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Anabela Mota Ribeiro

Frida Kahlo

22.08.19

Frida Kahlo chora copiosamente. Chora o corpo martirizado, esventrado, prestes a desconjuntar-se, suspenso por uma coluna romana. A coluna (a espinha), igualmente em processo de desmoronamento, mantém-se erguida com a ajuda de um corset feito em aço. Esta mulher llorona, envolta num cenário de desolação_ a terra fracturada, o céu carregado de chuva_, retratou-se assim em 1944. O quadro «A coluna partida» pertence ao domínio do onírico, da liberdade absoluta dos Surrealistas que agitavam a Europa; mas Frida esclarece: «Eu nunca pintei os meus sonhos. Pintei sempre a minha realidade».

A realidade, então: Magdalena Carmen Frieda Kahlo Calderón nasceu em 1907 numa famosa Casa Azul em Coyoacán, Cidade do México, onde passaria o essencial da sua vida. Filha de um imigrante alemão, fotógrafo e amante de livros de arte, que idolatrava Schopenhauer, Goethe e Schiller; mantinha com ele uma relação estreita: retocava as cores das fotografias que saíam do seu estúdio e fazia de enfermeira nos ataques de epilepsia. A mãe era uma mestiça mexicana que dedicava à Virgem uma devoção efusiva, mas que era pouco dada a manifestações de afecto. Quando a filha penou na cama do hospital, na sequência de um acidente brutal, afectada pelo choque, não foi capaz de a visitar.

A herança é complexa. Frida será sempre uma tehuana de pilosidade abundante, de estilo “incultivado”, adornada pelas cores intensas da pátria. Será sempre a artista revolucionária que lê Marx, impressiona André Breton, se envolve amorosamente com Trotsky. É redutor pensar nela como uma intérprete avant la lettre de um realismo mágico que emergiu na literatura pela voz de García Márquez _ a despeito da profusão de referências pré-colombianas que é possível encontrar na sua pintura. A educação de Frida é enformada pelo que está em voga na Europa. Lê os clássicos, (Homero, Dante, Platão) que o filósofo e político revolucionário José Vasconcelos disponibiliza aos alunos do secundário. Admira a pintura de Botticelli ou Bronzino. O primeiro auto-retrato que pinta, em 1926, é devedor dos renascentistas: a figura é alongada, os gestos são delicados. Assume uma herança impura, sincrética, uma herança dual.

Mas tudo em Frida é dual: vida e morte, claro e escuro, masculino e feminino, antigo e moderno, México e Europa. Estes são os seus termos, e a síntese, peculiaríssima, é a sua vocação.

Ainda a realidade: em Setembro de 1925, Frida seguia num autocarro com um colega de escola, Alejandro. O aparatoso acidente que sofreram incapacitou-a para o resto da vida. É já lendária a perfuração do pélvis que terá ocorrido, a coluna vertebral partida em três, ou os nove meses em que permaneceu imobilizada na cama do hospital. Foi durante esse período que começou a pintar. Para escapar ao mutismo interior? Frida praticava desde cedo, e de modo exaustivo, a solidão. Quando lhe perguntaram porque pintava auto-retratos, ela respondeu que passava muito tempo sozinha, entregue a si. Bem vistas as coisas, ela era a pessoa que conhecia melhor.

Desde o acidente, a dor e a consciência da fragilidade do corpo passaram a fazer parte do seu quotidiano. A desintegração progressiva do corpo, a precariedade da vida, a mortalidade passaram a ser a sua coroa de espinhos. A morte rondava, e nestas condições impunha-se uma fúria de viver. O ímpeto com que pintou, amou, viveu são expressão de uma tentativa desesperada de se manter viva, de se saber viva. A sobrinha da artista, ouvida pelos curadores da exposição na Tate Modern, transmite essa impressão: «A minha tia Frida era apaixonada pela vida! Nas ocasiões boas e nas más, era muito positiva. Dizia sempre: «Viva la vida, viva!» 

O segundo dos acidentes que irromperam pela vida de Frida Kahlo foi, nas palavras da própria, Diego Rivera, o reputado muralista com quem casou duas vezes, a primeira das quais em 1929 e a segunda em 1940. A relação entre os dois amantes foi tumultuosa. Diego, 20 anos mais velho, de tamanho desmesurado, adúltero compulsivo, era «o seu Deus, o seu filho, o seu pai». Era a sua flor de obsessão, carnívora. A mãe de Frida, que nunca simpatizou com o genro, dizia do par que era o encontro de uma pomba com um elefante! Mas Frida, em cuja biografia a mãe é personagem ambivalente, passou a vida a tentar possuí-lo, certa de que a monogamia era um projecto absurdo. Lidou tão bem quanto possível com as infidelidades constantes. Verdadeiramente, só a relação que ele teve com Cristina, a sua irmã mais nova, conduziu ao divórcio.

Foi um período negro, auto-destrutivo. Despedaçou a farta cabeleira de que Diego tanto gostava num sinal de retaliação e de auto-mutilação, e numa tela exígua de 40 por 28 centímetros pintou-se assim: pelona. Andrógina. (A bissexualidade de Frida era antiga, e crê-se que a primeira experiência foi vivida com uma professora, ainda no liceu. Supostamente teve affairs com a pintora Georgia O’Keefe ou a fotógrafa Tina Modotti, para apontar apenas dois nomes sonantes.) Também é verdade que nesses anos se entregou à bebida e que, segundo Diego, pintou alguns dos seus melhores quadros. O mais famoso é «As duas Fridas».

Nessa tela de grandes proporções, Kahlo representa a dualidade da sua personalidade. De um lado, a Frida amada, vestida com o traje tradicional das tehuanas e com o coração intacto; na mão, segura um retrato do artista Rivera quando jovem, muito jovem. Do outro, tem o coração cortado ao meio e veste um traje colonial; o vestido está coberto de flores que esmaecem e se transformam em sangue. As duas Fridas estão ligadas por uma artéria, que parte da fotografia de Diego, se enreda no corpo, e termina abruptamente num bisturi. (Uma fotografia tirada quando o quadro parecia já completo, permite perceber que o pormenor das flores e do bisturi foi acrescentado mais tarde.) Frida sangrava, e a sua dor maior era o desamor.         

Quem é Frida Kahlo? A resposta, as respostas, podem ser encontradas na sua obra. Entre 1926 e 1954, a artista mexicana produziu pouco mais de uma centena de quadros em que explora aspectos relacionados com “o corpo, a genealogia, a infância, as estruturas sociais, a pátria, a religião, os contextos culturais, e a natureza”, como se lê no catálogo da exposição. Todos remetem, de modo quase sempre directo, para a sua vida. 

Frida é um ícone improvável, mistura explosiva de política, sofrimento e introspecção, combinação única de “candura e insolência, crueldade e humor” (Breton). Pintora de auto-retratos, inscreveu a sua biografia no centro da sua obra. Pintora de narrativas que deixam entrever uma cosmogonia privada. Em «Moisés» (1945), Nefertiti, Lenine, deuses aztecas, Freud, Alexandre, Buda, deuses egípcios, Apolo, Cristo, Hitler, (a quem chama “A criança perdida”), e, em especial, o Sol, como centro de todas as religiões e criador da vida, integram o seu panteão. Pintora de naturezas mortas, de frutos suculentos, entreabertos e explicitamente sexuais, narradores do seu amor pelo México, símbolos de fecundidade e do ciclo da vida.

Observemo-la nos auto-retratos. O olhar parece desconfiado, distante, inalterável. Frida pintava-se ao espelho, e esta circunstância pode explicar a “distância” dos auto-retratos. O que pinta é o que é devolvido no reflexo, e não o que lhe sai de dentro. O arrebatamento ou a dor raramente são dados pelo olhar, mas pelo espaço envolvente.

Cada quadro funciona como fragmento de uma anotação diarística, síntese da realidade vivida. Exemplo disto são dois quadros famosos, pintados na sequência de acontecimentos trágicos. Em 1932, no espaço de quatro meses, sofreu um aborto espontâneo e assistiu à morte da mãe.

O aborto revelou-se um momento especialmente traumático. Consta que quis ver o feto, que devorou livros de anatomia, que desenhou infatigavelmente até produzir «Henry Ford Hospital», o quadro que a expõe ensanguentada, a segurar o bebé, a zona pélvica, entre outros símbolos relacionados com a experiência. Alguns críticos consideram que o amor de Kahlo pelos animais (um cão irrequieto que levava o nome de um deus azteca, um macaco que se enredava no seu pescoço...) são uma solução possível para a impossibilidade de ter filhos. O corpo frágil da artista não consentia tamanhas aventuras...

A morte da mãe, ocorrida pouco depois do regresso de Frida ao México, impulsionou «O meu nascimento». É um quadro blasfemo, no qual quebra dois tabus: a exibição do sangue vaginal e da sexualidade da mãe. Um lençol branco tapa a cara da parturiente e uma Virgem dolorosa contempla a cena, da parede. Os dois quadros aproximam-se: cruzam a morte e a vida, a natalidade e a mortalidade. 

Mas há outros quadros que ilustram páginas do seu diário. Como aqueles que pintou nos anos em que viveram na América. Nesse tempo, gringos como Rockefeller estavam fascinados com Rivera, e Frida era “a mulher do artista, que também pinta”_ um papel que ela reclamava para si: quando retrata o casal em 1931, surge minúscula, com uns pés invisíveis que quase não tocam no chão; e ele é um gigante que segura na mão uma paleta com pincéis. Ela era a excêntrica a quem os miúdos perguntavam quando passava na rua: «Onde é o circo?». Era la mexicana, figura que adoptou depois do casamento para agradar ao marido e como declaração política_ viveu fervorosamente os ideiais da Revolução, a ponto de alterar a data de nascimento para 1910 de modo a coincidir com a data da Revolução mexicana.

Na América pintou o folclore mexicano, pintou as filas de desempregados, pintou Mae West que Diego adorava. Mas morria de saudades, e regressaram para viver na Casa Azul.

A casa era um museu vivo, pejada de objectos, retablos, e tralha, tralha que contava a história do México, as suas raízes e tradições. E acolhia refugiados políticos como Trotsky. Por lá passaram, também, o cineasta russo Eisenstein, os fotógrafos Edward Weston ou Álvarez Bravo, o revolucionário Pancho Villa.      

A Casa Azul assistiu ao recasamento de Frida e Diego e à morte da artista em 1954, aos 47 anos. Os últimos anos haviam de ser especialmente penosos. Em 1950 passou nove meses no hospital, durante os quais foi operada duas vezes à coluna, e em 53 foi-lhe amputada a perna direita. Apesar do sofrimento físico, Frida insistiu em comparecer à sua primeira, (e única em vida) exposição individual no México, em 53. Recebeu os convidados deitada na cama, plantada no meio do espaço expositivo. No convite escreveu: «Estes quadros que pintei, pintei-os com as minhas mãos. Eles esperam por si para lá destas paredes, para agradar, tal como planeei».

 

Nota: a exposição recém inaugurada na Tate Modern, em Londres, é a maior alguma vez dedicada a um artista latino-americano em Inglaterra. Aconselha-se a compra antecipada de bilhetes e o aluguer do guia áudio. Além da informação relativa aos quadros em questão, mostra num pequeno ecrã fotografias da pintora, quadros e estátuas que serviram de referência a algumas obras ou imagens da Casa Azul. A mostra quase integral é especialmente bem montada, em salas amplas e  inclui inúmeros desenhos. É emocionalmente forte, como a pintura de Frida. O merchandising da exposição é atraente: pulseiras, cintos, ganchos para o cabelo, inúmeros postais e bibliografia abundante. Caro. Disponível até 9 de Outubro.

 

 

Publicado originalmente na revista Grande Reportagem do Diário de Notícias em 2005

José Soares dos Santos

17.08.19

José Soares dos Santos nasceu em 1962. Desde 1995 que a sua vida são os negócios. Foi presidente e/ou administrador de empresas ligadas à Unilever e ao Jerónimo Martins. Na prática, e actualmente, está com a Sociedade Francisco Manuel dos Santos. A vida que está para trás metia falar sueco e viver com pescadores, usar brinco e cabelo comprido. Tem sobre a secretária O Capital do Século XXI de Piketty e um romance de Javier Marías. Como se sabe, é filho de Alexandre Soares dos Santos.

 

Porque é que esta é a primeira entrevista que dá?

Porque sou muito privado. Nunca gostei de falar publicamente. Acedi ao seu pedido [de entrevista] porque não se pode recusar eternamente. Não sei se sabe que saí do Jerónimo Martins... É hoje comunicado. É coincidência.

 

Lá iremos. Para começar, o que é para si um líder?

Ui, não tenho a certeza. Há muitos tipos de liderança. Um líder é alguém que se sabe adaptar aos tempos. E que sabe fazer uma correcta interpretação das situações. E comunicá-las numa linguagem acessível às pessoas com quem trabalha.

 

Vou recorrer a Maquiavel: os dois eixos nos quais se pode estribar uma liderança, mais que tudo, são o amor e o medo?

Se precisamos do medo para imprimir disciplina e orientação, não estamos a liderar. Aceitar um líder tem que ser um acto voluntário. Quando fala na palavra amor, ou sedução, vem-me sempre um certo paternalismo.

 

Estou a pensar na passagem famosa d’ O Príncipe. “É melhor ser amado que temido, ou o contrário? A resposta é que se quereria ser uma coisa e outra, mas, uma vez que é difícil acumulá-las, é muito mais seguro ser temido do que ser amado”.

Não tenho dúvidas de que entre o líder e as pessoas que lidera tem que haver uma ligação emocional, subtil, que mantem o conjunto uno. As pessoas mudam pelas emoções, não mudam por razões.

Num tempo de informação, de liberdade de escolha, num tempo em que existe um poder difuso na sociedade – e ainda bem que assim é –, ser um líder temido... As pessoas não respeitam e portanto não seguem. Isso ficou para trás.

 

Disse que as decisões são tomadas com base nas emoções, e não na racionalidade. Quem é que desencadeou em si as grandes mudanças da sua vida? Aquelas que o condicionaram num sentido e depois no outro.

Sou licenciado em Biologia Marítima.

 

Porquê Biologia Marítima?

Em 79, 78, era-se médico, era-se advogado, economista, engenheiro. A pressão posta em cima de mim era para ser médico. Tirei o primeiro ano do curso de Medicina na Bélgica e detestei.

 

Porquê, horror ao sangue?

Não. Desde novo, gostava de animais, do campo, das florestas. Achei que tinha de seguir a minha vocação. Licenciei-me em Biologia na Universidade Clássica de Lisboa. No terceiro ano, escolhi Biologia Marítima. Fui parar à Suécia, trabalhar com pescadores. Trabalhei lá durante um ano e tal, fiz parte do meu estágio de pesquisa numa piscicultura de salmão (basicamente, avaliar como é que diferentes variedades de salmão reagiam a diferentes variedades de ração). Fiz esse trabalho, mas fundamentalmente era pescador.

 

Como é que era a sua vida de pescador?

É a vida de um pescador que se levanta muito cedo, parte para o mar e regressa ao final do dia. O trabalho do mar é duríssimo. E é todos os dias. Estava a 150 quilómetros a norte de Gotemburgo. Um clima inóspito.

Vivia num escritório, numa ilha. Tinham alugado uma vivenda e, a troco de uma renda barata, eu limpava e arrumava o escritório. E quando tinham convidados de fora, preparava as refeições. Durante o dia era pescador e à noite era housekeeper.

 

Foi uma grande aprendizagem para si? Imagino que ia daqui com uma vida muito confortável...

Não, em nossa casa nunca houve essa história da vida confortável. Fui ensinado no “vira-te, não te queixes, resolve os teus problemas, precisas de dinheiro?, trabalha”. Não havia borlas nem benesses.

Cheguei lá sem falar sueco, e não me queriam. Sabe, estas pequenas companhias onde dizem: “Mas por que é que ele vem parar aqui?”.

 

“O que é que este menino, jovem licenciado, vem ensinar a estes pescadores de barba rija, que estão a alombar com cardumes desde as cinco da manhã, há não sei quantos anos?” Era essa a ideia?

Exactamente. Passados três meses, promoveram-me a chefe dos pescadores.

 

Como é que os seduziu? Como é que se tornou líder daquele grupo?

Trabalho. É o exemplo. Eles repararam que estava ali para trabalhar, não estava ali para me armar em esperto. Não me impus a ninguém de forma agressiva, confiaram em mim. Passei a comandar todas as operações de mar. E falava sueco fluentemente. Estava numa ilha onde só se falava sueco. Os meus chefes falavam inglês, mas os pescadores, não. Isto foi em 1984, vão 30 anos.

 

Nunca pensou desistir?

Nunca desisto. Não sei porquê, tenho esta mania. Se estou errado paro, mas se estou convencido de que aquilo que estou a fazer é o correcto, não desisto. E se tenho um compromisso com alguém, também não volto atrás.

 

O seu compromisso era com o seu pai?

Não. Era com a companhia e comigo próprio. Tinha que demonstrar que era capaz. Isso é muito importante, a auto-motivação. Encontrar metas na vida que valem a pena, lutar por elas. Aquilo foi um grande teste de sobrevivência.

 

Há pouco não o mencionou, mas quando disse que a pressão era para ir para Medicina, deduzi que era o seu pai que queria que fosse médico.

A pressão não vinha do meu pai. A pressão vinha de um ambiente social. Uma pessoa dizia: “Quero ir para Biologia”. “Biologia? Isso é curso de mulher. Isso é para quem vai para professor.” Era assim.

Nunca fiz as coisas em função do que o meu pai queria. Ou qualquer outra pessoa. Na Suécia, chateou-me dizerem: “Não te queremos cá”. “Ai é? Então espera aí.” Foi um bocadinho de orgulho pessoal e vontade de demonstrar que estavam enganados.

 

Que contactos é que tinha com o seu mundo cá? Ou isolou-se, cortou completamente?

Não. Vim cá duas vezes. E escrevia cartas, muitas cartas. Aos amigos, ao meu pai, à minha mãe, a alguns dos meus irmãos. Alguns dos meus irmãos escreviam de volta, outros não (não gostavam de escrever.) A correspondência é um diálogo.

 

Esse jovem rapaz, o que é que queria da vida?

Não faço ideia nenhuma. Navegava na onda. Fazia aquilo que realmente sentia que queria fazer. Nunca me preocupei muito em ter um plano a longo prazo. Ainda hoje não tenho essa preocupação.

 

Isso é porque não tem a angústia do futuro.

Não. Tenho a ideia de que se estiver a fazer aquilo de que gosto, vou ser realmente bom, e isso abre as portas do futuro. Se tenho um plano para daqui a dez anos, não estou a viver o presente.

 

É uma estratégia de curto prazo.

Nem sequer tenho estratégia.

 

Olhe que o líder que diz isso...

Mas é assim. O que tenho é este princípio. Não tenho goals pré-definidos.

 

Se dissessem a este pescador que daí a 30 anos estaria num escritório confortável, CFO de uma empresa cotada em bolsa, ele diria o quê?

“Nem pensar, Deus me livre!” [risos] Está a olhar para uma pessoa que era fisicamente muito diferente do que vê hoje. Cabelos compridos, brinco. Fiz essas coisas todas.

 

Foi subversivo, olhou para o mundo pelo avesso?

Não é subversivo. Existe uma fase na vida em que temos ideais fantásticos. A maior parte deles ainda os mantenho, felizmente. Julgamos que podemos fazer tudo, mudar tudo, de qualquer maneira. Vivi como queria viver.

 

Parece-me que fala com grande carinho desse rapaz.

É um bom José. E esse José ainda existe, ainda é o mesmo.

À roda dos 28, 29 anos, foi-se instalando o sentimento de que tinha que arranjar uma ferramenta, qualquer coisa que me permitisse olhar com mais estabilidade o futuro. Fui largando a investigação. Acabei por vir parar, via Unilever, ao mundo dos negócios. Entrei para os recursos humanos. Depois, como achei que o [departamento dos] recursos humanos era muito difícil (julgar pessoas ou montar processos de qualificação de pessoas sem experimentar a vida de uma empresa), acabei por ir para o marketing e vendas. E o bicho mordeu-me.

 

Antes dos negócios, vamos devagar. Se quisermos estabelecer os grandes passos, os grandes momentos de aprendizagem, o que é que apontaria? Quais foram os grandes degraus da sua vida?

O 25 de Abril. Entrei no Liceu Pedro Nunes, na revolução, e aquilo era um pandemónio. Havia pancadaria todos os dias entre a Juventude Comunista, o MRPP, o CDS. Tínhamos que aprender a sobreviver. E gostei da dialéctica política.

 

Vinha de onde?

Do Liceu Francês. O meu pai tinha vivido de país em país, o ensino francês era o mais barato. Em São Paulo fizemos o Liceu Francês e quando viemos [para Lisboa] entrámos aqui também. Fui para São Paulo com um ano, regressei com cinco. Depois Bélgica, Suécia, Inglaterra. No meio disto tirei umas férias muito longas nos Estados Unidos. Inglaterra duas vezes, e depois Portugal.

 

O 25 de Abril foi um marco importante.

Não é o 25 de Abril per se. Não me disse rigorosamente nada na altura. Foi o facto de estar envolvido num ambiente efervescente. O segundo marco foi trabalhar na Suécia. Tive um chefe que é um homem fantástico, e que me ensinou o amor pelo trabalho.

 

“O amor pelo trabalho”?

Gostar de me levantar e ir trabalhar, com gosto. Isso marcou-me para o resto da vida. Depois, a primeira vez que estive em Inglaterra a fazer pesquisa. Vivia num quarto, numa casa em que ambos eram alcoólicos, com 50 libras por semana. Era o chamado scientific trainee, e isso é gente que é explorada. É o faz tudo.

 

Porque é que não tinha apoio de retaguarda do seu pai, da família?

Não precisava.

 

Faria diferença viver um bocadinho mais confortavelmente.

Eu é que tinha que lutar pela minha vida, ninguém tinha que lutar por mim. O apoio do meu pai sempre tive, como pai. Mas financeiramente não há razão nenhuma para me apoiar. Tinha que viver com o que tinha. O mais importante é [a pessoa] ter respeito por si própria, saber que pode vencer.

 

Vivendo com tão pouco, uma pessoa também percebe de que coisas precisa absolutamente. A que conclusão é que chegou?

É que as ruas são muito interessantes [risos]. O que dava era para andar na rua. Não é nada agradável. As pessoas ficam muito limitadas nas suas opções, nas suas escolhas. Foi importante porque disse: “Nunca mais, assim não pode ser”. Aprende-se a viver com pouco, mas também se sabe aquilo que não se quer ser. Tem que se dar um salto, tem que se trabalhar mais.

 

Quanto tempo esteve em Inglaterra a fazer investigação?

Um ano e dois meses.

 

Outro degrau, outra coisa marcante.

O meu casamento. O compromisso do casamento foi um marco fundamental. Tinha vinte e oito anos. Casei em 1990. As minhas escolhas passaram a estar voluntariamente condicionadas. Depois voltei a trabalhar em Inglaterra, em chá, e tive um chefe que também me marcou. Ainda hoje trabalha na Unilever.

 

Entrou para a Unilever quando casou?

Um ano antes.

 

As duas coisas têm que ver com projectos mais duradouros, com compromissos em relação ao futuro.

A certa altura a juventude tem que mudar. Uma pessoa não pode querer manter eternamente as coisas. Comigo passou-se naturalmente. Usava brinco, um dia olhei-me ao espelho e tirei o brinco. “Já não és o José do brinco”. Nunca mais usei brinco, a não ser em ocasiões de festa, em que volto a pôr. Agrada-me pô-lo em certas ocasiões.

 

Fiquei a pensar no seu pai, com esta imagem que temos dele, a olhar para si de brinco e cabelo comprido...

Nunca me disse nada. A minha mãe, ofereceu-me um brinco. Mas isso é coisa de miúdos, passou.

O meu pai convidou-me para gerir a joint venture que temos com a Unilever em 94. Assumi a presidência do Jerónimo Martins em Londres, em 95.

 

Foi a primeira vez em que trabalhou com o seu pai, na empresa da família?

Sim, pode-se dizer isso. Embora tenha feito uma introdução de 89 a 91. A cadeira que ocupei, só tinha sido ocupada pelo meu pai e pelo meu avô.

[José conta durante as fotografias que o pai lhe estendeu a cadeira e disse: “É a cadeira do teu avô. Honra-a.”]

Entrei numa companhia em que substituí o meu pai. Estive dois anos para afirmar a minha presença. Passei por aspectos muito importantes. Estava aqui sentado, com 33 anos, e entravam pela porta adentro homens feitos, de carreira provada, muito experientes, a conduzirem negócios de milhões de euros.

 

Não tinha feito nenhum MBA, nada assim?

Não. Fiz um curso de gestão daqueles muito intensos, de 12 semanas, para aprender os fundamentos da gestão. Depois sentei-me aqui. Foi o peixe atirado ao rio. “Agora vamos ver se consegues nadar.” Esses primeiros anos foi eu a olhar para essas pessoas. Aprendi imenso.

 

Era falar de igual para igual ou tinha que os seduzir, como acontecera com os pescadores na Suécia?

Eles tinham que respeitar-me. Tive que estudar muito. Tive que trabalhar muito, preparar-me muito para essas reuniões. Ao fim de um determinado tempo, começaram a dizer: “Afinal este gajo sabe qualquer coisa disto”.

 

Quais é que acha que foram as características que o seu pai viu em si para o convidar a ocupar…

Isso tem que lhe perguntar a ele.

 

De certeza que já lhe perguntou isto.

Não. Nunca tivemos uma conversa sobre isso. Nunca achei importante. O que é certo é que vim aqui parar e a partir daqui fui construindo a minha cultura empresarial.

 

A sua formação académica e profissional foi feita fora do âmbito da família, como se para si e para o seu pai fosse importante que aprendesse a nadar cá fora. E depois, então, vai nadar no universo da família. Mas tem que ter algumas características que ele identifica.

Na altura, o Jerónimo Martins começou um desenvolvimento muito rápido que requeria muita atenção por parte do meu pai. E eu era muito bem classificado dentro da Unilever. No meu estágio, no tempo em que estive a trabalhar em Londres, acedi à shortlist da Unilever. Eles viram qualquer coisa em mim.

 

Percebeu o que é que era?

Não gosto de falar sobre isso. Sei que o facto de ter uma formação diferente, uma formação científica, [traduz] uma forma de raciocínio diferente da formação em Gestão. Permite-me ter um ângulo diferente, o que é um valor acrescentado. A segunda coisa é o procurar da ideia e não desistir. E depois a capacidade de trabalho.

 

Quando vê currículos, é muito sensível a uma formação heteróclita, apesar das notas?

Quando vejo currículos, eles já estão muito filtrados. O que procuro é a versatilidade da pessoa. Se tem ou não tem cultura. Só saber de Gestão não tem grande interesse. Procuro pessoas que tenham capacidade de olhar para o mundo, formular ideias próprias, algo a que a pessoa genuinamente se entregue. Há muitos currículos de outros cursos que me dizem qualquer coisa. Olho para as actividades extra curriculares sérias.

 

Olha para as viagens?

Acho logo interessante. Mas viajar não significa mudar. Há aqueles que viajam e mudam, e há os que viajam e regressam na mesma. Esses não valem mesmo a pena. A permeabilidade ao ambiente onde vivemos: é uma das características dos líderes. É não rejeitar os ambientes onde estamos, e aprender com eles.

 

Estamos em 1995. Há um começo de uma vida que, com oscilações, se mantém até hoje. Vinte 20 anos desta vida.

Este ano faz 20 anos, 31 de Março.

 

Vamos dar um grande salto neste gizado (errático, que começámos a fazer na entrevista). Por que é que passados 20 anos vai anunciar a saída do grupo?

Isto tem uma história.

 

Sai do grupo ou abandona este cargo?

Abandono este cargo. A definição do grupo alterou-se ao longo destes últimos anos. Quando olhamos para o Jerónimo Martins e para a família, vemos um primeiro período de dez anos que vai de 88 a 98/99. A minha família adquire à outra família o Jerónimo Martins e expande o negócio a grande velocidade. Isso leva à crise do final do século XX.

 

Sobretudo situada no Brasil.

Não gosto de falar sobre essa altura como se fosse a crise do Brasil. É uma crise que resulta do atraso do desenvolvimento de Portugal no século XX. Havia o sentimento de que tínhamos que apanhar um comboio que já estava em andamento. O Brasil foi uma peça. Se não fosse o Brasil, seria outra qualquer.

 

Se percebo, está a dizer que rebentou no Brasil mas podia rebentar completamente, porque havia uma pulverização de investimentos, de estratégias, que não estavam a ser acompanhadas devidamente, nem o país tinha condições para uma evolução tão rápida.

Tudo aquilo que as empresas fizeram (lá fora) em 30 anos, nós fizemos em dez. É meter o Rossio na Betesga. Tinha que explodir. Fizemos muita inovação muito rapidamente. A família mantinha o controlo do Jerónimo Martins de uma forma muito simples: uma acção, um voto. Não temos poison pills nos nossos estatutos. A única forma de o fazer: ou a família tinha dinheiro para lá meter, ou tinha que vender negócios, reestruturar-se.

 

Qual foi o seu papel?

Nessa reestruturação ganho uma nova missão: olhar para o grupo de empresas, focar-me no futuro, e tentar montar um sistema que permita a essas empresas florescerem. O Jerónimo Martins estava com dívida, a família estava com dívida, e adquiriu dívida para viabilizar o Jerónimo Martins. Tínhamos que tirar as lições de 1999/ 2000 e encontrar um sistema de governo que garantisse o futuro. Foi o que fiz nos últimos dez, 12 anos, e está feito.

 

Portanto, abandona a administração.

Abandono o cargo de administrador do Jerónimo Martins para me concentrar no cargo de administrador da Sociedade Francisco Manuel dos Santos. Mas o Jerónimo Martins pediu-me que mantivesse a presidência nas companhias em que tenho responsabilidade mais directa (toda a parte de indústria e serviços).

 

Mantém a presidência formalmente; na prática, fica mais concentrado na Sociedade Francisco Manuel dos Santos.

Tenho estado já concentrado na Sociedade Francisco Manuel dos Santos.

 

Nesses anos, esteve mais focado na reestruturação interna, e o seu irmão Pedro esteve mais focado na Polónia. É isto?

Não é reestruturar as coisas aqui. Somos uma equipa. Cada um teve o seu papel. O papel do meu irmão Pedro é o de conduzir o Jerónimo Martins. Ele não conduziu só a Polónia, conduziu também a distribuição em Portugal.

 

Sabemos que a Polónia foi um motor importantíssimo em anos de recuperação do grupo.

A Polónia é o nosso motor.

 

Continua a ser?

Claro. E vai continuar a ser.

 

E a Colômbia?

A Colômbia vai levar tempo a produzir resultados. A Polónia continua a ser o nosso motor principal. A nossa responsabilidade hoje é enorme. Temos estes activos onde trabalham 80 mil pessoas, entre a Polónia, Colômbia e Portugal. Olhamos para a situação actual e vê uma família que não tem dívida.

 

Lembro-me daquela expressão do seu pai, quando a crise começou: “Quero estar sentado em dinheiro”. Disse-me isto numa entrevista de há três anos.

Isso foi planeado. Dividimos tarefas. Há quem olhe para dois, três anos, e há quem olhe para seis, sete anos. Em 2007 tivemos a sensação de que vinha aí uma crise enorme, houve uma instrução de cash. E nas discussões que tivemos, dissemos: “Isto vai levar uns dez anos”.

 

Quando diz que vai estar com a Sociedade Francisco Manuel dos Santos, o que é que isto quer dizer exactamente?

Temos um sistema de governance em que existe o accionista principal, que está sentado na Sociedade Francisco Manuel dos Santos SGPS, aqui em Portugal; o principal objectivo do conselho de administração é pensar nos valores e exprimir os desejos da família. Têm que chegar todos a um acordo porque isso depois é transmitido a uma holding na Holanda, em que a família está em minoria. A grande maioria dos administradores são pessoas competentíssimas, que ouvem o que os conselhos de administração das companhias em que investimos têm para dizer. E têm que fazer o matching das duas vontades. Toda a gestão dos negócios está separada dos desejos da família. Esse board existe na Holanda e eu sou o director-executivo desse board.

 

Agora vai iniciar uma nova etapa.

Já comecei a sua preparação. Esta companhia não tem dívida, tem um balanço extraordinário. O Jerónimo Martins está num ponto self-sustaining, não precisa mais de ajuda do accionista principal para se desenvolver. Tem uma gestão muito competente, está muito bem entregue, com um bom conselho de administração. O meu irmão Pedro é a pessoa que conheço que mais sabe de retalho. É realmente muito bom naquilo que faz.

 

Não ficou nem um bocadinho ferido quando ele foi nomeado?

Se lhe disser que uma das minhas grandes insistências foi ele ser nomeado presidente...

 

Porquê?

Porque na família ele é o mais competente para gerir o Jerónimo Martins. E não me passa pela cabeça entregar a gerência do Jerónimo Martins a um membro que não seja da família. É muito importante manter o nome da família à frente do Jerónimo Martins, senão é uma companhia como outra qualquer e desligamo-nos emocionalmente dela. O meu irmão Pedro era o melhor.

 

Não lhe custa dizer: “O meu irmão Pedro era o melhor”?

Nada.

 

Não gostaria de ser o melhor?

Eu sou o melhor noutras coisas. Ele é o melhor em retalho. Se for igual a ele é um desperdício de recursos de uma família. A nossa grande força é que temos dedicações diferentes um do outro. Se fôssemos iguais era uma grande chatice, ia dar barulho. Ele gosta mesmo do que está a fazer, e eu gosto mesmo do que estou a fazer. Não gostaria de ser presidente do Jerónimo Martins. Não há dramas familiares. Se perguntar ao meu irmão, ele sabe que defendi sempre esta posição. Nunca estive de acordo com o meu pai quando disse que o presidente é uma coisa e o CEO é outra.

 

A ideia do seu pai era que devia ser uma pessoa da família num lado e uma pessoa que não fosse da família no outro. Ou seja, se o CEO fosse família, o presidente não devia ser. E vice versa. Para garantir um equilíbrio.

O meu pai tem razão nesta matéria. Não deviam ser dois da família [na presidência e no lugar de CEO], mas o meu irmão tem que ser o presidente. É a liderança, os valores, a competência. E tem génio para a distribuição. Ele consegue fazer a diferença.

 

O seu génio é qual?

Não sei, as pessoas é que têm que olhar para isso. Sou mais estratégico, mais virado para a organização, para o futuro.

 

Mais frio?

A minha formação obriga-me a fazer um raciocínio mais científico. Não gosto da palavra frieza... Maior distanciamento das coisas. A Unilever ensinou-me isso, também. Nesta reestruturação que estamos a fazer, existe um conselho de administração que, pelo facto de ser independente do conselho de administração do Jerónimo Martins, ganha maior capacidade de análise sobre o comportamento do Jerónimo Martins.

A segunda coisa muito importante é que este conselho não pode dar ordens ao Jerónimo Martins. É uma segurança muito grande para todos os accionistas do Jerónimo Martins. O conselho de administração do Jerónimo Martins é quem comanda os destinos do Jerónimo Martins. Enquanto accionista principal, posso sugerir coisas, como qualquer outro. Mas existe uma garantia de que o Jerónimo Martins tem o seu próprio plano e que não vai ser abusado pelo seu accionista principal.

 

É uma forma de criar uma barreira.

Uma das minhas missões foi construir firewalls, garantir que as intervenções das famílias não são destrutivas mas sim construtivas. Quando uma família é uma boa accionista, isso é muito bom para a empresa porque lhe permite ter estratégias mais longas do que aquelas que os mercados financeiros determinam. Isto é muito a minha função, sinto-me como o protector do Jerónimo Martins do accionista principal.

 

Há negócios de famílias que correm mal. Lembrei-me do BES e da rapidez com que as cartas, as peças do dominó tombaram. Não me refiro aos alegados actos ruinosos, refiro-me à organização familiar, à maneira como estava construído. Isso não podia acontecer no Jerónimo Martins?

Não vou comentar o caso BES nem a família Espírito Santo. Trabalhamos neste sistema de governo familiar desde 1998. Temos alguns princípios que estão aplicados no dia-a-dia que dão alguma segurança de que as decisões são tomadas dentro do grupo de forma transparente. Que as relações entre os accionistas e as companhias, e entre companhias, são transparentes. E que são visíveis, no sentido em que mais do que uma pessoa sabe o que se está a passar. Temos um sistema de relatórios internos e de discussões, de conselhos de administração, que se focam nessa matéria. Temos uma série de processos que visam salvaguardar más decisões e maus comportamentos. Não quer dizer que não possa acontecer – mas trabalhamos todos os dias para que não aconteça. Garantir isto tem sido parte do meu trabalho desde 2000.

 

Quem é que o ensinou a nadar, no sentido literal?

Quem me ensinou a nadar, como deve ser, foi o banheiro, na Ericeira. Na maré baixa lá íamos todos, com a mão por baixo da barriga, aprender os movimentos. Depois fiz natação em Algés, no Dafundo.

 

Esta conversa dos peixes e do nadar é para ir ao encontro da sua história. Usou essa imagem para falar do modo como foram educados.

Uso esta expressão porque foi o meu pai que ma deu. Perguntei-lhe: “Mas o pai acha que estou apto a assumir este cargo?”. E ele disse: “Ó, Zé, só sabemos se um peixe nada quando o atiramos à água”. E é verdade. Depois, se falhar, falhou.

 

Não me falou dos seus falhanços.

Tenho vários. Faz parte. Quem não trabalha é que não falha. Se não se aprende, vai-se falhar de certeza outra vez. Tem que se ter a humildade de reconhecer que há coisas que não correm bem. E tem que se perceber que, com o tempo, os defeitos tornam-se feitios.

 

O seu defeito que virou feitio é o quê?

Com o tempo instala-se uma impaciência para a conversa de chacha. Isso, em determinadas situações, não ajuda nada ao estabelecimento de relações.

 

A conversa de chacha: é especialmente assim em Portugal?

Não. Em Portugal tenho uma dificuldade particular: personalizamos muito a discussão. O outro meu defeito que se tornou mania: o standard de exigência. Isso vem directamente da relação que tenho com o meu pai. Com o meu pai, o standard de exigência é altíssimo.

 

Nunca nada estava bem?

As coisas estão normalmente bem, mas têm que estar muito bem preparadas. Ele exige, e bem, que se trabalhe a sério sobre os assuntos e que não se venha com coisas mais ou menos. Há um nível de discussão que temos que manter nos órgãos de administração, senão as companhias degradam-se. É um desafio que se me põe todos os dias, não ser complacente.

 

Parece que está sempre a correr, a correr para manter esse grau de exigência, esse grau de excelência.

Se não estou preparado para assumir essa responsabilidade, tenho que me ir embora. Todos os dias faço um exame de consciência, olho para três factores. Primeiro é se fui eu mesmo, no sentido em que não sacrifiquei a minha personalidade, os meus valores, a minha ética, nas decisões que tomei. A segunda é se mereci o meu salário, se dei o meu melhor ou não naquele dia. Ou se prescindi daquele detalhe, daquela nota que falta ver. E o terceiro exame é se tomei a melhor decisão para a empresa. Não para mim.

 

E a resposta?

Não quer dizer que consiga todos os dias, mas se há um período de tempo em que começo a não dar isto, está na altura de me retirar. E tenho feito isto. Por exemplo, deixei de ser presidente executivo da joint venture por minha vontade. As minhas convicções estavam a ser fortes demais. As convicções vêm do passado, matam o futuro. Quando elas se tornam muito fortes o melhor mesmo é retirar-me e deixar alguém de novo assumir essa posição.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015

 

 

 

 

 

 

Somos Douro: o meu diário

16.08.19

Dia 1

Com Tatiana Salem Levy a espreitar, Rita Ferro Rodrigues e euzinha orgulhosas da nossa Priscilla, rainha do Douro. A sair. Que emoção!

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Camané na abertura do Somos Douro, em Lamego (teatro lindo), com a participação de alunos do Conservatório de Música de Vila Real. Sei de um rio, sei de um rio... Obrigada pela presença, ministro Luís Filipe Castro Mendes, obrigada José Freire de Sousa pelo convite para ser comissária do festival, obrigada a todos. Vamos percorrer 19 municípios do Alto Douro Vinhateiro até 17 de Junho. Organização: CCDR-N.

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Dia 2

Já começou o Fórum Jovem, com diversas mesas de trabalho e foco nos jovens durienses, nas suas ideias, potencialidades e projectos para o futuro. A Territórios Criativos organizou o Fórum, eu convidei a Bárbara Reis, a Capicua, o Pedro Santos Guerreiro e a Rita Ferro Rodrigues para serem dinamizadores de cada mesa. Na Régua.

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Álbum do fim de semana: Capicua, Bárbara Reis e Rita Ferro Rodrigues, José Freire de Sousa, a equipa do Vítor Devesa da CCDR-N, com Joel, Zélia e Isabel (falta a Ana Magalhães). 

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A Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, que admiro tanto, esteve no encerramento do Fórum Jovem. Foi muito interessante ouvir as conclusões de um dia de trabalho, com dezenas de jovens de toda a região duriense, e perceber que muitas das questões levantadas são comuns às preocupações e linhas de acção da Rosa, enquanto governante. Inclusão, comunicação, igualdade, trabalho em rede são palavras nucleares. Muito obrigada a todas e todos por terem estado. No final, foto de família no Museu do Douro.

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E no Expresso desse sábado, o Somos Douro.

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Uma semana antes, tinha saído esta peça no Jornal de Notícias, pela Helena Teixeira da Silva. Outras entrevistas de divulgação: na TSF com Nuno Domingues e na Antena 1 com Margarida Pinto Correia e João Gobern. 

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Dia 3

Começámos em Mesão Frio com Pedro Mexia a falar de Agustina, às 11h da manhã. A biblioteca municipal estava cheia, cheia, com pessoas sentadas no chão e pelas escadas. O melhor de tudo foi ouvir alunos do 12º ano que tinham trabalhado com professores abordagens possíveis à obra da escritora (e relação com o património duriense), e relações com autores como Miguel Torga e Eça de Queirós. São alunos que vão ter exames em breve. Mesmo assim, com a persistência da vereadora da Educação e Cultura de Mesão Frio e o acompanhamento dos professores da escola local, inventaram tempo para pensar sobre isto e, com segurança, interpelar Pedro Mexia. 

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Canta porque canta, sente-se feliz! O Somos Douro foi recebido em Armamar pelo orfeão da universidade sénior. Uma pessoa até chora.

"Ninguém imita melhor do que eu uma bela vida": fim do "Vale Abraão" de Manoel de Oliveira e de Agustina Bessa Luís. Leonor Baldaque, actriz de Oliveira, neta de Agustina, escritora editada pela Gallimard fez um trabalho admirável de comentário do filme e do livro. Tantos ângulos de ataque, tantas possibilidades de entrar neste universo misterioso... Foi em Armamar, território agustiniano. Leonor começou por falar da importância das horas em que não acontece nada, ou seja, das horas mais importantes. Fiquei dias a pensar nestas palavras. 

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Foi lindíssima, a sessão do Bernardo Pinto de Almeida na Régua (onde o professor, poeta e ensaísta nasceu), sobre a paisagem na História da Pintura. Começámos em Pompeia, chegámos a Pollock. Nunca mais vou ver o cão de Goya da mesma maneira. Relembro que todas as acções do Somos Douro são de acesso gratuito e dirigem-se a todos.

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Dia 4

Como filmar um beijo? Há o beijo do ET que cita o filme de John Ford "Americano Tranquilo". O beijo de "Até à eternidade". O beijo com um gato no meio de "Breakfast at Tiffany's". O filme em suspensão d' "A Infância de Ivan" de Tarkovski. Como surgem os personagens? Como se conta a história, como encontrar o nosso modo de narrar, o ritmo? Como se contaminam as linguagens verbal, visual e musical? Ana Margarida de Carvalho está a fazer uma residência artística em Santa Marta de Penaguião esta semana, e dirige duas oficinas de escrita: uma para adultos e outra para público escolar. Na primeira, aproximou-nos da literatura através de filmes e letras de canções. Falou, por exemplo, dessa peça fascinante que é "A Rosa Púrpura do Cairo", entre a ficção e a realidade. Que maravilha, poder assistir. E que acolhimento! Obrigada a toda a equipa da Câmara de Santa Marta, que ainda nos levou a jantar ao restaurante da D. Hermínia do Marão (nem vos conto...).

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Nestes dias em que atravesso 19 municípios, para celebrar a região duriense, interrogo-me sobre o alcance de um programa que desenhei há meses, em casa, longe deste território, ainda que ele faça parte da minha biografia. Interrogo-me sobre o impacto efectivo que o Somos Douro pode ter na vida das pessoas. Acho que encontro algumas respostas quando olho para estas imagens de Santa Marta de Penaguião, para a oficina de escrita da Ana Margarida de Carvalho com estes meninos. 

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Dia 5

Entre as centenas de entrevistas que fiz, a de Alberto Carneiro ocupa um lugar especial. Foi poucos anos antes da morte do artista. Em Carrazeda de Ansiães, dei com esta escultura lindíssima, Os Sete Livros da Vida, acompanhada de árvores e de verde. Que felicidade! Deixo-vos este excerto que me inspira muito: "Fiz a tropa, um ano em Lisboa; quando regressei levava uma decisão: não viver mais em São Mamede. Tinha feito o quarto ano nocturno do curso de escultura decorativa na [escola] Soares dos Reis, no Porto, e queria ir para as Belas Artes. Foi entre os 17 e os 20 anos. Ia de bicicleta de São Mamede para o Porto. Fazia 40 quilómetros diários. Depois de oito horas de trabalho. Cinco horas de aulas. Foi um bocado duro, não é? Mas realizou-se. Quando regressei da tropa não estava disposto a continuar com a mesma vida. Disse isso aos meus pais – que ia abandonar a actividade de santeiro. A minha mãe perguntou-me: “Vais viver como?” “Logo se arranja alguma coisa”. E arranjou-se.

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Em Carrazeda, a escritora brasileira Tatiana Salem Levy fez uma oficina de escrita com 20 jovens do 12º ano. 

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Tatiana partiu destas duas imagens para a oficina de escrita na biblioteca de Carrazeda de Ansiães. Uma pintura de Hopper e uma fotografia de Pedro Loureiro. Esta diz respeito à geografia da região, a outra representa a evasão e um sonho distante. Foi também esta dicotomia, entre o desejo de sair e a sensação de pertença àquele lugar, que apareceu nos textos dos alunos. Curiosamente quase todos escolheram trabalhar a partir da fotografia; mas um aluno que escolheu Hopper fantasiou a existência de um empregado de mesa naquele quadro (afinal, se é um espaço de refeição, tem de haver um empregado de mesa, mesmo que ele não se veja...). Que maravilha. 

Tatiana disse-lhes também que eles já têm um património importante, aquilo que nutre um escritor: a sua infância, uma identidade.

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Dia 6

Uma pessoa chega a Sernancelhe e sente-se em casa! Não há palavras para agradecer o acolhimento. Terra natal de Aquilino Ribeiro, partimos da obra e imaginário do escritor para este dia do Somos Douro, com os especialistas Alberto Correia e Serafina Martins e o neto, Aquilino Machado. No final, comemos fálgaros e outras comidas aquilinianas com espumante das Terras do Demo.

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Dia 7

Maria Mota, cientista brilhante, a partilhar a sua paixão pela ciência, a ensinar-nos tanto sobre a doença da malária. Terminou dizendo: no IMM procuramos perguntas! Não é respostas, é perguntas. Tanta coisa a dizer a partir daqui... Fomos recebidos em Vila Real pela vereadora do ambiente Mafalda Vaz de Carvalho. Obrigada a todos, em especial à vice-presidente da câmara Eugénia Almeida. 

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Dia 8

António Feijó no Palácio de Mateus: de uma famosa carta de Pessoa no seu dia triunfal ao verso do fim (I know not what tomorrow may bring), tradução inglesa de um verso de Horácio. Somos Douro a celebrar os 130 anos do nascimento de Fernando Pessoa. Ah, e Ofélia detesta o histérico do Álvaro de Campos...

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Dia 9

O Somos Douro e a Ordem dos Arquitectos (secção regional norte) promoveram um roteiro de arquitectura na região, com cinco paragens, cinco edifícios assinados por nomes importantes da arquitectura portuguesa, e premiados. São eles: o Museu da Vila Velha (Belém Lima), a Adega Quinta do Portal (Siza Vieira), o Centro Cultural Miguel Torga (Souto Moura), o Museu do Côa (Camilo Rebelo e Tiago Pimentel) e Centro de Alto Rendimento do Pocinho (Álvaro Andrade). Programa efectuado em várias partes. As arquitectas Ana Vaz Milheiro, Cláudia Costa Santos, Graça Correia e a engenheira Ângela Nunes conduzem visitas guiadas, propõem uma leitura destes edifícios. Além da presidente da secção regional norte da Ordem dos Arquitectos, Cláudia Costa Santos, esteve também a presidente da secção regional sul, Paula Torgal. Começámos com a visita ao Museu da Vila Velha de António Belém Lima em Vila Real. Visita conduzida pelo autor e por Ana Vaz Milheiro. 

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Uma igreja cheia, num sábado chuvoso e frio, para ouvir Richard Zimler sobre judaísmo (algumas ideias falsas: que todos os judeus são ricos e instruídos; no século XVI, em Belmonte, havia 77% de mulheres analfabetas, os homens, 23%). Zimler falou de um Portugal multicultural, muito antes de a palavra se usar. Interessantíssimo. E que dizer da Câmara de Torre de Moncorvo que ofereceu à população dezenas de exemplares de "O Último Cabalista de Lisboa"? O escritor, que disse que em 22 anos nunca viu um gesto assim, autografou livros pela tarde fora. 

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Radicado no nordeste transmontano há anos, António Sá é um fotógrafo que tem publicado com regularidade na revista National Geographic. A paisagem está muitas vezes no centro da sua objectiva. Numa oficina de dois dias, vai ensinar coisas básicas, como olhar, elaborar uma narrativa visual, além das questões técnicas que dizem respeito à fotografia. Em Freixo de Espada à Cinta

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Dia 10

Toda a gente conhece o extraordinário comunicador que é Joel Cleto e os seus programas do Porto Canal, que promovem um conhecimento e relação directa com o património. Durante um dia inteiro, este historiador e divulgador revela tesouros e conta histórias dos concelhos de Tarouca e Penedono.

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De como um astrónomo foi desconsiderado por ser diferente. Da importância vital de limparmos os nossos vulcões-raiva, adormecidos ou activos. Do cuidado com a nossa rosa, mesmo que vaidosa, birrenta, esquisita. E aquele homem de negócios que só queria ter coisas para as ter, mas que não tinha nenhuma curiosidade acerca delas... E como conservar a imaginação e manter por perto a criança que há em nós? E como enfrentar o medo? Ohh, façamos como "O Principezinho": perguntas, sempre perguntas. Curiosidade para o mundo e para o outro. E preparemos o coração para o que mesmo importa. Que isso nos permita criar laços.

Foi simplesmente mágica, esta tarde, em Parada do Pinhão: a psiquiatra Manuela Correia, na casa onde viveu o seu marido, o mítico editor da Assírio & Alvim Manuel Hermínio Monteiro, falou com dez meninos sobre o clássico de Exupéry, editado há 75 anos. Os pais assistiram, mas não intervieram. Juntos, preparando-se para a conversa-oficina, leram o livro. Agora, é saber como vão florescer as rosas hoje plantadas.

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Dia 11

O Somos Douro na adega do Portal de Siza Vieira. Visita guiada por Álvaro Fonseca, do atelier de Siza, e Cláudia Costa Santos, presidente da Ordem dos Arquitectos, secção regional norte.

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Esta é a imagem de segunda-feira do Somos Douro... Eduardo Souto Moura e José Freire de Sousa são amigos há 50 anos (e há 50 kg, gracejou o arquitecto), foram colegas de liceu. O presidente da CCDR-N levou fotografias desse tempo. Souto Moura esteve no Espaço Miguel Torga, de que é autor, em Sabrosa.

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Quando o Somos Douro recebe o galardoado com o Leão d’ Ouro em Veneza... Obrigada, Eduardo Souto Moura, pela visita e partilha no Espaço Miguel Torga, em Sabrosa. Obrigada à arquitecta Graça Correia que fez uma interpretação do espaço e desencadeou uma conversa interessantíssima com Souto Moura. Obrigada à equipa de Sabrosa pelo modo como nos receberam. 

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"Torga é um poeta em quem um país se diz", disse Sophia. Torga é aquele que põe no existir a razão absoluta do escrever, sintetizou Carlos Mendes de Sousa. Que imersão no imaginário do autor! E ficámos tão contentes com a presença (surpresa) da Clara Crabbé Rocha, a filha de Torga. Mais um motivo de celebração no Somos Douro (dia inteiro passado em Sabrosa). Uma última frase, inspiradora: "Faz sempre tudo a sério, mas nunca te leves a sério". 

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Terminámos o dia em Sabrosa com Carlos Pazos. Através de uma parceria com o Instituto Cervantes em Lisboa, pretendemos abordar o tema das relações entre Portugal e Espanha, o rio que nos une, e revelar identidades e talentos de um lado e outro da fronteira. O escritor espanhol Carlos Pazos abordou a presença histórica de galegos em Lisboa (entre eles, Alfredo Guisado, que se deu com Pessoa e o movimento de Orpheu). A conversa foi no espaço Miguel Torga, autor marcado pela influência de Cervantes.

A parceria com o Cervantes teve mais um momento: o concerto Abrazo-Abraço da cantora espanhola María Salgado. Foi no Conservatório Regional de Música de Vila Real, no dia 7. A voz de María Salgado é apontada como uma peça-chave para entender a música castelhana. No centro do seu repertório está a herança cultural e musical de Castela e Leão. Em Vila Real, María fez-se acompanhar de músicos espanhóis e de um músico português: Cesar Diaz, Amadeu Magalhães e María Alba. 

 

Dia 12

Palavra de Sophia: "irremediável", a vida "suja, hostil, inutilmente gasta" que está no poema "Cidade" de 1944, que está nos contos para a infância, por exemplo na "Fada Oriana" (porque o belo, a harmonia, o equilíbrio têm sempre em si um monstro suspenso). Sophia, a transparente, a que traz a palavra "aliança" (que o nosso ser coincida com os outros seres), a do louvor e protesto, a da parede branca, nua e lusa. Ana Luísa Amaral deu a ler esta Sophia numa sessão verdadeiramente mágica em São João da Pesqueira. Havia dezenas de meninos do 5º ano, havia adultos, biblioteca a abarrotar e uma sensação de felicidade no ar. Sinto gratidão às gentes que ali foram. Sinto-me realizada como comissária do Somos Douro.

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Somos Douro em Moimenta da Beira a celebrar Aquilino Ribeiro. Com Aquilino Machado, o neto do escritor, a conduzir uma visita à Casa-Museu, e Irene Flunser Pimentel a traçar o tempo histórico de Aquilino, em especial o de “Quando os lobos uivam”, editado há 60 anos.

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Dia 13

“Estou no crasto de Palheiros, em Murça.”

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Uma porca que não é uma porca e um crasto que não é um castro: a linha de que partimos, em Murça, com António Carvalho, director do Museu Nacional de Arqueologia, e Maria de Jesus Sanches, professora da faculdade de Letras do Porto. Visitámos a porca de Murça e o crasto de Palheiros, havia alunos da universidade sénior de Murça e alunos de arqueologia do Porto! Foi maravilhoso vê-los juntos.

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Continuámos, já à noite, com o historiador Fernando Rosas a apontar os vários desenhos que a Europa conheceu nos últimos 100 anos. Curioso pensar que estamos agora, 2018, perto da configuração que a Europa assumiu no pós-tratado de Versalhes. Nota quiçá pessimista e final: a Europa não tem a centralidade no mapa mundi que sempre teve. Como vai lidar com a nova disposição das peças no tabuleiro?

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Dia 14

Sem estas miúdas, o Somos Douro não se fazia! Obrigada, Julita Santos, mega produtora executiva, e Helena Teles, responsável da CCDR-N em Vila Real.

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"Quando o viajante entra em Torre de Moncorvo, já há muito tempo que é noite fechada", escreveu José Saramago na sua Viagem a Portugal. Quando o Somos Douro entrou em Torre de Moncorvo, o sol ia adiantado, a biblioteca estava cheia. Dias antes, era um frio de Inverno. Estações trocadas, o mesmo calor da recepção. Comecei por ler este fragmento de uma entrevista que fiz ao prémio Nobel português: "Os meus pais sacrificaram-se muito e deram-me estudos para ir para a universidade? Não, tive estudos que estavam ao meu alcance e ao alcance da bolsa da família: estudei para ser serralheiro mecânico. Fui serralheiro mecânico. Depois fui várias coisas ao longo da vida. Li muito. Livros meus só os tive quando tinha 19 anos, quando pude comprar, com dinheiro que um amigo me emprestou." José Luís Peixoto, que recebeu o prémio Saramago com apenas 26 anos, falou do legado do escritor, da importância de encontrar um espaço próprio, do lugar da literatura, da pergunta contínua que é feita na escrita: quem somos?, da força planetária de Saramago, do prazer impermanente que é escrever, da diferença entre obra e carreira (obra é o que fica e o que justifica tudo), do seu começo com uma edição de autor de "Morreste-me", do envelope que chegou pelo correio a Maria do Rosário Pedreira com o romance que mudou tudo, dos cinco mil contos do prémio que mudaram a vida de um professor (que era o que Peixoto era) que vivia na angústia dos mini-concursos e de colaborações esparsas para jornais. Que tarde. Obrigada a todos, também à Fundação José Saramago.  

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António Jorge Gonçalves em São João da Pesqueira numa das oficinas do Somos Douro (tivemos duas de escrita, uma de fotografia e uma de desenho, além de conversas-oficinas ao longo de todo o programa). Além do trabalho com crianças e jovens, o ilustrador fez uma oficina com seniores.

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O que pode resultar do InCode.2030? Uma coisa tão simples e significativa na vida de todos os dias como ensinar a população idosa a ligar o skype (e assim falar com familiares emigrados) ou abrir conta de email, ou capacitar jovens ou minorias para a literacia digital. No Somos Douro, desenvolvemos um programa piloto, a decorrer em Tabuaço. Na imagem, Sofia Marques Da Silva, que coordena o eixo Inclusão. O programa é promovido pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e pelo Ministério da Presidência e da Modernização Administrativa. 

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Dia 15

Centro de Alto Rendimento do Pocinho do arquitecto Álvaro Fernandes Andrade. Visita integrada no roteiro de arquitectura do Somos Douro, organização da CCDR-N e da Ordem dos Arquitectos, secção regional norte.

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Dia 16

Camilo Rebelo e Tiago Pimentel andavam pelos 30 quando desenharam o Museu do Côa. Passaram 10 anos (pouco mais) e os arquitectos conduziram uma visita ao edifício, no Somos Douro. Com eles estava a engenheira Ângela Nunes, uma das responsáveis pela obra (que, por exemplo, encontrou a cor da pedra, procurada meses, essencial para a inserção do objecto-museu na paisagem, sem agressões). Que projecto incrivelmente belo, harmonioso, fulgurante; e foi lá que vi uma das peças mais impressionantes destes dias: uma instalação de Ângelo de Sousa, feita de espelhos, ângulos obtusos, linhas de fuga que dão para todo o lado.

Este roteiro foi co-organizado pela Ordem dos Arquitectos, secção regional norte. Obrigada ao Bruno Navarro, director do Museu, e à Câmara de Foz Côa (incrível Andreia!).

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Neste dia, lançámos o concurso "Ponha o Douro no Mapa", para jovens youtubers (sobretudo durienses) entre os 13 e os 30 anos, com a coordenação de Rita Ferro Rodrigues. A iniciativa teve o apoio do Turismo de Portugal, da Câmara de Foz Côa e da Glymt.

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Os vencedores foram conhecidos em Setembro, no festival de cinema do Côa. E foi assim...

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A Rita Regalo, a Ana Sofia Novo Oliveira, a Mónica Francisco e o Pedro Almeida foram os vencedores. O prémio para estes jovens, que nos mandaram micro-filmes do seu Douro, é uma viagem a Paris e aos escritórios da Youtube em Paris. Com eles vai a coordenadora do concurso, Rita Ferro Rodrigues. Parabéns a todos! Dos quatro vencedores, apenas a Rita (18 anos) festejou connosco, no Côa. Mas todos os outros mandaram mensagens calorosas. Houve 186 submissões, uau!

 

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A elegância do traço. O movimento ("estão a ver estas três cabeças?"). O espanto de ver qualquer coisa que, como um rumor fundo e persistente, vem de um tempo que nem conseguimos imaginar quando foi, mas que se manifesta num código que é também o nosso. O escritor João Pinto Coelho, arquitecto de formação, último vencedor do prémio Leya, partiu para a visita ao parque arqueológico do Côa com mais perguntas que respostas, e com a ideia de que todos faríamos ainda mais perguntas no fim da visita. Por exemplo, porque é que se faziam desenhos em sobreposição quando havia, ao lado, uma superfície limpa, intocada? Que coisas diriam aqueles nómadas do Paleolítico a outros nómadas do Paleolítico através daquelas gravuras? Temos hipóteses interpretativas, claro, mas, pessoalmente, como o João, gosto sobretudo das perguntas que ficam no ar e nos acompanham pelos dias. 

Junto às gravuras, um calor imenso (mais cinco graus lá no fundo do xisto, apesar do rio ao alcance da mão). Só de pensar que uma semana antes estávamos de botas e debaixo de chuva... Éramos mais de 60, na visita.

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Puro encantamento: António Jorge Gonçalves, Filipe Raposo e Ana Brandão. Desenho efémero na fachada do museu, piano e voz. 

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No Pinhão, chegámos ao fim do Somos Douro, com bandas de música da região. Uma delas tem 150 anos, outra 110. Os elementos vão dos 80 aos (talvez) quatro anos. As bandas têm um lugar tão importante na vida da comunidade... Obrigada a todos os que foram e nos ajudaram a fazer a festa. Estavam 35 graus, fizemos um piquenique junto ao rio e aos vinhedos, paisagem de beleza irreal. E quatro harpistas galegas sintonizaram-nos com um sonho lindo no fim-fim. 

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Senti-me entre político em campanha eleitoral e vocalista de banda rock. Percorri um território vasto, belo, com pertenças e realidades distintas, distinguido pela UNESCO há 16 anos como património mundial. A convite do presidente da CCDR-N, desenhei um festival, o Somos Douro, que decorreu entre 1 e 17 de Junho em 19 municípios, e que me permitiu reviver a minha geografia (cresci em Vila Real), conhecer pessoas, viver intensamente, aprender tanto. Houve dias em que acordei em Vila Real, acompanhei uma conversa sobre Sophia em São João da Pesqueira, segui para Moimenta da Beira com Aquilino e Irene Flunser Pimentel. Foi muito intenso, fisicamente desgastante, mala às costas, frio e calor, as minhas orquídeas para que olho agora e as rotinas de casa como uma lembrança longínqua, uma compreensão do tempo elástica, alterada. O fôlego era retomado com a alegria e a gratificação de perceber que o festival era acolhido; talvez pela primeira vez, acontecia qualquer coisa que dava uma unidade àquele extenso mapa, que não deixava ninguém de fora. A inclusão foi uma ideia capital: em todos os municípios havia, pelo menos, um evento. Agora escrevo de casa, ainda atoada, exausta, com a certeza de que preciso de tempo para integrar o que ali vivi. Sou profundamente grata às dezenas de pessoas que nos últimos meses se envolveram para que o festival acontecesse, cada pessoa de cada câmara e cada equipamento local, àqueles que assistiram e nos dirigiram palavras tão encorajadoras, à equipa da CCDR-N, à produtora executiva Julita Santos, ao prof. Freire de Sousa pela contínua confiança em mim e pela total liberdade para desenhar um projecto como este. Fui a comissária, mas claro está que, sem estes todos, nada teria acontecido. 

Muito obrigada aos participantes (pela ordem de entrada no festival): Camané, Orquestra de Câmara do Conservatório Regional de Música de Vila Real, Bárbara Reis, Capicua, Pedro Santos Guerreiro, Rita Ferro Rodrigues, Pedro Mexia, Leonor Baldaque, Bernardo Pinto de Almeida, Ana Margarida De Carvalho, Tatiana Salem Levy, Alberto Correia, Aquilino Machado, Serafina Martins, Maria Manuel Mota, María Salgado, António Feijó, Cláudia Da Costa Santos, António Belém Lima, Ana Vaz Milheiro, Eduardo Souto Moura, Graça Correia Ragazzi, Richard Zimler, António Sá, Manuela Correia, Joel Cleto, Carlos Mendes de Sousa, Carlos Pazos, Ana Luísa Amaral, Irene Flunser Pimentel, António Carvalho, Maria de Jesus Sanches, Fernando Rosas, António Jorge Gonçalves, Sofia Marques Da Silva, José Luís Peixoto, Álvaro Fernandes Andrade, Camilo Rebelo, Tiago Pimentel, Ângela Nunes, João Pinto Coelho, Filipe Raposo, Ana Brandão, Bandas Filarmónicas da Região, Patrício Costa. 
Obrigada às populações e câmaras de (e por ordem alfabética): Alijó, Armamar, Carrazeda de Ansiães, Freixo de Espada à Cinta, Lamego, Mesão Frio, Moimenta da Beira, Murça, Penedono, Peso da Régua, Sabrosa, Santa Marta de Penaguião, São João da Pesqueira, Sernancelhe, Tabuaço, Tarouca, Torre de Moncorvo, Vila Nova de Foz Côa, Vila Real. 
Que bom foi viver convosco este Somos Douro. 
A fotografia é do Egídio Santos, que registou estes dias, com profissionalismo e talento, e me apanhou em 10 minutos de recolhimento, no Pocinho.

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