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Anabela Mota Ribeiro

Gabriela Moita (2005)

21.07.19

Gabriela Moita é psicóloga. «Discursos sobre a homossexualidade no contexto clínico» foi o tema da sua tese de doutoramento. Questões como a orientação sexual e a construção da identidade são temas privilegiados no seu estudo.

Actualmente é possível vê-la no programa da NTV «Estes difíceis amores», ao lado de Júlio Machado Vaz.

 

As diferenças entre o masculino e o feminino estão cada vez mais diluídas. O que é que hoje pode definir um género e outro?

Em cada sociedade, em cada momento histórico, em cada cultura existem uma gama de comportamentos possíveis. A que podemos chamar paleta de cores possíveis, de comportamentos gerais. Destes comportamentos atribuem-se determinadas cores ao masculino e outras tantas ao feminino. Foi acontecendo que as mulheres passaram a ser capazes de chamar para si a gama de cores que fazia parte da atribuição ao sexo masculino. Já são muito poucas as cores reclamadas pelas mulheres em relação às quais dizemos «Oh, que estranho».

 

Os papéis do feminino passaram a ser quase todos os possíveis.

Quem ainda não conseguiu ter o mesmo ganho foram os homens. E isto porque os papéis femininos foram tão desvalorizados historicamente... A condenação de dois homens se deitarem um com o outro não era por se deitarem um com o outro. Era deitarem-se como se fosse com uma mulher!

 

A génese é essa?

A Bíblia diz isto: «Nunca te deitarás com um homem como com uma mulher». Platão, na Grécia Antiga, dizia também isto: «Não te comportarás como uma mulher».

 

Não era tanto a ideia de desvirtuar o que seria uma ordem da natureza, na qual os diferentes se encaixam, mas a desvalorização que estava implícita no comportamento?

Está escrito assim. Claro que a interpretação depende de quem leia. Este sentido de desvalorização está aqui presente. Sempre foi mais complicada, porque sujeita a uma desvalorização maior, a possibilidade de um homem ir buscar uma cor da paleta atribuída às mulheres do que o contrário. E quando isto acontece, é visto negativamente. Está sujeito ao riso, à chacota.

 

Logo a seguir vem o estigma de que é homossexual?

Efeminado, pelo menos. Não sei se na cabeça das pessoas o efeminado está sempre ligado ao homossexual, mas está muitas vezes.

 

Não é sempre? Quando o efeminado é alvo de chacota, imagina-se que é homossexual.

Porque faz parte dos comportamentos do masculino gostar-se de mulheres e do feminino gostar-se de homens. Portanto, quando um homem tem comportamentos do feminino, e se é efeminado, uma das características que faz parte deste menu é o gostar de homens. Vem do século XIX esta ideia de que a orientação era mais uma das coisas que fazia parte do ser masculino e do ser feminino. Era mais um papel atribuído a cada um dos seres.

 

Na vida activa a atribuição de papéis está muito mais diluída. Mas na educação, se a criança é rapaz ou rapariga, o azul ou o rosa que lhes vestimos, ou o tipo de brinquedos, são orientadores de um modo mais rígido.

Em termos gerais, penso que sim. Mas já vejo pais que não querem transmitir uma rigidez de papéis. Com a consciência de que ao definir papéis e ao querer construir uma identidade logo ali se está a limitar o filho ou a filha. Isto é não permitir ao ser humano a sua globalidade, a sua possibilidade total. Em relação à roupa, penso que é a área onde tem mais razão. Não é fácil vestir um menino com muitos floridos e enfeitá-lo como se faz com uma menina.

 

Causa menos estranheza ver uma rapariga com brinquedos de rapaz; diz-se com orgulho «Eu era uma maria-rapaz». Quando o rapaz brinca com as bonecas ou quer ser bailarino é mais difícil aceitar isso.

Mesmo nas crianças permite-se mais facilmente as raparigas usarem comportamentos ditos dos raparazes que o contrário. Mais uma vez, é por se considerar que aqueles são bons. As raparigas passam a ter padrões de comportamento positivos, válidos, e o contrário, não.

 

Na vida doméstica os homens desempenham um papel que era até alguns anos exclusivo das mulheres. E já não é só na cozinha.

É verdade o que diz, mas não na mesma proporção. Na semana passada diziam-me numa sessão «Que remédio, nem que não quiséssemos, tínhamos de ajudar. A mulher está fora e a casa está lá». Não sei se será assim tão transversal. Nalgumas classes sociais, nalguns meios, se o homem vai fazer aqueles papéis, é desvalorizado. Não pode fazê-los, na própria leitura da sua masculinidade. Claro que podemos dizer que não ajuda por causa de um padrão machista; mas exactamente por causa deste padrão está limitado nas suas possibilidades.

 

Apesar de inquestionáveis mudanças, a participação dos homens e das mulheres não é equiparável?

Em muitas casas, os homens ajudam. Mas ajudar não é uma co-responsabilidade. A responsabilidade da gestão é delas. Se alguma coisa falta, a atribuição última da responsabilidade é dada à mulher. O homem até ajudava, nomeadamente se ela tivesse dito que era preciso!

 

A psicologia é indissociável da biologia na tentativa de analisar comportamentos. Há alguma base genética que ajude a explicar a tendência das mulheres para a sensibilidade e dos homens para a força?

De todos os estudos que foram feitos, não há nenhum conclusivo, nenhum que diga: «As mulheres têm mais tendência para isto». Como estes estudos são feitos retrospectivamente, (quando as pessoas já tiveram alguma experiência de vida), não se pode saber se aquilo é o resultado de ou se foi a causa de. Penso que dicotomizando o que quer que seja, estamos sempre a excluir a gama de variações possíveis entre uma coisa e outra. Há uma coisa inegável: geneticamente e biologicamente temos um bi-morfismo sexual. Ou seja, há duas formas distintas. Mas quando dizemos duas, estamos a retirar tudo o que está no meio. Se a cada pessoa, independentemente do seu sexo e da forma com que nasce, lhe fosse dada uma possibilidade de escolha, poderíamos encontrar muitas mais variações dentro dos sexos. É não permitir que cada um use a sua liberdade plena, e possa viver com facilidade na sua diversidade.

 

Há relação entre a assunção crescente da homossexualidade, sobretudo masculina, no sentido de ser mais visível e estar integrada na sociedade, e esta diluição de papéis do masculino e do feminino?

Acho que estão completamente ligadas. Porque é que as mulheres gostam de homens e os homens de mulheres? Porque assim se definiu. Quando não se considerar que isto faz parte do menu, as pessoas podem gostar de quem quiserem; de pessoas do mesmo sexo, de sexo diferente, em momentos da vida de um e depois de outro. Quando os nossos papéis não forem rígidos, esta coisa de nos determinarem à partida de quem vamos gostar, (só porque temos uma determinada forma física), esta questão da homossexualidade nem tem sentido de ser falada. Nem a heterossexualidade.

 

Hoje está assente que os homens também se cuidam, gostam e usam cremes. Contudo, quando esse interesse parece excessivo, isso levanta uma suspeição quanto à sua orientação sexual.

Na construção quer da orientação sexual quer da identidade de género existe, do ponto de vista social, uma gama de possibilidade. Nos anos 50 era suposto que os homossexuais fossem todos efeminados; o que se via eram as bichas da Avenida, homens que se travestiam, que se apresentavam como mulheres, exóticos, com determinado comportamento. Um adolescente, olhando para aquilo, pensaria «Ser homossexual é ser isto», e começaria a desenvolver este tipo de comportamento.

 

Ou então há a rejeição daquele comportamento e a assunção de outro papel.

Essa é outra possibilidade, agora já permitida. No trabalho que fiz encontrei homossexuais que nos anos 50 tinham de se pintar. Aquilo fazia parte. E hoje, já não sentem necessidade nenhuma disso, perceberam que podem ser homossexuais de uma outra maneira.

 

A escolha da orientação sexual ou do comportamento são uma construção?

Socialmente estruturamo-nos, não tanto numa escolha consciente e deliberada, mas quase por imposição dos modelos disponíveis. O que não é construído é o desejo. Quantas vezes queremos gostar da pessoa X e não sentimos nada? Ou já nos queríamos ter separado e não conseguimos? Não decidimos tanto quanto isso dos nossos desejos. O que está intrinsecamente em nós é a possibilidade de desejar, faz parte do nosso hardware. Depois, o que se coloca de software é que depende do momento. Face a este desejo, quem sou eu, o que devo fazer, como me devo comportar? E o comportamento é resultado de uma construção em função de todos os modelos que vimos, em função de tudo o que está disponível.

 

Hoje já é possível ver uma diversidade na homossexualidade...

Como não vemos na heterossexualidade.

 

 

Publicado originalmente na revista Elle em 2005

 

 

José Pedro Croft

15.07.19

Como falar de José Pedro Croft? Talvez falando das coisas que ele faz. Escultura, desenho, gravura (sobretudo estas). É um dos artistas mais notados da chamada geração de 80. Dentro dele, existe um mundo. Arrumado em caixas.

É um artista cujo vocabulário essencial inclui palavras como vazio, viagem, memória, espaço. E contentor. Sob a forma de caixas, caixões, sarcófagos, taças. Gosta de paradoxos. Pratica conceitos antagónicos como peso e leveza, estabilidade e instabilidade, verdade e ilusão, equilíbrio e desequilíbrio. Há quem chame às suas esculturas “geometria pedestre”. Os seus movimentos primordiais são o rectangular e o circular. O seu movimento essencial talvez seja o da narrativa. E com ela, uma marca que se deixa. 

É um homem que viveu uma vida errante. Primeiro no Porto, depois na Galiza, depois em Lisboa. Algarve. E novamente Lisboa. E sobretudo o mundo todo – ambição de um viajante infatigável. Nasceu em 1957. Estudou nas Belas Artes. Foi professor de liceu. Tem um ateliê em Lisboa onde vai todos os dias. Tem obras em importantes colecções públicas e privadas. Internacionalmente, goza de um particular prestígio no Brasil e em Espanha.

Neste momento, para além da exposição na galeria Filomena Soares, que pode ser vista até nove de Maio, expõe na galeria Senda em Barcelona e na Academia das Artes dos Açores (gravura). Prepara um projecto para um parque barroco holandês, outro para o Algarve e exposições em S. Paulo.

É em doses iguais tímido e amável. Fala com grande segurança da sua obra, e sublinha a importância do erro e do fracasso. Quando diz uma coisa tão banal quanto ter feito um programa na televisão, cora… Inusitado, num homem de 52 anos. O título da exposição que fez para os 50 anos da Gulbenkian era exemplar (além da exposição): Paisagem Interior.

 

Comecemos por um aparente fait divers: já foi a Pompeia?

Não.

 

Na sua obra, os “monumentos funerários” são constantes. E há peças, como um homem de pedra dentro de um caixão, que aponta para figuras de Pompeia, apanhadas pela lava, petrificadas. Uma viagem a Pompeia e ao seu trabalho pode ser uma viagem ao mundo dos mortos.

Percebo o que quer dizer. Quando comecei a trabalhar em escultura foi com mármores e foi com o João Cutileiro. O que me fascinava na escultura era o seguinte: como é que um gesto que acontecia num momento curto poderia durar milénios? Essa ideia de execução em tempo curto que se projecta num tempo tão longo era [como] viajar no tempo. Comecei a trabalhar com 20 anos e tinha uma vontade enorme de viver com grande velocidade.

 

Isso porquê aos 20 anos? Aos 20 anos acha-se que o tempo é ilimitado.

Eu tinha exactamente a consciência contrária. Essa peça de que está a falar, e que é de 1981, é um sarcófago e tem lá dentro a figura de um morto. Eu tinha 23 anos [quando a fiz]. Esse vazio, e o vazio da morte, esteve sempre presente no meu trabalho.

 

Porque é que tinha essa urgência? Porque é que o vazio e a morte eram, são, os seus temas?

A escultura, na sua tradição, é um monumento. Como a fotografia. A fotografia conta-nos uma coisa que já foi, mesmo que esse tempo, o remoto tempo, tenha só dois minutos ou três. Em relação à escultura, há uma tradição fúnebre que vem desde os menires, os cromeleques, os primeiros monumentos que são sempre sobre a ausência. São representação do que não está, remetem-nos para outro tempo, para outro espaço. Estamos a falar de mundos paralelos, de mundos a que não temos acesso. Há jogos de espaço e de tempo que são equacionados através desses objectos de passagem que são as obras de arte.

 

Objectos de passagem?

São objectos que não são funcionais, não são objectos que tenham utilidade a não ser para nos falarem dos mundos paralelos. Como a metáfora, é dar um nome ou falar de uma coisa quando na realidade nos estamos a referir a outra.

 

Porque é que a escultura, mais que tudo, lhe interessou?

Desde o princípio, a escultura tinha a ver com uma marcação de território, com a instalação de um espaço simbólico. E tem a ver com um mundo sedentário, de permanência. Ao longo dos anos ela foi-se tornando mais leve, foi perdendo essa carga tão pesada, e foi-se transformando quase num monumento prêt-à-porter ou cash-and-carry [risos]! Estruturas que se montam, ocupam um espaço, marcam território; mas depois podemos desmontá-las, guardá-las na mochila e viajar com elas. Digamos que foi o processo que foi ocorrendo no meu trabalho ao longo destes 30 anos.

 

Peso/leveza é um dos binómios essenciais quando se fala na sua obra. Mas também nomadismo/sedentarismo. Voltando à urgência dos 20 anos, explique-me que pessoa era então.

Não sei se sou capaz de me explicar muito bem. As coisas acontecem porque acontecem. Não tenho uma explicação para as coisas que me vão acontecendo. Comecei por estudar arquitectura na Escola de Belas Artes; poucos meses depois passei para Artes Plásticas.

 

Porque é que fez essa transição?

Porque Arquitectura fechou. Tão simples quanto isso. Foi imediatamente a seguir ao 25 de Abril, e para não estar parado entrei em Artes Plásticas; quando Arquitectura abriu, já não quis voltar. Entendia-me melhor no ambiente da pintura. Houve uma altura em que conheci o Cutileiro. Fui fazer-lhe uma entrevista para a televisão. [risos]

 

Trabalhou em televisão?

Nuns programas, quando ainda era a preto-e-branco. E demo-nos muito bem. Passados uns meses convidou-me para ser assistente dele. Fui imediatamente para o Algarve, para Lagos, e comecei a trabalhar de uma forma muito directa nos mármores, a aprender as tecnologias e a maneira de trabalhar.

 

O seu trabalho tem muito que ver com a arquitectura, com linhas, formas, volumes. Tem mais que ver com a arquitectura do que a pintura. Como é que estas disciplinas apareceram como um interesse, como um foco na sua vida?

Eu, de pintura, gosto, mas gosto de olhar. Quando trabalho em bidimensão, trabalho em gravura ou em desenho; e trabalho exactamente as mesmas questões espaciais que trabalho na escultura. Tenho uma necessidade de contar histórias. Tenho uma necessidade de perceber o mundo contando as histórias, sendo o narrador. Não sou bom a exprimir-me verbalmente, não é o meu modo de expressão preferencial. Mas há coisas que podem ser ditas através de uma linha, através de um volume, através de um plano de cor ou do chumbo ou da pedra ou através de um espelho. E não é que isso me preencha, mas vai preenchendo, esvaziando, preenchendo, esvaziando…

 

Tem memórias de si, em criança, a desenhar, a mexer em materiais – quando ainda eram só experimentação, descoberta, e não uma forma de expressão.

Tenho uma memória difusa dos líquidos das tintas e de borrar e de aparecerem formas, isso tenho, de sujar a mão e esborratar. Com as mãos e com pincéis.

 

Fale-me mais do contacto manual com as coisas, porque há também um lado muito sensual e sensorial no seu trabalho.

Sempre houve [contacto manual] e nem sempre tive grande controlo. É curioso que, no liceu, era muito mau aluno a desenho, estava sempre a chumbar, justamente porque não atinava com os limites das formas e empurrava a pintura, literalmente. Com tinta-da-china, com aguarela e com guache – era um desastre.

 

Tinha dificuldade em ser preciso? Vinha por fora – é isso que quer dizer quando diz que empurrava a pintura?

Por fora e por dentro, não misturava bem as cores, era muito desastrado. Interessa-me recuperar esse lado. Interessa-me, numa sociedade tão tecnológica e tão sofisticada como aquela onde vivemos, recuperar um lado de manualidade, de registo de mão e de corpo.

 

No documentário que Margarida Ferreira de Almeida fez sobre a sua obra, Faz-me Face, são constantes as cenas de montagem das peças. E percebe-se que a relação é eminentemente física: é um corpo a corpo. Muitas vezes são dois materiais, numa desproporção de forças, de peso ou sensibilidade. Outras vezes, é um corpo a corpo entre a escultura e aquele que a monta.

Uma folha de papel branco à minha frente é um corpo com o qual eu me deparo, me meço. Tenho a capacidade de me inscrever, de sair fora, de me expressar. Mas é sempre um corpo que se mede com o meu corpo. Seja num desenho pequeno, grande, seja numa escultura, seja na montagem de uma exposição. São sempre as medidas do corpo e as maneiras como elas vão ampliando, crescendo, encolhendo, mudando de local. Ir de um lado ao outro, de cima a baixo, percorrer, parar, avançar, fazer um zoom, ter um olhar de baixo para cima, medir de cima para baixo, são os assuntos do meu trabalho.

 

O cinema vive de contar histórias com imagens. Quando é que começou a ver cinema?

Comecei a ver cinema em miúdo, o Bucha e Estica, o Tom e Jerry. Ao cinema sozinho, comecei a ir com 12 anos. Ia ao Paris, ao pé da Basílica da Estrela [em Lisboa]. E via também em Sintra, no Carlos Manuel, nas férias. São os dois cinemas de que me lembro antes de aparecerem o Londres e as outras salas. Houve um filme que me marcou muito: o Lolita, do Kubrick [1962]. Não tinha a ver com a história, mas com a maneira como estava filmado. Tinha a ver com os planos, que não são planos de cor, com a intensidade do preto-e-branco.

 

Nesse filme, o conteúdo é brutal. (Provavelmente mais para raparigas do que para rapazes.) Mas a questão é saber se consegue dissociar o conteúdo da forma.

Interessa-me o conteúdo da forma. Há outro filme: o Couraçado de Potemkin [Eisenstein, 1925], que me toca pela força das imagens. Os olhares, os esgares, a intensidade das formas em movimento têm uma narrativa que é paralela e que se autonomiza à outra narrativa que está subjacente.

 

Na sua obra há uma sucessão de contentores, “objectos sólidos impossíveis”, prontos a receber um conteúdo. A partir do modo como fala dos filmes, percebemos que são dois conteúdos em separado, duas narrativas paralelas.

São duas narrativas que funcionam paralelamente, cada uma delas tem o seu campo de acção e sobrepõem-se. Podemos depois, como num TAC, fazer leituras das diferentes camadas, mas elas estão todas cosidas, integradas. Nós é que temos de fazer o trabalho de separação, se é que se pode fazer. O processo de fragmentação e sobreposição é evidente em certas peças. São como que pedaços soltos que pertenciam a histórias diferentes e que, de repente, tomaram corpo e fazem uma história única.

 

É um contador de histórias cujo signo não é a palavra. Estamos habituados a que as histórias sejam contadas através de palavras. As histórias que conta, e que incorporam estes vários fragmentos, são a sua história?

Vão sendo a minha história.

 

Qual é a sua história familiar? Temos falado da sua obra, mas ela não é uma peça isolada. É também a sua família, o seu país, a sua língua, os filmes que viu, os quadros que viu. E isso importa, não?

Claro. Na minha família tenho alguns tios arquitectos. Desde miúdo, habituei-me a ver maquetas e a ir a obras, a assistir à transposição de escalas. Da parte do meu pai, havia um grande interesse em literatura. Lembro-me de constantemente nos ler poesia e de isso ter sido importante na minha formação. García Lorca, Pessoa, muito Pessoa.

 

Por falar em caixas imaginárias, em caixas dentro de caixas, em pessoas dentro de uma pessoa...

Quando era miúdo, achava aquilo absurdo, mas ficaram as sementes. A decisão de ir para Arquitectura ou para Artes Plásticas, tomei-a muito só. Não tenho consciência de ter tido influência familiar para que fosse para isto ou aquilo. Na Escola de Belas Artes, há uma enorme partilha com um grupo de colegas, o Pedro Calapez, o Pedro Cabrita Reis, a Ana Léon, com quem comecei a expor.

 

As pessoas essenciais no seu mapa são essas?

Foram pessoas que me marcaram. A seguir conheci o João Cutileiro. Depois há muitas pessoas que entram e saem, aparecem e desaparecem. Tenho amigos de infância, tenho grandes amigos do liceu.

 

E encontros com autores, com artistas? Vi ali um livro de Giacometti: posso presumir que o encontro com Giacometti lhe provocou uma grande impressão. 

Há [encontros com] autores, mas acima de tudo há uma galeria enorme de anónimos. Desde esculturas africanas a arte egípcia, a escultores barrocos, de que nem sequer me lembro o nome, em quem fui tropeçando. Não só escultores, mas também objectos que fui encontrando – e daí a importância das viagens. Cada vez que viajo, só o andar na rua, o ver as pessoas, o entrar em lojas, o passear por cemitérios, dá-me uma riqueza de informação… Tropeço em coisas que eram as coisas de que eu ia à procura e não sabia.

 

Só quando as encontra é que…

É que elas se revelam.

 

Porquê esse conforto na relação com a morte? Passear por cemitérios traduz um pouco isso. Aquilo não é uma coisa ameaçadora.

Não, é um local que apazigua. O cemitério é a tal cidade paralela, com as avenidas principais, as avenidas secundárias, prédios de apartamentos, moradias – está representada a cidade de uma forma simbólica.

 

Que cemitérios o impressionaram?

Um cemitério onde não vou há alguns anos, mas a que ia com bastante frequência, é o Cemitério dos Prazeres.

 

Ia passear ao Cemitério dos Prazeres como quem vai passear ao Jardim da Estrela?

Sim.

 

Borges passeava no cemitério de Buenos Aires, como quem atravessa uma avenida. O cemitério da Recoleta é uma famosa necrópole. Mas em Portugal, tal como conhecemos os cemitérios, é um pouco mais estranha a ideia de passear no Cemitério dos Prazeres...

O cemitério dos Prazeres tem uma localização maravilhosa, sobre o Tejo, sobre a outra margem, tem de arquitectura funerária o que há de melhor. Pode-se perceber muito bem, pelas construções, pelos pequenos monumentos, pelas cruzes, pelos elementos em bronze ou em pedra, como era o imaginário no séc. XIX e princípio do séc. XX das pessoas que cá viviam.

 

Estava a falar dos cemitérios que visitou e que o marcaram.

Há o do Rio de Janeiro, o Cemitério de S. João Baptista. Tem a figura de um leão, que é um animal que não existe no Brasil, que simboliza a coragem, a força, a dominação.

 

Mas nada destes símbolos tem que ver com a morte.

É curioso, não é? Há em Barcelona o Cemitério de Igualada, que foi desenhado pelo Miralles e pela Carme Pinós, que tem a forma de uma praça de touros. Há como que uma arena central sobre a qual estão todas as gavetas em curva; isso dá-lhe uma dimensão trágica e forte. A representação da morte é também como uma representação da vida, permite pontes curiosas.

 

Nunca teve medo da morte?

Tive, tive, mas foi uma coisa muito fugaz. Aqui há uns anos capotei duas vezes com uma diferença de 48 horas. Foi uma coisa muito violenta. O carro saiu da estrada, fez uma pirueta e caiu de pernas para o ar. Tive a seguir uma coisa de adrenalina e de força vital com a mesma intensidade dessa visão da morte.

 

Ter sido num espaço tão curto parecia-lhe um sinal?

Não. Não lhe atribuo nenhum sentido especial, mas foi uma visão…

 

Como é que configuraria essa visão?

De um pânico associado a uma ideia de impotência, associado a um gesto de intensidade oposta e vitalidade.

 

Esse gesto de vitalidade é já reactivo.

Sim. Passou-se tudo, imagino eu, em segundos. A ideia de morte é outra coisa, é uma construção de outra ordem. Não é uma coisa que me assuste. É pensar qual é o meu lugar aqui e já antever este lugar sem mim. É aquilo de que a escultura fala: é a presença da ausência. É sabermos que há mundos aos quais não temos acesso enquanto aqui estivermos e que a passagem aqui tem uma duração no tempo e no espaço com limites.

 

Não é por acaso que se chama à morte a última fronteira.

Claro.

 

Aos 20 anos, essa urgência de viver tinha alguma coisa que ver com o medo de morrer cedo, ainda que disso não tivesse consciência?

Acho que não. É uma decisão: vou viver e dar-me o direito de a minha vida ter a ver com a expressão, e trabalhar numa área que tem a ver com a escultura, e de esse ser o assunto.

 

Quando é que a morte começou a constituir-se como um tema? 

É um tema de toda a gente, é um tema universal, e é cada vez mais um tema tabu. As pessoas não morrem em casa, não se fala da morte, não são estimulados os lutos. E a morte não é só uma morte física. Há a morte simbólica. Cada vez que saímos de um sítio e vamos para o outro estamos a actualizar a ideia de morte. Sempre que se fecha um ciclo e abre outro, aconteceu uma morte pelo meio. Vamos supor: eu vivia no Porto e passo a viver em Lisboa; posso lá voltar, e nesse sentido tenho um movimento linear, de ir lá atrás; mas já não volto da mesma maneira, volto como uma pessoa que partiu e não como uma pessoa que pertence ainda.

 

Porque é que saíram do Porto?

Por razões profissionais do meu pai. Trabalhava numa multinacional que decidiu expandir-se; começaram pela Galiza, foi para lá e nós fomos com ele. Lisboa, a mesma coisa.

 

Já era um menino introvertido?

Acho que sim. Socialmente sou tímido, mas, por outro lado, não tenho dificuldades em falar em público, em dar conferências.

 

Isso é o persona público.

É.

 

Dá a ideia que é bastante autónomo, que não depende dos outros para a confirmação de quem é ou do que faz. Que as narrativas existem do princípio ao fim dentro de si.

Realmente não preciso de grandes confirmações. E há confirmações que vêm, e eu não confio… Ou seja, já houve momentos da minha vida em que o meu trabalho não foi aceite e isso não me fez vacilar ou pôr nada em causa. Noutros momentos, de grande reconhecimento e aplauso, também não confiei. É boa a partilha, mas há uma voz interna à qual dou muita atenção. As confirmações vêm de dentro.

 

Quando é que começou a ouvir-se?

Muito cedo. Quatro, cinco, seis anos. Lembro-me de estar nas aulas, ainda na primária, e de partir para as minhas viagens, e de haver um desfasamento entre aquilo que era o conteúdo e aquilo que era a forma, (que depois reconheci no cinema). Lembro-me de, mais tarde, não ter tido dúvidas sobre o que queria fazer na vida, independentemente de ter uma profissão.

 

O que se quer fazer na vida é uma coisa, a profissão é outra. Não por acaso, quando falou na influência do seu pai, falou na poesia, não falou daquilo que ele fazia profissionalmente.

Pois. Isso nunca me foi apresentado como sendo uma coisa contraditória, um paradoxo.

 

Com os seus irmãos, tinha uma relação íntima?

Tenho uma relação cordial, cada um tem os seus interesses, vemo-nos com alguma regularidade. Mas não diria que temos uma relação íntima.

 

Era assim na infância e adolescência? Estava a lembrar-me daquele que aos 12 anos vai sozinho ao cinema.

Eu e os meus irmãos partilhávamos o mesmo espaço e era um espaço de crescimento. Somos cinco. Havia sempre as alianças e as guerras, as mudanças de alianças e as novas estratégias e as novas guerras… Nada de especial.

 

Esse jogo de tensões e poder, essa dinâmica, está presente em muitas peças suas. Nelas, a desproporção de forças é imensa, mas o equilíbrio é possível. Por exemplo, ocorre-me um banco de madeira que está inclinado e que está a suster um bloco de gesso pesadíssimo…

Esse banco, não é um banco qualquer: é um banco de estirador de arquitectura. O banco é como um personagem que se equilibra entre o peso desse monólito em gesso e a arquitectura; está apoiado numa parede que o sustém. É uma boa imagem de como lidamos com os pesos do mundo: parecem todos insuportáveis e, no entanto, estão todos num equilíbrio/desequilíbrio que não nos esmaga.

 

Outra peça forte: a cadeira cortada ao meio e colada na parede. Comecei por pensar nela como uma metáfora da sua timidez e da sua dificuldade em comunicar. A cadeira está destituída daquela que é a sua função inicial, que é servir de assento; estar virada contra a parede, de costas voltadas para a sala, o que a isola mais ainda. Mas esta é só a minha narrativa. Se as suas peças são contentores, o normal é que cada espectador projecte lá as suas narrativas.

A sua narrativa faz sentido, mas não é o único sentido possível. A razão pela qual comecei a usar móveis é porque remetiam para personagens. Há cadeiras do séc. XIII que remetem para um ambiente barroco. Há cadeiras que são rurais, são como pessoas no campo a falar. Neste caso é uma cadeira simples, dos anos 50, daquelas da Olaio. O assunto é outro: a cadeira foi serrada e encostada a uma parede, deixou de ser um corpo inteiro para passar a ser uma prótese; depois, há um espelho que está na parede e que a reconstitui; reproduzindo as duas pernas de trás, ficamos com quatro pernas.

 

Como chegou a essa narrativa?

É como se, em muitas partes das nossas vidas, tivéssemos sido amputados. O que tentamos fazer é reconstituir o “único” e o “um” antes de estar dividido. Passamos a vida toda a juntar coisas que nos completem daquilo que nos falta. Mas é uma impossibilidade porque uma vez que “um” tenha sido dividido ele já não volta a ser “um” outra vez, mesmo que a quantidade seja a mesma.

 

Isto leva-nos a falar de fracturas. Quais foram as grandes fracturas da sua vida? Uma escolha pode implicar uma grande fractura.

Não sei, não sei. [grande silêncio] Aquilo que queria fazer [na vida], foi uma escolha, o resto foram coisas que me foram acontecendo.

 

As suas peças contentores, e a sua vida-contentor, obriga a escolhas. Pela razão simples de não podermos conter tudo. Uma coisa prática: guarda objectos ou deita fora? Qual é a sua escolha?

Guardo alguns objectos. Tenho muito poucos que me acompanham. E de vez em quando deito fora. Tenho uma casa bastante despojada.

 

De que coisas precisa para se sentir em casa?

Algumas pinturas. Nenhuma minha. Não tenho um único trabalho meu em casa. Em casa, é como se o universo já lá estivesse, como se cada um daqueles objectos me falasse ou falasse de mim, e preenchem-me. E tenho taças de vidro – lá está, contentores –, cadeiras, mesas, sofás, livros, blocos de desenho.

 

E esses, é capaz de deitar fora?

Também. Há pessoas que lêem vários livros em simultâneo: eu tenho vários blocos. Cada bloco tem registos que podem ter cinco ou sete anos de diferença. Desenho num, depois noutro. Além de desenhar em casa, também os levo para viagens. Pego sempre no que está à mão, vou variando. Desenho basicamente aquilo que se vê em exposições, mas também escrevo pequenos apontamentos. Posso tomar nota de um número de telefone ou de uma morada, ou de uma coisa que tenho de fazer e que não posso esquecer, ou uma ideia que tive.

 

Os seus desenhos funcionam como bloco de notas da escultura? Um desenho pode ser uma escultura unidimensional cujo material é a folha de papel, e não o gesso, a madeira, a pedra?

O desenho é autónomo. Dentro do campo do desenho estão as tensões espaciais, a noção de centro, a noção de periferia, a noção de antes e de depois, as de marcas de um corpo. Em relação à escultura, são as mesmas coisas que estou a trabalhar no desenho mas espacializadas, ligando-as à arquitectura, à relação com o corpo.

 

Há pouco estava a falar da importância do falhanço…

Isso é uma coisa que adoro!

 

“Falhar, falhar sempre, falhar cada vez melhor”, parafraseando o Beckett?

Não podia estar mais de acordo. Num mundo onde é tão importante a performance, e ser um sucesso 24 horas por dia, 365 dias por ano, os falhanços são a grande alavanca do desenvolvimento. Do desenvolvimento interior e a razão do sucesso. É nos falhanços que me reconheço. É nos falhanços que reconheço as oportunidades e as possibilidades. É nos falhanços que faço as importantes descobertas.

 

Dê-me um ou dois exemplos para ilustrar isso que diz.

Em relação aos desenhos, se por qualquer razão não encontro o sentido dele, isso é angustiante e há uma sensação primeira de decepção. Como é que isto me saiu tão desajeitadamente e aparentemente tão repetitivo e tão banal? Já me tem acontecido agarrar num desenho e, em vez de o rasgar, pô-lo de parte, voltar a revisitá-lo daí a uns anos e perceber que aquilo que a mão estava a fazer eu ainda não tinha mecanismos para perceber. Às vezes falta apenas um traço, um pedaço de cor, apagar uma parte.

 

Como se um falhanço fosse um prenúncio de mudança?

Como se fosse uma mudança que está feita mas que ainda não tenho mecanismos para reconhecer. Acontece-me também com as fotografias. E aconteceu com a escultura. Só quando organizei a retrospectiva no CCB, em 2002, já com quase 25 anos de trabalho, é que consegui ver que todo o meu trabalho andava à volta de caixas, caixotes e contentores.

 

E caixões.

E caixões. Vamos cada dia para o ateliê, e cada dia é um dia; só começa a fazer sentido quando se passaram 20 anos e percebemos quais são as constantes que lá estão. Primeiro era pedra, depois desenho, depois madeira, depois bronze, gesso, depois espelhos. São objectos diferentes e são caminhos novos, que não se reconhecem uns nos outros. Mas esse caminho tão profundo, inconsciente, está lá. Precisa é de muito tempo para se revelar.

 

É paradoxal que tudo isto aconteça com uma lassidão que contrasta com a urgência que tinha aos 20 anos.

Sem dúvida. E isso tem-me permitido fracassar. Essa permissão para o fracasso faz emergir depois as coisas, o assunto.

 

Ou seja, quando há essa visão da morte, a seguir há uma pulsão de vitalidade.

Exactamente.

 

Olha para uma peça e diz: “Eu sou isto”?

Sou, absolutamente. Eu sou aquela escultura, eu sou aquela prótese, eu sou aquele bocado, eu sou o espelho, eu sou a imagem, eu sou o bocado de pedra congelado, eu sou a peça que se constrói de parafusos e ferros, e que se pode desmontar e voltar a construir noutro sítio. Mas é impossível que um arquitecto não seja as paredes, o tecto e o chão da casa, e um poeta não seja as palavras que lá estão. São outros meios para falar de nós.

 

Como é que chegou a essa certeza de quem era, do que queria fazer, de qual era a sua narrativa?

Cheguei a esta narrativa e a esta certeza com muitos fracassos. E por me ter permitido um entendimento do mundo não verbal. Ou seja, dar significado a uma cor, a uma forma, a um volume, a um vazio, a um tempo absurdo, a um tempo cheio de sentido. É isto que sou hoje.

 

Além desse mundo, há ainda o mundo daquele que é cidadão, pai de um filho, que vai ao supermercado, que tem contas para pagar.

É contraditório e também me ocupo dele.

 

Também sente prazer e identificação nele?

Sinto, sinto. Houve uma altura em que eu não tinha carro, trabalhava em Pêro Pinheiro e dava aulas à noite no liceu da Damaia. Vivia em Lisboa. Apanhava primeiro um comboio para Sintra, de Sintra um autocarro para Pêro Pinheiro, e depois voltava a apanhar um autocarro para Sintra, ia de comboio para a Damaia, onde dava aulas das 7 e meia da tarde às 11 e meia da noite. Aproveitava os tempos das viagens como tempo de leitura ou para ir olhando a paisagem.

 

Ou seja, fazendo uma viagem paralela encaixada nessa viagem real.

Sim. Nunca me lamentei por ter de viver esse mundo real. E as coisas que ensinava no liceu eram prosaicas, e a seguir os alunos faziam exercícios e eu tinha de dar notas. As coisas ligam-se umas às outras. É como ocuparmo-nos dos grandes assuntos e dos pequenos detalhes: tudo faz parte. E só faz sentido uma coisa com a outra.

 

 

Publicada originalmente na Revista Pública, em Abril de 2009

 

Ana Pérez-Quiroga

15.07.19

No começo, é a casa?

Sim! Em paralelo com a vida. Nasci em Julho, pertenço ao signo de câncer, que está ligado a uma ideia de casa. Talvez isso explique alguma coisa. Sou muito social, gosto de estar na rua, sair, andar. Mas é com grande alegria que fico em casa dias e dias seguidos. O meu tempo máximo sem sair de casa, e não estando doente, é de 11 dias. Aconteceu no ano em que terminei a tese do mestrado, em 2007. Este ano, em que termino outra tese, preparo-me para bater este record.

 

Que objectos, vivências, pessoas melhor traduzem a ideia de casa?

Livros, revistas, muita informação da internet e da rádio, amigos e, indubitavelmente, a minha família. Gosto de reunir amigos à volta da mesa, partilhando a vida, num acto também performático. O meu quotidiano gira muito à volta das amizades. A família tem uma extrema importância, tendo sido sempre o grande pilar. Apesar de ter uma família pequena e os meus irmãos viverem em cidades diferentes (um em Viseu e outra em Oslo), existe um apoio e amor incondicional. A minha mãe, com quem falo todos os dias e várias vezes ao dia, apesar de vivermos na mesma cidade, foi sempre o meu suporte e é, sem dúvida, a pessoa mais importante da minha vida.

 

Qual é a primeira memória que tem associada a casa e ao estar em casa?

É uma lembrança de infância. Eu ocupava o tempo livre a construir arquitecturas (casas) pelos cantos da sala, que envolviam objectos e tecidos. Sempre usei os tecidos, até nas minhas brincadeiras. Hoje constato que esta memória está presente nas composições que crio na casa onde habito, como se de “naturezas mortas” (género pictórico) se tratasse.

 

Explique como é que um doutoramento, uma casa e uma vida se conjugam umbilicalmente.

Esta casa onde habito é o tema da tese. Tornei-a, e aos objectos que a compõe, numa instalação artística. No que toca à vivência na instalação-arte, os objectos serão funcionais e relativos a uma vida doméstica “normal”. São integrados num todo, numa dinâmica constante, tornando-se numa fusão entre a casa, a tese e a vida.

 

Na sua prática artística, a casa afirmou-se desde sempre como reduto primordial, ou foi-se impondo como território mítico?

Penso que a casa se foi afirmando como um território fundamental de onde parto e onde chego. A ideia de habitação e das coisas incorpora a mitologia que se desenvolve a partir do conceito de domesticidade. As viagens que faço integram também este tema da casa. Tento construir um habitat por onde passo, adquirindo objectos consoante o lugar onde estou. Em Paris, por exemplo, procurei criar um ambiente doméstico na residência artística. E personalizei alguns dos objectos que adquiri, como um tamborete/banco de esplanada tipicamente francês.

 

Os tecidos e as palavras são ferramentas para trabalhar os conceitos que a obcecam. Antes de mais, é assim, obsessão é uma palavra boa?

“Obsessão” é sem dúvida uma palavra que me pode definir. Como muitos artistas, sou obcecada pelo meu trabalho da mesma forma que não separo a arte e a vida. Os tecidos: sempre tive um enorme fascínio por este material. Este fascínio deve-se não só à plasticidade dos tecidos, mas também à cor e aos padrões. E são facilmente transportáveis! Leves. São um suporte extraordinário para trabalhar, contrariamente ao papel que se amachuca e onde os vincos permanecem sem possibilidade de os remover.

 

E porquê as palavras, que aparecem em néons e não só?

Quando eu olho para as letras desenhadas, vejo uma beleza nelas, per se. E, quando juntas em palavras, e depois em frases, adquirem um significado que é importante para dizer o que penso sobre o que me rodeia e que se reveste de uma ironia subtil.

 

Os néons trazem outra vibração.

Os néons permitem tornar a frase num acontecimento estético. O fenómeno da luz é tão impactante que me faz gostar de trabalhar com este material. A minha prática artística também passa por bordar frases sobre tecido. Habitualmente uso tecidos que não são primeiramente vocacionados para servir de suporte... Concretamente: panos para limpar o chão.

 

Que outros materiais e objectos são importantes para contar a sua história, as suas histórias?

É vital o uso da fotografia. Levo anos a documentar o dia a dia, fotografo os amigos, as exposições, a vida cultural em geral, mas também a cidade, as cidades em que vivo. Reuni tudo num projecto que se chama Self-Portrait of a Female Artist as Part of Society / Auto-Retrato da Artista enquanto Parte da Sociedade, que está ligado às minhas contas do Instagram, Blog e Twitter. Deste grande arquivo de imagens, vou fazer uns livros de viagem para a exposição na Villa Savoye (desenhada pelo Le Corbusier) perto de Paris em Junho (2016).

 

O que é que vai mostrar, especificamente?

A viagem que fiz em 2014 à Índia, a Chandigarh. Reuni cerca de 600 fotografias que focam a vida nesta cidade.

 

Retomando o tema dos objectos que contam a sua história...

Na verdade, todos os objectos são importantes, porque foram escolhidos por mim. O projecto Breviário do Quotidiano # 8 é paradigmático. É um projecto que tem como objectivo tornar a minha casa e os seus objectos numa instalação-arte, o que pressupõe a interacção com o espectador. Estes objectos comuns fazem parte do meu quotidiano e, à partida, não têm um valor económico elevado; foram, antes, seleccionados pelo seu valor estético. A forma como eu os coloco no espaço-casa constrói novos discursos estéticos.

 

Quais são as palavras nucleares? 

Palavras nucleares: fusão arte/vida, quotidiano, comum ou banal, casa, domesticidade, habitat, viagem, estética, fazer listas, performance/happening/acção, momento presente.

 

Essas palavras radicam numa mitologia popular (orelhas de burro, por exemplo), na literatura, em artistas plásticos?

Utilizo muito o saber popular mas de forma crítica. Tento desconstruí-lo, numa tentativa de revelar a sua origem, de o pôr a cru. A linguagem está repleta de preconceitos, especialmente em relação à mulher. É classista e separatista e, sem dúvida, racial. A minha expectativa é que eu possa ser eficaz ao desmistificá-la, através da ironia. Na instalação “Antes morta que burra”, em que recorro às orelhas de burro, as frases que utilizo são idiomáticas; o garante do sentido é dado pela utilização da palavra burro. Frases como “um olho no burro e outro no cigano”, não podiam ser mais racistas!

 

Que lugar ocupa o desenho, o risco, a pulsão infantil de riscar no seu trabalho?

Não venho do desenho enquanto disciplina clássica. O que faço manifesta-se de forma diferente, rotineira e obsessiva, numa pulsão para criar listas diárias de tarefas a que chamei TO DO. Nelas escrevo como se de desenho se tratasse. Neste caso, a escrita é um desenho/esquema mental.

 

Quem é que é da sua família? Refiro-me à artística e não só. O que quiser dizer. 

Tive a sorte de pertencer a uma geração artística que desde o início se evidenciou. A partir de uma exposição colectiva “Disseminações”, em 2000, na Culturgest, com curadoria de Pedro Lapa, na época director do Museu do Chiado. O João Pedro Vale, o Vasco Araújo e eu frequentávamos juntos o curso de Escultura da Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Nós e o Nuno Alexandre Ferreira, que não era da nossa Faculdade, éramos inseparáveis. Mais tarde, o grupo alargou-se à Marta Wengorovius e ao Rodrigo Oliveira.

Mas claro que a minha família artística é mais alargada. Duchamp é sem dúvida de onde parto, ao lado de Méret Oppenheim, Jac Leirner, Lourdes Castro, Helena Almeida, Félix Gonzalez-Torres.

 

E de outras disciplinas?

Cineastas como a Sofia Coppola e escritores de eleição como a Patricia Highsmith ou Edmund de Waal (que também é um ceramista famoso). Na música: Prince, Patty Smith e David Bowie, só para mencionar os que me ocorrem imediatamente.

 

Como é o projecto Breviário, de que já falou um pouco?

Desde 1998 que trabalho o tema “Quotidiano”, a que juntei uma outra ideia: “Breviário”. Este tema parte da minha ideia de fusão arte/vida. O que me interessa é a atenção dada ao momento presente, e por isso muitos dos meus trabalhos são reflexo de acontecimentos num determinado presente. A ideia do Breviário do Quotidiano é, grosso modo, juntar o que ocorre diariamente (“Quotidiano”) com a ideia de “Breviário” (a partir do seu significado de leitura habitual e predilecta, retirando-lhe a interpretação religiosa).

Esta conjugação de conceitos foi super difícil de traduzir para inglês, porque só é compreendida inteiramente pelas línguas latinas. Em inglês, foi traduzido para An Archive of Daily Life.

 

O que faz, então?

O que faço é compilar plasticamente acontecimentos presentes, como se de um livro se tratasse. Estes projectos são contínuos, estão sempre num processo de acumulação.

O primeiro Breviário do Quotidiano # 1, 1998 – 2016, começou por um conjunto de cinco mantas de avião (furtadas em diversas viagens e companhias aéreas); hoje conta com dezoito.

Em relação ao Breviário do Quotidiano # 2, 1998 – 2016, é um conjunto vasto de objectos banais furtados em locais ou acontecimentos que o protocolo artístico pressupõe: locais públicos, um acontecimento referente à arte (por exemplo, uma conversa, uma exposição). Esses objectos são souvenirs desses mesmos acontecimentos. Neste momento, o BQ#2 é composto por quatrocentos e oitenta e oito objectos.

O Breviário do Quotidiano mais recente, # 8, é o projecto da casa que podem visitar no site www.anaperezquirogahome.com. O conceito génese deste projecto é uma performatividade entre os objectos e quem interage com os mesmos.

 

Como é que a vida entre Lisboa e Xangai se fez? E porquê?

A primeira vez que fui ao Oriente, fui a Xangai, fiquei três meses, em 2008. Foi tão forte a emoção de estar rodeada de uma cultura tão diferente da minha que fiquei para todo o sempre apaixonada. Volto todos os anos e fico entre um mês e até três meses. Tenho amigos chineses, sobretudo uma grande amiga, e ocidentais, que foram ficando, o que é raro, porque é uma população que está sempre a alterar-se (ir e vir). 

 

Como é que isto se reflectiu em quem é e no que faz?

Sinto que mudei a forma como reajo ao mundo. Se, por um lado, estou mais pragmática devido ao carácter prático e muito orientado para o dinheiro da cultura chinesa, por outro, caminho para uma maior introspecção e cuidado com o próximo. No campo artístico, o meu trabalho ganhou uma autonomia face a uma qualquer corrente artística dominante. Tenho uma felicidade imensa em pensar e produzir os meus trabalhos em Xangai, porque não sinto condicionantes exteriores. 

Em 2015, ganhei uma Bolsa da Fundação Oriente, de três meses, na China. Para desenvolver um projecto relacionado com pintura sobre tecido. Escolhi uma aldeia nas montanhas da província de GuiZhou com grande concentração da etnia Miao. Fiquei na aldeia Tashi, que é habitada apenas por trinta e seis famílias. Fui recebida pela família Wu, permaneci dez dias. A pintura batik, feita pelos Miao, é uma técnica de desenho milenar; o desenho é feito com cera de abelha quente sobre tecido de algodão, e posteriormente tingido com tinta indigo por imersão.

 

O roubo de objectos, a que já aludiu: o que é que não se pode roubar? O que é que não lhe podem roubar?

Uma pergunta que refere a palavra roubo, como esta, faz-me sempre rir, porque o que sinto é um misto de provocação e embaraço ao tentar explicar como é construído este projecto artístico on going. É difícil explicar este protocolo artístico a pessoas do norte da Europa ou que tenham culturas muito diferentes da nossa. Os valores a que sujeitamos o espaço social, públicos, i.e., todos os espaços que não são privados, são de alguma forma tratados como “terra de ninguém”. Não temos uma cultura que nos faz apanhar os papéis/ lixo que está na rua, ainda hoje há quem cuspa e deite pastilhas para o chão.

 

E nos espaços públicos? E nos particulares?

Os espaços semiprivados (cafés, restaurantes, hotéis) são entendidos como uma zona híbrida, logo passível de se poder trazer connosco um souvenir. Nunca tiro nada em casas particulares! Nunca tiro nada de valor e que seja insubstituível! Nunca roubo nada a ninguém! 

 

Entrevista realizada por escrito e propositadamente para este blog, em Maio de 2016.

O trabalho artístico de Ana Pérez-Quiroga está disponível nas seguintes plataformas digitais:

www.anaperezquiroga.com

http://anaperezquirogaobjectbiography.com

https://www.instagram.com/anaperez_quiroga/

https://www.facebook.com/anaperezquiroga.apq/

https://twitter.com/anaperezquiroga

 

 

 

André e. Teodósio

04.07.19

André e. Teodósio tem 37 anos e todos os sonhos do mundo. Um mundo onde cabe tudo. O Vendaval de Tony de Matos, o Tratactus de Wittgenstein, o teatro que não quer parecer teatro e que quer ser vida do Teatro Praga. O seu mundo é, sobretudo, um mundo que esteve sempre aberto para o desconhecido. Podia empunhar um cartaz a dizer: “All you need is love!” O love é o seu assunto.

O Expresso apontou-o como um dos portugueses mais influentes de 2012. A informação tem tanta importância quanto: “O meu pai comprava livros ilegais na Barateira. Esta sede de informação estava nele desde cedo.” As duas estão ligadas. Para compreender o percurso – e a cabeça singularíssima deste alien barroco – é preciso fazer arqueologia. Conhecer as fundações onde tudo começou por fervilhar e se descobriu o mundo com espanto.

Encontrámo-nos em casa. Tem uma biblioteca poderosa que organizou por cores. Puro gesto excêntrico. Veste uma camisa de leopardo, um colar oferecido pela mãe. Foi também a mãe que ofereceu a colcha que está sobre a cama, de algodão, estampado dourado. Está no chão da sala um vinil da Concha (lembram-se dela no Festival da Canção a cantar: “Qualquer dia, quem diria”?). À entrada, um Apolo de cartão, elegante, inspirador. Tudo conjugado, parece uma conjugação impossível. Artificiosa e impossível. E depois não é. É original, surpreende, abre para o infinito. Como o seu teatro. Que não procura nada mas que está sempre a encontrar – e a integrar.

A casa fica a dois passos do Teatro Praga, num bairro popular de Lisboa. Corredor directo entre uma coisa e outra. A vida como ela é na pastelaria da esquina. Pastelaria de “sai um galão bem quente” e balcão de metal. E pérolas ditas pelas pessoas de todos os dias que olham para a vida sem peneiras. Pérolas que ele rapina e encaixa numa espécie de puzzle onde está também a vida dos livros.

André e. Teodósio é... como qualificá-lo numa palavra? Talvez artista. Um verdadeiro artista. Músico, cantor, actor, encenador, dramaturgo. E amante (i.e., aquele que ama).

 

 

Com quem tem afinidade de sangue?

Estive a estudar a minha árvore genealógica e descobri que sou descendente directo de Adão e Eva. A minha afinidade de sangue é o mundo. Está cá tudo inscrito. Isso ajuda-me a fugir de uma ideia de nação, de família.

 

Como se a sua pertença fosse a qualquer coisa mais abrangente?

Sim. Sintetizo o caos inicial. Todos sintetizamos o caos inicial, temos em nós as estrelas, o hélio. É muito importante fugir de qualquer naturalização, de qualquer essência. Claro que é uma falsa questão…

 

Provimos de um sítio que é mais circunscrito do que isso. O que é que importa da sua árvore genealógica mais estreita para compreender a sua cabeça?

Venho de duas famílias díspares da Beira Baixa. Os meus pais conheceram-se num comboio, a vir para Lisboa. A família do meu pai é de latifundiários que trabalhavam com as pessoas do campo. A família da minha mãe é aristocrata, de mistura escocesa e espanhola, e é tudo maluco. Realizadores, escritores. Há histórias de a minha bisavó desenhar ovnis.

 

Aberta ao infinito.

Sim. Sou descendente de Adão e Eva mas virado para o infinito – para não fazer sentido nenhum. Sou muito ligado à terra sendo que a terra não faz sentido nenhum. É só uma parte de uma totalidade caótica.

 

Procura o sentido no que lê, no que faz?

É o contrário. Estou aqui e sei que nada faz muito sentido. Estou aqui e não quero que isto tenha um sentido. A ter, que tenha muitos sentidos. Até não fazer sentido. É como se em vez de ser só uma coisa, fosse capaz de estar sempre a mudar de ficção. É uma fusão estranha... Sou um barroco alien [risos].

 

A sua mãe falava consigo em português?

Sim, ela é portuguesa. Quando era nova assinava nos livros Lúcia Scott. (O apelido é Escoto. Foram traduzindo o Scott para português.) Nunca pertenceu a Penamacor. Era uma cidadã do mundo.

 

O seu percurso é marcado por viagens constantes e por um período que passou fora. Sente-se estrangeiro em relação a quê?

Não me sinto estrangeiro em relação à língua. Apesar de não a dominar e não a ter aprendido bem. Estive até ao 6º ano em Portugal. Depois fui para os Estados Unidos e aprendi inglês. Não sei como é que as palavras são feitas, qual é a sua etimologia, como é que estão relacionadas. Nunca me senti de um só lugar. Os meus pais sempre me incentivaram a pensar o fora.

 

A sua geografia, em Lisboa, era qual?

Nasci na Lapa, depois estive em Paço de Arcos, depois Olivais. Frequentei uma escola católica. Os meus pais não são católicos. Acho que me puseram lá para não gostar da escola católica [risos].

 

O que é que foram fazer para os Estados Unidos?

O meu pai era militar e concorreu a um cargo na NATO. Tornou-se administrador da base de dados da NATO. Nos anos 80 tinham uma vida muito boa.

 

Quando é que teve a noção de que era artista e de que a sua vida ia ser esta?

Sempre tive um fascínio por artes. Desde novo queria ser músico. Lia muito porque o meu pai queria ser escritor. Desenhava caras de pessoas, olhos. E tinha jeito para as composições e para os teatrinhos da escola. Tive uma bolsa nos Estados Unidos, estudei flauta transversal, tuba, toquei trombone. Em Portugal deu-me uma traquitana qualquer e pensei: “Vou para Direito”. Não correu bem. Fui para Música e tornei-me músico profissional. Tocava em orquestras. Depois integrei o coro Gulbenkian e fui estudar canto.

 

Percebe a traquitana do Direito?

Estava meio perdido. O Direito parecia-me assim regrado, como a vida militar do meu pai. E dava-me a ilusão de poder fazer justiça. Uma coisa muito importante, fazer justiça.

Depois conheci um rapaz. Convidaram-me para fazer um espectáculo no Teatro Nacional e conheci o Pedro Penim. Apaixonámo-nos e pensei: “Isto agora não vai correr bem. Ele não pode ir estudar Música, ele faz teatro. Não quero estar com ele só à noite como as famílias normais. Quero estar com ele a vida toda. Vou estudar Teatro”. Os meus pais: “Teatro? É Direito, é Música, tens que ter tino e decidir”. Fui para Teatro. Tinha 21 ou 22 anos.

 

O amor a decidir a vida toda.

Faço por isso. Para mim a vida é o amor. É o que interessa. Tudo o resto são placebos para evitar entrar numa depressão. (Sou muito dado à tristeza.) Tudo o resto são placebos para ir continuando.

 

O Pedro era da formação do Teatro Praga?

Era. Era uma companhia ainda conservadora, de alguma forma. Quando entrei, consegui trazer uma certa dose de desprendimento em relação ao teatro. Nunca gostei muito de teatro, na verdade.

 

Como assim?

Tinha lido sempre imenso, ficção, ficção. Não conseguia ver pessoas a fingir que eram coisas em palco. Não percebia aquele tipo de representação mimética, caricatural. Diziam o texto de uma forma que não me interessava. Adormecia.

 

Mas o enredo, a força vital da palavra, que tanto existe nos livros como no teatro, isso interessava-o.

Sim. Mas não a representação daquilo que podia ler em livros. Preferia ler, sublinhar.

 

Sublinhar é uma maneira de se projectar naquilo, de se identificar mais intimamente com o que lê?

Sim. De tornar aquilo meu. Os livros que leio têm que ser meus, já não são do autor.

 

O encontro com o Pedro fê-lo encontrar um fio condutor? Foi um princípio organizador da sua diversidade?

O que ele me ofereceu foi o sítio que eu recusava e que ele defendia como sendo o sítio onde todo o caos podia conviver. E que não existia na música. A música tinha uma herança histórica. Não era tão permeável como o teatro.

Quando entro na Praga, digo isto: “Temos que pensar o texto de uma forma musical, fora da musicalidade que está associada a um dizer teatral”. Os cenários não deviam ser tão teatrais. Deviam ser como a casa dos meus avós ou ter a lógica de decoração da minha mãe, que mudava de três em três segundos (agora a casa é gótica, agora é nova-rica). São assumidamente ficções [no caso da minha mãe], tão ficcionais como no teatro. O teatro permitiu trazer um bocado de real perante a lógica do texto.

 

Parecendo a fantasia, o desvario, trata-se, no fundo, de trazer o real.

Exacto. E ali conseguia ter tudo. Tocar, fazer artes plásticas, escrever. E, para além disto, tudo o que não tinha pensado ainda, podia trazer também, quer fosse filosofia, culinária, roupa, televisão.

 

Esse é o lado da genealogia Adão e Eva? Tudo pertence a tudo, tudo vai dar a todo o lado.

É isso.

 

O que sabotou a sua vida linear? Que grãos de areia se intrometeram na engrenagem? Na verdade, ela nunca foi linear.

Não, nada. Tive muita sorte. A info-exclusão: é importante saber que há pessoas que não tiveram esta oportunidade. É isso que me faz ser defensor do Estado Social e defensor de uma certa ideia de esquerda. Mais próxima agora do Livre.

 

É simpatizante?

Completamente. Tive essa sorte, nos anos 80, de poder viajar, ter os livros que queria. O dinheiro possibilitava, como hoje, ter acesso à informação. Não quer dizer que produza conhecimento, mas experimentar é atravessar o fogo.

 

“O Homem nada sabe até queimar os pés no fogo ardente”, diz Antígona.

É. Todas as pessoas deviam ter acesso a uma vida não-linear. Ou, mesmo que essa linearidade exista, que alguém lhes diga que é só uma parte de uma totalidade.

 

O que acaba de dizer traduz uma ausência de medo. Aquilo que faz as pessoas escolher, ou serem escolhidas, por uma vida linear, tem que ver com uma ideia de controlo sobre os acontecimentos da sua vida.

Escrevi uma vez num texto: “Quando as nossas mães nos dão à luz, nascemos nós e o nosso medo”. Tem-se sempre medo. Mas ou o medo toma conta de nós ou tentamos domar o medo. Nunca se sabe se se vai flipar, se se vai ficar doido. [O desafio] é não ficar perplexo perante aquela sombra gigante, delinear os contornos daquela sombra, perceber que é só um padrão.

 

Porque é que não reproduziu o caminho dos seus pais? Casar, ter filhos, uma vida razoavelmente arrumada.

Os meus pais, pesar de terem tido uma profissão, nunca tiveram uma vida muito linear, afectivamente. Tiveram as suas coisas, com certeza [risos]. Não tiveram uma vida como a dos filmes. Havia ali qualquer coisa a quebrar a jarra de cristal perfeita. E isso ajudou-me muito.

 

Perguntou-se: o que é que faço com estes cacos?

Exacto. É arte. Antes era uma jarra, agora são cacos, é uma escultura. Seria impossível para mim ter uma vida muito linear. Se bem que afectivamente seja hiper linear. Não namorei muito, quero é namorar para o resto da vida.

 

Romântico.

O amor interessa-me como ideologia. É o rubi que quero talhar. Consigo falar sobre milhares de coisas, de filosofia, biologia, teatro, estética. Sobre o amor não consigo falar, e tenho uma obsessão com o amor. Não sei muito bem porquê… é porque me faz feliz.

 

Ou então porque o amor é o detonador, é o motor.

Sim, o amor é o detonador. Tem coisas que nem sei o que são porque não tenho palavras para elas. Não é dependente do meu conhecimento do mundo – está lá. É muito bonito, reduz outra vez a importância do eu.

 

Ao mesmo tempo, tudo aquilo que se faz é afirmação do eu, da singularidade. O que faz profissionalmente anda muito à volta das questões da identidade.

É verdade. Mas isso é um erro táctico meu [risos], ainda estou preso a uma lógica primitiva. Quero estar no futuro. Há aquela coisa dos gender bender, das pessoas sem género. Eu digo que o próximo passo é a identity bender. A identidade é que está a mudar. Agora posso ser uma cadeira, amanhã sou uma flor. E depois sou um ser humano, e depois um cão. Amanhã ou numa questão de segundos.

 

A palavra metamorfose, o que é que lhe ocorre dizer sobre ela?

Ocorre-me essa escolha deliberada de ficções. De irmos mudando as nossas ficções. Gosto da palavra metamorfose. Tenho medo que isto também seja representativo de um tipo de histeria que possa ter em mim. Não é muito agradável. Não queria achar que estou à procura de ter alguma coisa e que vou mudando até a encontrar.

 

Explique melhor.

Não é que queira saber o que sou como ser humano, mas tenho medo que esta ideia de mudança de identidade, de metamorfose constante daquilo que sou, represente, não aquilo que sou, mas uma histeria em busca de poder ser alguma coisa. E como não quero definir-me, como não quero ser como o Heidegger e estar à procura de uma essência, não quero achar que há uma essência ou um início.

 

Não tem um fascínio pelo momento inaugural, pelo instante da deflagração?

O momento inaugural não é uma coisa, é uma relação de coisas. Por isso é que me interessa mais a relação do que um particular.

 

Interessa-lhe a constelação.

Exacto. Não quero achar que estou na constelação à procura de uma estrela. Quero manter-me só no plano da experiência, de queimar os pés com o fogo.

 

Não lhe interessa o que se extrai disso? O que se extrai da rasura, da cicatriz.

Interessa-me como processo de experiência, mas não quero deixar muita informação, muitas marcas. Ela pode perpetuar-se, pode-se tornar essencial, tradição, e não quero que isso aconteça. Isso é o que leva as pessoas, ou que já me levou a mim em determinadas alturas, a não conseguir relacionar-se com o medo. Como se existisse uma origem para aquela sombra que ali está presente. Não me quero preocupar com grandes respostas. Tenho dificuldade com escolas, academias. Muitas vezes estão alicerçadas nesse saber verdadeiro. E ele não é verdadeiro, está é em relação com o outro.

 

Há pouco fotografámos na sua biblioteca. Os livros estão alinhados por cores! Lembrei-me da biblioteca do David Mourão Ferreira, que estava organizada numa sequência cronológica, e não por estilos ou ordem alfabética.

É, as coisas estão em relação umas com as outras, no mesmo momento. O tempo não interessa, mas estão todas sequenciais. Não há uma que seja a origem.

Está a apanhar uma grande seca? Às vezes não digo nada com sentido. Vivo numa bolha qualquer. Os meus amigos dizem sempre que não saio de casa, não falo com ninguém. Estou sempre fechado. Na Internet, a ler livros, a ver filmes. Viver numa bolha protege-me muito. É muito difícil entregar-me ou conhecer uma pessoa. Ninguém sabe nada da minha vida.

 

Agora vai saber-se. Fica-se com um vislumbre.

Sim. Mas ninguém sabe como falo com os meus amigos, como é que estou com eles, a intimidade.

 

Essa palavra- rubi, essa palavra-jóia, intimidade...

É muito cara, a intimidade. É o sítio onde se une tudo, é na intimidade.

 

Se fosse uma flor, seria qual, a intimidade? Ou uma pedra preciosa.

Âmbar. A intimidade é âmbar. Fecha-se, cristaliza-se, mas consegue-se ver tudo lá dentro.

 

Eu chamaria a isso essência, mas não gosta da palavra essência. Recusa-a.

Tenho um problema histórico com a palavra essência. Já representou tanta coisa negativa. Sempre que a oiço é como se houvesse uma origem. Começo a ficar tolhido. Começo a disparar: “Não há razão, não há essência. Podes ser o que quiseres! Não és, estás a ser”.

 

Não há ser, estamos a ser?

É. E vamos estando a ser. Estamos a ser em relação, simétrica ou assimetricamente com as coisas no mundo.

 

Voltando à genealogia de que comecei por falar: tem afinidade de sangue, está em relação com Zizek, Bela Lugosi, Antígona, Cleópatra, Susana Pomba, Concha, Tony de Matos. Shakespeare, claro. Fellini, muitíssimo. Tudo faz parte do mesmo?

Sim, somos todos primos [risos].

 

Há primos em primeiro grau, em segundo grau. Estas são filiações mais íntimas? O seu mundo é essa coisa sincrética onde entra tudo?

Não posso dizer que não. Sou feito deles. Os meus pais, os meus amigos, o Godard, o Zizek, o Fellini, nem sequer consigo pensar o que é que poderia ser se não existissem. Não tinha sobrevivido. Tinham-me posto em bebé na relva e eu morria. De certeza que estava lá o Fellini a dizer: “Agora tens que caminhar até ao supermercado” [risos].

 

O que é que deve ao Fellini? Há uma peça encenada pelo Teatro Praga que tem um excerto do filme Cidade das Mulheres.

Nossa? Já não me lembro. Não tenho boa memória, esqueço-me de tudo. Passa a ser tudo meu, está cá mas não sei o que fiz, de onde é que vem. Reciclo-me muito nos textos, têm sempre frases repetidas. O que eles têm todos em comum é esta desnaturalização.

 

Passam a ter outra natureza. Muda a perspectiva.

E não muda a perspectiva através da alienação, é através da inclusão. Todos fazem uma espécie de exaustão daquilo que já existe e que se consegue reconhecer. Mas nada daquilo bate certo, está sempre tudo disforme.

 

Fellini tem um lado grotesco e disforme muito acentuado.

O que tenho com ele é esse lado disforme, a capacidade de encontrar na coisa mais prosaica um outro ponto de vista. As pinturas de Picasso foram importantíssimas para mim. De repente há um quadro que em vez de ser o ponto de vista do pintor é o da criança que está a ser amamentada.

 

Ainda que pareça, não é fácil mudar o ponto de vista. Exige distância crítica, pormo-nos em causa.

Será que conseguimos? Às vezes não se produz pensamento nenhum, não se chega a lado nenhum. Sou bélico, gosto de ganhar conversas, mas não tenho problema em admitir que estou errado, que estou a pensar ancorado num conhecimento hegemónico, que não permite diferença. Uma vez entrevistaram o Godard e perguntaram: “Por que é que faz uns filmes tão diferentes dos outros?”. O Godard responde: “Não faço filmes diferentes. Os outros é que fazem os filmes todos iguais”.

 

Interessa-lhe, claro, mais que tudo, fazer a pergunta.

Sempre. Ou ver que a pergunta estava errada. O que é teatro? É uma pergunta errada porque significa que o teatro é alguma coisa. E o teatro não é nada, é aquilo que quisermos que seja. É como a primeira frase do Tractatus do Wittgenstein: o mundo é tudo o que quisermos que ele seja. Eu quero é o infinito! Quero é que não haja respostas e que toda a gente seja muito feliz e que estejamos todos a viver e a fazer amor. [risos]

 

Fazer amor ou fazer o amor?

As duas coisas, obviamente [risos]. Gosto muito de fazer amor.

 

A conversa estava quase abstracta, e ficou concreta, com o fazer amor. Porque é que está a dizer isso?

Porque é verdade.

 

É o tipo de frase que as pessoas não dizem habitualmente. Não dizem por pudor, por convenção social.

Não deve haver pudor em relação a nada.

Gosto de pensar espectáculos, mas não gosto de fazer espectáculos. Gosto de ter ideias, mas não gosto de as fazer. Não quero entrar em espectáculos, não quero escrever textos, não quero fazer nada.

 

O seu trabalho é pensar e a sua diferença assenta nisso?

Em relação ao amor, não gosto só de o pensar [risos].

 

As peças são um lugar de pensamento?

Claro.

 

Lugares de compreensão do mundo?

Sim, de disponibilização de ferramentas para a compreensão do mundo. A arte é um legado do pensamento, não é da materialização. Não precisávamos da materialização, toda a gente sabe.

 

Sabe que são três pessoas que sabem? Tem noção disso?

[risos e comoção] Não quero aceitar isso. Quero aceitar que toda a gente pode pensar isto. Gostava mesmo de estar com as pessoas todas. A maneira como a cultura se foi desenvolvendo no ocidente é que castra muito.

 

Por falar em castração. Quando é que deixou de ser criança?

Nunca fui muito criança. Era puto e fazia campanhas políticas. “É coisa de adulto, tomar conta do mundo”. Nunca me dava com os filhos. Queria era plasmar o mundo dos adultos. Tipo Kidzania avant la lettre.

 

Queria crescer depressa?

Sim. E agora sofro de uma coisa: quero desaparecer muito depressa. Já cresci e estou em rame-rame.

 

Está numa fase deprimida?

Não, estou bem. Ao crescer, sempre quis mudar o mundo. E quero disponibilizar coisas para que o mundo mude. A realidade desmente isso a toda a hora. Vemos a Rússia a invadir a Ucrânia, passos históricos atrás. O que perdi foi uma ingenuidade vital que tinha. Não a perdi há muito tempo.

 

Estive a ler excertos de peças suas. Gostava de devolver-lhe algumas ideias que sublinhei. Uma está na Cenofobia: “Ah, cair em mim, ah, finalmente ser eu”.

Esse foi o primeiro texto que escrevi para ser editado. Cenofobia, a palavra é estranha. Ao mesmo tempo que quer dizer medo de estar em espaços muito abertos, pode descrever o medo de estar em cena.

 

Fale-me deste cair em si.

Decidi fazer um texto em que me concentrava em mim, como entidade, como sujeito. Sendo que esse sujeito, durante todo o texto, está a tentar fugir dele, a matá-lo. É a ideia de que cá dentro não há nada, mas que consigo articular estas coisas todas e afirmar: “Se calhar isto sou eu”. Estou a ser qualquer coisa. A única coisa que posso fazer é cair em mim. Deixar de ter medo de estar em espaços abertos e deixar de ter medo de estar em cena. Um amigo meu diz que vivemos em solidões partilhadas. É um bom caminho. Esta é a minha solidão, eu partilho-a consigo, você partilha a sua solidão, e é nesta relação que vão surgindo coisas.

 

Na peça Terceira Idade, de José Maria Vieira Mendes, diz assim: “Avança-se na trama e eu fico tramado”. É o que sente?

Sim. Vamos ficando tramados porque [a vida] é cada vez mais complexa. É como escrever um texto. Vai-se tentanto sintetizar e simplificar para que não polua, para retribuir aquilo que se consumiu. Quanto mais se avança, quanto mais se vai pensando e conhecendo, mais tramado se fica: fica-se enredado.

 

Em 2012 foi considerado pelo Expresso uma das 100 personalidades mais influentes do país.

Em 2013, caí [risos].

 

Em 2014 apresentou no Teatro Nacional, essa instituição, uma peça de grande sucesso, a Tropa Fandanga. A expectativa em relação a si e ao seu trabalho é um peso?

A Praga começou com um grupo circunscrito de pessoas que achavam a companhia curiosa. Hoje há uns milhares que a conhecem e que precisam dos nossos espectáculos como matéria de pensamento. Nunca deixei de arriscar como arrisco. É diferente falar da Tropa Fandanga, feita por várias pessoas, e falar de espectáculos só meus. Quando são espectáculos só meus, é claríssimo que são quase sempre mal recebidos.

 

Porquê?

Sou muito ditador quando sou eu a fazer. Nunca deixei de querer experimentar. As obras que faço são mal recebidas pela crítica, apesar de serem bem recebidas pelo público. Isso interessa-me muito. Quer dizer que nunca estamos de acordo com uma ideia de ver teatro, ópera, dança.

 

Quer dizer que fogem ao cânone.

Sim. Que estamos sempre meio fora e que as pessoas estão a receber isso.

 

Foi uma surpresa ver-se entre os mais poderosos?

Penso que resultou de, com a minha idade, ter feito coisas que ninguém tinha feito. Em Portugal, fiz espectáculos para a Companhia Nacional de Bailado, o São Carlos, o Teatro Nacional Dona Maria, o São Luís, o CCB. Tinha 33 anos, é meio inédito.

 

A sua carreira internacional é pujante. Fazemos esta entrevista depois de regressar da Alemanha e Suécia, dentro de dias parte para a Bélgica e depois Finlândia.

E vamos para o Théâtre de la Ville [Paris]. A trama vai-se adensando. As instituições estavam cristalizadas e apanhei uma época em que estava tudo em mudança, com novas pessoas, novas maneiras de pensar. Tenho facilidade porque fui músico, escrevo, consigo estar em vários sítios ao mesmo tempo. Como a ideia de teatro que temos não é dependente de uma técnica, a teatral, mas sim de pensar, isto [que fazemos] é aplicável a tudo, às artes plásticas, à dança, à ópera. Consigo pensar sobre todos estes suportes artísticos porque não tenho suporte.

 

A não ser a sua cabeça.

Sim. Que é a cabeça do Fellini, do Bela Lugosi, do Godard, do Zizek, do realismo especulativo.

 

“O que se quer é o desconhecido, andar para lá do horizonte a caminho do caos.” A frase consta de outra peça, escrita por José Maria Vieira Mendes. Olhemos para o fio do horizonte. O que é que há para lá?

É o abismo. Conhece a pintura do Caspar David Friedrich? Sou como esse senhor. Gosto de estar ali, nem muito atrás, para não deixar de ver, nem muito à frente, para não cair. Mas tenho medo do abismo. O que é paradoxal. Tenho medo, ainda, de deixar de me entender com os outros, de estar cada um por si.

 

É uma imagem tremenda de abismo: deixar de se entender com os outros, deixar de se entender com o mundo, ficar cada um por si. Como se as estrelas ficassem sozinhas e se acabasse a constelação.

Uma coisa são as coisas circunscritas aos sujeitos, à sua praxis. Tem que haver um arco fundamental que as una e que as emoldure num determinado tipo de agir ou de estar. Os direitos universais. Se está cada um por si, a experimentar o seu mundo, entramos num jogo alienado.

 

Desafiaram o crítico Augusto M. Seabra a linchar o Teatro Praga para a revista que a companhia edita. Então, como é que o lincho? (Parênteses: vocês dizem “a Praga” como se se referissem a uma peste. Uma peste boa.)

Linchar é pôr em causa. É porem-me um espelho à frente e ter que lidar com isso. Adoro o espírito crítico. Adoro pessoas que estão constantemente a pôr espelhos umas às outras, que se criticam e põem em causa. Que não vão dar festinhas às outras nem vão confirmar que elas têm razão.

 

Quer dizer mais alguma coisa sobre o amor?

Roma ao contrário é amor. Não sei muito bem o que é que o amor é, mas sei que quando ele não existe é horrível. Não quero nem Roma nem o horrível, quero o amor, que está ali no meio. É a palavra que sobrevive a este jogo de pensamento.

 

Há outra ainda entre Roma e Amor: romã.

Isso é muito judaico, é um fruto sagrado. É um fruto maravilhoso.

 

É também uma imagem da multiplicidade de mundos de que estivemos a falar. Tantas partículas dentro da unidade da romã...

Vou deixar de dizer que vivo numa bolha e passar a dizer que vivo numa romã [risos].

 

 

Publicado originalmente no Público em 2014