Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Anabela Mota Ribeiro

José Manuel Pereira de Almeida

22.12.19

Acordámos encontrar-nos de manhã cedo. O táxi deixa-me à porta do pavilhão da citologia pelas oito e meia. É a primeira vez que entro no IPO. Noto a traça comum ao Hospital de Santa Maria e ao S. João, embora estes tenham uma imponência que aquele não tem. Há qualquer coisa que se entranha e que percebo ser o cheiro. Um cheiro talvez a morte. A morte tem uma espessura, um insinuar-se próprio. «A morte tem a ver com essa vida que passa para uma visibilidade que não é a nossa. Evangelho quer dizer boa notícia. Se há coisa em que a boa notícia de Jesus é claramente proposta, é esta: a morte não tem a última palavra». Isto é o que ele diz, para o fim da conversa. Eu perguntara-lhe da relação entre a expressão Paz Eterna e a ideia de Morte.

Saberemos o que é a morte? Saberemos o que é a paz? Que sabemos nós das coisas que verdadeiramente importam?

José Manuel Pereira de Almeida é o padre da mítica Capela do Rato, célula de liberdade nos tempos da ditadura. É também o médico especializado em anatomia patológica, que observa o interior dos interiores, que faz diagnósticos que se revelam chaves. É médico desde os 23, padre desde os 33. Fez 50 anos.

Esta é a sua palavra.

  

Qual é a sua definição de paz?

A paz é uma solicitude pela vida do outro que nos torna incansáveis na construção da fraternidade. É uma ideia dinâmica de cuidado com o outro.

 

O cuidado será o elemento fulcral desta dinâmica?

Se calhar, o outro é mais fulcral do que o cuidado. Quer dizer, a atenção está centrada no outro. O que faz fulcro neste movimento é a atracção.

 

O que é que motiva a atracção? Santo Agostinho escreve nas «Confissões»: «O meu amor é o meu peso, onde eu for, ele me levará».

Sim.

 

Qual é o operador deste sair de nós e que implica o cuidado com o outro?

O amor como força, é absoluto. Que pode revestir a busca da felicidade, um motivo de alegria, uma ocasião de segurança. Esse amor que se exprime, pode ser multifacetado. Pode dar um nome à esperança. Pode dar um nome ao que se procura.

 

Em que é que pensa quando se refere a segurança? É fácil estabelecer uma relação entre a sensação de apaziguamento e a sensação de segurança. Como uma baía onde estamos ancorados.

E onde estamos em paz. O seu colega fotógrafo [Alberto Picco] disse o seguinte: «Para mim, um pai poder ir à praia com a sua filha num domingo, tem a ver com a Paz». Quando apelei à ideia de segurança era também isso: alguém fazer o que gostaria com alguém que lhe é caro, numa situação de serenidade e de confiança, que a insegurança mina.

 

Porque traz inquietação.

E suspeita. Saber o que está atrás, quem é que está a ver, se se volta.

 

Há sempre a incógnita a pairar sobre nós.

O que é que vamos encontrar?

 

O contraste é usado como medida. Se não conhecermos situações antagónicas, não podemos realmente avaliar o peso de cada um dos termos.

Como é possível aos pimpolhos que crescem em ambiente de guerra e violência sonharem a paz? Se é possível... E afirma-se isto e chama-se a atenção para o momento, um momento, em que alguém nos pôde ter pegado ao colo e envolvido em ternura. A paz evoca esse momento como possibilidade de ser mais conjunto.

 

A paz enquanto coisa vivida?

Enquanto coisa vivida. Podemos avançar para o desconhecido vivendo um sentimento de paz. De confiança. Evocando o salmo 22, «O Senhor é meu pastor, nada me pode faltar». Confiando, posso ir «por vales tenebrosos que não me acontece nenhum mal», (voltando ao salmo). Mesmo que esteja envolto em escuro, em trevas, isto há-de correr bem. Não gostaria com isto de dizer que a paz é um “estado de espírito”, treutreutreu... A minha primeira achega era no sentido da construção objectiva de lugares onde essa experiência possa ser realizada; mas depois ela tem também um termo de interioridade que se revela nesta construção, neste empenhamento concreto, e que, ao mesmo tempo, não se esgota aí.

 

«A paz é um estado de espírito», é um chavão recorrente.

É logo de uma pessoa ficar arrepiada... Porque é para justificar todas as situações de desinteresse, de indiferença. Como é um estado de espírito, e o espírito é mais ou menos gasoso...

 

É uma medusa.

Medusa está bem. A paz implica um empenhamento, ou seja, um reduzir a zero a indiferença. 

 

A paz, como a entende, é inseparável de uma dimensão vivencial?

Perfeitamente. Construída, com vários materias. Assente, como em toda a segunda metade do século XX se foi dizendo, no alicerce da justiça. 

 

Porque é que a justiça é um elemento tão preponderante?

Porque sem justiça qualquer “paz” pode ser uma situação convencional, apenas suportada pela conveniência das circunstâncias.

 

Como é que o outro existe na sua vida enquanto padre e enquanto médico?

Primeiro que tudo, o outro existe independentemente de mim, quer como padre, quer como médico, enquanto esse outro que se me apresenta. No geral, o outro que se apresenta diante do médico é alguém que está doente. Estar doente é um nome de ser pobre, ser frágil; e por isso, a solicitude pela vida do outro ganha contornos ainda mais claros. Não quero ter o tom paternalista, mas quero procurar, tanto quanto de mim depende, ajudá-lo. Dar um diagnóstico citológico tão preciso quanto possível e tão rápido quanto possível.

 

Dá sempre chaves.

Um diagnóstico é uma chave. O diagnóstico citológico é sempre complementar para um juízo clínico. Quem está no centro desta orquestra, nesta equipa que é multidisciplinar, (porque é impossível que ciência e arte médica caibam num mesmo artesão ou artista), é o clínico que cuida do doente. Nele está centrada a relação médico-doente, que creio que subsiste. Saber quem é que é o meu médico é muito importante.

 

Saber quem é o interlocutor. Saber quem é o meu pastor. Falamos do sentido de protecção, mais uma vez.

Sim, e de confiança. O clínico tenta propor ao doente um caminho que seja de terapêutica, de qualquer terapêutica. Aqui, a terapêutica não é fantástica, não se cura muita coisa... Na medicina curam-se as infecções, desde que há antibióticos. As outras coisas não se curam, propriamente. Acompanham-se. Estou a ser pessimista... Há doenças oncológicas que, de facto, se curam.

 

E o outro enquanto padre?

É muito variado. Permite-me captar o outro em muitas situações felizes, de sonho, de procura do sentido da sua vida. E também o oposto, nas situações mais dramáticas da existência: na morte de alguém, no sentimento de estar perdido na vida, mesmo em relação à fé. Neste interface [IPO], encontro pessoas que nunca entrariam numa igreja e que conversam comigo enquanto padre. A nossa relação já não é a do padre e fiel, encontro na sacristia. É alguém ao lado de quem estamos. O acompanhar é uma imagem que permite perceber o que é que um padre faz no meio do resto da gente.

 

Lida com o outro em situações limite. O outro apoquentado com a sua saúde, e portanto com o seu futuro, e o outro que sente a sua alma doente.

E não raro são acumuláveis, coexistem.

 

A dor da alma pode ser tão violenta como a dor do corpo?

Não sei medir dores, ninguém saberá. Diria que pode ser igual ou maior. O estar perdido pode ser estar perdido de si. Isso deverá ser a coisa mais difícil de suportar.

 

Desencontrado de si?

Sim. Na vida.

 

A ideia de paz, ao contrário, é a do encontro.

É.

 

Fala-se da «Odisseia» como uma viagem, uma procura do caminho para casa. Do consequente apaziguamento e reencontro. Depois de ver Penélope, Ulisses vai ainda a casa do seu pai, a casa da sua infância. Há nisto a ideia de encontro com uma parte de si mais antiga, que experimentou a paz, ainda que nesse momento não a reconhecesse como tal.

Depois há outra história. Um conhecido filósofo, Martin Bubber, chama a atenção para isso. Ao contrário da história de Ulisses, que é a do regresso, há a história de Abraão, que é a do partir. Parte para não voltar. Parte para ir. Parte para encontrar uma terra prometida. E essa terra prometida está para a frente. Não está no voltar.

 

A paz está no encontrar, então? Está no ir?

Está. O partir já é o primeiro passo para chegar. Mas não é preciso que chegue. Em relação a Moisés, que não entra na terra prometida, o avistar já é alegria: está ali. Há uma ideia de posse que o regresso comporta e uma ideia de despojamento que o partir implica.

 

Qual é a versão que prefere? A sua primeira definição de paz tinha implícito um cuidado com o outro, um sair de si em direcção ao outro.

Mas não necessariamente um regressar a mim.

 

A sua versão é mais biblíca e menos homérica?

Eu preferiria, mas não quer dizer que a viva - não sei se sou capaz, não sei se isso é real nos gestos, nas atitudes. Se quiser ser consciente, há sempre a possibilidade de desejar ganhar alguma coisa com a saída... Um reconhecimento, a gratidão, a alegria que se vê nos olhos e no sorriso dos outros, coisas assim.

 

Nunca é completamente desinteressado.

E no entanto, é isso que procuro. Quando muito, vou a caminho. A gente nota que afinal ainda está muito aquém, sobretudo quando esse reconhecimento não existe, e se fica desasado, e era a altura de ficar contente. Ficamos desiludidos, entristecidos com o não ter tido esse retorno. Se calhar, é entre estas duas que me situo.

 

O seu caminho bifurca-se a dada altura. A sua opção pelo sacerdócio é relativamente tardia. Conte-me lá a história da sua vida.

Em banda desenhada? A história da minha vida: Infantil e segunda classe no «Nosso Jardim»; foi uma introdução de que guardo belíssimas memórias. Complementei a primária no S. João de Brito e fiz todo o liceu no Camões. A referência da fé estava presente. Na minha família, na minha mãe, no meu pai. A primeira imagem de Deus que terei, calha bem agora, é a do Menino Jesus.

 

Porquê?

Porque é o menino à nossa medida. E é importante para a fé cristã perceber o seu centro numa pessoa – Jesus – que, como nós, nasceu e foi criança. Terei passado mais tarde pela ideia de Deus enquanto juiz, que vigia.

 

Que pode ser severo?

Sim. Mas o olhar de Deus que aparece grandemente na tradição bíblica é o olhar que salva, que perscruta os corações. Há um salmo variante, de Herberto Helder, lindíssimo: «Tu me sondas, Senhor, e me conheces, sabes quando me sento e quando me levanto». Nessa altura a coisa importante foi a experiência no Liceu Camões. Foi ter percebido que a fé não era para viver ao domingo e o resto da vida durante a semana, mas que as coisas estavam intercruzadas e que não havia compartimentos. Essa experiência fazia-se no quadro da acção católica, da JEC. Houve grandes assistentes da JEC, para nomear um diria o padre Alberto Neto, que foi claramente quem me marcou. O crescimento foi indo, mais ou menos sereno e sossegado. Eu gostava de ser médico. Isso surge, não tenho ideia de onde, para aí no quinto ano de liceu [actual nono ano].

 

Há alguém médico na família? O que faziam os seus pais?

A minha mãe fez Filologia Clássica e era professora no secundário de Português e Latim. O meu pai trabalhava nas Pescas. Na área eclesial, o empenhamento na animação pastoral juvenil decorreu aqui em Lisboa. Depois houve uma dispersão desta geração; cursos, estágios, outras bandas. E sei que nessa diáspora, subsistia a ideia de que era importante continuarmos em rede, a encontrarmo-nos. Essa iniciativa original consubstanciou-se depois num movimento existente ainda hoje, o «Metanoia». Metanoia em grego quer dizer conversão, é uma palavra que S. Paulo usa nos escritos. Mudança de vida, voltar para trás, cambalhota.

 

Qual era a pedra basilar desse movimento?

O que se procurava era dialogar a partir da vida profissional e familiar com as questões transportadas pela fé. Pedimos ao padre Alberto que apoiasse; já nos tínhamos habituado a vê-lo como o padre que nos acompanhava. Que fazia caminho connosco. É uma boa imagem do ser padre. Lembro-me que o padre Alberto disse: «Isto pode ser uma provocação para vocês. Algum de vocês, era bom que pudesse saltar para este serviço». Se calhar não foi dito assim, tão preto no branco, mas foi bastante claro. E dois de nós, o António e eu, disponibilizámo-nos para pensar na hipótese de vir a ser padre. Escrevemos uma carta aberta.

 

Qual era o teor da carta?

Uma carta a apresentar o que é que a malta achava. A dizer da nossa disponibilidade e a perguntar o que é que as pessoas achavam. Tinha um prefácio muito simpático do Alberto e um posfácio muito crítico, a achar que a máquina da igreja nos ia cilindrar, do Nuno Silva Miguel e da Teresa Madureira.

 

Que idade tinha nessa altura?

Então, acabei Medicina com 23 anos, fiz o estágio com 24/25, esta coisa passa-se aos 26, depois do internato geral. As respostas foram bastante simpáticas, entusiasmámo-nos e entrámos no seminário. O António saiu no primeiro semestre, eu saí no fim. Tinha 33 anos.

 

Até aos 26 anos experienciou um tipo de vida que depois mudou substancialmente. Já homem, passou a viver num seminário.

E sobretudo com outros mais novos... Apesar de haver alguns que também chegaram tarde. Foi um tempo engraçado; não quer dizer que tenha sido simples ou fácil. Mas ajudou a perceber que em muitas circunstâncias não se escolhe com quem é que se vive. Não nos tínhamos escolhido uns aos outros mas estávamos todos dispostos a um projecto.

 

Quando se decidiu pelo sacerdócio abdicou de uma dimensão mundana, da vivência do amor e da família. São sobretudo estas possibilidades que são obliteradas, todas as outras são ainda experimentáveis.

Seguramente. Diria uma certa vivência do amor.

 

Que é focalizada numa pessoa.

Uma escolha comporta sempre um número infindo de outras possibilidades que não se realizam. Qualquer escolha. Esta escolha é também a escolha de não escolher outro caminho na minha vida. Se me pergunta «Custou?», claro que não é irreflectido e que não foi de uma forma arrogante que prescindi... Claro que custa. Mas há uma maturação das motivações e das decisões que se vai fazendo na própria decisão de vida.

 

Só se sabe do que se é capaz quando se é confrontado com isso?

Quando se vive mesmo. Há um risco inerente à decisão.

 

Herman Melville escreve no clássico «Moby Dick»: «Não admito na minha baleeira nenhum homem que não tenha medo de uma baleia. Querendo dizer com isto, não só que a coragem mais sólida e mais eficaz é aquela que nasce de uma justa estimativa dos perigos a enfrentar, mas também que um homem absolutamente destituído do medo é um camarada mais perigoso que um cobarde».

É isso mesmo.

 

Só soube pelo tempo fora, e enfrentando a baleia, do que era feito?

Sim. E vamos ver. Convém não armar em tonto. Está a correr. É a vida.

 

A tradução de paz é comummente a de um estado de quietude, a de chegada a um porto seguro. Na sua versão...

É de mobilização para.

 

Escolhe-se o caminho pela igreja ou é-se escolhido por esse caminho?

É-se escolhido. O que se escolhe é a possibilidade de acolher esta escolha.

 

Como se fosse invadido por um sentimento?

Sou pouco místico-gasoso..., voltamos à medusa. Esta história foi assim: era preciso, tens disponibilidade.

 

Não é uma coisa tão pragmática.

Pois não. Mas justamente porque às vezes se exalta muito uma voz que se ouve, é melhor fugir a essa conversa.

 

Eu pensava num sentimento que invade, que se impõe sobre todos os outros.

Não poder fazer outra coisa senão essa? Mesmo hoje, podia fazer outra coisa. Mas sinto-me muito feliz a este propósito. Foi sendo uma proposta. Primeiro pensávamos que era impensável e depois, a pouco e pouco, foi-se configurando como a nossa vida.

 

A influência do padre Alberto foi determinante? Desempenhou um papel fundamental na sua vida e também na de muitos católicos progressistas que acorriam à Capela do Rato.

 [Foi determinante] em relação à vida portuguesa, em geral.

 

Fale-me um pouco do padre Alberto.

Entre 78 e 80 vivi na casa do padre Alberto. Tinha sido uma residência de estudantes com alguma graça, porque era um andar! Nesta altura, a primeira vez em que a casa era de gente mais crescida, já com profissão, éramos seis. O Alberto era obviamente a alma da casa. O que impressiona mais é a liberdade com que vivia a sua vida; e ao mesmo tempo, com a mesma intensidade, tinha um grande amor à igreja enquanto realidade viva de pessoas.

 

Enquanto rede de aproximação aos outros?

E de referência a Jesus. Era um animador de esperanças. O modo como cantava, o modo como contava anedotas, o modo como se ria, o modo como subvertia as coisas que apareciam muito direitinhas...

 

Porque é que acha que o Padre Alberto foi fundamental não só para o grupo mas também para a vida portuguesa? É pela ligação à política?

É. A Capela do Rato foi um lugar de liberdade de opinião e discussão, e isso não era comum. Faz agora 30 anos, de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro, que foi invadida pela Pide. Foi lido um texto que propunha uma vigília na sequência da proposta do Papa. Em vez de se rezar pela paz em abstracto, rezava-se pela paz no concreto, na situação que Portugal vivia.

 

Isso remetia para as colónias?

Claramente. Nessa vigília, havia também intervenções sobre a situação da guerra colonial. A Pide interveio prendendo muitas pessoas. O 25 de Abril é daí a um ano e meio. A saída das prisões e a referência à Capela do Rato ainda é significativa para vários sectores.

 

Não estavam divorciadas como hoje estão a esfera da política, da religião, da participação cívica, do pensamento. Confluíam na Capela do Rato figuras proeminentes, ainda hoje, na sociedade portuguesa. Foi um espaço de formação?  

Pelo menos, foi um fórum. Não só de troca de ideias, mas também de empenhamento concreto. E era multiforme, o tipo de atitude que as pessoas tomavam não era o mesmo. O elemento puramente religioso da liberdade pode ter sido o nome mais importante para a fé. Eram pessoas que procuravam. Se calhar, na atitude na fé, mais do que uma coisa que se tem, é uma coisa que se procura.

 

O que é que sentiu quando o padre Alberto morreu?

Foi uma grande surpresa. Lembro-me até do filme que fui ver quando soube que não se sabia do padre Alberto, três dias antes de se encontrar o cadáver. Não sabermos as razões da sua morte, é uma coisa que ainda hoje me custa, devo dizer-lhe. Disseram-me que há muitas situações em que a Judiciária não chega a conclusões. Custa-me a crer que nada se soubesse. Mas não tenho razões para achar que sabem e que não contam.

 

Que filme tinha ido ver?

«E la nave va», de Fellini, no Apolo 70.

 

A morte de alguém tão próximo pode ser, costuma ser, qualquer coisa que abala a fé. Há pouco falou de justiça; o sentimento é justamente o de injustiça e consequente perda de fé. Como é que se recupera e se reencontra a fé?

Como é que se reencontra? Eu não experimentei nenhuma situação de crise de fé a este propósito. Experimentei uma saudade muito grande, que não tem sequer diminuído. «E agora, como é que a gente caminha?». Faz imensa falta, é isso, faz-me imensa falta. Ao mesmo tempo, é provável que a fé só se experimente verdadeiramente quando é posta em questão. Vou dizer de outra maneira: a dúvida faz parte da fé. A fé não é um tipo de certeza.

 

É uma dúvida permanente ou é uma dúvida que dá de si nestas situações limite?

É uma dúvida que pode surgir. Uma dúvida permanente... Ficamos de língua de fora, não?, é paralisante.

 

O que é este duvidar? É perguntar «Será que tenho fé?», ou, mais do que isso, é perguntar «Será que isto faz sentido?».

É «Será que isto faz sentido?». Na minha relação pessoal com Deus em Jesus, a dúvida de fé é interrogação sobre a confiança. Mais do que se Deus existe, se há um Ser que explica esta trapalhada, é «Não me estarei a enganar?». S. Paulo diz isto bem: não é isto também uma fábula?. Portanto, porque as circunstâncias nos podem indicar o contrário, (que Deus afinal não se importa connosco, que estamos numa praça sozinhos a gritar e que ninguém ouve), esta contradição entre uma experiência que as situações limite podem trazer e a familiaridade com Jesus que tem vindo a crescer, entra em choque. É como se uma peça do puzzle não encaixasse no puzzle.

 

Mas se uma peça não for do puzzle, todo o puzzle vai à vida.

Exactamente. É a ruína. É a ruína.

 

As palavras são os termos com que apresentamos a nossa fábula, para voltar a S. Paulo. Pode falar-me da sua relação com as palavras? E com a Palavra no domínio da relação com Deus?

Nós somos aqueles que podem escutar a palavra. Para dizer de uma forma aproximada da tradição bíblica, somos criados capazes de ouvir e também capazes de responder. Somos criados como interlocutores de Deus.

 

Se começamos por escutar, isso veda-nos a possibilidade de emitirmos a primeira palavra?

Vou pegar em dois textos. Um texto do Génesis onde, primeiro que tudo, é a palavra de Deus que faz a realidade. No êxodo, Deus dirige-se a Moisés porque ouve o grito, o clamor do seu povo. Na tradição bíblica há claramente uma prioridade à escuta. «Quem tem ouvidos para ouvir, oiça».

 

Há nessa frase uma alusão a uma Torre de Babel?

Por exemplo. E falavam, falavam em barda. Confusão geral. Mas o grito do sofrimento tem prioridade para o ouvido de Deus. Deus fala, Deus dirige-se, porque é sensível ao clamor.

 

Esse clamor é poliglota, ultrapassa todas as barreiras linguísticas?

É eloquente. É o clamor da escravidão, o clamor daquele que sofre violência, e que, no que diz respeito à nossa conversa, é a oposição em relação à terra de paz que sonhamos. Que é apresentada sempre, como proposta de Deus, enquanto um deserto que viceja e floresce.

 

Estávamos na sua relação com as palavras.

As respostas são a nossa vida. Na nossa vida, não raro, é importante dizer. E ao dizer a vida, dizemos com palavras. As palavras podem ser o lugar de comunhão e o diálogo pode ser a busca de uma tendencial comunhão. O importante que era que as palavras pudessem ser também possibilitantes de vida, como a palavra é criadora de vida...

 

No fundo, a palavra ser um canal? Ser raiz e canal?

Ser lugar onde a vida possa crescer. Crescer por causa da relação: palavra que se ouve, palavra que se dirige.

 

E a relação com a sua mãe e com as palavras? É marcante ter uma mãe que ensina Português e Latim?

Indiscutivelmente. A minha mãe vai fazer 80 anos e está óptima. No que diz respeito às palavras e a muitas outras coisas, é muito significativa.

 

A sua definição de paz é eloquente, revela-o. Como ilustraria a palavra Mãe?

Pois. Quando dizemos Mãe, damos de barato que os outros percebem o que estamos a dizer... E às vezes não é verdade, tem razão. Tenho dificuldade, não sei dizer-lhe. Tenho um doente, acha que podemos interromper isto?

 

Claro.

Então, diria... Aquela ideia do porto de abrigo, da segurança?

 

De velar o seu sono?

E agora também, de cuidado com ela.

 

De velar o sono dela?

Pois.

 

A visão de uma criança a dormir pode ser das mais eloquentes do que é a paz.

Ao colo da mãe, já agora. É também um salmo, o 130.

 

Sabe os salmos todos de cor?

Não, mas sei alguns. Esses que sei de cor, rezo sem estar a ler.

 

Reza como? Reza durante o dia ao passo que estes lhe vão ocorrendo? Essa rememoração já é um rezar?

Por exemplo. O salmo 130 diz assim: «Senhor, não se eleva soberbo o meu coração, nem se levantam altivos os meus olhos, não ambiciono riquezas nem coisas superiores a mim, antes fico sossegado e tranquilo como criança ao colo da mãe». É muito bonito... O sono de uma criança e a imagem de paz; a criança evoca todos os nossos sentimentos de protecção e de cuidado. Para ela dormir em paz, o que a gente não fará? Como na história do fotógrafo, o ir à praia com a filha.

 

E o sentimento de morte?

A contribuição de Jesus e do Evangelho inunda a minha perspectiva sobre a morte. Não quer dizer que eu não tenha medo de morrer... Acredito que em Jesus a morte não é a última palavra sobre a vida. É a vida que é a última palavra. O estar presente, o estar ao lado de quem morre, o dizer «Não tenhas medo, gostamos de ti», comporta uma relação de amor que a morte não mata. Nesse amor há uma vida que vai para além daquele limite. Acompanho muita gente que vê os seus familiares e amigos irem-se embora. A morte tem a ver com essa vida que passa para uma visibilidade que não é a nossa. Evangelho quer dizer boa notícia. Se há coisa em que a boa notícia de Jesus é claramente proposta, é esta: a morte não tem a última palavra.

 

Significa franquear uma porta?

Seja como for, vivemos sob o signo da salvação. Isto acabará bem.

 

Salvação foi também uma das palavras que usou no princípio da nossa conversa.

Ah sim? É uma boa palavra.

 

Para Paz?

Sim.

 

É nesse sentido que se pode entender a morte como expressão de «Paz eterna»?

O finalmente em paz? Mas visto do lado de cá, é uma paz com pouca graça. Se acreditarmos no lado de lá da mesma vida – não estou a dizer outra vida, não são duas vidas – , então poderá ser «Entra na alegria do teu Senhor». No sentido de o mergulhar na vida de Deus, (a comunhão na qual Ele quer aqueles que criou), ser a paz plena. O caminho que fazemos é o caminho até esse mergulhar. S.Tomás de Aquino tem uma versão sobre o acreditar: «Credere Deo, credere Deum, credere in Deum». As duas primeiras são crer em Deus e crer no que Deus diz. Esta última é viver a comunhão com Deus que nos faz mergulhar Nele.

 

 

Publicada originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003

 

 

Teresa Villaverde

07.12.19

Teresa Villaverde nasceu em Lisboa. É cineasta. Na sua definição, um cineasta é uma pessoa que sonha com filmes de manhã à noite e que vai fazer esses filmes. No seu caso, sabia que ia fazer esses filmes. Como sabia que ia ser realizadora mesmo antes de ter realizado o que quer que fosse. Não podia ser de outra maneira. Talvez a sua vida não pudesse ser outra.

Dentro de semanas, poucas, estreia o seu novo filme, «Água e Sal». Em dez anos, é o quarto. «Idade Maior», «Três Irmãos» e «Os Mutantes», os anteriores, foram imensamente aplaudidos. Têm certa portugalidade, certa raiva. São belos. «Água e Sal» foi filmado no Verão de 2000 em Cabanas, no Algarve. Esteve no último Festival de Veneza. Tem sido falado à conta de questões pessoais que envolvem a realizadora, o pai da sua filha e a sua filha. Que entra no filme. Como entra Chico Buarque. Como entra Maria de Medeiros, de quem muito se fala ao longo da entrevista.

 

Há uma música do Chico Buarque, «O que será, que será?» (que andam sussurrando pelas alcovas, que andam suspirando em versos e trovas...), que faz parte da banda sonora do seu novo filme. A que elemento fundamental, que não chega a ser decifrado, pensa que o autor se refere?

O Chico Buarque tem duas canções «O que será, que será?». Tem uma «O que será, que será? (À Flor da Terra)», e outra «O que será, que será? (À Flor da Pele)». Esta, que é a que está no filme, penso que fala da Paixão. A outra fala da possibilidade de um mundo ideal.

 

Qual seria o motor desse mundo?

Agora assim de repente... Talvez uma Liberdade Absoluta. O Chico escreveu-a na altura da ditadura no Brasil. Há um fundamento político que continua a estar lá.

 

Pensei que pudesse ser o Amor, que, estando fundido no conceito mais puro e abrangente de Liberdade, é bastante diferente de Paixão.

No mais político, pode e deve estar incluído o Amor. O «O que será, que será?» que está no filme é o de um momento absoluto, que toma conta de nós dos pés à cabeça, que não sabemos dominar nem acalmar nem coisa nenhuma. É quase um grito.

 

Quando é que nasceu esta paixão pelo Chico Buarque? Dedicou-lhe inclusive um dos seus filmes, «Três Irmãos». Justificou dizendo que, quando queria saber até onde tinha mudado, ou o que a vida tinha feito de si, punha um disco antigo do Chico para saber se o ouvia e sentia da mesma maneira.

Já não faço isso, já não vale a pena. Quero sempre dizer exactamente que idade tinha, e nunca sei. Em 80 e talvez cinco, o Chico Buarque veio à Festa do Avante. Uma coisa enorme, 200 mil pessoas, tudo para ver o Chico. Fui ver naquela fase de grande confusão da adolescência, quando andamos aflitos com tudo, não sabemos nada do que somos e do que vamos fazer da vida. Estava bastante perto do palco, ao meu lado estavam umas pessoas desconhecidas, uns velhinhos, que tinham binóculos. E, não sei que me deu, não é nada o meu género, ainda por cima com velhinhos... quando o Chico entra no palco, sem pedir licença, tirei os binóculos aos velhinhos! Vi-o entrar, com a guitarra na mão, sentar-se no banquinho e começar a cantar em grandíssimo plano. Não sei explicar porquê, tenho a recordação dessa imagem a preto e branco. O que não tem razão de ser. Portanto, não via través dos meus olhos, via através de uma lente. Fiz na minha cabeça, logo ali, um mini-filme. E lembro-me bem da expressão dele.

 

Que era?

O que senti na cara dele foi espanto e incompreensão do momento, «O que é isto?». Depois, devolvi os binóculos. O que é certo é que, a partir desse momento, senti que todas as minhas angústias cósmicas da adolescência, a minha fúria contra isto e contra aquilo, tinham acabado. «Ah, é tudo muito simples, eu não tenho problema nenhum, o meu problema é que pertenço à família das pessoas que fazem estas caras e que são assim».

 

Tranquilizou-se?

Quis ser realizadora de cinema muito cedo, mesmo. É estranho de se dizer porque no fundo é uma inconsciência..., mas nunca por nunca tive aquela angústia, aquele medo: «Ah, quero ser cineasta, mas se calhar não vou conseguir, não me vão deixar». Nunca me passou pela cabeça! Eu era. Eu já era. Ainda que não tivesse feito nada. No meu meio, tínhamos 14, 15 anos, os meus amigos começaram a fazer filmes antes de mim. O meu irmão, que agora é historiador de arte, fez um em super 8 com uma equipa que depois se transformou no que seria uma equipa de luxo.

 

Quem compunha o grupo?

Todas as pessoas que se revelaram as melhores nas suas áreas. Uma só actriz, e era a Maria de Medeiros. A própria Maria fez filmes enquanto realizadora antes de mim. Mas o engraçado é que nesse círculo, eu é que era a realizadora. Dito assim, pode parecer uma coisa pretensiosa. Mas não.

 

Onde radica a ideia de ser realizadora? Sobretudo as meninas, quando sentem fascínio pelo cinema, querem ser actrizes.

Não foi por ter visto o Chico que me quis tornar realizadora. A ideia é anterior. Mas a calma que adquiri em relação a isso é desse momento. Tinha uma coisa íntima, que dizia a mim própria, na maior das calmas. «Quero ser realizadora, se não conseguir fazer um filme até aos 25 anos, atiro-me ao rio»! Estava tudo resolvido.

 

Parecia uma boutade da adolescência para impressionar os amigos.

Eu nem dizia. Era o que sentia. «Não vou sofrer com isto, porque ou faço ou morro». Tinha 15 anos. Não foi preciso atirar-me ao rio porque aos 24 fiz o filme. Assim dito, parece uma loucura. Mas era uma loucura muito saudável. Não criava a ansiedade do consegue, não consegue, e os outros e os concursos. Eu não percebia nada de nada. Não fiz a escola de cinema. Antes do meu primeiro filme, tinha conhecido pessoas do meio; através da Maria, conheci o João César Monteiro, que depois me chamou para ser actriz num filme dele.

 

Devagar, devagar. Como apareceu o cinema no vosso grupo de amigos?

Passávamos a vida no cinema. Eu, a Maria, um grupo de pessoas que ficaram também ligadas às Belas Artes. Estávamos sempre na Cinemateca, nos ciclos da Gulbenkian.

 

Papavam tudo?

Tudo, tudo, tudo. Aprendemos imenso, e foi muito importante.

 

Faziam-no autonomamente? Quer os seus pais, quer os da Maria pertenciam a uma esquerda intelectual.

É evidente que a educação que tivemos nos canalizou mais para aquilo que para outras coisas. Mas íamos, e não tinha nada a ver com os pais. Era um grupo grande. Naquela altura, conhecíamos umas pessoas, e logo nesse dia já dormia tudo em casa uns dos outros.

 

Era o ambiente do Portugal pós-revolucionário, não era?

Completamente. A nossa casa não era particularmente grande nem nada, mas ia-se buscar os colchões que havia, as almofadas dos sofás da sala, e era assim um chão só de colchões, dormia tudo lá! Os amigos que se fazem nessa altura, quando as coisas são mais intensas, são os que ficam para a vida toda. E se calhar, também por isso, nenhum de nós duvidava do outro. Se um queria ser uma coisa qualquer, todos achávamos que claro que ia ser. Não havia as complicações do mundo exterior a duvidar das nossas capacidades. Estávamos sempre todos, com muita energia e muita vontade de fazer coisas. Sem saber, estávamos a dar um apoio enorme que ia servir para sempre. Foram mais os amigos que a família. Os nossos pais não tinham uma acção tão directa, não se preocupavam, confiavam que estávamos bem.

 

É uma grande diferença em relação ao Portugal de agora. Os pais vivem com uma enorme ansiedade o futuro profissional dos filhos. Como é que os seus pais intervinham nessa ideia do que seria o seu futuro? Há 15 anos a possibilidade de ser realizadora era mais longínqua.

Há um pormenor: somos filhos da geração que lutou pelo 25 de Abril. A palavra Carreira ou Dinheiro, não se dizia, nem se pensava. A ideia de que era preciso tirar um curso, assegurar o futuro... Não, não. Cada pessoa tinha de escolher o trabalho de que gostava. No meu caso, os meus pais exageraram um bocadinho na parte de o dinheiro não interessar nada. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. O dinheiro não interessa nada, mas convém ter algum, senão estamos tramados. Trabalhar para ganhar dinheiro? Que horror!, era pior que cuspir na sopa e bater na avó! Era também uma inconsciência dos próprios pais, levados pela alegria e euforia da Revolução. No meu primeiro filme não ganhei rigorosamente nada. Tinha um contrato que era de morrer a rir, não recebi e quase tinha vergonha de reivindicar receber. Estava a fazer exactamente o que queria, ainda me iam pagar por cima? Com a idade, fui percebendo que se não me pagassem, não tinha a liberdade de poder criar — tinha de gastar o meu tempo a ganhar dinheiro noutra coisa para poder viver.

 

Tinham mesada?

Alguns dos meus amigos tinham. Na nossa casa eram contra. Não tinham muito dinheiro, davam-nos o que podiam. Se havia, havia, se não havia, paciência. Mas não havia a coisa fixa da mesada, do aprender a gerir o dinheiro.

 

O que é que significava para si ser realizadora?

Era a pessoa que sonhava de manhã à noite com filmes e que ia fazer esses filmes. Quando fiz o meu primeiro filme, que por acaso no outro dia revi... Nunca revejo os meus filmes, mas deu na televisão, e pensei «Deixa-me cá ver». Gostei bastante.

 

Diz isso como se fosse um objecto que lhe é exterior.

Já é. Comecei a filmá-lo, lembro-me perfeitamente, no dia 2 de Janeiro de 90. Os filmes, gosto de ver uma vez com público e depois nunca mais voltar a ver. Mas passados muitos anos já se pode ver outra vez. Há coisas de que já não me lembro e vejo como se fosse um espectador normal. Quando fiz esse filme, não sabia nada de nada de como se faz um filme. Bem, que inconsciência terem-me dado dinheiro para fazer o filme... 

 

Experiência zero?

Tinha trabalhado um pouco com outros realizadores na escrita de argumentos. Trabalhei também como assistente de montagem; foi óptimo, vi como as coisas se faziam, e sobretudo como não se faziam. Eu tentava arranjar trabalho em filmagens e nunca me davam. Conservatório, não tinha. O que é que sabe fazer?, concretamente nada, mas o que mandarem fazer, faço. Tinha conhecido pessoas do meio (por ter sido actriz no filme do João César Monteiro), sabia que havia tal filmagem e ia para lá espiar.

 

Penetra?

Muito triste por não poder fazer nada. Ficava a ver. O que, num certo sentido, foi talvez melhor. Como não estava ocupada com uma coisa concreta, observava o realizador. Vi praticamente a filmagem toda d’ «O Desejado» do Paulo Rocha; o Paulo nem sonhava, e há uns anos disse-lhe, «Ah estava lá?, não sabia, e tal». Aprendi imensíssimo. E também aprendi muitíssimo quando assisti a uma rodagem do Samuel Fuller; acabou por não sair um grande filme, mas era um enorme realizador. Privilégio extraordinário!, era muito melhor estar a espeitar o Samuel Fuller do que estar numa escola de cinema sentada numa carteira. Acho eu.

 

Era essa a experiência que tinha quando realiza o seu primeiro filme?

O argumento era meu, era uma grande ajuda. Quando se escreve, já se está a ver o que se quer ver. Pensava sobretudo no ecrã. Parece uma coisa banal, mas não é. Porque as pessoas que trabalham muito antes de realizar o seu próprio filme, já têm um olhar muito sujo e muito confuso. O primeiro filme foi feito sem meios rigorosamente nenhuns. Meios, meios, ninguém tinha. Não sabia que com o material que tinha não podia fazer o que tinha imaginado. Como não sabia, pedia na mesma, e conseguia-se. Lembro-me de trabalhar com um maquinista genial, que é hoje uma pessoa de certa idade, o Vasco Sequeira, que foi um grande mestre; só me dizia assim, «Ó Teresa, na sétima arte não há impossíveis». E inventávamos gruas!, quase com canas e paus e pregos. Se tivesse noção, não teria ousado pedir.

 

Há pouco dizia que a ideia de ser realizadora é anterior ao fotograma do Chico Buarque na Festa do Avante. Consegue identificar o primeiro vínculo com o cinema, com a mesma nitidez e determinação que o outro teve?

Eu vi..., vi, não, tentei ver, várias vezes, muito pequena, o Peter Pan. Impressionava-me tanto que nunca consegui ver até ao fim. Agora sei bem o Peter Pan, a minha filha também gosta muito. Quando chegava a parte em que estão na terra do Peter Pan, e querem voltar para casa, e querem a mãe, doía-me a barriga, tararara, e tinha que sair. Foi o meu primeiro choque com o cinema. [pausa] O que vou dizer, é uma heresia, qualquer realizador que me ouça... Mas, ao nível dos ambientes, quase se encontram semelhanças entre este e o «Ivan, o Terrível», que vi numas sessões no Ar.Co, um ecrã minúsculo e tudo a cair aos bocados. Mas antes disso, vi o filme na televisão, logo a seguir ao 25 de Abril. Era um bocado a mesma coisa, as mesmas figuras. Uma tia muito má que por lá anda, as sombras nas paredes, as vozes, a coroa e as jóias. Em termos visuais, o impacto era a continuação do Peter Pan. E eu, que se não vejo um filme três ou quatro vezes, esqueço-me de tudo, curiosamente quando vi no Ar.Co, com 15 anos, verifiquei que me lembrava das imagens praticamente todas. Impressionaram-me também os filmes do Expressionismo Alemão, o Murnau.

 

Na sua família há uma tradição anti-fascista. Ter falado do «Ivan, o Terrível», e coincidentemente o Chico aparece numa festa como a do Avante, fez-me pensar que há uma politização do universo do cinema e uma preocupação com uma dimensão social.

Entendo. Não tenho isso muito organizado na minha cabeça, não sei o que é que contribui para o quê. Mas as coisas com que acabei por me preocupar...

 

O seu cinema está cheio dessas referências.

E crianças, nos meus filmes há sempre crianças. Também me lembro de ter lido os «Capitães de Areia» muito nova e de aquilo me ter marcado imenso. O personagem principal, Pedro Bala... É engraçado, não sentia «Os meninos de rua, coitados». O meu sonho em toda a adolescência era encontrar um Pedro Bala no meio da rua. Era uma admiração e fascínio profundo por esses rapazes e raparigas.

 

O seu filme «Os Mutantes» tem como protagonistas jovens de institutos de reinserção social. Dizia que, ainda que o filme seja muito cru e doloroso, exprime um grande amor por aquelas pessoas que não ficam amargas, e que falam das coisas terríveis que lhes acontecem como se fossem contingências da vida.

Exactamente. Na escola primária, que era privada mas muito de Esquerda, fomos visitar a Casa do Gaiato. Deve ter sido no fervor da Revolução, teria sete, oito anos. Devem-nos ter explicado porque é que aqueles meninos estavam ali, mas é difícil a uma criança entender. Meninos sem família... Do que me lembro é de ver uma horta onde cultivavam coisas que depois eles mesmos cozinhavam, e de ver os rapazes, que não nos ligavam nenhuma, alourados e bronzeadíssimos fora da altura de estar bronzeado.

 

Curtidos pelo sol

Pois. E do alto dos meus oito anos, pensei que aqueles eram os meus heróis. Depois, nunca mais me lembrei disto, nem quando fui lá na preparação d’ «Os Mutantes».

 

É singular a sua relação com a memória.

Houve uma altura que me perguntava se era normal esquecer-me das coisas – vejo um filme que adoro e se quero contar passados dois dias, já não me lembro de nada. Mas, à medida que falo com outras pessoas que se ocupam de um trabalho mais criativo, percebo que funcionam da mesma maneira. Provavelmente, se tivéssemos a cabeça muito organizada, de memórias e de tudo, não saía daqui nada. A falta da memória organizada de um tempo, por exemplo, da infância, cria-nos uma espécie de vazio que vamos sendo obrigados a preencher. A Paula Rego, todo o seu trabalho remete para a infância.

 

Estávamos na ligação à política e ao social que perpassa o seu cinema e a sua vida. É verdade, ainda na infância, que no dia da Revolução queria ir para a rua dar bolachas aos soldados?

Queria. Mas como tinha sete anos (fiz logo oito em Maio), não me deixaram.

 

Não foi comemorar com os seus pais para a rua?

Não, os pais estavam lá metidos, e não se podia levar as crianças. Mas acho que deviam ter deixado.

 

Quando começou a ter uma consciência política?

Desde muito pequena. Sabia que havia a ditadura, que as pessoas iam presas. O meu pai também esteve preso. Uns meses, foi torturado, essas coisas. Mas nunca nos falou disso.

 

Visitaram-no?

Não. Não me lembro desse tempo em que o meu pai esteve preso. Mas até ao 25 de Abril, amigos íntimos da família iam presos.

 

Era aquele ambiente de tertúlia, a discutirem política nas casas uns dos outros, e os miúdos a ouvirem?

Era. E continuou depois do 25 de Abril. Uma vez descobrimos no fundo de uma gaveta emblemas oficiais (não sei se se pode chamar assim) do Partido Comunista. Então, eu, o meu irmão e um primo, pusemos os emblemas, cada um o seu. Entretanto os meus pais chegaram a casa, tiraram-nos logo os emblemas; depois dissemos, «O primo também tem e foi a uma festa de anos». Pânico geral! Onde é que era a festa, quem é que era, como é que se recuperava o emblema. Se soubéssemos o que era, não tínhamos posto. Já sabíamos que havia coisas que não podíamos dizer ou fazer. Pouco tempo antes do 25 de Abril, havia a suspeita de que talvez a Pide fosse a nossa casa. Houve um dia em que o meu pai não estava e a minha mãe teve de sair com a nossa irmã mais nova; disse para não abrirmos a porta a ninguém, explicou esta iminência de ser a polícia, com um carro assim e assado. E de facto, tocaram à campainha. Escondemo-nos numa mesa que tinha toalha até aos pés. Depois pensámos que tínhamos de esconder alguns livros; mas quais? «Se arrombarem a porta e entrarem, temos que dar nomes falsos aos nossos pais». A nossa grande preocupação era se alguém tinha o mesmo nome (que o falso que tínhamos dado) e ia preso por nossa culpa. Entretanto, quem quer que fosse, foi-se embora.

 

Tinham orgulho no facto de os pais se empenharem politicamente e serem anti-fascistas?

Tínhamos, sim. No momento na escola em que se diz a profissão dos pais, tínhamos imenso orgulho em dizer que o pai, que já morreu, era jornalista – não havia assim jornalistas aos magotes. E tínhamos uma tristeza, quase vergonha, no caso da mãe, de não dizer a verdade. A mãe trabalhava no Partido Comunista, e acharam que era melhor ocultá-lo, para não haver problemas com nenhum professor. Dizíamos que era empregada de escritório.

 

Chegou a estar filiada no PC?

Sim. Depois de voltar da Checoslováquia, inscrevi-me no Partido Comunista. Porque não queria nem por nada que o PC se transformasse no partido dos países comunistas que tinha conhecido. Mas talvez não fosse uma razão muito verdadeira. Hoje penso que foi por me sentir culpabilizada: tinham-me dado uma bolsa e vim embora.

 

Era um curso interminável, de oito anos, não era?

Uma coisa terrível. A escola era a Famu, onde esteve o Kusturica, numa cidade pequena, perto de Praga; ainda hoje é muito boa, têm imensos meios.

 

Imaginava a Checoslováquia um paraíso comunista?

Uma espécie de paraíso comunista. Ideia que também não me agradava nada. Paraíso?, estranhíssimo. A primeira vez em que tive contacto com o racismo, foi lá. Dava-me sobretudo com palestinianos. Chegou a acontecer estar num café à espera de um amigo e ser-lhe barrada a entrada. Não era a atitude oficial, obviamente, mas era a atitude das pessoas.

 

Quantos meses chegou a estar?

Praticamente um ano lectivo. O primeiro ano era para aprender a língua, não havia nenhum contacto com o cinema. Dois meses depois de chegar fizeram-me um «Exame de Talento». Uma sala descomunal, dez vezes isto, com uma mesa enorme, 30 professores sentados e uma cadeira para mim. Falavam-me checo!, e eu, patavina. A conclusão a que chegaram foi que não tinha talento nenhum; em vez de entrar para o primeiro ano da escola, devia fazer dois anos preparatórios. Quer dizer, nunca mais de lá saía. Por fim, estive meses e meses à espera do visto de saída.

 

Regressa com 20 anos. O primeiro filme é rodado aos 24?

Não sei bem. Sei que tive subsídio com 22.

 

Continuava a viver em casa dos pais, sustentada por eles?

Não. Arranjei uns trabalhinhos aqui e acolá. E fui viver com uma pessoa que tinha conhecido no filme do João César. Ainda hoje trabalha comigo no som. Nessa altura senti, não angústia, mas tristeza de não me darem trabalho.

 

Como é que nunca se sentiu insegura?

Era inconsciência. Como tinha imposto a meta dos 25 anos... Se não tivesse conseguido, ia ser uma desgraça. Mas, quando estou a trabalhar, não estou 100% segura do que estou a fazer. Tenho imensas dúvidas, tenho sempre fases em que acho que é péssimo. A razão porque depois não os quero ver mais, é se calhar essa. Não é esquecer o que está mal; é ver e ficar horrorizada. Mas a insegurança nunca me fez não agir. 

 

Ao longo de todos estes anos há duas constante, o Chico Buarque e a Maria de Medeiros. Que têm participações especiais neste filme.

Ter o Chico neste filme é uma coisa..., eu acho..., hum..., é absolutamente extraordinário. Para usar uma expressão normal, ter o Chico no filme é como ganhar 350 Óscares no mesmo dia. Foi muito estranho e lindo. Não sou amiga pessoal do Chico, conheci-o no aeroporto de Faro quando o fui buscar. E veio sem cachet.

 

A sério? Contaram-me que tinha ido ao Brasil convencê-lo.

Não, não. Quando o fui buscar ao aeroporto, nem sabia bem se ele vinha ou não. No Brasil chamam-lhe «O Príncipe». E com os príncipes não se mexe, quer ir vai, não quer ir não vai. Diz que quer e depois não vai?, paciência, é assim. Lá acabou por dizer que vinha; mas eu sabia lá se vinha ou não?

 

Como é que se lembrou dele para o papel?

Como me lembrei do Chico? O difícil é não me lembrar do Chico.

 

No filme, a personagem da Maria de Medeiros, referindo-se à vinda do Chico, diz: «Vives apaixonada por este homem a vida toda». Como é que foi o processo?

Primeiro mandei-lhe um argumento. Conseguir que o argumento chegasse até ele... O Chico está hiper-protegido, para não ser incomodado, para poder ter a sua vida. (Acho muito bem.) Leu, e, pelo que me disseram — porque nunca falei com o Chico —, gostou muito. Mas disse que não, que não podia. Estava quase a começar a filmar quando recebi uma mensagem da pessoa intermediária que me dava a entender que devia insistir, «Chateie, chateie». E pronto, disseram-me: «O Chico vem». Até que o Chico me deixou uma mensagem no telemóvel, muito preocupado, sem saber se sabia fazer aquilo ou não. Ajudou a convencê-lo a promessa de que não diríamos a ninguém que vinha. Chegava, ia-se embora e ninguém o chateava. Eu dizia-lhe: «Filma só uma noite». Ele dizia: «Tem de ser duas, porque se fizer tudo mal na primeira, quero poder repetir na segunda».

 

Melhor.

Melhor. O que é lindo nisto tudo, é achar honestamente que o meu trabalho é mais influenciado pelo Chico que pela obra de qualquer cineasta. E, de repente, é como se ele tivesse também reconhecido qualquer coisa... No filme, aparece e desaparece. Na minha vida, também foi assim.  

 

Gostava de fazer-lhe uma pergunta íntima. O que sente pelo Chico Buarque? É uma paixão idólatra?

Não sei. Este disco de onde tirei o tema que está no filme, é um disco do Osvaldo Montenegro todo dedicado ao Chico. Diz a dada altura: «O meu sentimento por Chico Buarque de Hollanda é de profunda reverência». Para mim, é um bocado a mesma coisa.

 

O Chico é a corporização do Homem?

É um príncipe mesmo.

 

Ele viveu em Roma, como a Teresa. Durante a ditadura, o pai dele levou a família e exilaram-se em Roma.

Ele mesmo, mais tarde, também se exilou em Roma.

 

Como é que foi parar a Roma?

Por nenhuma razão especial. Vivi com um homem que era americano, não queria ir para a América, ele não queria vir para aqui, e os dois gostávamos de Roma.

 

Foi assim, tipo ponto intermédio?

Fomos para lá assim. Desde 94 que ando a saltar. Vivi em Londres, em Paris, um bocado em todo o lado. Um ano e meio em cada sítio.

 

Esses sítios retinham-na pelo trabalho ou pelo amor?

Nem uma coisa nem outra. Nem um nem outro precisávamos de estar naqueles sítios – embora Paris tenha sido por trabalho, foi lá que fiz toda a pós-produção d’ «Os Mutantes». Os outros países, foi porque sim. «Água e Sal» escrevi em Roma, «Os Mutantes» fiz investigação cá, mas escrevi em Londres. É um trabalho que nos deixa ir para aqui e para acolá. Neste momento é diferente. Até a minha filha ter três anos podia andar de um lado para o outro, depois era preciso escolher um ponto. 

 

«Água e Sal» é dedicado à sua filha; qualquer coisa como «Que um dia há-de compreender que é a coisa mais importante».

«Que um dia há-de perceber as coisas que se podem perceber». Tem mais que ver com um ano de cataclismo que temos vivido ao nível pessoal.

 

Sei que não quer falar disso. Mas tenho de perguntar-lhe se este filme é uma relativa colagem ao que tem sido a sua vida?

Fazerem essa colagem, acho, honestamente, uma coisa incompreensível. Não se trata de ficar contra pessoas que escreveram determinadas coisas, é não compreender. Aliás, perguntaram-me sempre se os meus filmes eram autobiográficos. É evidente que é muito mais fácil [associar] uma mulher que trabalha com imagens que uma rapariga que vive num instituto de reinserção social.

 

As partes que eu poderia justapor a si da personagem da Ana Moreira, protagonista d’ «Os Mutantes», são a revolta interior permanente. A inadaptação.

Que, no fundo, está em todos os filmes. Neste também. É sempre o problema de a comunicação entre as pessoas não bastar, não ser completa – vem nos meus filmes todos. Neste, é uma pessoa mais ou menos da minha idade, que faz um trabalho parecido...

 

Na cena em que ela dança com outra menina, também me pareceu que tinham traços comuns. Não é uma coisa ostensiva, mas em todos os seus filmes, os personagens têm caras comuns, pertencem a uma família comum.

Talvez, talvez. Estive há uns tempos no Brasil a apresentar o «Água e Sal», e no debate que se seguiu um espectador disse que o Alex deste filme é sempre o mesmo e que já vinha do primeiro filme. Sei lá se é verdade. Se calhar até é, é sempre uma continuação das coisas. A gente pensa que muda, que vai falar de uma coisa completamente diferente, mas somos sempre a mesma pessoa.

 

Disse que este filme é sobre alguém que precisou que o tempo parasse.

É uma boa definição. Aquela mulher queria que o tempo parasse para que pudesse respirar e inventar outro tempo, outra coisa onde se sentisse melhor. Em relação a mim, são coisas distintas. Se fiz este filme foi porque precisei de o fazer. Mas está feito, acabou, agora é outra coisa.

 

Talvez falemos de uma coisa que vem do princípio da conversa, de Liberdade. No seu cinema há imensas referências temporais e à sensação de liberdade. No «Água e Sal», por exemplo, quando ela nada contra a maré. N’ «Os Mutantes», nas imagens sobre os carris. Comboios e carris que estão também nos «Três Irmãos». Há sempre o Tempo, e a Liberdade, que perpassa o tempo e o anula.

Um realizador alemão, comercial, que conheci agora, viu o filme e gostou muito. Disse-me que tinha visto o filme como um documentário sobre o fim dos sonhos. Espero que não seja isso. Mas cada pessoa diz a sua coisa. Talvez seja um filme que faz as pessoas interrogarem-se sobre o seu próprio tempo, sobre o que andam a fazer da sua vida e do seu tempo. Ou se precisam também que o tempo pare, de mudar de rumo. Que são opções complicadas, mas que valem a pena. Só vivemos uma vez e temos de viver o melhor possível, não é?

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 2002