José Manuel Pereira de Almeida
Acordámos encontrar-nos de manhã cedo. O táxi deixa-me à porta do pavilhão da citologia pelas oito e meia. É a primeira vez que entro no IPO. Noto a traça comum ao Hospital de Santa Maria e ao S. João, embora estes tenham uma imponência que aquele não tem. Há qualquer coisa que se entranha e que percebo ser o cheiro. Um cheiro talvez a morte. A morte tem uma espessura, um insinuar-se próprio. «A morte tem a ver com essa vida que passa para uma visibilidade que não é a nossa. Evangelho quer dizer boa notícia. Se há coisa em que a boa notícia de Jesus é claramente proposta, é esta: a morte não tem a última palavra». Isto é o que ele diz, para o fim da conversa. Eu perguntara-lhe da relação entre a expressão Paz Eterna e a ideia de Morte.
Saberemos o que é a morte? Saberemos o que é a paz? Que sabemos nós das coisas que verdadeiramente importam?
José Manuel Pereira de Almeida é o padre da mítica Capela do Rato, célula de liberdade nos tempos da ditadura. É também o médico especializado em anatomia patológica, que observa o interior dos interiores, que faz diagnósticos que se revelam chaves. É médico desde os 23, padre desde os 33. Fez 50 anos.
Esta é a sua palavra.
Qual é a sua definição de paz?
A paz é uma solicitude pela vida do outro que nos torna incansáveis na construção da fraternidade. É uma ideia dinâmica de cuidado com o outro.
O cuidado será o elemento fulcral desta dinâmica?
Se calhar, o outro é mais fulcral do que o cuidado. Quer dizer, a atenção está centrada no outro. O que faz fulcro neste movimento é a atracção.
O que é que motiva a atracção? Santo Agostinho escreve nas «Confissões»: «O meu amor é o meu peso, onde eu for, ele me levará».
Sim.
Qual é o operador deste sair de nós e que implica o cuidado com o outro?
O amor como força, é absoluto. Que pode revestir a busca da felicidade, um motivo de alegria, uma ocasião de segurança. Esse amor que se exprime, pode ser multifacetado. Pode dar um nome à esperança. Pode dar um nome ao que se procura.
Em que é que pensa quando se refere a segurança? É fácil estabelecer uma relação entre a sensação de apaziguamento e a sensação de segurança. Como uma baía onde estamos ancorados.
E onde estamos em paz. O seu colega fotógrafo [Alberto Picco] disse o seguinte: «Para mim, um pai poder ir à praia com a sua filha num domingo, tem a ver com a Paz». Quando apelei à ideia de segurança era também isso: alguém fazer o que gostaria com alguém que lhe é caro, numa situação de serenidade e de confiança, que a insegurança mina.
Porque traz inquietação.
E suspeita. Saber o que está atrás, quem é que está a ver, se se volta.
Há sempre a incógnita a pairar sobre nós.
O que é que vamos encontrar?
O contraste é usado como medida. Se não conhecermos situações antagónicas, não podemos realmente avaliar o peso de cada um dos termos.
Como é possível aos pimpolhos que crescem em ambiente de guerra e violência sonharem a paz? Se é possível... E afirma-se isto e chama-se a atenção para o momento, um momento, em que alguém nos pôde ter pegado ao colo e envolvido em ternura. A paz evoca esse momento como possibilidade de ser mais conjunto.
A paz enquanto coisa vivida?
Enquanto coisa vivida. Podemos avançar para o desconhecido vivendo um sentimento de paz. De confiança. Evocando o salmo 22, «O Senhor é meu pastor, nada me pode faltar». Confiando, posso ir «por vales tenebrosos que não me acontece nenhum mal», (voltando ao salmo). Mesmo que esteja envolto em escuro, em trevas, isto há-de correr bem. Não gostaria com isto de dizer que a paz é um “estado de espírito”, treutreutreu... A minha primeira achega era no sentido da construção objectiva de lugares onde essa experiência possa ser realizada; mas depois ela tem também um termo de interioridade que se revela nesta construção, neste empenhamento concreto, e que, ao mesmo tempo, não se esgota aí.
«A paz é um estado de espírito», é um chavão recorrente.
É logo de uma pessoa ficar arrepiada... Porque é para justificar todas as situações de desinteresse, de indiferença. Como é um estado de espírito, e o espírito é mais ou menos gasoso...
É uma medusa.
Medusa está bem. A paz implica um empenhamento, ou seja, um reduzir a zero a indiferença.
A paz, como a entende, é inseparável de uma dimensão vivencial?
Perfeitamente. Construída, com vários materias. Assente, como em toda a segunda metade do século XX se foi dizendo, no alicerce da justiça.
Porque é que a justiça é um elemento tão preponderante?
Porque sem justiça qualquer “paz” pode ser uma situação convencional, apenas suportada pela conveniência das circunstâncias.
Como é que o outro existe na sua vida enquanto padre e enquanto médico?
Primeiro que tudo, o outro existe independentemente de mim, quer como padre, quer como médico, enquanto esse outro que se me apresenta. No geral, o outro que se apresenta diante do médico é alguém que está doente. Estar doente é um nome de ser pobre, ser frágil; e por isso, a solicitude pela vida do outro ganha contornos ainda mais claros. Não quero ter o tom paternalista, mas quero procurar, tanto quanto de mim depende, ajudá-lo. Dar um diagnóstico citológico tão preciso quanto possível e tão rápido quanto possível.
Dá sempre chaves.
Um diagnóstico é uma chave. O diagnóstico citológico é sempre complementar para um juízo clínico. Quem está no centro desta orquestra, nesta equipa que é multidisciplinar, (porque é impossível que ciência e arte médica caibam num mesmo artesão ou artista), é o clínico que cuida do doente. Nele está centrada a relação médico-doente, que creio que subsiste. Saber quem é que é o meu médico é muito importante.
Saber quem é o interlocutor. Saber quem é o meu pastor. Falamos do sentido de protecção, mais uma vez.
Sim, e de confiança. O clínico tenta propor ao doente um caminho que seja de terapêutica, de qualquer terapêutica. Aqui, a terapêutica não é fantástica, não se cura muita coisa... Na medicina curam-se as infecções, desde que há antibióticos. As outras coisas não se curam, propriamente. Acompanham-se. Estou a ser pessimista... Há doenças oncológicas que, de facto, se curam.
E o outro enquanto padre?
É muito variado. Permite-me captar o outro em muitas situações felizes, de sonho, de procura do sentido da sua vida. E também o oposto, nas situações mais dramáticas da existência: na morte de alguém, no sentimento de estar perdido na vida, mesmo em relação à fé. Neste interface [IPO], encontro pessoas que nunca entrariam numa igreja e que conversam comigo enquanto padre. A nossa relação já não é a do padre e fiel, encontro na sacristia. É alguém ao lado de quem estamos. O acompanhar é uma imagem que permite perceber o que é que um padre faz no meio do resto da gente.
Lida com o outro em situações limite. O outro apoquentado com a sua saúde, e portanto com o seu futuro, e o outro que sente a sua alma doente.
E não raro são acumuláveis, coexistem.
A dor da alma pode ser tão violenta como a dor do corpo?
Não sei medir dores, ninguém saberá. Diria que pode ser igual ou maior. O estar perdido pode ser estar perdido de si. Isso deverá ser a coisa mais difícil de suportar.
Desencontrado de si?
Sim. Na vida.
A ideia de paz, ao contrário, é a do encontro.
É.
Fala-se da «Odisseia» como uma viagem, uma procura do caminho para casa. Do consequente apaziguamento e reencontro. Depois de ver Penélope, Ulisses vai ainda a casa do seu pai, a casa da sua infância. Há nisto a ideia de encontro com uma parte de si mais antiga, que experimentou a paz, ainda que nesse momento não a reconhecesse como tal.
Depois há outra história. Um conhecido filósofo, Martin Bubber, chama a atenção para isso. Ao contrário da história de Ulisses, que é a do regresso, há a história de Abraão, que é a do partir. Parte para não voltar. Parte para ir. Parte para encontrar uma terra prometida. E essa terra prometida está para a frente. Não está no voltar.
A paz está no encontrar, então? Está no ir?
Está. O partir já é o primeiro passo para chegar. Mas não é preciso que chegue. Em relação a Moisés, que não entra na terra prometida, o avistar já é alegria: está ali. Há uma ideia de posse que o regresso comporta e uma ideia de despojamento que o partir implica.
Qual é a versão que prefere? A sua primeira definição de paz tinha implícito um cuidado com o outro, um sair de si em direcção ao outro.
Mas não necessariamente um regressar a mim.
A sua versão é mais biblíca e menos homérica?
Eu preferiria, mas não quer dizer que a viva - não sei se sou capaz, não sei se isso é real nos gestos, nas atitudes. Se quiser ser consciente, há sempre a possibilidade de desejar ganhar alguma coisa com a saída... Um reconhecimento, a gratidão, a alegria que se vê nos olhos e no sorriso dos outros, coisas assim.
Nunca é completamente desinteressado.
E no entanto, é isso que procuro. Quando muito, vou a caminho. A gente nota que afinal ainda está muito aquém, sobretudo quando esse reconhecimento não existe, e se fica desasado, e era a altura de ficar contente. Ficamos desiludidos, entristecidos com o não ter tido esse retorno. Se calhar, é entre estas duas que me situo.
O seu caminho bifurca-se a dada altura. A sua opção pelo sacerdócio é relativamente tardia. Conte-me lá a história da sua vida.
Em banda desenhada? A história da minha vida: Infantil e segunda classe no «Nosso Jardim»; foi uma introdução de que guardo belíssimas memórias. Complementei a primária no S. João de Brito e fiz todo o liceu no Camões. A referência da fé estava presente. Na minha família, na minha mãe, no meu pai. A primeira imagem de Deus que terei, calha bem agora, é a do Menino Jesus.
Porquê?
Porque é o menino à nossa medida. E é importante para a fé cristã perceber o seu centro numa pessoa – Jesus – que, como nós, nasceu e foi criança. Terei passado mais tarde pela ideia de Deus enquanto juiz, que vigia.
Que pode ser severo?
Sim. Mas o olhar de Deus que aparece grandemente na tradição bíblica é o olhar que salva, que perscruta os corações. Há um salmo variante, de Herberto Helder, lindíssimo: «Tu me sondas, Senhor, e me conheces, sabes quando me sento e quando me levanto». Nessa altura a coisa importante foi a experiência no Liceu Camões. Foi ter percebido que a fé não era para viver ao domingo e o resto da vida durante a semana, mas que as coisas estavam intercruzadas e que não havia compartimentos. Essa experiência fazia-se no quadro da acção católica, da JEC. Houve grandes assistentes da JEC, para nomear um diria o padre Alberto Neto, que foi claramente quem me marcou. O crescimento foi indo, mais ou menos sereno e sossegado. Eu gostava de ser médico. Isso surge, não tenho ideia de onde, para aí no quinto ano de liceu [actual nono ano].
Há alguém médico na família? O que faziam os seus pais?
A minha mãe fez Filologia Clássica e era professora no secundário de Português e Latim. O meu pai trabalhava nas Pescas. Na área eclesial, o empenhamento na animação pastoral juvenil decorreu aqui em Lisboa. Depois houve uma dispersão desta geração; cursos, estágios, outras bandas. E sei que nessa diáspora, subsistia a ideia de que era importante continuarmos em rede, a encontrarmo-nos. Essa iniciativa original consubstanciou-se depois num movimento existente ainda hoje, o «Metanoia». Metanoia em grego quer dizer conversão, é uma palavra que S. Paulo usa nos escritos. Mudança de vida, voltar para trás, cambalhota.
Qual era a pedra basilar desse movimento?
O que se procurava era dialogar a partir da vida profissional e familiar com as questões transportadas pela fé. Pedimos ao padre Alberto que apoiasse; já nos tínhamos habituado a vê-lo como o padre que nos acompanhava. Que fazia caminho connosco. É uma boa imagem do ser padre. Lembro-me que o padre Alberto disse: «Isto pode ser uma provocação para vocês. Algum de vocês, era bom que pudesse saltar para este serviço». Se calhar não foi dito assim, tão preto no branco, mas foi bastante claro. E dois de nós, o António e eu, disponibilizámo-nos para pensar na hipótese de vir a ser padre. Escrevemos uma carta aberta.
Qual era o teor da carta?
Uma carta a apresentar o que é que a malta achava. A dizer da nossa disponibilidade e a perguntar o que é que as pessoas achavam. Tinha um prefácio muito simpático do Alberto e um posfácio muito crítico, a achar que a máquina da igreja nos ia cilindrar, do Nuno Silva Miguel e da Teresa Madureira.
Que idade tinha nessa altura?
Então, acabei Medicina com 23 anos, fiz o estágio com 24/25, esta coisa passa-se aos 26, depois do internato geral. As respostas foram bastante simpáticas, entusiasmámo-nos e entrámos no seminário. O António saiu no primeiro semestre, eu saí no fim. Tinha 33 anos.
Até aos 26 anos experienciou um tipo de vida que depois mudou substancialmente. Já homem, passou a viver num seminário.
E sobretudo com outros mais novos... Apesar de haver alguns que também chegaram tarde. Foi um tempo engraçado; não quer dizer que tenha sido simples ou fácil. Mas ajudou a perceber que em muitas circunstâncias não se escolhe com quem é que se vive. Não nos tínhamos escolhido uns aos outros mas estávamos todos dispostos a um projecto.
Quando se decidiu pelo sacerdócio abdicou de uma dimensão mundana, da vivência do amor e da família. São sobretudo estas possibilidades que são obliteradas, todas as outras são ainda experimentáveis.
Seguramente. Diria uma certa vivência do amor.
Que é focalizada numa pessoa.
Uma escolha comporta sempre um número infindo de outras possibilidades que não se realizam. Qualquer escolha. Esta escolha é também a escolha de não escolher outro caminho na minha vida. Se me pergunta «Custou?», claro que não é irreflectido e que não foi de uma forma arrogante que prescindi... Claro que custa. Mas há uma maturação das motivações e das decisões que se vai fazendo na própria decisão de vida.
Só se sabe do que se é capaz quando se é confrontado com isso?
Quando se vive mesmo. Há um risco inerente à decisão.
Herman Melville escreve no clássico «Moby Dick»: «Não admito na minha baleeira nenhum homem que não tenha medo de uma baleia. Querendo dizer com isto, não só que a coragem mais sólida e mais eficaz é aquela que nasce de uma justa estimativa dos perigos a enfrentar, mas também que um homem absolutamente destituído do medo é um camarada mais perigoso que um cobarde».
É isso mesmo.
Só soube pelo tempo fora, e enfrentando a baleia, do que era feito?
Sim. E vamos ver. Convém não armar em tonto. Está a correr. É a vida.
A tradução de paz é comummente a de um estado de quietude, a de chegada a um porto seguro. Na sua versão...
É de mobilização para.
Escolhe-se o caminho pela igreja ou é-se escolhido por esse caminho?
É-se escolhido. O que se escolhe é a possibilidade de acolher esta escolha.
Como se fosse invadido por um sentimento?
Sou pouco místico-gasoso..., voltamos à medusa. Esta história foi assim: era preciso, tens disponibilidade.
Não é uma coisa tão pragmática.
Pois não. Mas justamente porque às vezes se exalta muito uma voz que se ouve, é melhor fugir a essa conversa.
Eu pensava num sentimento que invade, que se impõe sobre todos os outros.
Não poder fazer outra coisa senão essa? Mesmo hoje, podia fazer outra coisa. Mas sinto-me muito feliz a este propósito. Foi sendo uma proposta. Primeiro pensávamos que era impensável e depois, a pouco e pouco, foi-se configurando como a nossa vida.
A influência do padre Alberto foi determinante? Desempenhou um papel fundamental na sua vida e também na de muitos católicos progressistas que acorriam à Capela do Rato.
[Foi determinante] em relação à vida portuguesa, em geral.
Fale-me um pouco do padre Alberto.
Entre 78 e 80 vivi na casa do padre Alberto. Tinha sido uma residência de estudantes com alguma graça, porque era um andar! Nesta altura, a primeira vez em que a casa era de gente mais crescida, já com profissão, éramos seis. O Alberto era obviamente a alma da casa. O que impressiona mais é a liberdade com que vivia a sua vida; e ao mesmo tempo, com a mesma intensidade, tinha um grande amor à igreja enquanto realidade viva de pessoas.
Enquanto rede de aproximação aos outros?
E de referência a Jesus. Era um animador de esperanças. O modo como cantava, o modo como contava anedotas, o modo como se ria, o modo como subvertia as coisas que apareciam muito direitinhas...
Porque é que acha que o Padre Alberto foi fundamental não só para o grupo mas também para a vida portuguesa? É pela ligação à política?
É. A Capela do Rato foi um lugar de liberdade de opinião e discussão, e isso não era comum. Faz agora 30 anos, de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro, que foi invadida pela Pide. Foi lido um texto que propunha uma vigília na sequência da proposta do Papa. Em vez de se rezar pela paz em abstracto, rezava-se pela paz no concreto, na situação que Portugal vivia.
Isso remetia para as colónias?
Claramente. Nessa vigília, havia também intervenções sobre a situação da guerra colonial. A Pide interveio prendendo muitas pessoas. O 25 de Abril é daí a um ano e meio. A saída das prisões e a referência à Capela do Rato ainda é significativa para vários sectores.
Não estavam divorciadas como hoje estão a esfera da política, da religião, da participação cívica, do pensamento. Confluíam na Capela do Rato figuras proeminentes, ainda hoje, na sociedade portuguesa. Foi um espaço de formação?
Pelo menos, foi um fórum. Não só de troca de ideias, mas também de empenhamento concreto. E era multiforme, o tipo de atitude que as pessoas tomavam não era o mesmo. O elemento puramente religioso da liberdade pode ter sido o nome mais importante para a fé. Eram pessoas que procuravam. Se calhar, na atitude na fé, mais do que uma coisa que se tem, é uma coisa que se procura.
O que é que sentiu quando o padre Alberto morreu?
Foi uma grande surpresa. Lembro-me até do filme que fui ver quando soube que não se sabia do padre Alberto, três dias antes de se encontrar o cadáver. Não sabermos as razões da sua morte, é uma coisa que ainda hoje me custa, devo dizer-lhe. Disseram-me que há muitas situações em que a Judiciária não chega a conclusões. Custa-me a crer que nada se soubesse. Mas não tenho razões para achar que sabem e que não contam.
Que filme tinha ido ver?
«E la nave va», de Fellini, no Apolo 70.
A morte de alguém tão próximo pode ser, costuma ser, qualquer coisa que abala a fé. Há pouco falou de justiça; o sentimento é justamente o de injustiça e consequente perda de fé. Como é que se recupera e se reencontra a fé?
Como é que se reencontra? Eu não experimentei nenhuma situação de crise de fé a este propósito. Experimentei uma saudade muito grande, que não tem sequer diminuído. «E agora, como é que a gente caminha?». Faz imensa falta, é isso, faz-me imensa falta. Ao mesmo tempo, é provável que a fé só se experimente verdadeiramente quando é posta em questão. Vou dizer de outra maneira: a dúvida faz parte da fé. A fé não é um tipo de certeza.
É uma dúvida permanente ou é uma dúvida que dá de si nestas situações limite?
É uma dúvida que pode surgir. Uma dúvida permanente... Ficamos de língua de fora, não?, é paralisante.
O que é este duvidar? É perguntar «Será que tenho fé?», ou, mais do que isso, é perguntar «Será que isto faz sentido?».
É «Será que isto faz sentido?». Na minha relação pessoal com Deus em Jesus, a dúvida de fé é interrogação sobre a confiança. Mais do que se Deus existe, se há um Ser que explica esta trapalhada, é «Não me estarei a enganar?». S. Paulo diz isto bem: não é isto também uma fábula?. Portanto, porque as circunstâncias nos podem indicar o contrário, (que Deus afinal não se importa connosco, que estamos numa praça sozinhos a gritar e que ninguém ouve), esta contradição entre uma experiência que as situações limite podem trazer e a familiaridade com Jesus que tem vindo a crescer, entra em choque. É como se uma peça do puzzle não encaixasse no puzzle.
Mas se uma peça não for do puzzle, todo o puzzle vai à vida.
Exactamente. É a ruína. É a ruína.
As palavras são os termos com que apresentamos a nossa fábula, para voltar a S. Paulo. Pode falar-me da sua relação com as palavras? E com a Palavra no domínio da relação com Deus?
Nós somos aqueles que podem escutar a palavra. Para dizer de uma forma aproximada da tradição bíblica, somos criados capazes de ouvir e também capazes de responder. Somos criados como interlocutores de Deus.
Se começamos por escutar, isso veda-nos a possibilidade de emitirmos a primeira palavra?
Vou pegar em dois textos. Um texto do Génesis onde, primeiro que tudo, é a palavra de Deus que faz a realidade. No êxodo, Deus dirige-se a Moisés porque ouve o grito, o clamor do seu povo. Na tradição bíblica há claramente uma prioridade à escuta. «Quem tem ouvidos para ouvir, oiça».
Há nessa frase uma alusão a uma Torre de Babel?
Por exemplo. E falavam, falavam em barda. Confusão geral. Mas o grito do sofrimento tem prioridade para o ouvido de Deus. Deus fala, Deus dirige-se, porque é sensível ao clamor.
Esse clamor é poliglota, ultrapassa todas as barreiras linguísticas?
É eloquente. É o clamor da escravidão, o clamor daquele que sofre violência, e que, no que diz respeito à nossa conversa, é a oposição em relação à terra de paz que sonhamos. Que é apresentada sempre, como proposta de Deus, enquanto um deserto que viceja e floresce.
Estávamos na sua relação com as palavras.
As respostas são a nossa vida. Na nossa vida, não raro, é importante dizer. E ao dizer a vida, dizemos com palavras. As palavras podem ser o lugar de comunhão e o diálogo pode ser a busca de uma tendencial comunhão. O importante que era que as palavras pudessem ser também possibilitantes de vida, como a palavra é criadora de vida...
No fundo, a palavra ser um canal? Ser raiz e canal?
Ser lugar onde a vida possa crescer. Crescer por causa da relação: palavra que se ouve, palavra que se dirige.
E a relação com a sua mãe e com as palavras? É marcante ter uma mãe que ensina Português e Latim?
Indiscutivelmente. A minha mãe vai fazer 80 anos e está óptima. No que diz respeito às palavras e a muitas outras coisas, é muito significativa.
A sua definição de paz é eloquente, revela-o. Como ilustraria a palavra Mãe?
Pois. Quando dizemos Mãe, damos de barato que os outros percebem o que estamos a dizer... E às vezes não é verdade, tem razão. Tenho dificuldade, não sei dizer-lhe. Tenho um doente, acha que podemos interromper isto?
Claro.
Então, diria... Aquela ideia do porto de abrigo, da segurança?
De velar o seu sono?
E agora também, de cuidado com ela.
De velar o sono dela?
Pois.
A visão de uma criança a dormir pode ser das mais eloquentes do que é a paz.
Ao colo da mãe, já agora. É também um salmo, o 130.
Sabe os salmos todos de cor?
Não, mas sei alguns. Esses que sei de cor, rezo sem estar a ler.
Reza como? Reza durante o dia ao passo que estes lhe vão ocorrendo? Essa rememoração já é um rezar?
Por exemplo. O salmo 130 diz assim: «Senhor, não se eleva soberbo o meu coração, nem se levantam altivos os meus olhos, não ambiciono riquezas nem coisas superiores a mim, antes fico sossegado e tranquilo como criança ao colo da mãe». É muito bonito... O sono de uma criança e a imagem de paz; a criança evoca todos os nossos sentimentos de protecção e de cuidado. Para ela dormir em paz, o que a gente não fará? Como na história do fotógrafo, o ir à praia com a filha.
E o sentimento de morte?
A contribuição de Jesus e do Evangelho inunda a minha perspectiva sobre a morte. Não quer dizer que eu não tenha medo de morrer... Acredito que em Jesus a morte não é a última palavra sobre a vida. É a vida que é a última palavra. O estar presente, o estar ao lado de quem morre, o dizer «Não tenhas medo, gostamos de ti», comporta uma relação de amor que a morte não mata. Nesse amor há uma vida que vai para além daquele limite. Acompanho muita gente que vê os seus familiares e amigos irem-se embora. A morte tem a ver com essa vida que passa para uma visibilidade que não é a nossa. Evangelho quer dizer boa notícia. Se há coisa em que a boa notícia de Jesus é claramente proposta, é esta: a morte não tem a última palavra.
Significa franquear uma porta?
Seja como for, vivemos sob o signo da salvação. Isto acabará bem.
Salvação foi também uma das palavras que usou no princípio da nossa conversa.
Ah sim? É uma boa palavra.
Para Paz?
Sim.
É nesse sentido que se pode entender a morte como expressão de «Paz eterna»?
O finalmente em paz? Mas visto do lado de cá, é uma paz com pouca graça. Se acreditarmos no lado de lá da mesma vida – não estou a dizer outra vida, não são duas vidas – , então poderá ser «Entra na alegria do teu Senhor». No sentido de o mergulhar na vida de Deus, (a comunhão na qual Ele quer aqueles que criou), ser a paz plena. O caminho que fazemos é o caminho até esse mergulhar. S.Tomás de Aquino tem uma versão sobre o acreditar: «Credere Deo, credere Deum, credere in Deum». As duas primeiras são crer em Deus e crer no que Deus diz. Esta última é viver a comunhão com Deus que nos faz mergulhar Nele.
Publicada originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003