação em Coimbra. Vim no 18 de Novembro. As coisas que se passavam em Coimbra eram de menor dimensão do que as que se passavam em Lisboa, mas as manifestações eram enormes, e as discussões na universidade eram até às tantas.

 

Mas não pensou mudar-se para Lisboa.

Quando me licenciei podia ter vindo. Não foi uma opção que tivesse sequer posto.

 

Disse que uma vez ou outra a convidaram para coisas e que o Vital disse: “Vai, vais conseguir”. Está implícita uma certa insegurança? Parece uma mulher muito confiante.

Gosto de fazer aquilo que acho que vou fazer bem, onde me vou sentir bem. O resto não vale a pena. Não é uma crítica, mas há pessoas para quem ser ministro, em si, já é uma coisa tão boa, que lhes dá força e energia para aguentarem tudo o resto que não é bom.

 

Convidaram-na para ser ministra e recusou?

Sim.

 

Porque é que recusou?

Porque não era uma coisa que me atraísse muito, e também porque não sei se faria bem o cargo. Mesmo este cargo que tenho agora, não foi uma coisa que dissesse que sim à primeira. Fiquei dividida a meio. O António Costa, que admirava, que tinha visto como Ministro da Justiça tentar sair da normalidade, foi a pessoa que me convidou. Fui treinada para fazer investigação, para dar aulas, para montar coisas. Fiz provas internacionais, concorri a projectos difíceis, ganhei-os quase todos. Aprendi a fazer e fazia bem. Porquê deixar tudo e mudar para outro lado? Aceitei o risco. “Vou experimentar”. E gosto muito de fazer as coisas e vê-las no dia seguinte prontas – é uma coisa que nunca se tem na universidade. Ser ministra, provavelmente pela exposição…, recusei.

 

Porque é discreta?

Não me importo nada de ficar atrás do palco no momento da glória. E o Vital também já recusou ser ministro várias vezes, ao contrário do que se diz aí. A entrevista não é sobre ele, mas fica dito. E mesmo deputado europeu, não aceitou à primeira. Portanto, não tinha assim muita autoridade para me mandar aceitar… [riso]

 

Mas é também uma questão de insegurança?

Não. Já fui presidente do conselho científico da minha faculdade, já montei projectos de investigação em África, na Europa, na América Latina. Já dei muita prova na vida de que sou capaz de fazer coisas. É este palco de exposição que não me agrada. O não sermos julgados pela qualidade do nosso trabalho mas por factores que muitas vezes não têm a ver com a qualidade do nosso trabalho. Era uma coisa que tinha a impressão que era assim, e que agora, depois desta experiência política, tenho mais impressão ainda. As pessoas saem e entram por outras razões que não têm a ver com a qualidade do seu trabalho.

 

Não se pode queixar muito de ser fustigada na praça pública. A sua área é frequentemente apontada como um dos projectos de sucesso da governação de José Sócrates.

Também fiz muito por isso [riso]. A área presta-se. Mais do que outras mais difíceis, mais complicadas de resolver.

 

Porque é que se chama Maria Manuel?

Na minha família há muitas Manuelas. A minha mãe, tias, primas. Creio que sou Maria Manuel porque a minha mãe tinha um irmão que era da Força Aérea e que morreu num desastre. Um avião que tocou no outro, em Maio de 1952. Nasci em Agosto. Ele chamava-se Manuel. Era meu tio, mas não o conheci.

 

 

Publicada originalmente na Revista Pública, em Dezembro de 2010