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Anabela Mota Ribeiro

André Gonçalves Pereira

10.09.19

André Gonçalves Pereira. Conta-se que quando foi para Ministro dos Negócios Estrangeiros de Balsemão, o dinheiro que aí ganhava não lhe dava para os charutos! Riso. Voz espessa. Os charutos. A pena de não os poder fumar no escritório. Bom dia. Pontualmente às 10, começámos a conversar.

Essa foi a vez em que foi MNE. Mas essa não é a história mais famosa quando se fala dele como MNE. A outra aconteceu anos antes, quando era um jovem príncipe de Marcelo e foi convidado para integrar o governo. Tinha 32 anos, recusou.

Quis ser independente. Foi. Será. É um homem distinto. Exibe uma educação de colégio interno – podia ser suíço ou inglês, foi inglês. A mãe era francesa, e a vida internacional. Chegava de Nova Iorque para dar aulas na Faculdade de Direito. Guiava para a faculdade, sorumbática, num carro improvável. Um dandy que se fez catedrático muito cedo na vida. Um bon vivant que casou muito tarde. Um respeitável senhor que admira Churchill e é admirado por gerações de alunos. Um filho de um pai que quer honrar, um protegé do Presidente do Conselho.

Muito mais do que um advogado. Uma entrevista rara. Um acesso limitado, e mesmo assim excepcional, a uma figura que não se parece com as outras.

 

 

 

Dois pontos de partida: a casa redonda ou o apelido Delauney. Prefere começar por qual?

Qualquer dos dois… [riso]

 

Ou seja, começamos por um aparente fait divers ou pelo princípio.

O apelido Delauney: a minha mãe é francesa e é descendente do Marquês de Delauney, que foi o último governador da Bastilha. Quando, no dia 14 de Julho de 1789, a população francesa ocupou a Bastilha cortou a cabeça ao Marquês de Delauney.

 

Não há nenhuma relação com a pintora Sónia Delauney?

Tenho pena, mas não tenho nenhuma relação – que eu saiba. Embora sejamos originários da mesma área, na Normandia. Quanto à casa redonda, é uma casa que fiz há 34 anos, extraordinariamente realizada do ponto de vista arquitectónico. Ficou pronta em 74, para celebrar a democracia. Até que o ano passado decidi vendê-la para comprar uma outra na Quinta da Marinha.

 

Porque é que a vendeu?

Por variados motivos. O principal é que fiz 70 anos, comecei a pensar no futuro e cheguei à conclusão que não tinha fortuna suficiente para manter duas casas com muito pessoal nos dez, 12 anos que me restam de vida. Como não sou rico, como vivo do meu trabalho…

 

Não é rico?

Em Portugal é muito difícil uma pessoa ser rica na base do trabalho. Pode-se enriquecer licitamente – já não falo do enriquecimento ilícito – com operações, negócios. Um médico ou um advogado podem adquirir um belo nível de vida, como eu fiz, e nunca tive dificuldade nem falta de dinheiro; mas não enriquecer. Nunca tive o desejo de ser rico.

 

Tinha a ideia de ser rico e de isso ser uma evidência na sua vida.

Sempre vivi como se fosse rico, mas nunca fui. Nunca me preocupou acumular contas no banco. Não tenho filhos. Se tivesse, tenho impressão que prevaleceria o ponto de vista norte-americano: a obrigação dos pais é dar aos filhos a educação e lançá-los na vida.

 

Quando li a notícia da venda da casa redonda, pensei no “capital afectivo” que ela representa.

Quando me perguntam: não tens saudades da casa? A resposta é complexa. Não tenho saudades de coisas materiais. Quando temos saudades – eu, pelo menos – temos saudades de nós próprios. Tenho muitas saudades dos tempos bons e agradáveis que vivi naquela casa. Isso significa que tenho pena de não ter 30 anos, ou 40. Mas não vejo solução para esse problema…

 

Como era esse homem de 30, 40 anos, e como era essa vida de que tem saudades?

Eu tinha 36 anos quando foi o 25 de Abril e fiz toda a juventude, e essa idade madura, no Antigo Regime. Nunca gostei do Antigo Regime, ainda que tivesse muito boas relações com Marcelo Caetano. Também não fui um combatente da liberdade. Fui simplesmente uma pessoa que procurou não se comprometer com o Regime. Não aceitei ser Ministro dos Negócios Estrangeiros quando Marcelo Caetano me convidou aos 32 anos. Qualquer outra pessoa da minha geração teria aceite.

 

Porque é que recusou?

Quis ser independente. A minha vida foi marcada por uma pretensão de independência. Mas também pelo internacionalismo – que cimenta a independência. A Europa, mais do que prosperidade económica, era um ambiente de liberdade. Era de Paris ou de Londres que nos vinham os livros e as revistas, em papel pardo, para a censura não perceber do que se tratava. Era a Paris ou a Londres que íamos ver filmes que não chegavam aqui, e outros que, quando éramos novos, os nossos pais não nos deixariam ver por motivos que não políticos. 

 

Quando é que começou a viajar?

Muito cedo. Os meus pais estimularam isso. Aos 20 anos corri todo o Médio Oriente. Estive em Israel e na Jordânia numa altura em que era preciso dois passaportes para ir aos dois países.

 

O que é que o levou ao Médio Oriente em 56? Em Portugal viajava-se pouco, como é sabido. Mas os destinos mais frequentes eram Paris, Londres, rotas europeias.

Mas aos 20 anos, já tinha estado dez ou 12 vezes, em Paris e Londres – para não falar de Madrid, Roma. Fui por curiosidade, e corri todo o Médio Oriente, do Egipto à Síria. E em 57 corri a África Portuguesa – Angola e Moçambique.  

 

Era um desejo de aventura? Porque quer a África Portuguesa quer o Médio Oriente equivalem a dois continentes ignotos.

Já vai há tanto tempo que tenho dificuldade em recriar os meus sentimentos de então, mas havia certamente um desejo de aventura aí misturado. Mais ainda, de curiosidade humana. De ver como eram as outras pessoas, diferentes daquelas que conhecíamos.

 

O que é que lia? Os livros eram um farol?

Em minha casa havia um grande ambiente de leitura, quer por parte do meu pai, jurista e professor universitário, quer por parte da minha mãe, que era francesa e me iniciou na cultura francesa.

 

A familiaridade com o inglês existia por via do seu pai?

O meu pai falava muito bem francês, e por cortesia com a minha mãe falávamos francês em casa. No entanto, o meu pai tinha sido em parte educado em Inglaterra, reconhecia a necessidade de o meu irmão e eu falarmos inglês.

 

E mandou-os para um colégio interno, em 48.

Foi uma coisa horrível! A Inglaterra ainda estava assolada pela guerra, e uma das recordações mais difíceis é a do frio que fazia no colégio de Winchester. Tinha sido um menino mimado por não ter havido guerra em Portugal e não estava habituado a sacrifícios.

 

Pode falar-me do seu pai? Ele foi seminal na sua vida, claro, mas gostava de perceber a influência nesse lado internacionalista de que fala.

O meu pai é um exemplo dos portugueses espalhados pelo mundo. Nasceu em Goa, porque o meu avô, que era juiz e passou a advogado, casou-se com uma senhora goesa. Mas veio muito cedo para Portugal – não havia Direito em Goa. Como era professor universitário, ligava grande importância às classificações. O meu irmão e eu sabíamos do empenho que tinha em que tivéssemos boas notas.

 

Foi um aluno brilhante.

O meu pai prometeu-me um automóvel se tivesse 16 valores ou mais – que era o máximo que se podia ter no primeiro ano na Faculdade de Direito. Fiz 18 anos dias depois de acabar o primeiro ano, tive 16 e deu-me um automóvel. Parecem motivações muito mesquinhas – aos 18 anos, não são.

 

É conhecida a sua paixão pelos automóveis… Espampanantes.

Fui o único professor universitário que ia dar aulas num Ferrari descapotável. Provocava um escândalo que, secretamente, me dava grande gozo. Isto podia ter prejudicado a minha carreira na faculdade, porque os professores mais antigos não gostavam dessas extravagâncias; e também porque tinha a fama, exagerada, de ser muito mundano, de andar em festas e de ter aventuras amorosas. Nessa altura, ia muito a Nova Iorque e aconteceu chegar no avião das seis da manhã e às nove estar a fazer exames, como professor. No ambiente soturno da faculdade, não se gostava muito disso. Felizmente o Marcelo Caetano, que tinha por mim, suponho, afecto, embora isto não correspondesse minimamente ao modelo de vida que ele pretendia para os seus filhos, foi de uma indulgência extraordinária.

 

Porquê?

Via talvez em mim o que teria faltado na vida dele ou na vida dos filhos – não sei, estou apenas a elaborar. Sei que se não tivesse tido a protecção de Marcelo Caetano teria tido mais dificuldade em fazer carreira na Faculdade de Direito.

 

A sua relação com Marcelo é fascinante. Esperar-se-ia que escolhesse para seu pupilo dilecto uma pessoa com características diferentes daquelas que tem.

É verdade. E mostra-se nisto: as outras pessoas que formaram a escola Marcelo Caetano eram bastante diferentes de mim.

 

Porque é que ele o escolheu para assistente, a despeito de tudo o que acaba de relatar?

Esse facto não me surpreendeu muito, porque fui o aluno mais classificado do curso. Praticamente todas as pessoas que terminavam com 18 valores eram convidados para assistentes. Mas fez várias coisas pelas quais estou muito grato. A principal foi, ao contrário do que muitos professores faziam, que era atrasar a emancipação dos assistentes, espicaçar-me para fazer o doutoramento. O que fez com que fizesse doutoramento aos 25 anos, (fui o mais novo da segunda metade do século XX), e aos 32 anos era professor catedrático, (também de longe o mais novo da Faculdade de Direito).

 

Que tipo de conversas tinham? Eram de foro profissional, circunscreviam-se ao âmbito da universidade?

Falávamos de tudo. Não que me contasse segredos de Estado – de maneira nenhuma. Ele conhecia as minhas opiniões sobre variadíssimos assuntos e eu conhecia as dele sobre alguns. Era um homem muito inteligente e bem intencionado dentro de uma formação muito conservadora. Nunca foi um democrata. Foi Marcelo Caetano, mais do que Salazar, quem criou a estrutura jurídica do Estado Novo. Estava por exemplo convencido de que tinha introduzido o Estado de Direito em Portugal, sem se questionar se a lei era boa ou má, legítima ou não. Este é o problema típico do intelectual que se deixa enredar nas suas construções mentais, e explica, a meu ver, o drama político em que se viu envolvido.

 

Como é que foi esse momento em que foi convidado para ser ministro?

Marcelo Caetano sabia do meu interesse pelas coisas internacionais – já estava a leccionar Direito Internacional na universidade. Quando subiu ao poder manteve Franco Nogueira como Ministro dos Negócios Estrangeiros – um homem notável, mas que representava a ala direita do regime. Quando Franco Nogueira manifestou interesse em sair do governo – manifestamente não estava em concordância política com Marcelo – começou a procurar sucessores e propôs-me assumir aquelas funções.

 

Tinha 32 anos e recusou. Foi uma decisão difícil? Inesperada?

Tive grande dificuldade… Mas as razões essenciais – para ser honesto, e com toda esta distância – foram duas: primeiro, já em 68 ninguém podia acreditar numa política ultramarina; e aceitar esse lugar significava ter um patrão. Que nunca tive na vida. E agora já é tarde e nunca virei a ter. Tenho, em certa medida, uma patroa, que é a minha mulher, em áreas limitadas mas importantes. Quando, dez anos depois, fui Ministro dos Negócios Estrangeiros – já tinha sido convidado para outros governos – só aceitei por causa das relações fraternas que ainda hoje duram com Francisco Balsemão. Sabia que ele seria um companheiro e não um patrão – embora não questionasse a autoridade do Primeiro Ministro.

 

Como correu a vossa relação nesse período?

Nunca foi uma relação de súbdito e patrão, foi sempre uma relação entre iguais.

 

Porque é que lhe é tão intolerável pensar que há um patrão?

É uma pergunta a que não sei responder. Tive sorte: as circunstâncias permitiram toda a vida que nunca tivesse patrão. Na universidade, a partir do momento em que se chega a professor catedrático, não há patrão. E na profissão liberal, a gente depende dos clientes, mas se, em 50, há um de que não se gosta, podemos mandá-lo passear.

 

Diz-se que quando foi convidado por Marcelo respondeu que só aceitaria se fosse para negociar o regime das colónias. Para fazer a transição.

Isso não é verdade. Dei várias razões, pífias. Lembro-me perfeitamente de Marcelo Caetano me dizer: “Pois, tu não queres, e depois queixas-te que as pessoas que vão para ministro não prestam. Afinal, o que é que tu queres?”. Respondi: “O que eu gostaria, não depende de si”. Ficou pasmado, nessa altura tudo dependia dele. “Gostava de ser administrador da Fundação Gulbenkian”.

 

A Gulbenkian, então, representava um oásis de liberdade.

Isto tem uma certa graça porque passados 30 anos tornei-me administrador da Fundação Gulbenkian e contei esta anedota no dia em que tomei posse. E Marcelo disse: “Ah, querias isso… Mas se o lugar estivesse livre não era para ti, era para mim!”. Essa história, que pus restrições à política colonial, seria muito bonita mas não é verdade. Nunca fui um combatente contra o Antigo Regime, não quero vangloriar-me com penas de pavão como tenho visto outras pessoas fazerem.

 

Gostaria de ter tido uma carreira política mais interventiva?

Não.

 

Hoje, quando olha para esse período, lamenta não se ter empenhado mais? Não ter participado na construção da democracia?

Não. [Não o fiz] provavelmente por egoísmo. Este desejo de liberdade é um egoísmo. Fui criando um desamor, um desafecto em relação à vida política nacional – não queria usar expressões mais duras. À medida que a vida política se tem vindo a deteriorar, este meu desamor tem aumentado. Não há nada que me desinteresse mais do que a vida política portuguesa, em especial a vida partidária. É-me completamente indiferente saber quem será o líder do partido A ou B.

 

É triste que um homem como o senhor sinta isso.

Talvez. Mas isto não é exclusivo do nosso país. É como a situação da indústria portuguesa em relação à alemã: as coisas são mais pequenas e piores. Mas qualquer governo português, por mau que seja, é melhor do que a administração Bush. Esta mediocridade é, paradoxalmente, sinal de triunfo da democracia. Significa que não estão em causa em Portugal e noutros países europeus as grandes questões da vida: a liberdade, a liberdade de consciência, a liberdade de expressão. Não é preciso lutar por elas, a democracia entrou em funcionamento – de facto. A democracia, através do sufrágio universal, gera naturalmente a mediocridade. Mas é melhor do que qualquer outro sistema – como dizia o Churchill.

 

É uma figura que admira, o Churchill?

Ah, muitíssimo. Era um misto extraordinário: de aristocrata, de alcoólico, de homem determinado; só tinha um defeito, que se transformou em qualidade durante a Segunda Guerra: é que gostava da guerra. Mas era uma coisa da educação dele. Lembro-me de o ver uma vez em Veneza a pintar, vê-lo ao longe, em 1949. Ele estava acompanhado por um empregado, e estava a pintar a ponte de Rialto.

 

Teve vontade de o abordar?

Não, acho que não se pode incomodar as pessoas, sobretudo nessa idade veneranda. O que mais admirava no Churchill é que era um lutador e ao mesmo tempo foi na vida pessoal e política magnânimo. Não era vingativo. O que talvez adviesse do seu passado aristocrático. Não se lhe encontra ódio – a não ser ao Hitler – como hoje se encontra entre os líderes políticos.

 

Em quem votou em 1958?

Votei no General Delgado. Tenho votado no chamado mal menor. Encontro sempre grandes defeitos em todas as candidaturas, mas numas mais do que noutras. Às vezes tenho-me abstido. Por exemplo, na última eleição votei em branco porque não podia votar nem no Pedro Santana Lopes nem no Sócrates – embora já tenha votado no Partido Socialista. Não podia votar no Sócrates porque compreendia que ele ia aumentar os impostos e tinha declarado que não o faria. De maneira que começava por uma mentira.

 

Mas preferiu o voto em branco a ficar em casa.

O voto em branco exprime a rejeição de qualquer das candidaturas. Nunca pensei que o regime se resolvesse com a eleição do General Delgado para Presidente da República – ninguém pensou. O génio político de Salazar conseguiu acrescentar mais 10 ou 15 anos de vida ao regime através da guerra do ultramar. Isto é impossível de demonstrar, mas estou convencido que a divisão nas forças armadas provocada pelo Delgado levaria à queda do regime mais cedo.

 

A guerra foi para si um fantasma?

Era um fantasma para toda a gente da minha geração. Acabei o curso em 58 e fui imediatamente fazer a tropa. Podia ter adiado, mas fui para a administração militar, que era para onde iam os licenciados em Direito, e saí em 59 – dois anos antes do início da guerra. Dos homens da minha geração, foram sobretudo os médicos que foram incorporados à força. Eu posso datar o dia em que percebi, ou reiterei, a minha ideia de que o império estava perdido. Foi a 18 de Abril de 62. Nesse dia fugiram cerca de 20 estudantes africanos da universidade – muitos deles meus alunos. Joaquim Chissano estava na Faculdade de Medicina e também fugiu. Quer dizer, Portugal não tinha conseguido atrair as elites de que precisava para que alguma coisa de português continuasse em África.

 

Mesmo assim, o regime subsistiu 12 anos. Não pensou, nessa altura, em viver fora? Na América, nomeadamente, país com que manteve relações tão próximas.

Não. Estive muitas vezes na América, mas verdadeiramente, tirando cinco ou seis anos em que passava largas temporadas em Nova Iorque, sempre vivi em Portugal. Em Portugal não havia liberdade de expressão, mas eu, pessoalmente, tinha alguma – não muita. O exílio é uma coisa muito dura, e talvez não tenha tido coragem para isso. Também nunca senti a necessidade.

 

Até onde se sentia um privilegiado? E isso dava-lhe uma espécie de culpabilidade? Um pouco como há pouco falava do Churchill e do complexo por ser um aristocrata.

Acho que sim. Sempre me senti um privilegiado e isso dava-me um sentimento de culpabilidade. Mais em relação às questões sociais do que às políticas. Na minha juventude, tinha um sentimento de culpabilidade por ver que havia gente muito pobre e que eu tinha uma existência confortável. Tinha a noção de que, por mim, não podia fazer nada.

 

Esse ano e meio que passou na tropa, foi a única vez que esteve entre um grupo heterogéneo, e desprotegido? Quando esteve no colégio interno, ou na faculdade, estava entre pares.

Já no liceu convivi com gente de todas as classes sociais. Os liceus públicos eram um grande igualizador social. Andei no liceu Pedro Nunes, onde tive excelentes professores, e que me despertou interesse pela Matemática. Só mais tarde percebi que há muitas afinidades entre a Matemática e o Direito. Em qualquer das duas hipóteses, trata-se de extrair conclusões de premissas abstractas. Como gostei imenso de Latim – era uma escola de rigor.

 

Com quem é que aprendeu a ler?

Isso é tão antigo… Aprendi em casa. Tive uma professora, a Dona Letícia, que me ensinou a mim e ao meu irmão nos dois primeiros anos. Na terceira classe, como se chamava, fui para o colégio inglês que havia em Lisboa, onde fiz o exame da quarta classe e a admissão ao liceu.

 

Lembra-se da Dona Letícia? As preceptoras deixaram de se usar.

Lembro-me perfeitamente. Isso aconteceu durante a Guerra (39/45) e, por razões materiais, o meu pai, a minha mãe, o meu irmão e eu vivíamos numa espécie de casa de campo que tínhamos perto do Estoril. Tínhamos uma horta, com batatas e umas coisas. Era um pouco isolado. Penso que não era muito fácil ir à escola, de maneira que durante esses dois anos a Dona Letícia foi lá a casa e ensinou-nos as coisas elementares. Já perto do fim da Guerra, voltámos para Lisboa.

 

O seu irmão é mais velho?

Sim, mas pouco, três anos. Também licenciado em Direito, como toda a família. Começou por ser advogado, tornou-se presidente de um banco (foi o último governador do Crédito Predial) e depois do 25 de Abril continuou a exercer a sua profissão de banqueiro – primeiro na Suíça, depois nos Estados Unidos, onde tem hoje um banco, que é em parte dele.

 

O senhor trabalhou no escritório com o seu pai, mas isso não aconteceu com o seu irmão.

A certa altura, os escritórios, o do meu irmão e o meu, separaram-se, mas apenas fisicamente. Estávamos aqui ao lado, no Marquês de Pombal, e já não havia mais espaço; o meu irmão foi para a Baixa. O meu pai favoreceu essa separação porque tinha receio que houvesse um grande conflito entre nós se estivéssemos todos os dias na mesma organização e a disputar a chefia. A partir de certa altura, o meu irmão desinteressou-se da advocacia e eu fiquei a dirigir o escritório.

 

Qual dos dois foi melhor aluno?

Talvez eu, mas com pouca diferença. Ele também foi um aluno distinto. Eu formei-me com 18 e ele com 16.

 

É natural pensar que havia uma disputa. Nem que seja em termos freudianos, pelo afecto e pela admiração do vosso pai.

Isso uma pergunta natural que me tenho feito a mim próprio. Nós tivemos as nossas querelas, até andávamos às vezes à pancada.

 

Não consigo imaginá-lo à pancada.

No liceu andei muitas vezes à pancada. Felizmente nunca me magoei muito e foi sempre por motivos secundários. Hoje não sei dizer quais eram os motivos, e se era freudianamente o desejo de saber qual era o preferido do pai ou da mãe. O que me dá satisfação é perceber que quando chegámos à idade adulta todas as nossas divergências desapareceram e hoje temos uma relação fantástica.

 

Têm uma relação de intimidade? Se se for abaixo, telefona ao seu irmão?

Não sucedeu ainda, mas sei que ele está disponível, e eu também estarei para ele. Uma das razões porque temos uma relação maravilhosa, é porque não nos vemos muito. O meu irmão mora sobretudo em Londres e em Nova Iorque, e vemo-nos uma vez por mês. Por sinal, falei esta manhã com ele ao telefone.

 

Sobre quê?

Está a organizar uma viagem a Moçambique e estou a ajudá-lo, só isso.

 

O seu pai, sendo um jurista estimado, não deu aulas na Faculdade de Direito. Esse facto foi determinante para que o senhor se tenha aplicado tanto nos estudos? Para cumprir absolutamente esse desígnio.

O meu pai teria gostado mais de ser professor da Faculdade de Direito do que de Económicas, como foi. Nessa altura, ser professor da Faculdade de Direito era mais importante do que é hoje – como a Fundação Gulbenkian era mais importante. Salazar tinha sido professor de Direito, Marcelo também, os professores de Direito tinham grande prestígio. O motivo que me levou a estudar foi o desejo de agradar ao meu pai e a vaidade de querer aparecer como um bom aluno.

 

O seu pai terá tido toda a estima social e académica de que era merecedor? Este era um tópico importante para si? Não ter transitado de Económicas para Direito era a confirmação desse estigma?

Não era sentido como estigma. Penso que o meu pai teve uma vida feliz. Ele desenvolveu um verdadeiro amor ao Instituto de Ciências Económicas, de que foi director cerca de 20 anos e, com outros, mudou o instituto; transformaram-no numa escola moderna de economia. Tinha um enorme orgulho nisso. Acontecia uma coisa curiosa que só vim a compreender muitos anos depois: quando andávamos pelo país e pelo estrangeiro, estava sempre a encontrar antigos alunos, que o iam cumprimentar. Era muito sensível a isso.

 

O que é que lhe provoca encontrar antigos alunos?

Estive há dias em Cabo Verde onde antigos alunos, incluindo um antigo Presidente da República e um antigo Primeiro Ministro, se juntaram a outros para me oferecer um almoço. De homenagem, confraternização, simpatia. Já o mesmo tinha sucedido em Moçambique. Foi extremamente gratificante, ainda mais porque eram alunos de todas as cores políticas, étnicas e de todos os sectores da sociedade.

 

Porque é que isso é uma coisa tão enternecedora para si?

Sei lá, é tão difícil identificar as razões do nosso sentimento… Será por eu não ter filhos e aí reconhecer alguma ligação desse tipo? Sei que fiquei tocado por esses dois gestos de antigos alunos, mas procuro não levar a introspecção longe demais. Fico com uma sensação agradável, e isso basta-me.

 

Posso perguntar porque é que não teve filhos?

Porque… Por vários motivos, mas não me interessa entrar por esse assunto.

 

Então podemos voltar ao seu pai? Ou seja, à sua condição de filho. Foi um menino muito reforçado? Isso repercutiu-se na sua auto-estima?

Sei lá porque saí assim! É um conjunto de circunstâncias, hereditárias, influências, et cetera. Sei é que saí assim. E que a minha vida foi norteada pelo desejo de independência. Talvez o facto de ter casado bastante tarde  – casamento que foi a coisa mais inteligente que fiz ao longo da vida – seja derivado do desejo de independência. Sempre gostei imenso de mulheres e de companhia feminina, mas nunca tive o desejo ou a necessidade de casar jovem. Num determinado momento da minha vida apareceu uma mulher que gostava de mim e eu dela, queria e podia casar comigo – o que não teria sucedido com outras.

 

E casou-se aos 50 anos. Porque é que diz que foi a coisa mais inteligente que fez na sua vida? Inteligente? Esse atributo, aplicado a um casamento…

Costumo dizer isso de brincadeira. Obviamente houve razões de natureza afectiva. Não foi uma coisa ditada pela razão pura, kantiana. Mas visto com anos de distância, posso dizer que foi a decisão mais importante para contribuir para o objectivo de todos – que é a felicidade.

 

É um homem mais feliz hoje?

Sou. Sobretudo porque a felicidade conjugal compensou a progressiva perda das outras coisas. Hoje tenho 70 anos e já não tenho a agilidade, até a curiosidade, que tinha quando era novo. Se não tivesse encontrado uma outra forma de vida, provavelmente seria infeliz ou menos feliz.

 

A juventude é o que mais lamenta ter perdido?

Com certeza. Mas isso não é uma coisa que aconteça só a mim. Se pudesse fazer o pacto faustiano, fá-lo-ia.

 

Foi um leitor de Goethe?

Pouco. Li sobretudo a poesia de Goethe. Estudei alemão mas nunca dominei o suficiente para ler, por exemplo, o “Fausto”. Li-o em tradução. Mas sabia, e sei, alguma poesia de Goethe. Os autores alemães nunca foram das primeiras preferências, porque tinha de os ler em tradução – enquanto que os de língua inglesa, francesa, espanhola ou mesmo italiana podia ler sem ser em tradução.

 

Um poeta de que goste especialmente, pode apontar?

Diria três: Shakespeare – é o máximo. Um nome do espírito de aventura: Camões. E outro, que dá o universo deste século, Pessoa. Todos com grande influência, ainda que uma pessoa não saiba bem que influência é. E releio, releio. “Hamlet” é um dos livros que tenho perto de mim.

 

Uma tragédia como a de “Otelo”: vejo-o fleumático, e não lhe colo facilmente sentimentos pulsionais, mesquinhos, mundanos, como o ciúme…

Tive a extraordinária fortuna de nunca ter tido esse sentimento. Toda a vida andei no mar, andei em barcos pelo mundo inteiro, apanhei muitas tempestades, e nunca enjoei. Também nunca tive ciúmes. Muitas namoradas me deixaram por outros homens. Eu também deixei muitas namoradas. Às vezes pode ter afectado o meu amor próprio…, mas ciúme, verdadeiramente, nunca tive.

 

Outra cena shakespeariana: a punhalada.

[riso] Não me imagino como Otelo, nem nunca tive um Iago. Nem na minha vida sentimental nem na profissional, aconteceu o sentimento da traição e de alguém não corresponder à expectativa que tinha nela. Foram-me poupados imensos sentimentos dolorosos, pelo acaso, pela Providência, se ela existe.

 

Dores, fracturas, perdas, todos temos. Que marcas foram essas na sua vida?

Ah, há coisas inevitáveis. O meu pai morreu há cerca de 20 anos. Foi um trauma grande, embora já tivesse 80 anos e não fosse uma coisa inesperada. Este desejo de independência faz com que não sejamos dependentes de outros. Se não sou dependente de outrem, nada do que outrem possa fazer me afecta extraordinariamente. Não sei se esta mania da independência é boa ou má. Nunca escolhi. E não tenciono fazer as contas: como já não vou a tempo de corrigir, já não vale a pena.

 

Em que circunstâncias sente a sua costela indiana?

Sinto-a, mas não sei exactamente como. Em Goa, todas as pessoas de uma determinada classe social se consideram, entre si, primos. A família da minha avó era uma das mais antigas. Temos na Ilha da Piedade uma capela feita por Lourenço Gonçalves em 1530. Era uma família de alguma importância. Tive essa noção quando em 1981 fui a Goa como Ministro dos Negócios Estrangeiros e o Primeiro Ministro, que descendia de uma família hindu, disse-me assim: “Tenho muito gosto em recebê-lo. Como sabe, a minha família anda a lutar contra a sua família há 400 anos”! Tem uma certa graça… Nunca esqueci isto.

 

Quer morrer em Portugal ou na Índia?

Tanto faz, qualquer sítio. Desde que seja rápido e indolor.

 

Já pensa na morte?

Não. Mas tenho a ideia que qualquer dia vai acontecer.

 

O seu legado está nos seus alunos, na sua obra?

Não me preocupo em deixar um legado. Dez anos, 20 anos depois de eu morrer já ninguém se lembra que existi. Mas isso é perfeitamente natural – não sou o Marquês de Pombal.

 

Gostaria de ter feito qualquer coisa de heróico, que perdurasse?

Não. O objectivo da vida de todos nós é a felicidade pessoal e tenho muitas dúvidas que um projecto desse tipo fosse compatível com a construção da felicidade. A felicidade pessoal passa por um certo egoísmo. São facts of life que temos de aceitar.  

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2008

 

Elisa Ferreira

09.09.19

Jantámos no Pabe, em Lisboa. Ela estava a chegar de Bruxelas. Se não me falha a memória, tínhamo-nos encontrado uma vez apenas, no casamento de um amigo comum. E isso parecia dar à relação uma intimidade que ela não tinha, e não tem.

É uma mulher amável, que eu não conhecia. A Elisa Ferreira era a Elisa, amiga do meu amigo, que em tempos foi ministra e que agora está no Parlamento Europeu. Antes de me preparar para a entrevista, eu não sabia da sua ligação ao programa QREN – que é uma coisa importantíssima. Mas não falámos disso durante o jantar.

Meus caros, duas mulheres, se não tiverem uma agenda que as obrigue a tal, não falam do QREN ao jantar. Falam da educação das filhas (dela). Dos quilos que sempre estão a mais. Da logística das casas e das empregadas. Das viagens entre duas cidades e dois países. Affaires de femmes. Mas intuí, e bem, que a Vogue não era um tema predilecto. Porquê? Porque nasceu numa família onde a austeridade era um valor. Porque cresceu num tempo em que as mulheres, quando falhavam profissionalmente, eram menos iguais do que os homens… Agora imaginem essas mulheres de saia curta e sapatos Jimmy Shoo.

Ela vestia uma camisola confortável e insistiu em pagar o jantar. Gentil. Mais que tudo, foi bem educada quando me informou que no dia seguinte daria uma entrevista a um outro jornal e a uma rádio. (Nem toda a gente o faz, e não tinha que o fazer). É provável que dê muitas entrevistas. Desde há uma semana que é público que será a candidata do PS à Câmara do Porto.

Esta é a primeira que faz o retrato da mulher. Estava um pouco nervosa… Sabe-se lá o que sai de uma entrevista comigo – dizia.

  

Nasceu em 55, licenciou-se em Economia. Fez o mestrado e o doutoramento em Inglaterra. Foi ministra do Ambiente e do Planeamento. Notas curriculares. Quer fazer um auto-retrato? 

Posso dar-lhe notas biográficas, mas tem de me ajudar a seleccionar o que lhe poderá interessar. Posso dizer onde nasci, quem são os meus pais, em que escola andei…

 

Se achar que isso tem peso e relevância na sua vida.

Tem. Sou uma filha única tardia. Esse facto marcou a minha vida. Sempre tive a noção de que tinha de ser resistente.

 

Resistente a quê?

Resistente à vida. Que podia ficar sozinha. Fui treinada para isso. A minha mãe tinha 39 anos e o meu pai 40 quando nasci.

 

Teve a noção de ter sido muito desejada e esperada?

Isso sim. Estavam casados há 14 anos e tinham um desgosto grande por não terem filhos. Fui muito querida. Prepararam-me para um mundo que não era fácil. Foi uma opção inteligente, agradeço isso aos meus pais.

 

Viviam essa pressão e passavam-na a si? Como é que lhe era incutida a ideia de que tinha de ser resistente, brava?

O quadro tradicional de educação das raparigas era para o casamento. Eu sempre me preocupei com a profissão, com assuntos que eram de homens, com gerar o meu próprio rendimento. O casamento seria qualquer coisa que surgiria ou não. Estar municiada de uma capacidade profissional foi uma tónica do meu processo educativo, muito mais do que saber bordar ou fazer malha.

 

E isso aprendeu?

Aprendi. A minha mãe era a mulher ideal nesse sentido, apesar de ter a sua vida profissional: era técnica de contas. O meu pai também começou por ser e acabou revisor oficial de contas. Havia uma combinação entre a responsabilidade, o decidir pela minha cabeça, e códigos educativos estritos, que não eram de grande liberdade.

 

Pensar pela própria cabeça exige segurança e auto-estima. Ou seja, para não aderir a pontos de vista de outros é preciso ter confiança naqueles que apresenta.

Não sei se foi desse processo educativo, ou se uma coisa resulta na outra, mas sinto que tenho muito disso. Naturalmente prefiro que digam bem de mim ou que achem que estou a fazer coisas certas (mais do que digam bem de mim); mas o grande referencial da minha vida é fazer coisas coerentes com o que acho que é certo. Aprecio que façam contributos, críticas, que dêem sugestões. Mas tenho dificuldade em não seguir aquilo que intimamente acho que devo fazer. Portanto, não faço muitas cedências.

 

Explique melhor qual foi o contributo e a marca do seu pai e da sua mãe no seu crescimento, para fazer de si quem é hoje.

Eram complementares. Do lado da minha mãe foi a sensibilidade, o gosto pela literatura, pela arte, o requinte na organização de uma casa, o cuidado com que se serve uma refeição. Do lado do meu pai, havia uma rigidez excessiva, na defesa de valores e convicções; e uma coisa que é nortenha: a nossa palavra. Muito cedo dizia: “Tens de ter uma profissão, não duramos sempre”. Era dito taxativamente – e havia nisso uma certa frieza.

 

Foi tratada como uma adulta.

Sempre. Nunca tive protecções excessivas nem nunca me macaquearam o mundo. Isso deu-me um realismo muito grande.

 

É como se não ousasse iludir-se para não perder de vista a realidade, o pragmatismo.

É verdade, ainda que reconheça a utilidade da utopia. O sonho, o desejo de qualquer coisa que nos ultrapassa é muito importante. O que não consigo é confundir isso com a realidade. Dificilmente tiro os pés do chão, ainda que seja capaz de sonhar e goste de sonhar.   

 

Nunca tirou?

Há momentos em que toda a gente tira um pouco, há momentos de paixão – sobretudo na vida emocional. Sou bastante emotiva.

 

Sentiu na sua infância que o seu pai preferia que tivesse sido um rapaz?

Acho que deve ter tido algum desgosto… Os homens passavam para os homens o mandato que tinham. Uma rapariga? Talvez o meu pai tivesse um realismo semelhante ao meu: há que trabalhar com o que existe. Faleceram muito cedo, aos 70 anos, ambos.

 

Que criança era?

Era muito sociável. Ainda mantenho amigas da infância. Sei quem é a minha melhor amiga da escola primária, depois a dos 11 anos, depois a dos 13 anos. Os colégios eram femininos e as amizades eram dentro do mesmo género. As pessoas lembram-se de mim como alguém que tinha muita facilidade de contacto. Era boa aluna, não era convencida. Descrita assim, talvez pareça uma menina direitinha, mas ao mesmo tempo tinha os mecanismos da revolta. Na adolescência tive grandes conflitos com o meu pai. A propósito de tudo. Ele era uma personalidade dominante.

 

Como é que eles expressavam amor?

A relação com o meu pai era mais extremada. Com a minha mãe era um contínuo. O meu pai tinha um grande orgulho em mim, quase uma vaidade, que procurava esconder. O orgulho expressava-se do seguinte modo: depositava em mim uma enorme confiança e sabia do que eu era capaz. Essa confiança absoluta era para mim uma grande fonte de auto-estima.

 

Por exemplo.

O meu pai mandava-me às finanças pagar impostos e tratar assuntos burocráticos. Mediam bem o que eu era capaz de fazer e mandavam-me fazer recados complicados. Eu ficava toda vaidosa quando a seguir dava conta do recado! Aos 12 anos tinha que vir ter a Lisboa para embarcar para um campo de férias; o meu pai sofria de um problema de costas e não pôde trazer-me; disse-me: “Vais com a tua malinha”. Vim de comboio, fui ter ao Cais do Sodré e lá me desenrasquei! Lembro-me de estar parada na Avenida da Liberdade, com o livro d’Os Cinco, à espera que as horas passassem [risos], e de ter ido levar a mala a um hotel que conhecia em Lisboa.

 

Essa organização – “vou pôr a mala ali enquanto espero” – era sua ou do seu pai?  

Vou andar com uma mala pesada atrás de mim, todo o tempo? Não vou! Estes senhores, se não roubam as coisas aos hóspedes, não vão roubar a minha mala! De maneira que fui pô-la num hotel – na altura também não havia bombas! Era muito prática.

 

Vivia isso como uma aventura romântica?

Nessa vinda a Lisboa, por tudo aquilo ser muito improvisado e inesperado, senti uma certa heroicidade. As páginas do livro d’Os Cinco não passavam assim tão rápido, eu não estava concentrada a ler. Estava um bocadinho assustada, os senhores do café podiam achar que eu estava ali há tempo demais, só com um Sumol e uma sandes de fiambre... Fiquei muito aliviada quando tudo bateu certo. Mas no meu quotidiano não tinha nenhuma noção de heroicidade, não.

 

Essa heroicidade, o romance, a aventura parecem alimentar um quotidiano controlado, sem momentos climáxicos. Se fosse um filme, não encontraríamos nele a angústia do protagonista, a bifurcação essencial e a escolha de um caminho…

Houve alguns momentos de conflito mais aberto, sobretudo com o meu pai. E houve momentos de risco, de quase ruptura da relação, na adolescência.

 

E depois, como é que isso se resolveu? Que é uma maneira de lhe perguntar como é que resolve conflitos.

Não resolvo conflitos como resolvi os conflitos com o meu pai. Porque aí era uma luta pela afirmação pessoal, pelo meu próprio espaço.

 

E também porque os afectos estavam imiscuídos?

É diferente, completamente diferente. Como é que eu resolvo conflitos? Acho que sou bastante conciliadora até um determinado momento. E sou capaz de grandes rupturas. Não quero uma conciliação a todo o custo.

 

Não teme a ruptura?

Não. Há um momento a partir do qual o compromisso é uma adulteração do sentido da negociação; a conciliação é impossível. Há diferenças que temos que assumir, e é preciso pagar esse preço.

 

Quando é que percebeu que ia estudar Economia e que queria ter esta vida?

Eu nunca achei que queria ter “esta” vida. As coisas foram surgindo, fui andando. Fui para Economia pela curiosidade de perceber como é que há empregos, como é que há riqueza, como é que há desemprego, como é que as empresas surgem. Tenho curiosidade em saber como tudo funciona.

 

O curso de Economia estava mais próximo do que os seus pais faziam do que outros cursos.

Talvez eu estivesse familiarizada com esse tipo de conversas, menos por causa do trabalho dos meus pais, e mais por influência do meu avô materno, um homem da indústria têxtil. Morreu quando eu era miúda, 13 ou 14 anos, mas lembro-me muito bem das conversas: “Investiu ou não investiu? Faliu ou não faliu? Há importações de algodão ou não há?”. Eram conversas da vida real, que se contrapunham ao lado feminino, sobre empregadas e limpezas domésticas.

 

E o mundo das paixões? Refiro-me ao que é do domínio do relacional. Nas conversas sobre as limpezas e as empregadas aprende-se muito sobre fidelidade e infidelidade, paixão e ciúme, possessividade e separação. Conversas de adultos.

Nesse tempo em que era criança e ouvia conversas de adultos, quase não havia divórcios, camuflavam-se tensões familiares. Estávamos no tempo de Salazar, Caetano. Não era só na política: a sociedade era muito monocolor. Eu tinha um bocadinho a ilusão, talvez para contrariar o meu pai, de casar, estabilizar, ter filhos, ter um emprego certo.

 

Que idade é que tinha no 25 de Abril? Como é que a revolução mudou a sua vida?

Tinha 18 anos. Misturou a nossa vida toda, foi um período de questionamento. Tive metade do curso com teoria marginalista, do mais clássico possível, e outra metade com teoria marxista. Comecei a ler e a investigar em todos os sentidos, para reencontrar o meu rumo, a minha leitura do mundo. Estava tudo em causa.

 

Queria pensar pela sua cabeça…

[risos] Queria conseguir pensar pela minha cabeça! De maneira que, ao contrário de muita gente, li os livros todos. Li O Capital mesmo! Li o Marx, li o Engels, à procura da verdade. Tinha um grande drama interior.

 

Foi um questionamento de tudo, e foi transversal? Ou circunscreveu-se à universidade?

Questionar os padrões já tinha começado antes, mas a revolução foi a explicitação dessas tensões. Aquilo que para mim foi mais importante no 25 de Abril foi a revelação do carácter das pessoas. Quem eram as pessoas corajosas, as pessoas fiéis a si próprias, os sobreviventes que um dia estavam de um lado e no outro dia estavam do outro, o que era a dignidade.

 

E sobre si mesma, o que descobriu na revolução?

Uma reinterpretação do mundo que me rodeava, uma mudança completa de referenciais. Estarmos bem connosco, estarmos abertos para nos questionarmos, e ao mesmo tempo sermos fiéis a nós próprios, é um ponto central. E descobri que a vida é muito mais arriscada do que por vezes se pensa. A nossa percepção de nós próprios ganha outra força e solidez. Aconteça o que acontecer, eu sou isto.

 

Foi um marco para a sua geração. “E agora, o que é que se faz com isto”?

É passar do diagnóstico à concretização de um sonho.

 

Foi aí que teve vontade, ou que percebeu, que podia ser política?

Eu nunca percebi que podia ser política. Sempre achei que tinha que fazer coisas pela minha sociedade. Se pudesse ser útil, interessava-me.

 

Era um apelo cívico e não político?

A política é uma das maneiras possíveis. Pode ser através da solidariedade social, pode ser através do empreendedorismo… A política aconteceu-me.

 

Empenhou-se politicamente na faculdade?

Envolvi-me em vários movimentos, em debates. Andava à procura do modelo certo para o curso de Economia, o modelo certo para a sociedade. Mas havia uma dificuldade em fazer a transição da utopia política para o concreto. Uma sociedade sem classes seria concretizável?, como? Considero-me de esquerda, mas nunca me filiei, nunca fui presa, não tenho esse tipo de militância. As pessoas transportavam nesse projecto uma grande dose de generosidade pessoal e misturavam isso com aquilo que todos os jovens querem: mudar o mundo. Eu tinha o maior respeito, mas não conseguia embarcar num processo em que não percebia como é que os objectivos se materializavam.

 

Pertence a uma geração profundamente utópica e sonhadora. Ainda que não prescinda do sonho, não consegue prescindir do vínculo à realidade.

Mas isso é muito feminino. Os homens são mais utópicos do que as mulheres. Talvez as mulheres sejam mais utópicas ao nível dos sentimentos.

 

São mais românticas.

Sim. Era importante haver mais mulheres na actividade política, porque trazem uma componente completamente diferente. Na gestão do tempo – têm mais coisas para fazer e controlam muito melhor o tempo. Na conciliação de interesses – percebem mais rapidamente quais são os interesses que estão em causa. Então, como é que se faz? Por onde vamos? Quem faz o quê? Para quê? E no fim, como é? Onde vivemos? O que comemos? São coisas que vêm do quotidiano, do mais essencial da vida. Este sentido está mais presente nas mulheres.

 

Essas são as suas perguntas cruciais? As que faz sempre? Para que é que isto serve? Como se faz? O que é que resulta disto?

Eu sou muito assim. Não queria cair num somatório de quotidianos, sem rumo, mas uma condicionante importante é o lado prático, a concretização. Sou muito relutante em fazer uma crítica se achar que não sou capaz de fazer melhor. De algum modo, foi isso que me levou para política: porque eu era muito crítica.

 

Conte como é que foi parar à política.

Eu escrevia nos jornais. Em 94/95, no último governo do Primeiro Ministro Cavaco Silva, era extraordinariamente crítica; a determinada altura, na sequência disso, o Eng. Guterres diz-me: “Então venha dizer como é que se faz! Venha fazer!”. Aquilo desafiou-me.

 

Porquê o Partido Socialista?

Não sou filiada. É a minha área ideológica, cruza um certo idealismo com um certo realismo.

 

Como começou a sua vida profissional?

Comecei a dar aulas na faculdade quando ainda era aluna. Optei por dar matemática e métodos quantitativos. Mas estar na faculdade, fechada, não era suficientemente interessante. Havia dois centros de investigação aplicada que eram pólos de saber e reflexão: a Comissão de Coordenação da Região Norte, liderada pelo Prof. Valente de Oliveira, e o Gabinete de Estudos do Banco Português do Atlântico, que estava nas mãos do Dr. [Miguel] Cadilhe. Acabei por trabalhar na CCRN. Foi uma escola para mim, uma grande escola de administração pública (que é uma coisa que faz falta em Portugal). Conciliei isso com as aulas. A determinada altura pediram-me para fazer uma análise…, eu nem quero dizer isto [risos], que diz muito sobre a minha idade..., uma análise sobre: “O que é que irá acontecer à região do Norte se um dia Portugal aderir à CEE”.

 

Mas nós já sabemos a sua idade: vem na Wikipedia que nasceu em 1955.

Eu sei, eu sei. Mas aqueles que dão a União Europeia como adquirida, os jovens que lerem isto, ficarão estarrecidos! Nunca me tinham ensinado assuntos de integração económica, eu era autodidacta. Fiz uma investigação pessoal, e daí resultou o meu primeiro livro sobre as questões da Comunidade Económica Europeia. A seguir fui para Inglaterra precisamente estudar assuntos do desenvolvimento regional e da integração europeia.

 

Voltemos à idade: quando vai para Inglaterra, quantos anos tinha?

Tinha 26 ou 25. Acabei o curso com 21. Fui em 1980, vim em 84, defendi a tese em 85. Fui fazer um mestrado. Eu estava sem orientador, havia meia dúzia de livros publicados sobre o assunto em Portugal. Fui para Redding, perto de Londres, a uns 60km, na zona sudeste de Inglaterra.

 

Inglaterra foi outra revolução no seu mundo?

Foi uma oportunidade fantástica! Há aquele primeiro contacto: “Estou aqui no meio do nada..., e se não consigo?”. Abriu-me horizontes. Aprendi sobretudo uma coisa: eu estava a estudar um artigo num dos livros recomendados, e não achei que aquilo estivesse bem. Mas, para mim, o livro tinha que estar certo! Formatei o meu pensamento de maneira a perceber o que estava no livro. Até que fui perguntar ao orientador. “What if the book is wrong?” [E se o livro estiver errado?]. “O livro está errado???!!”

 

Isso sim, foi uma revolução!

Uma ruptura! Eu estava habituada a ver várias teses, mas cada uma consistente; não tinha a ousadia de questionar de raiz. A seguir, a Universidade [do Porto] propôs que me patrocinassem o doutoramento; concorri à bolsa, consegui, fiz o doutoramento. Regressei e vim trabalhar para a Comissão de Coordenação da Região Norte, onde o doutoramento não tinha nenhum reflexo em termos de progressão na carreira. Mas voltei com muito mais capacidade de intervir e de perceber. Ficarei sempre grata aos dirigentes da Comissão, ao Prof. Valente de Oliveira e à Faculdade de Economia também: porque tiveram uma postura que não era vulgar na altura e permitiram-me esse salto.

 

Quando politicamente tem um percurso não é na área da Economia, mas na do Ambiente. A relação começa onde?

Na Comissão de Coordenação havia um projecto muito interessante, Science For Stability [Ciência Para a Estabilidade], em que se analisava o modo como um rio se auto-depurava a partir de várias fontes de poluição. O rio escolhido para o teste foi o rio Ave. Pediram-me para trabalhar essa questão em termos económicos, fiz um trabalho com os industriais, inquiria. Aprendi imenso sobre esgotos, tratamentos de água, etc. Mais tarde, fizeram-se duas experiências, uma na área de Setúbal, outra na área do Ave, e fui encarregada de ser responsável pela operação integrada de desenvolvimento do Vale do Ave.

 

Foi, então, convidada para Ministra pela sua valência técnica? Foi uma surpresa para si?

Foi, completamente, uma surpresa! Trabalhei dois anos na Associação Industrial Portuense, (que era como se chamava a Associação Empresarial de Portugal), como Vice-Presidente, e era muito crítica relativamente ao que estava a acontecer em Portugal – o nível como estava a ser preparada a taxa de equivalência, a taxa de câmbio do Escudo para o Euro, a pressão sobre a indústria… Escrevia no jornal, juntamente com uma série de colegas, uma coluna que se chamava “Da Outra Margem”. E participei nos Estados Gerais como independente, porque achei que estava chegado o momento da mudança. Fiquei muito surpreendida quando o Eng. Guterres me disse: “Quero contar consigo para Ministra do Ambiente”.

 

Porque é que aceitou?

Por brio. “Tenho que mostrar o que valho.” Aparentemente, ele conhecia-me, tinha-me notado, quando eu era responsável pela operação integrada do desenvolvimento do Ave.

 

Gostou de ser Ministra?

Gostei muito. Foi um trabalho fascinante. Não é uma coisa que se possa fazer durante muito tempo, porque é muito desgastante, mas a democracia garante que isso não aconteça, felizmente!

 

O que é que mais desgastante? Tem que ver com a pressão a que se está sujeito? Eu lembro-me, toda a gente se lembra, daquelas imagens…

Da co-incineração?

 

Parecia simultaneamente uma mulher de um enorme estoicismo e emocional. Como tem uns olhos muito expressivos e grandes...

Só se via olhos!

 

Era como se tudo afluísse aos olhos.

Custou-me muito sentir que as pessoas estavam, na minha opinião, a ser utilizadas, e mal utilizadas. Aquilo era um não-assunto. Eu estava convencida de que estava certa, e ainda estou convencida de que estava certa – aliás, as coisas estão a ser feitas, aquilo não tinha perigos para a saúde pública. Revolta-me a injustiça, a demagogia.

 

Essa emoção que se lhe percebia derivava mais da raiva?

Sim, e de as pessoas não estarem disponíveis para analisar, para ouvir, para discutir. Os meios de comunicação social empolavam e impediam, de algum modo, o diálogo. Foi um assunto em que todos gastámos mais energias do que era adequado e necessário. Nunca senti nenhum medo físico, nada, nada. As pessoas estavam a manifestar-se e uma senhora de idade segurou-me na gola do casaco; foi nessa imagem que ficaram convencidos que me iam bater. Mas não. A senhora estava a olhar-me nos olhos e a dizer: “A minha filha está grávida e eu tenho a certeza que o meu neto já vai nascer doente...”. Se ainda não havia co-incineração… Mas a senhora estava convencida disto. Percebo que as pessoas desconfiem, o que acho grave é que, por outros motivos, nomeadamente partidários ou de protagonismo, se estimule o receio e a desconfiança. Uma sociedade não pode funcionar assim. Tirando esse desconforto e o cansaço físico, nunca deixei de dormir por causa disto.

 

Depois disso, foi Ministra do Planeamento. Para quem caiu na política de pára-quedas acabou por integrar-se muito bem. Vê-se como uma política?

Não, vejo-me como um cidadão activo. Como uma pessoa que percebe que o país precisa que trabalhem para ele. Gosto muito do serviço público.

 

A juntar à experiência ministerial, há os dois anos em que foi deputada e a experiência do Parlamento Europeu. Tudo somado, compreende um bloco significativo da sua vida.

Claro que sim, não recuso isso. Um colega sueco dizia-me recentemente: “Há uma carreira política. Primeiro é-se Presidente da Câmara, depois é-se Secretário de Estado, depois é-se Ministro”.

 

No seu caso é ao contrário: começou por ser Ministra!

Pois, Ministra já fui!

 

E agora, é candidata à Câmara do Porto.

Voltar ao Porto, e intervir no Porto, é uma coisa que claramente me seduz.

 

Porquê esta opção? Gostaria de ser Presidente da Câmara do Porto para fazer o quê?

Para fazer. Para relançar. Penso ter condições pessoais, políticas e institucionais para mudar a minha cidade, para tornar a pô-la a cidade afirmada e orgulhosa que o Porto é. Isto também é uma coisa que herdei do meu pai: ele era um portuense faccioso! [risos] Eu procuro não ser facciosa! Este amor pela cidade foi uma coisa que o meu pai me incutiu. O orgulho do espírito liberal do Porto… Eu era miúda e era pelo D. Pedro e contra o D. Miguel – o D. Pedro era da cidade. Se puder ser útil à minha cidade depois desta trajectória toda, é algo que me mexe cá dentro.

 

O pessoal sempre se imiscui… Esta opção, de modo longínquo, tem que ver com o seu pai. Pelo menos, fá-la falar dele novamente. Ele não assistiu à sua trajectória pública…

Nada.

 

Sentiria especialmente orgulho?

Acho que sim, mas isto nunca lhe teria passado pela cabeça.

 

O que é que a fez avançar com a candidatura?

São sobretudo condições que me permitem propor um contrato sério com os portuenses. Condições de convergência em cima de um programa credível, concreto, de relançamento da cidade. Ter apoios institucionais e políticos que me permitam concretizar esse programa. Encontrar, a partir da confiança que o partido depositou em mim, os protagonistas competentes, dentro e fora do Partido Socialista, que possam garantir a sua boa execução. O apoio de um partido que tem sido completamente aberto e interessado. Depois de inúmeros encontros que mantive, estou convencida de que a cidade quer mudar e não está conformada.

 

Ainda não falámos do facto de ser uma mulher que ocupa desde sempre uma área tradicionalmente masculina. Primeiro na Economia, depois na Política.

Habituei-me a essa situação e não estranho. Agora há muito mais mulheres em todas estas áreas, e é muito bom, muito gratificante.

 

Na faculdade, olhavam para si com estranheza?

Fui a primeira mulher doutorada da Faculdade de Economia do Porto, e lembro-me de me dizerem com um ar consternado: “Mas que pena, que não há modelo de vestes académicas para mulher, como é que vai ser?” [risos] Ficou um bocadinho mais caro, mas comprei vestes inglesas, que eram unissexo! E cheguei a arguir teses de doutoramento com uma capa de estudante, porque nunca tive capa!, (pedi emprestada).

 

Antes de ligarmos o gravador, durante o jantar, falámos informalmente de roupa. O que se veste, a maneira como se está – quando se está entre homens – é uma coisa que a preocupa, em relação à qual tem um especial cuidado?

Francamente não. Foi muito importante não ter falhas profissionais, porque somos todos iguais, mas quando uma mulher falha profissionalmente, deixamos de ser tão iguais... É muito fácil dizer “Ah, a senhora...” ou “Aquela menina...”. Há logo um tom depreciativo. A Simone de Beauvoir dizia: “Só haverá igualdade quando houver tantas mulheres incompetentes em lugares de responsabilidade como há homens”. Já não é assim, mas quando se é uma entre homens, até adquirir credibilidade, até ter o nome consolidado, há mais atenção sobre nós. Nunca interpretei isso pelo lado do físico. Dentro da educação que tive a austeridade era o código.

 

Quanto mais discreta, melhor.

Era o combate ao exibicionismo, ao consumismo, ao desperdício, que eram coisas muito mal vistas lá em casa.

 

Baton vermelho, nunca pôs?

Eu não ponho! Não me fica bem. Se tenho os olhos como tenho, se ponho a boca vermelha, fica um bocadinho demais! [risos]

 

Esses olhos, herdou-os de quem?

Não sei. Os meus pais tinham os olhos castanhinhos. O meu avô materno tinha uns olhos azuis, porcelana, um ar meio holandês…, talvez tenha herdado dele. Às vezes, em miúda, pensava que tinha sido adoptada, porque não sou parecida com ninguém!

 

Hoje parecem mais pequenos do que na televisão ou nas caricaturas.

Estou sem maquilhagem. As minhas primas diziam-me sempre que eu devia vestir melhor, pintar-me mais, arranjar-me mais.

 

A sua forma de afirmação nunca foi por aí?

Não. Nunca foi um ponto forte. Não me interessava, nunca pensei muito em mim dessa maneira. O meu marido, o Zé, ajudou-me bastante a puxar pelo meu lado mais feminino. “Veste isto...põe aquilo...porque é que não pões?”.

 

Nas conversas que tem com as suas filhas, estes temas entram?

Entram necessariamente, elas puxam-nos. E eu gosto de ouvir as opiniões delas! “Isso fica mal... Voltaste a usar uma coisa... Tens de te desfazer dessa roupa... ”. A minha filha [que tem 26 anos] é sensível a isso. A mais pequenina tem 14.

 

Elas têm muito orgulho em si?

Não sei, tem de lhes perguntar. Acho que, no fundo, têm.

 

Por outro lado, a figura pública rouba espaço à mãe… Incomoda-as?

Talvez seja um misto. Acho que têm orgulho e são muito solidárias comigo. Embora não se queiram meter em nada daquilo que tem a ver comigo, “Economia não, Política não.” Têm essa rejeição, sentem que é um mundo que absorve muito. São muito boas pessoas, e isso é o que é importante na vida: têm princípios. Eu é que tenho muito orgulho nelas!

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009

 

 

 

 

José Tolentino Mendonça (2014)

01.09.19

José Tolentino Mendonça é padre e poeta. O seu livro mais recente, “A Mística do Instante”, é um ensaio que nos recentra em verbos primordiais, como escutar. Que nos coloca perguntas fundantes, como: “Existir, a que será que se destina?”. Se fosse preciso erguer uma bandeira, a de um manifesto político, poderia ser: “A vida não pode ser só isto”. Se fosse uma bandeira poética, o manifesto seria o mesmo. O espantoso em Tolentino: a sua capacidade de ligar mundo distantes, aparentemente impossíveis de serem ligados. De captar os caminhos internos do mundo e da palavra.

A entrevista foi a Universidade Católica, onde é vice-reitor. Citou Guimarães Rosa para dizer que “viver é perigoso”. Eu trago a Gal e o Caetano para completar: “Atenção, tudo é perigoso, tudo é divino maravilhoso”.

 

Usa muito no livro “A Mística do Instante” o verbo escutar. É diferente de ouvir. Escutar supõe uma atenção mais funda. Ouvir tem uma conotação mais apressada. Concorda com isto?

Sendo em parte a mesma experiência, são experiências diferentes. Penso que a velocidade, aí, pode de facto ser expressiva. O ouvir é um acompanhar apressado do outro, do que ele diz, do que ele revela naquele momento. O escutar é uma sintonização mais profunda. O exercício da atenção como hospitalidade daquilo que o outro é, é um estar mais lento. É uma “ralentização” da nossa passagem pela vida dos outros. Permite-nos colher informação que normalmente uma audição mais apressada não capta.

 

Usou outra palavra fundamental: velocidade. Isto atira-nos para esta “sociedade do cansaço”, onde tudo parece veloz, triturador. E onde escasseia o tempo para escutar o outro devagar, na sua essência. Como é que enfrentamos este desafio?

As nossas sociedades são extenuantes nos ritmos que pedem. É sempre para lá das margens. Perdemos o sentido dos limites. Não é só em termos do espaço, com a disseminação dos open spaces. Também com os telemóveis, e as comunicações, estamos sempre ligados.

 

Falsamente ligados?

O que me parece é que tudo isso tem um custo humano. Precisamos de descontinuidades. A vida humana não pode ser uma continuidade em que estamos sempre ligados, sempre metidos no trabalho, sempre disponíveis para uma actividade produtiva. Precisamos de alternância. Precisamos de modos de viver alternativos que possibilitem a ruminação da vida, a combustão da vida na sua variedade.

Deixámos de ter tempo para nós próprios, para a gratuitidade dos gestos. Deixámos de ter tempo para uma conversa. Em vez de ouvirmos palavras, ou frases, apenas ouvimos sílabas, rumores, que já não são nada. Isso implica uma diminuição da nossa qualidade de vida.

 

De que qualidade de vida estamos a falar?

Podemos até, materialmente, ter mais, mas a nossa capacidade de espanto, a nossa capacidade criativa, de afecto, a viagem interior que fazemos, está muito mais diminuída. É muito mais pobre. Nesse sentido, tornámo-nos analfabetos sensoriais. Se nunca escutamos, deixamos de saber o que é escutar.

 

Oiço-o falar em tempo para estar connosco próprios. Parece, à vez, uma evidência e uma miragem. Qualquer um de nós percebe da importância de ter esse tempo de compreensão de si próprio, e ao mesmo tempo não faz disso uma urgência. Parece sempre um projecto adiado, outro projecto ganha vantagem. Enquanto civilização parece que estamos muito neste beco: não conseguimos pôr mais perto de nós qualquer coisa que sabemos que é essencial.

Falta-nos um ethos social. Como sociedade, deixámos de valorizar a dimensão ética, o que condiciona todas as escolhas individuais. Estas tornaram-se uma espécie de fatalidade. Os nossos estilos de vida, mesmo nós não coincidindo afectivamente com eles, tornaram-se uma inevitabilidade. Um tem de ser assim. A nossa sociedade deixou de reflectir sobre ela própria e de construir um projecto que não seja apenas um projecto produtivo, mas que seja um projecto humano. Deixou de se reflectir socialmente a pessoa humana, a pessoa no seu todo, no conjunto das suas dimensões. O discurso tornou-se raso, tornou-se simplesmente funcional.

 

E reactivo? Um discurso que é uma pura e instantânea reacção ao mundo, ao comentário do outro, mas sem uma dimensão crítica.

Sim. O que nos falta é também um recuo. Dar um passo atrás e olhar para a nossa vida com a distância necessária. Mesmo o comentário que hoje enche o espaço público: é um comentário muito em cima da própria realidade. Não se vê nada, em cima da realidade não se vê nada! Ou o que se vê é muito limitado. Rapidamente o espaço público e o espaço individual se tornam um esgrimir de fantasmas onde há uma desproporção muito grande. Coisas menores ganham um espaço e uma presença que efectivamente não têm quando as colocamos numa escala de prioridades. Uma escala em consonância com aquilo que é o interesse real da sociedade e da pessoa.

 

Voltando à velocidade, por oposição à lentidão. Como é que vamos encontrar esse espaço de interioridade e de lentidão que nos permite de novo escutar quem somos, antes mesmo de escutar o outro?

Cada vez mais cada um de nós tem de levantar a mão, e tem de esbracejar. Temos de ouvir os poetas quando dizem: “Não pode ser só isto”. Um grande manifesto político seria dizer: “Não pode ser só isto”.

 

A vida não pode ser só isto.

A vida não pode ser só isto. Uma sociedade não pode ser só isto. Os nossos dias não podem ser só isto. E ganhar espaço para trazer ao de cima, para verbalizar, para dar estatuto político e público a dimensões que são empurradas para uma clandestinidade nos nossos quotidianos. No fundo, porque é que estamos aqui?, qual é o sentido das nossas vidas? O que é que fizemos, o que é que não fizemos? Dar espaço para uma ponderação tem outra ressonância antropológica.

 

Essas perguntas, que são as fulcrais, as filosóficas, são interrogações adiadas. Muitas vezes, as pessoas não se querem confrontar com o vazio que pode resultar delas.

Mas não temos nada contra o vazio, contra a dificuldade.

 

Mas as pessoas têm medo do vazio.

É importante transferir esta questão para o domínio da sociedade. Chutar estas questões para o domínio pessoal, é aquilo que a sociedade faz, enxotando responsabilidades. A sociedade que não se constitui como projecto humano, é uma sociedade que perde a sua coesão interna. O que é que nos une?, é a contribuição tributária ou a condição humana?

É importante que esta reflexão seja feita, e que em termos sociais, em termos culturais, haja espaço para ela acontecer. É muito preocupante a situação de marginalidade a que a produção cultural hoje é votada. O que se reflecte nos teatros, o que se faz no cinema, o que se escreve nos livros, o que se debate na Filosofia, não é uma margem para uma mão de especialistas ou de fruidores daquele tipo de discurso. É um contributo fundamental para a própria sociedade descobrir o seu caminho, as vias da sua possibilidade.

 

Individualmente e socialmente estas grandes questões são também adiadas se se impõe a urgência do almoço, a inevitabilidade da conta do supermercado.

O Kierkegaard dizia que nas nossas sociedades substituímos o piloto do barco pelo cozinheiro. Ele, em vez de apontar para onde vamos, anuncia a ementa do almoço. Que viagem estamos a fazer, se, em vez de respondermos à questão para onde caminhamos, repetimos a ementa do almoço ou do jantar?

 

Estamos preocupados com a sobrevivência, com as condições dessa sobrevivência.

A preocupação pela sobrevivência é uma das preocupações mais nobres, mais fundamentais da vida humana. A questão é se estamos a pensar na sobrevivência ou se estamos entretidos com a sobrevivência. Sobrevivemos para alguma coisa. A sobrevivência não é a finalidade da própria vida, é um meio para a construção de outra coisa. Vivemos para quê? É esse tipo de abertura que é necessário rasgar.

 

Há uma canção do Caetano Veloso que diz: “Existirmos, a que será que se destina?”.

Essa é a pergunta. E uma pergunta a que não só os indivíduos têm que responder.

 

O que é que quer dizer com isso?

É muito fácil dizer que esse tipo de questões, cada um, no foro íntimo, como quer, resolve. Como sociedade temos a responsabilidade de responder. Hoje, grande parte do desânimo, do pessimismo, do desencanto que nos corrói como uma pandemia… Às vezes estamos muito preocupados com a pandemia do Ébola e esquecemo-nos que a par dessa, gravíssima, há outras pandemias para as quais não estamos a olhar. O desencanto, o desinteresse, a incapacidade de sonhar é uma doença mais grave que muitas outras que nos agitam.

 

As pessoas vão-se fechando nos seus casulos, perdendo o sentido do colectivo. É desta pandemia – de desmobilização – que está a falar?

Achei muito interessante uma frase do Prof. Adriano Moreira sobre o que é uma comunidade nacional. Ele dizia: “Uma comunidade nacional é uma comunidade de afecto”. Ter a possibilidade de um presente colectivo, e de caminhar para um futuro que nos une, em vez de um futuro que nos divida e faça olhar para os outros como uma ameaça, é fundamental. Isso é alguma coisa que temos que construir. Falta uma reflexão sobre Portugal.

 

Uma reflexão sobre a nossa identidade?

Não é Portugal como história, ou o Portugal mítico, ou o Portugal simbólico. Falta-nos uma reflexão sobre Portugal país humano, comunidade humana que somos. Este desencontro que vivemos, em vez de nos congregar, acaba por afastar-nos.

 

Sublinharia essa frase: estamos desencontrados uns dos outros. Quando fala desta sociedade, estamos a falar de algo mais que a sociedade portuguesa, estamos a falar deste modelo de sociedade ocidental.

Sim, este modelo europeu, ocidental, que tentamos reproduzir como bons alunos. Mas não sei se o bom aluno é esse. Não sei se o bom aluno é apenas aquele que reproduz o modelo, ou se o bom aluno é aquele que também investiga por si próprio e traz um contributo novo e transporta uma surpresa ao próprio modelo que recebeu. Penso que o lugar de Portugal terá de passar por trazer ao modelo europeu componentes que esse próprio modelo não tem.

 

Está a pensar em quê, especificamente?

Penso na nossa relação com o Atlântico. Este cruzamento de mundos com a América Latina, com África, com o Extremo Oriente. Esta miscigenação humana e cultural que tem sido tão importante na história nacional, e que muitas vezes não olhamos como um elemento precioso que podemos levar. Pode ser aí o lugar onde está o nosso verdadeiro capital.

 

Quando é que situa o começo da desmobilização? Não há muitas décadas, o que insuflava a Europa era a esperança. Como é que tão rapidamente chegámos a este ponto de alienação em que estamos todos um pouco atónitos mas sem saber como damos o passo seguinte?

Como país tivemos um marco temporal importante, há 40 anos, com a revolução de Abril. Uma reflexão concreta que podemos fazer é: como povo, como é que crescemos nestes 40 anos? Estamos mais perto ou mais longe uns dos outros? Aquilo que a um dado momento nos pareceu ser o ideário, o corpo utópico ao qual nos devíamos aproximar, estamos mais longe ou mais perto dele? Hoje, aquilo que separa as classes, a diferença entre ricos e pobres, a igualdade de oportunidades, a justiça, o acesso aos meios de cultura e da educação, o emprego, o horizonte de felicidade dos nossos concidadãos, é mais amplo ou é mais reduzido? Olhamos o mundo com mais confiança ou com mais incerteza?

O 25 de Abril, à sua maneira, foi uma ruptura social muito importante. Emergimos dali como nação com um determinado projecto, com uma determinada capacidade de estar juntos para construir alguma coisa, esta nossa sociedade democrática. Os 40 anos também é um tempo de avaliação. Dois discursos a propósito dos 40 anos do 25 de Abril marcaram-me muito. Um, o do General Eanes, que sobretudo falava da ideia de inacabamento.

 

Inacabamento?

O 25 de Abril constituiu um investimento simbólico ideal muito forte. Ver um protagonista de Abril, com a responsabilidade e o papel histórico do General Eanes, fazer aquela síntese, realista, com traços muito crus... Ainda nos falta tanto para chegar a Abril.

O outro “discurso” foi no programa que o Ricardo Araújo Pereira tinha na televisão [“Melhor do que Falecer”]. Um monólogo representado pela Maria do Céu Guerra. Foi um dos grandes momentos, não só de televisão, mas de cultura, e de política, e de humanidade dos últimos tempos. Víamos naquele diálogo, conformista, inconformista, um desencanto e um “talvez ainda seja possível”.

 

Nesse sketch, de modo irónico, a personagem da Maria do Céu Guerra dizia: “A liberdade faz muitas dores de cabeça, manifestam-se muito, fazem muito barulho”.

Essa ironia desassossega-nos. A verdade é que a desmobilização acaba por tomar conta de nós. Como sociedade, acabamos por buscar zonas de conforto que só falsamente nos dão conforto.

 

No livro desenvolve a ideia de que o corpo é a nossa língua materna. Gostava que explicasse como é isto.

Cada um de nós nasce com todas as condições para construir uma história, para ser protagonista. É aquele verso do Almada Negreiros: “Sonhei com um país onde todos chegavam a mestres”. Cada um de nós tem essa possibilidade de ser mestre da própria vida, de tocar a sabedoria, de tocar o sentido, de construir alguma coisa de essencial.

 

Ser o autor da sua peça?

Sim. As sociedades baseadas na ideia do consumo transmitem a ideia de que nos falta sempre alguma coisa. Mas se observarmos bem qualquer ser humano, ele tem tudo o que precisa para construir, não apenas uma história mas uma grande, uma inesquecível história. Isso passa em grande medida por aquilo que somos no nosso corpo. E por estas portas de construção vital e simbólica que são os nossos sentidos. Através da escuta, da visão, do paladar, do tacto, do olfacto, podemos construir uma aventura. E podemos a partir delas criar, ou intensificar, a nossa relação connosco, com os outros, com o mundo, com o mistério da vida. Também digo que o corpo é a língua materna de Deus.

 

Quando li essa passagem, no livro, estaquei. Não consigo imaginar Deus como um corpo. Consigo imaginá-lo como uma voz, mas não consigo chegar ao corpo que tem esta voz.

Isso é muito interessante. O nosso corpo não nos prepara apenas para entender o visível. O nosso olhar vê o visível, mas o olfacto vê o invisível (por exemplo). O arquitecto Pallasmaa tem aquele maravilhoso livro, “Os Olhos da Pele”. A nossa pele ajuda-nos a ver coisas que os nossos olhos não vêem. Porque situam-nos neste mundo, são âncoras para este real mais próximo, mais tangível. Ao mesmo tempo, dão-nos o sentido do intangível e do limite.

Eu vivo neste jogo de o mundo ser mais do que aquilo que consigo dizer acerca dele. Os sentidos são um laboratório da relação com o invisível, com o silêncio, com o inaudível. É por isso que digo que o corpo é a língua materna de Deus. Mas ter a consciência do que não vemos e do que não sabemos, é uma consciência profundamente humana. É isso que nos distingue, a consciência do limite, a aceitação dessa fronteira.

 

Lembrei-me do título de um dos volumes da autobiografia do Elias Canetti, Uma Luz em Meu Ouvido (na tradução brasileira).

É um belíssimo título.

 

Tem um capítulo no livro que vai neste sentido. Como se fosse possível cruzar os sentidos e as portas de acesso. Não é uma voz no meu ouvido ou uma luz nos meus olhos, é uma luz no meu ouvido. E isto, recebi-o com espanto.

Os sentidos são instrumentos para a complexidade que nós somos e que a experiência da existência é. Há uma dupla e, às vezes, uma tripla porta. Há uma frase do filme Cenas da Vida Conjugal, do Bergman, que me marca muito. Ele diz: “Aprendemos tantas coisas na vida, temos uma escolaridade cada vez mais dilatada no tempo, mas somos analfabetos emocionais”. No sentido de sermos analfabetos sensoriais. Não desenvolvemos os sentidos. Porventura cada um de nós tem um sentido mais desenvolvido do que o outro, mas a verdade é que nos falta uma educação para os sentidos. Um gourmet não é apenas um comilão. Um grande mestre teólogo e pedagogo brasileiro, falecido este ano, Rubem Alves, dizia que a coisa mais importante é a cozinha. Um professor, antes de levar o aluno para a sala devia fazê-lo passar pela cozinha. A cozinha não dá o alimento, dá o desejo. O paladar não é uma máquina de satisfação, é uma máquina de criar desejo. Isto mostra como cada um dos sentidos é uma dupla porta e nos ensina tanta coisa acerca da nossa humanidade.

 

Satisfação, desejo. Atenção, rotina. Essência e excesso. Silêncio e ruído. Procura e respostas. Tinha elencado esta série de pares, e opostos.

A vida é esse balanço. Se nos deixamos ficar apenas numa parte não percebemos o jogo, a brincadeira que a vida é. A vida não é só uma pergunta. Também não é uma resposta. É uma travessia entre essas dualidades, entre essas possibilidades, esses modos de existência. Nesse sentido somos o homo viator, o homem que atravessa, que viaja pela sua própria história. O que podemos colher de mais importante é o espanto, o assombro.

 

Qual é o sinónimo que imediatamente lhe ocorre para espanto?

Aberto.

 

E infância, parece-lhe bem, como sinónimo?

A infância é uma máquina de espanto. Já todos passámos por essa máquina, mas é bom que a conservemos. E que essa disponibilidade para aprender, para ver, ouvir, perguntar, persista. Vivemos com os olhos colados nos sapatos, e deixámos de abrir a janela, de olhar para as estrelas. Desistimos de olhar mais para longe. Aquilo que move a história não são os nossos sapatos, é um ponto que algures contemplamos mais longe.

Há uma história engraçada, oriental, que conta de um velhote que quer chegar ao cume de uma montanha. Faz uma paragem numa estalagem do caminho e o estalajadeiro convence-o de que já não tem condições de chegar ao cume. E ele diz: “Já atirei para lá o meu coração, e por isso sei que vou chegar”. A coisa mais importante é atirarmos para longe o nosso coração. Haveremos de chegar, com maior ou menor dificuldade, com maior ou menor lentidão.

 

O seu sinónimo para espanto: “aberto”. De facto, não há nada mais aberto que uma criança. É como se fosse uma casa com as portas e as janelas abertas, com uma total disponibilidade.

Quando abrimos as nossas janelas, a nossa casa fica espantada. Abre-se ao espanto do dia, da luz, a claridade, daquilo que a rua traz. A abertura é a condição do espanto. O contrário é o fechamento, a clausura.

 

Mesmo que com ele venha uma convulsão?

“Viver é perigoso”, dizia João Guimarães Rosa. É esse risco que torna a vida alguma coisa digna de ser vivida.

 

Vamos imaginar este quarto que está com uma temperatura climatizada, constante, à qual nos adaptámos. De repente, se se abre uma janela, há uma entrada de um ar de uma outra temperatura, e há um distúrbio que é causado.

Bendito distúrbio.

 

A nossa primeira reacção, normalmente, é a de recusar o distúrbio. Queremos continuar no conforto. Somos um animal de hábitos, tradicional.

Os distúrbios permitem-nos tomar consciência do sítio onde estamos. As crises são máquinas de consciência, de intensificar a nossa atenção aos próprios processos, àquilo que estamos a viver. Senão, caímos num automatismo muito grande.

É muito interessante ligar esta conversa aos sentidos. Há antropólogos que criticam a sociedade norte-americana dizendo que é uma sociedade que procura uma neutralidade em relação ao cheiro. Há uma indústria dos perfumes, dos incensos, dos desodorizantes. Enquanto outras sociedades, por exemplo, as muçulmanas, as orientais, são sociedades que vivem muito mais na rua, que cozinham na rua, onde o cheiro faz parte do quotidiano. Nós segmentamos muito os cheiros e procuramos quase um estado inodoro. E isso também diz muito da artificialidade com que vivemos.

Muitas vezes, o que a nossa casa precisa é que abramos a janela, em vez de estarmos exasperadamente a introduzir um novo purificador do ar. Precisamos de uma boa corrente de ar. E isso é uma metáfora para a própria vida.

 

O problema é o medo que nós, sociedade, temos de abrir a janela, e o que resulta desse bendito distúrbio.

Não podemos estar à espera de uma transformação individual ou de transformações sociais sem medo. A criança tem medo, quando começa a andar. Nós temos medo nas experiências decisivas da nossa vida. O medo é um sentimento muito humano. O que nos trava não é o medo, muitas vezes é o medo de ter medo.

 

Como assim?

É a dificuldade de conviver com os nossos medos, dar-lhes um nome, dar-lhes uma dignidade, escutá-los, falar deles, expô-los. Se me meto a fazer uma grande viagem, é importante que tenha medo: o medo também me protege. Mas o medo também me sufoca, e tenho de encontrar aqui um ponto de equilíbrio. O equilíbrio passa por perder o medo ao medo.

 

Não usámos ainda a palavra alegria, que é um sentido cada vez mais escasso e precioso.

A alegria tem de ser o fio de Ariadne da própria vida, aquilo que nos guia. É o fio que nos pode fazer sair do labirinto. E a alegria não depende unicamente das circunstâncias. Não é a alegria por isto ou por aquilo. Não é a alegria de ter conseguido ou a alegria de ter obtido. Tem que ser a alegria.

 

Uma alegria gratuita?

Sim. Uma alegria pelo essencial.

 

Hoje a alegria está muito associada ao prémio, à compensação do esforço.

E a alegria tem de ser sem porquê. Tem de ser como o que o Angelo Silesius, o místico, dizia da rosa, “a rosa sem porquê”. Tem de ser a alegria de ser, a alegria de estar, a alegria de viver. Em vez de associarmos a alegria a uma espécie de medalha de bom comportamento. A alegria tem que ser o que está antes daquilo a que chamamos alegria.

 

Lembrei-me da cara do Papa Francisco, que é uma expressão de alegria.

Essa cara é um ícone. De uma alegria para todos. Uma alegria de um mestre de humanidade.

 

Fazemos a entrevista no dia a seguir ao anúncio do restabelecimento das relações entre Cuba e os Estados Unidos. Nas negociações intervieram o Papa Francisco e o Papa Bento XVI. É como se a alegria fosse um motor. Não faz o caminho todo, mas pode ser um motor.

A alegria não é uma consequência, a alegria é uma causa. E se é uma causa, há determinadas coisas que vão acontecer por causa da alegria, em nome da alegria. Porque é a alegria que a gera. Se a alegria for apenas uma consequência ela vai estar ausente dos processos. Surge no fim, como um ornamento, como a cereja em cima do bolo. E a alegria é uma força da vida que precisamos redescobrir como sociedade.

 

O outro elenco que fiz, a partir do seu livro, foi dos verbos caminhar, ligar, escutar, buscar e dar. Todos estes têm sentidos diferentes se forem reflexivos.

É um exercício tão importante e que fazemos tão pouco, dar reflexividade aos verbos. Dar reflexividade à vida. Aquilo que fazemos, faz-nos. O livro que lemos, lê-nos. O gesto que oferecemos, é-nos oferecido. Isso torna a vida completamente diferente.

 

Gostava de perguntar pela língua materna da sua infância. E pelo sentimento de que fomos/somos o Menino Jesus dos nossos pais.

Os cristãos vivem, antes do Natal o tempo do Advento, que quer dizer espera. É muito importante ligar o que nasce ao que é esperado. Ligar a realidade ao desejo. E ligar a evidência da história ao seu próprio sonho. Vimos de uma interioridade biológica, afectiva, simbólica, geracional, histórica. Vimos desse interior para a exterioridade. Este trânsito documenta melhor do que qualquer outra coisa a vida. A marca dessa viagem tem de se tornar em nós uma arte.

São Paulo, num dos textos fundamentais da história do Ocidente, a Carta aos Romanos, diz que o mundo inteiro sofre as dores de parto. No fundo, estamos a participar num parto. Grande parte das nossas dores actuais são dores de um parto. Se pensarmos que, em vez das dores da agonia, são as dores do nascimento, a vida ganha outra ressonância.

 

Achamos todos que estamos num fim de ciclo, que isto são dores da agonia...

Mas são dores de parto.

 

E temos o desejo de que qualquer coisa nova surja. Entretanto definhamos.

Temos de sentir que estamos a fecundar. Estamos a fecundar o tempo. E a morte, outra coisa não é que um outro nascimento.

 

 Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014