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Anabela Mota Ribeiro

Isabel de Castro

26.03.20

Quando pela primeira vez gostou de se olhar, e se reencontrou no que via, tinha mais de trinta anos. O que o espelho lhe devolvia era a vida, sulcada na cara. Uma vida vivida em bolandas, entre Portugal e Espanha, palcos e êxitos desiguais, cinco filhos e um pai e uma mãe amados desalmadamente. Lembra-se bem desse dia em que se maquilhava, e sentiu que a sua cara tinha uma geografia, ou vincos, ou leitura, que é como gosta de dizer. A vida lia-se-lhe na cara. Como hoje. Uma vida plena.

Isabel de Castro tem 71 anos, nasceu em Lisboa. A sua vida é uma vida dedicada ao amor. Ela diz que nasceu para ser mãe e para ser filha, e talvez para ser actriz. E em cada uma, do que se trata, é de ser intimamente com o amor.

  

No filme de Inês de Medeiros «O Fato Completo, ou À Procura de Alberto» conta que antes de uma estreia ficou apavorada com a iminência de subir ao palco, e, já vestida de condessa, desatou a correr pelo Chiado. A descrição do episódio é muito fílmica.

Eu também o vejo como um filme.

 

Conte-me lá esse filme.

Estava assustada. Ensaiei com o Ribeirinho, um óptimo ensaiador, uma óptima pessoa, mas muito rígido dentro do teatro. De vez em quando descompunha-nos: que não prestávamos para nada, que éramos uns canastrões, aquelas coisas. Ao mesmo tempo, quando me foi buscar, disse-me: «Nunca me digas que não és capaz de fazer». A certa altura comecei a assustar-me. Praticamente não tinha feito teatro; para dizer a verdade, no Conservatório não aprendi muito. Depois era Shakespeare. «Noite de Reis», com a Eunice [Muñoz], o Ruy de Carvalho, eu fazia a Condessa Olívia. Os fatos eram pesadíssimos, recamados a pérola.

 

Contudo, não era uma novata. Quando fez esta peça, regressava de Espanha, onde tinha feito carreira no cinema. Tinha 25 anos.

Pensei se estaria à altura daquilo. E não tinha facilidade em ter esta conversa, sobre a minha insegurança, com o Ribeiro. No dia da estreia, eu estava de papel na mão. Ele agarrou no papel e atirou-o pela janela fora!, «Isso nunca se faz». Vi o papel a fugir, a fugir... E de repente olhei para mim, naquele espelho enorme do Trindade, vestida de condessa, «O que é que estou aqui a fazer?», agarrei e fui-me embora! Abri a porta, e fui, tal como estava.

 

E os outros?

Pouco gente soube, pouca gente me viu; os que me viram, ainda pensaram que ia à rua fazer qualquer coisa, embora fosse uma estupidez ir à rua vestida de condessa... Ninguém pensou que ia fugir. Comecei por andar depressa, depois mais depressa, mais depressa. Quando cheguei ao Chiado dei a volta no Largo do Camões, e quase a tocar a Brasileira percebi que não podia fazer aquilo, não podia deixar toda a gente pendurada. Voltei para trás.

 

A cena lembra uma noiva a fugir do altar.

Foi um bocado isso. O teatro é uma espécie de casamento. De longa duração, normalmente não há divórcio.

 

Quando é que quis ser actriz?

Sempre. Quis muito ser duas coisas, aparentemente não têm nada que ver uma com a outra. Penso que quis ser útil. Dar utilidade à minha vida. Adoraria ter sido enfermeira, ter ido para países em guerra ajudar crianças. Quando tinha 14 anos houve um problema qualquer, com o Congo, julgo, e disse ao meu pai que queria ir; ele disse-me que não podia, que não tinha idade. Mas isto ligado ao teatro, que sempre fiz, sempre quis fazer. Sempre representei.

 

Em casa pediam-lhe para fazer pequenos números, representações.

Era miúda, miúda. Comecei a frequentar o teatro muito cedo. Aos quatro anos fui ao Nacional ver «S. João Subiu ao Trono», no colo do meu pai. Inventava as coisas no momento com uma grande naturalidade. Via uns filmes ou umas peças e inventava sobre o tema visto. Depois dei-me conta de que não era assim tão simples, mas não deixei de querer fazer. Aos 14, que era a idade mínima para entrar no Conservatório, entrei.

 

Antes do Conservatório, há ainda a experiência no filme de Jorge Brum do Canto, em 46 . Completa catorze anos durante a rodagem. De modo que o seu destino ficou traçado muito cedo. Não estruturou sequer a possibilidade de ser enfermeira.

Enfermeira especializada em doenças mentais. Os loucos sempre me atraíram. Da mesma maneira que me atraíram os marginais.

 

Consegue perceber essa atracção?

Acho que é porque os entendo. Habituei-me a vê-los como amigos, e não como perigo ou inimigos.

 

É um fascínio pela transgressão, pelo abismo?

- Eu não tinha de ter um grande fascínio pela transgressão. Fui uma transgressora desde sempre, não é? Tive uma educação óptima, uma enorme liberdade de expressão, de tudo quanto quis escolher nunca fui impedida. Mas tinha contra a sociedade. Vivi num bairro bastante pobre, o Largo do Contador Môr, entre o Castelo e Alfama. Os meus amigos foram feitos ali, brincava com eles na rua, levava-os para casa. Ali passava-se de tudo. Crianças filhas de pais alcoólicos, prostitutas, que lhes batiam, que as tratavam mal.

 

Porque é que viviam lá?

Toda a minha família viveu naquele bairro, sempre. Nasci junto à Sé, em casa da minha avó.

 

A avó Ana de Castro Osório, [feminista, lutou pelo direito ao voto feminino]?

Sim. Nasci lá e mudei-me com um ano para o Largo. Até aos 17.

 

No Largo tinha a noção de que a sua família era diferente?

Sabia que tinha imensa sorte por ter os pais que tinha. Sabia que não passava fome, que tinha coisas para vestir e calçar, e que as outras pessoas não tinham. Fez com que houvesse um espírito de repartição que me acompanhou a vida toda: ali não havia coisas particulares, as coisas eram de um todo. O facto de ter umas coisas não fazia de mim nada de especial; especial, sim, por ter sorte. Portanto, tinha de repartir essa sorte.

 

O Largo, aqueles dramas, ensinaram-lhe o que era a vida, num modo apressado? 

Vi morrer gente muito nova, companheiras de escola, com tuberculoses galopantes, e era porque passavam mal, passavam fome. Para eles, possivelmente, nós éramos ricos. Mas tínhamos muito pouco dinheiro. O meu pai era escritor e vivia da escrita; trabalhava para o jornal e não recebia grande coisa. A minha mãe era cantora lírica, mas cantora, neste país, minha amiga!; passou também a escrever, incentivada pelo meu pai. Não havia excesso de nada. Comer um chocolate era um dia de festa. Tinha alguns brinquedos e livros, oferecidos pelos amigos do meu pai, e eram de todos, como logicamente tinham de ser.

 

Que objectos tem ainda da infância?

Tenho as memórias. Guardo pouco. Guardava as cartas dos meus pais, quando fui para Espanha a primeira vez. Já tinha uma mala cheia. O meu pai insistiu que queimasse as cartas todas, «Não vais passar a vida com malas cheias de cartas». Tirei ao acaso duas cartas de cada um, e fiz uma fogueira com aquilo tudo. As cartas, conservo-as, mas nunca mais as li. 

 

A sua educação foi singular para a época.

Completamente. Houve pessoas na família que criticaram os meus pais por isso. Fizeram muito mal!, nunca lhes perdoei. A mim, podem criticar à vontade, mas os meus pais, os meus filhos, as pessoas de quem gosto... Se tenho tido uns pais repressivos, teria sido o fim. Muito presa a eles, mas muito independente. Fui para Espanha, deixaram-me ir, acompanharam-me à estação. Fugi. Não fugi deles, fugi da sociedade. Uma sociedade que não era amável, e por isso não gostava dela. A hipocrisia sempre me assustou, e depois revoltou, e depois criei-lhes pó. Eu gostava mais dos outros, dos que estavam do outro lado.

 

Porque há uma verdade nesse estado limite, nesse estado sem artifícios, à margem da sociedade?

Exactamente. O mundo lá de casa era o de escritores, pintores, gente fora do baralho. Lembro-me do Jorge de Sena e de gente assim, muito novinhos, visitas de minha casa.

 

A relação com a sua avó Ana de Castro Osório foi significativa?

A minha avó morreu quando eu tinha quatro anos, embora me lembre muito dela. (Tenho uma memória muito viva, consigo ir muito para trás). Tive foi uma relação fantástica com a minha avó materna. Não me admiro que a minha avó Ana de Castro Osório fosse uma pessoa para a frente; mas a minha outra avó, que não tinha um curso superior, uma dona de casa, era uma mulher inteligentíssima. Fui amparada por ela em muitas coisas que fiz. Fui para o liceu sozinha; a minha mãe ainda disse «Talvez devesse ir alguém com ela...», e a minha avó «Para quê?, ela sabe andar sozinha na cidade». Saía de casa às sete da manhã e chegava à noite.

 

Estava assente que seguiria os estudos? Faço a pergunta à luz da realidade portuguesa de há 60 anos.

Fiz até ao quinto ano. Depois meteu-se o Conservatório, meteu-se Espanha... Mas em casa havia uma cultura que era vivida todos os dias. Com os pais e os amigos dos pais. Lembro-me de ouvir o Ruy Cinatti ler os primeiros poemas.

 

Esses adultos faziam-na sentir uma criança especial?

Verdadeiramente não sei se me senti alguma vez criança. O Largo responsabilizou-me muito. O Largo. Deu-me a consciência de que o mundo era injusto. Consciência das diferenças. Porque uns morriam e outros não.

 

Enquanto criança, interrogava-se sobre a morte?

Tinha-a muito perto. Não é impunemente que se vê morrer uma criança da nossa idade, com quem se convive. (A minha mãe não me deixava ir lá, «A tuberculose é contagiosa», mas eu fugia, e ia). Quando se diz «É muito criança para perceber»... É mentira, a criança percebe muito bem, percebe muita coisa. Tenho a impressão que a primeira paixão..., eu digo, a única paixão que tive, foi aos sete anos. Uma coisa estranhíssima, mas verdadeira.

 

O que é que consegue recuperar desse sentimento?

Era um sentimento forte, fora de todo o contexto. Um sentimento que não sabia bem o que era, aos sete anos não se sabe bem. Mas extraordinário. Era uma pessoa muito mais velha, que me achava graça. (Só uma vez gostei de uma pessoa mais nova). Normalmente era atraída por pessoas mais velhas, com outro mundo, com mais experiência. Não foram amores felizes, devo dizer. Não sou uma pessoa de amores felizes. O que não me importa nada.

 

Não?

Não. Estou como gostaria de estar e como escolhi estar. A pouco e pouco fui entendendo que o amor não é bem isso a que as pessoas chamam amor. As pessoas são muito egoístas no gostar, muito egocêntricas no gostar. O amor de que gosto implica dádiva, generosidade, cumplicidade, admiração, compreensão. Nas relações há sempre uma que baixa a garimpa, uma que pode mais que a outra. Mas o amor não é um jogo de poderes, para mim não é. Eu estava mais fadada para gostar das pessoas, gostar das pessoas em geral. Nunca fiz muita questão em ser correspondida.

 

A não correspondência pode ser dolorosíssima, e normalmente instiga ainda mais o sentimento.

Quando era muito mais nova, muito mais nova, conheci um homem, como sempre mais velho, que tinha várias paixões. A nossa ligação foi muito mais uma ligação de amizade. De vez em quando, ele apaixonava-se e ia-se embora, pronto. Eu não podia prendê-lo!, não podia impedi-lo de se apaixonar! A única forma de o conservar era como amigo, entendendo-o. Era o mais importante que tinha para lhe dar. De modo que muitas vezes tratei das paixões dele, levava-as ao médico, pagava a pensão quando não tinham onde estar.

 

Ele era o seu homem?

Era uma pessoa com quem de vez em quando tinha uma relação. Há pessoas que não podem ter dono. Porque é que havia de me arvorar em dona dele?

 

Não lhe causava dor?

Não. Apesar de todas as paixões, de quem ele gostava verdadeiramente era da mulher, que tinha deixado mas que nunca deixou – aquelas coisas que os homens muito cobardemente fazem. E de mim, a amiga que o reconfortava sempre. Nós, e digo nós porque ela sentia o mesmo, éramos muito mais importantes que todas as paixões.

 

Falavam as duas sobre isso?

Pelo telefone, muitas vezes. Foi uma relação muito completa, de dádiva. Recebi dele imaginação: transformava o mundo numa magia. Quando estava com ele, estava, e ele estava comigo. Conversávamos, ríamos, não pensávamos nem no antes nem no depois. Durou 20 anos, mesmo assim...

 

Provavelmente a situação não lhe seria tolerável se fosse dependente desse amor, submissa a esse amor.

Nunca consegui ser cega no gostar de uma pessoa, mesmo na paixão dos sete anos.

 

E a descoberta da sexualidade?

Foi uma grande surpresa para mim, era um assunto que estava muito longínquo. Uma vez deram-me um livro, quando o abri e vi o que era, com uns desenhos... Não li o livro, meti-o numa estante. A minha mãe encontrou-o. Eu que era tão aberta com a minha mãe, nunca tive coragem de lhe dizer que não tido lido o livro. Senti-me sempre envergonhada, que a minha mãe tivesse encontrado o livro, que tivesse pensado que eu o tinha lido.

 

Mas porquê essa pudicícia em relação ao sexo?

Não era pudor. Aliás, sempre tive fama de ser uma pessoa apaixonadíssima e tal. Como é que hei-de explicar? Os desenhos eram horrorosos. Se fosse uma coisa bonita, não teria sequer escondido. Aquilo era de baixo nível, e eu soube que era. Escondi para deitar fora, mas não tive tempo. Mas não tinha pudor em relação ao sexo. Até porque mais tarde, fiz, não se pode chamar asneiras, mas muitas experiências. Só não fiz aquilo que achei que era reles.

 

Nunca teve pudor em falar disso aos seus filhos?

Os meus filhos conhecem a minha vida tim tim por tim tim, nunca lhes ocultei nada. As coisas boas e as coisas más. Não é segundo o critério dos outros, é segundo o meu critério. Quando eram muito pequenos, viram uma fotografia minha vestida de noiva; a minha filha mais velha perguntou «Foi quando a mãe se casou?», e eu disse-lhe «Não, a mãe nunca se casou». Tinha pés de barro, não queria ser deusa e cair do pedestal. Aliás, dificilmente me poderiam pôr em pedestais! O que tive foi sempre muito respeito pelas pessoas.

 

Voltemos ao princípio. Aos 14 anos participa num filme português; segue-se a estreia no Teatro Estúdio no Salitre e a entrada no Conservatório, que interrompe para ir para Espanha.

A primeira co-produção fi-la com 14 anos, e fui para Espanha com a minha irmã. O natural seria que ficasse muito encantada, ou encandeada, com o sonho disso. Mas não. Aquilo era o meu trabalho, nunca misturei isso comigo. Consigo meter-me no papel que estou a fazer, quando o estou a fazer, e depois sou eu, não tenho de levar isso para casa. (Ou guardar fotografias, ou jornais. Não tenho nada, nada. O meu pai guardou, primeiro, e depois o meu filho). É evidente que, miúda, fiquei tocada pela magia do teatro. Mas essa magia, que continua a existir, não se traduz num palco para brilhar.

 

Nunca quis ser uma vedeta?

Ser uma vedeta, ser uma pessoa importante que vem nos jornais, isso não serve para nada. Quando via os cartazes enormes dos filmes em que entrava, cartazes que ocupavam toda a fachada de um prédio na Gran Via, com a minha cara, achava que não era eu! Sabe o que é?, achava que aquilo não tinha nada que ver comigo, que era até um bocado tonto! 

 

Não sonhava com as imagens glamorosas do cinema? Os anos 50 são os anos de uma Hollywood máquina de sonhos.

Nunca quis ser glamorosa. Os meus colegas diziam que era muito bonita, e nunca me achei muito bonita. O que gostava na cara das pessoas era dos vincos, da leitura. Eu não podia ter leitura, era muito miúda. E não pode dizer-se que fosse uma miúda que se divertia: aos 18 anos tive a minha primeira filha, depois tive quatro filhos seguidos.

 

Que vida levava em Espanha?

A primeira vez que fui a uma boite, tirando uma experiência aos quinze anos, (apanhei um grande pifo, comecei a beber whisky, nunca tinha bebido, e caí para o lado), foi em Portugal já com vinte e tal anos. Nunca tinha tido tempo para ir a uma boite. Em Espanha levantava-me às cinco da manhã, para estar no estúdio às seis e meia, e quando chegava a casa era noite, tinha de dormir um bocado, tinha os miúdos. Tive a sensação de ter adormecido criança e acordado mulher, cheia de trabalho e responsabilidade. [remexe em papéis e lê] Escrevi isto: «Da adolescência que não tive, ficou-me a nostalgia da primavera».

 

Mas quando vai para Espanha, que projecto de vida era o seu?

Fui para Espanha para fugir, se se pode dizer assim, com o pai das minhas filhas mais velhas, Carlos Otero. Ele era casado. Não estou arrependia, porque ele era, de facto, uma pessoa extraordinária; mas um bocadinho mais velha, não teria ido... Nunca pude furtar-me à ideia de que tinha ficado alguém a sofrer por minha culpa. Embora soubesse que não eram felizes, foi uma coisa que me perturbou bastante. Tentei acabar várias vezes, mas não consegui.

 

Tinha 16, 17 anos?

16 quando comecei a andar com ele, 18 quando fomos para Espanha. Ele tinha 33. Achou sempre que eu tinha ainda muita coisa para fazer, que não ia ficar parada. Combinámos que ao menor interesse que surgisse, contaríamos um ao outro. Claro que fui eu, não é?, tinha de ser, não é? Um interesse estranho que derivava da curiosidade pelo sexo, da atracção pelo sexo em si. Contei-lhe. Eu, que nunca me preocupei com as pessoas, preocupei-me imenso com o que podiam dizer dele, «E se te chamarem corno?», «Isso não existe, basta que tenhas sido sincera comigo, ficamos em casa como bons amigos». Mas eu não quis. Fartei-me de chorar e vim embora. Tinha 23 anos.

 

Teve os filhos porque quis ou porque aconteceram?

Sempre porque quis.

 

Tinha a noção de que aquilo que sempre quis fazer ficava muito coarctado pela existência dos filhos? Foi por eles que recusou o convite da Rank, a companhia inglesa que prometia transformá-la numa vedeta mundial em quatro anos? 

Foi-me fácil recusar o convite, sim. A primeira questão era ter de deixar os meus filhos, (que não deixaria nunca!). Depois, o meu fito nunca foi ser vedeta. Uma boa actriz, gostava. (Para ser uma actriz, levei muitos anos. Uma boa actriz, vamos lá, para aquilo que eu era...). É um facto que isso não se usava, mas sempre quis tê-los, sempre disse que ia ter cinco! A minha vida é feita em função dos meus filhos e dos meus pais.

 

De regresso a Portugal, volta para casa dos seus pais. Parece que não chega nunca a cortar o cordão umbilical.

Nasci para ser mãe e filha, acho que não nasci para muito mais. Para ser actriz, talvez. Queria ser uma boa actriz para que tivessem orgulho em mim. Dei vida aos meus filhos, é certo, mas foram eles que me deram vida a mim. Sem eles, não sei se teria resistido a muito.

 

O único amor que tomou conta de si foi este, pelos seus filhos e pelos seus pais?

Completamente. Se me dou o direito de ter saudades do passado, (porque o passado passou, é preciso viver cada dia), tenho saudades dessa época em que estávamos todos juntos. Com os meus filhos, os meus pais, e depois os meus netos, já o meu pai tinha morrido. Percebi verdadeiramente a extensão do amor com os meus pais e os meus filhos. [pausa] A minha filha mais velha morreu. É o maior amor que alguém pode ter e o maior desgosto que alguém pode ter. Não há nada, nada, nada maior, nem nada que substitua um filho. No princípio, por mais que a pessoa queira, não consegue abranger a imensidão do que lhe aconteceu. Depois, não consegui chorar nunca. Mas isso, nem na morte do meu pai, nem na morte da minha mãe consegui.

 

Ainda consegue chorar?

Praticamente não choro. Há muitos anos que não choro. Faz-me uma falta enorme. Vêm ondas, ondas, sinto uma vontade imensa, e não consigo extravasar. No entanto, num espectáculo, sou capaz de chorar, raramente, mas sou capaz.

 

O riso e o choro, quando é que os perdeu?

Fui perdendo. Digamos que os perdi quase definitivamente com a morte da minha filha, há cinco anos e meio. Falo disto porque nunca a apartei da minha vida; ela vive comigo diariamente. Preciso de falar dela, de outro modo sinto-me muito só. Eu estava a ir-me. Percebi que uma pessoa não precisa de se suicidar, uma pessoa morre quando quer. Senti que podia morrer de um momento para o outro. Procurei ajuda. Um médico, ajudou-me muito, ainda hoje lá vou. Ele concordou.

 

Que a Isabel definhava?

Sim, sim. Quando era miúda dormia no quarto com a minha avó, passava noites acordada a ver se ela respirava. Mas da minha própria morte, nunca tive medo. Depois da morte da minha filha, não tenho mesmo medo, nenhum, nenhum. Acredito que para pior não vou. Acredito em Alguém, numa certa Ordem, numa Energia. Podemos chamar-lhe o que quisermos, tanto me faz. Temos com a morte uma relação péssima, fazemos disso uma coisa trágica que nos persegue toda a vida, quando na verdade não há nada mais certo. Se vivemos temos de morrer, não é?

 

Porque tem ao pescoço a imagem de Cristo?

Tenha sido filho de Deus ou homem, é uma figura extraordinária, é uma figura que me é muito querida. Jesus Cristo e S. Francisco de Assis são os meus grandes amores. A imagem foi-me dada por uma amiga de uma amiga; nunca a tiro.

 

Representa com ela?

Sim, quando não é para ver, ponho para trás. E este anel era da minha filha, pus e nunca mais tirei.

 

Os seus trabalhos mais famosos no teatro, como «A Voz Humana», de Cocteau, «Bruscamente no Verão Passado», de Williams, «Quem tem medo de Virgínia Woolf», de Albee, são mulheres em estado limite, muito perto do desequilíbrio.

Não quer dizer que eu mesma não esteja próxima do desequilíbrio. Tenho é tido muito cuidado em equilibrar-me.

 

Teve fases mais próximas do abismo.

Muito próximas.

 

Teve fases em que bebeu.

Sim, sim. Coincidiu com a morte do meu pai, com a morte da minha mãe, com o desaparecimento de pessoas... As pessoas achavam que eu bebia assim para fazer ginástica com o copo! Não é bem assim. Bebi muito em fases de perda. Coisa que com a minha filha não aconteceu. Deixei de beber exactamente quando a minha filha faleceu, (já não tocava há muito tempo). Não queria perder um bocadinho sequer dos cinco sentidos, adulterada por qualquer bebida ou fumo. Não se pode perder um milímetro do tempo. Quando o meu pai morreu, eu tinha 32 anos, quando a minha mãe morreu, 50. Lá fiz o meu papel de forte... Andei sempre a fazer de forte. Às vezes nem quero pensar o quanto sou fraca... Por isso percebo tão bem as personagens em desequilíbrio. Lutei sempre para ser uma pessoa equilibrada. Ainda hoje luto muito.

 

Nunca se arrependeu de nada?

Não me serviria de nada! Não vale a pena chorar sobre o leite derramado, é uma coisa que o povo diz e é bastante verdade. Não há tempo para o arrependimento. Há tempo para fazer melhor. O tempo é curto, de cada vez é mais curto. Se penso no embate com o futuro, o que gostaria é que aqueles que me amam ficassem bem, ficassem calmos. Que não ficassem perturbados, como eu fiquei.

 

Como gostaria que se lembrassem de si?

Oh, como uma pessoa. Não há nada de muito especial pelo que queira ser lembrada. 

   

 

Publicado originalmente no DNa, Diário de Notícias, em Abril 2003.

Isabel de Castro morreu em 2005. 

Maria do Céu Guerra

26.03.20

Uma vida chega? Não! Talvez o teatro seja, para começar, e para acabar, um exercício para iludir o medo de morrer. O medo de não se poder ser alegre e leve e voraz e tudo aquilo que se pode ser pelo facto de se ser. Portanto, o teatro é uma expressão de vida, uma vida representada que é vida. Vidas para viver com sofreguidão. No teatro e no cinema.

Maria do Céu Guerra viveu – foi – a Rosa, pela mão de António-Pedro Vasconcelos.

Maria do Céu Guerra nasceu em 1943. Não gosta nada de estar a envelhecer. Pertence à categoria “grande senhora do teatro português”. É bem provável que deteste a pompa do título. Sabe que pertence ali. A grande senhora do teatro português é Rosa, a protagonista luminosa de Os Gatos Não têm Vertigens, o mais recente filme de António-Pedro Vasconcelos.

Esse é o pretexto para estarmos ali, naquela segunda-feira à tarde, com a luz a trespassar as cortinas vermelhas d’A Barraca. Há um encanto no teatro inundado pelo dia, muito diferente daquele que tem quando as luzes se acendem e se abre o espaço para as vidas inventadas. Como néons apagados, que tornam a vida menos fosforescente e mais nítida. Esse é o nosso território.

Onde fomos nós, sentadas numa mesa do canto, resguardadas do calor? À essência do teatro, ao núcleo que a palavra representa, à metodologia, à vida como ela era no fascismo, à pessoa que ela era quando foi preciso defender um projecto, uma companhia. Ao começo e ao fim do mundo.

Era para ter sido escritora. Visto retrospectivamente o seu percurso, parece óbvio que ia ser actriz. Há momentos em que o olhar surpreende por ser alegre.

 

 

 

Como é que se ataca uma personagem? Momento zero.

Como é que eu ataco uma personagem? Cada actor ataca uma personagem de uma maneira diferente. Em primeiro lugar tenho uma certa avidez.

 

Palavra que vai sendo rara, avidez.

[pequeno riso] E leio a história umas poucas de vezes, como quem devora. E tenho a certeza de que não estou a perceber tudo. Mas aflita para ter uma primeira impressão.

 

Essa impressão é um primeiro recorte da personagem?

É uma primeira visualização. Dá o contexto em que se move. É uma coisa que vou aperfeiçoando com mais leituras e sobretudo com a conversa com o director, seja de cinema seja de teatro. Procuro perceber em que é que eu, Maria do Céu, sou verdadeiramente diferente daquela personagem.

 

Porque é que é importante esse contraste?

Porque me convenci há muitos anos, e ainda estou convencida disso, que se não trabalhar a diferenciação, rapidamente estou a repetir-me. Nesta idade, ainda mais. As personagens não são muitas e por vezes repetem-se.

Depois continuo a trabalhar, a criar. E depois deixo-me imbuir pelo que me trouxe ao teatro, ao cinema, à arte de representação: durante algum tempo tentar viver em cena como aquela pessoa. Sem sentir que estou a representar.

 

Viver e não representar...

Exactamente. Isso parte de uma concentração prévia sobre aquela figura. Sei que representar é sempre uma construção. Tenho cuidado...

 

Empenha-se para que não pareça uma construção artificiosa, é?

É, para que não seja muito visível que é uma construção. E é por aí que eu vou.

 

Falou de não compreender totalmente. Noção importante, a incompreensão?

Temos que ter a noção de que há muitas zonas de sombra no nosso trabalho e em quem somos. Nunca chegamos a saber exactamente o que é que um director quer de nós. Nunca chegamos a saber realmente se conseguimos chegar lá. Se ultrapassamos a expectativa que nós próprios tínhamos. Se as escolhas que fizemos são as acertadas. Vivemos com essa incerteza – essa incerteza pode ser interessante.

 

Isso faz medo? A sociedade está investida na procura de certezas.

Pois. Cada vez tenho menos [certezas], e gosto mais de não as ter. Por exemplo, a Rosa, personagem do filme do António-Pedro Vasconcelos, é uma mulher segura. Tem princípios firmes que em nada abalaram a sua ternura, a disponibilidade para os outros. Percebi, neste questionamento, que sou muito mais incerta do que ela. E a segurança não é para mim um valor como é para ela. Para mim é melhor ser sempre aluna, estar sempre a aprender. Voltar ao ponto zero. Ouvir os outros como se fosse a primeira vez.

 

Como é que consegue esse espanto? Parece simples, a capacidade de nos entregarmos e deslumbrarmos com tudo. Mas é dificílima.

Não é com tudo. [riso] Mas é guardar isso como um grande valor. E não estar distraída. E sempre que uma pessoa disser uma coisa que me abana, dar atenção a isso. A Rosa é tranquila. Eu sou insegura. E sou tímida.

 

Diz isso sem estar a fazer género?

Digo sem estar a fazer género. Não tenho a certeza de que aquilo que sei chegue. De que o que gosto seja o melhor. E levanto muitas questões. Isto é insegurança. Mas é uma insegurança com que me habituei a viver e que transformei num valor. Porquê? À medida que a vida avança, fui percebendo que não é possível dar nada por certo. O incerto é mais certo [riso], não é? É o que sinto. Embora, às vezes, me atrapalhe um bocadinho.

 

De que é que tem medo? De falhar? Desapontar?

Não é bem desapontar. No princípio, quando era miúda, tinha medo da opinião dos outros. Tinha sobretudo medo de ser mal entendida. De ser entendida como uma pessoa superficial. As meninas que iam para o teatro eram tontinhas...

 

E galdérias. Havia esse rótulo. Numa sociedade puritana como aquela em que cresceu isso importava.

Importava muito. Eu sentia que não tinha um desafio intelectual com pessoas do meio [teatral]. E na minha universidade, as pessoas de sempre iam aprendendo mais, ganhando saberes, apetências, caminhos que se separavam do meu. Tinha medo que a minha evolução ficasse por ali. Quando cheguei ao teatro dizia-se: “Estás a querer trabalhar para o público ou para a crítica?”. Era muito frequente, nos meios teatrais, especialmente as mulheres, dizerem: “A Ângela Pinto foi a maior actriz portuguesa e mal sabia ler.” Eu não queria ser a Ângela Pinto.

 

Quem é que queria ser? Estou a perguntar pelas referências, antes mesmo de perceber que queria ser a Maria do Céu Guerra.

Houve pessoas que me marcaram bastante na juventude. A Carmen Dolores. Era uma actriz que tinha biblioteca. Das poucas que tinham biblioteca. E que emprestavam livros. Depois conheci outras pessoas assim. A Glicínia Quartin. O Augusto Figueiredo, que gostava de ler Dostoiévski. Eu tinha medo que não fosse possível ser assim. Eu tinha medo que fosse obrigatório ser tão instintivo quanto inculto.

 

Como se o talento devesse ser um génio por domar?

Sim. Depois percebi que não, que não devia ser instintiva e inculta. Como é que começámos?

 

Já não sei como começámos esta sequência. Mas vimos dar a uma parte importante, ao que se quer ser. Há no filme um momento em que a Rosa dá ao rapaz um livro onde se pode ler: “Se eu serei o herói da minha própria vida ou se esse lugar será ocupado por outra pessoa, estas páginas vão mostrar.”

É o livro do David Copperfield.

 

É uma grande equação na vida de cada um. Quem é que vamos ser?, o que é que vamos fazer com a nossa vida?. Quando é que esta questão se lhe pôs?

Tive a possibilidade de ter escolha, desde o princípio.

 

Onde situa esse princípio?

O princípio é quando saio do conforto da minha casa e entro para a universidade e entro para a Casa da Comédia e entro para o Teatro Experimental de Cascais. Esses primeiros anos. Em que começo a dizer poesia, a dar-me com pessoas como a Natália Correia, o Dr. Fernando Amado, o Almada [Negreiros]. Pessoas mais velhas que nos ajudavam a crescer, a nós, uma série de miúdos, ansiosos por perceber alguma coisa do que era a vida e do que era a arte.

Vim de Cascais, foi lá que me criei. Foi lá que comecei a ler, a gostar de escrever.

 

Quem é que lhe deu livros para ler?

A minha mãe. Era jornalista. Chamava-se Maria Carlota Álvares da Guerra.

 

A sua avó também era Carlota.

Era. Era uma sucessão de Carlotas.

 

Nome fino. Diz qualquer coisa da família.

A minha avó era neta de uns conservadores que achavam que a Carlota Joaquina era o máximo. [riso]. Uma tia da minha mãe era Ernestina. Da parte do meu avô tenho uma tia Maria das Dores.

 

Nomes de santas. O seu também tem uma carga religiosa.        

Eram católicos, sim. Era um construir em casa o céu.

Bom, a minha mãe deu-nos livros para ler. Era uma pessoa divertida, fazia teatro. Tínhamos uma sala grande. Nunca chegámos a representar nada, mas líamos peças, fazíamos cenas. D’ O Pequeno Eyolf do Ibsen a peças do Ramada Curto, muitas coisas foram feitas, entre amigos. Tudo misturado, os velhos e os novos. Nós, pequenitos, o meu irmão e eu, participávamos sempre. Era outro tempo. O mundo mudou tanto nos últimos 50 anos... mudou 15 séculos!

 

E poesia, diziam?

Dizíamos. A minha mãe dizia muito bem, o meu irmão também. Depois começou a trabalhar. Foi locutora da Rádio Renascença, do Rádio Clube Português. Nós começámos a vir a Lisboa ter com ela. E depois a vir para a universidade. Saíamos todos juntos e encontrávamo-nos na Brasileira.

 

A Brasileira era um ponto nevrálgico. Os artistas reuniam-se naquelas mesas, de manhã e à tarde.

Aquele mundo passou a ser um mundo natural em nós. Tanto que quando fui para a Casa da Comédia já conhecia o Almada da Brasileira. Eu era dali.

 

Era do meio dos artistas, mas não de uns artistas quaisquer. Dos intelectuais.

Não sei se se chamam intelectuais. Com alguma escolha, com algum critério, com algum bom gosto, sim. Os meus maiores amigos desse tempo eram o Diogo Ary dos Santos, o irmão do Zé Carlos, a Zita Duarte. Gente que veio a distribuir-se pelas pequenas companhias que havia.

A minha estreia foi na faculdade, com uma peça do [Correia] Garção, Assembleia ou Partida.

 

Achei que a estreia tinha sido com o texto do Almada, Deseja-se Mulher.      

Não me lembro bem se foi com o Almada se foi na faculdade. Trabalhei as duas coisas ao mesmo tempo. Não sei qual é que se apresentou primeiro ao público. Isto foi tudo entre 1963 e 64. Quem me puxou, quase que empurrou para ir para a Casa da Comédia, foi o Laura Soveral. Era aproximadamente dez anos mais velha do que eu. Tinha o prestígio de ser uma mulher lindíssima, muito inteligente, que adorava teatro e cinema. Eu estava na faculdade e gostava de estar no grupo de teatro. Diziam-me: “Vai para a Casa da Comédia, desenvolve isso”. Fui a medo.

 

Qual era a aura que a precedia? Era a de ser muito inteligente, muito espirituosa, muito bonita? Assim como falou agora da Laura Soveral...

A mim? Não sei. Era talvez o que o Almada dizia, o que acabou por ser flagrante em mim: a simpatia. No sentido mais lato. Eu era uma pessoa com quem era agradável falar, rir, estar. E o público tinha por mim esses mesmos sentimentos. Sem destrinçar se isso era qualidade artística ou um dote pessoal.

O Almada escreveu na peça Deseja-se Mulher: “À simpatiquíssima mulher de vermelho.”

 

Como é que era o seu sorriso nesse tempo? Quando vê fotografias desse tempo, vê o quê? Parece que está a falar de outra pessoa.

Já passou tanto tempo. Nós somos nós e o que os outros dizem que nós somos. Depois passou um longo tempo em que já não era tão simpática. Em que estava muito preocupada com o que estava a fazer. Era mais combativa. Foi a partir do momento em que criei esta companhia. Deixei de ter essa leveza.

 

Mais uma palavra preciosa: leveza.

Concordo muito com o Italo Calvino quando ele diz que a leveza é uma das indispensáveis palavras para o milénio (ele escreveu antes de 2000). Tenho trabalhado outra vez a minha leveza, desde que percebi que quer me zangasse muito quer me zangasse pouco as transformações (na vida desta companhia, ou na minha) não iam por aí, [pela zanga]. Não valia a pena esgrimir [argumentos] de uma forma tão aguerrida, tão voraz como eu julguei que era indispensável fazer.

A Barraca, em que trabalho há 38 anos, teve uns primeiros dez anos com alguns problemas, como todos, mas com uma grande aceitação da crítica e do público. Depois, quando se percebeu que havia algumas ambições relativamente à transformação daquele grupinho da Rua Alexandre Herculano numa coisa mais séria, com um discurso próprio e determinado, quando foi preciso defender a companhia, perdi a frescura. Perdi quase a paciência. E foram 20 anos de uma dureza sem nome.

 

O que é que a fez escolher este como projecto ao qual se entrega 38 anos, 20 dos quais com essa dureza sem nome, como lhe chama?

Eu tinha percebido, com certeza absoluta, que queria fazer um teatro que não era o teatro que se fazia em todo o lado.

Posso dizer uma coisa que parece cultural mas não é?

 

Pode.

Quando os espanhóis saíram de Portugal, em 1640, deixaram uma herança de teatro espanhol. Que ia do péssimo ao genial, do teatro dos pátios (a maior parte, não prestava para nada) ao Calderón [de la Barca], ao Tirso de Molina, ao Lope de Vega. Quando chegaram os iluministas, e a inteligência tentou mudar o paradigma do teatro, a primeira coisa que fizeram foi perseguir o teatro espanhol. Porque era uma herança de ocupação e de concessão ao gosto do público. Defenderam o neo-clássico, o arcádico. Importaram o teatro francês, a ópera italiana. Compraram peças a Molière, a Goldini, óperas ao [libretista] Metastasio. Mas o teatro português perdeu alguma coisa muito importante ao mandar embora o teatro espanhol. Virou as costas ao Século de Ouro. Havia o medo de que o povo gostasse, que ficasse uma coisa popular. Há uma distância enorme entre Lope de Vega e Reis Quita. Boa literatura não é bom teatro.

 

Quem é que decide o que é bom e o que não é?

Alguém como Peter Brook diz-nos que o inimigo do teatro é o aborrecimento. Esse equilíbrio, entre fazer uma coisa que tenha um sentido elevado (como se dizia nessa altura) e fazer uma coisa que não aborreça, e que faça rir e que faça chorar, que é muito do que se pede ao teatro, e ao espectáculo, é muito difícil. Esse conflito, A Barraca tomou-o sempre pelo lado popular.

 

Não quiseram ficar confinados à elite, é isso?

É. Não vamos abraçar paradigmas que sejam maçadores, e que fechem esta companhia num universo de que não queremos fazer parte. Foi uma batalha muito, muito difícil.

 

Pode-se dizer, numa linha, que A Barraca era o seu instrumento para mudar o mundo?

Não, não. Era o meu instrumento para não me sentir envergonhada perante mim por estar a fazer o que estava a fazer. Era o meu instrumento para fazer teatro. Não era uma coisa proselitista.

 

Falo de mudar o mundo porque o nascimento d’ A Barraca é em 1976. Dois anos depois da revolução. Era o tempo em que tudo era possível. E em que todos, nas suas áreas, experimentavam um fazer diferente.

Quando falo de fazer um teatro que eu gostava de fazer, há nisso um desejo de transformação. Das consciências das pessoas, da vida das pessoas. A cultura, o teatro é uma maneira de ir transformando o gosto, a sociedade. Mas sei que posso fazer muito pouco. Então, porque é que vale a pena? Porque é só assim que me sinto bem, feliz, que acredito no que estou a fazer. O teatro é essencialmente isso: vejam aqui uma história, completa (e na vida real não têm hipótese de ver uma história inteira, só fragmentada), que vos dá uma outra dimensão da vida que estão a viver. Não damos soluções. O conselho é o pior que o teatro pode fazer. Mas podemos expor a vida, a transformação da vida, os conflitos, as lutas mais profundas e mais superficiais dos séculos, na sua mais luminosa demonstração.

 

Voltemos ao Copperfield. Ainda não tenho uma resposta cabal para a frase. Quem é o herói?

Nunca tinha pensado nisso antes de ler essa frase. E nunca me tinha posto na posição de ser o herói da minha vida. Ao longo dos anos, depois de o público me dar um lugar na arte que escolhi, é que comecei a questionar-me se estava a ser a actriz que queria ser. Isso foi complicado.

 

Porquê?

Nesses anos em que me tornei dura, rebarbativa, menos simpática, porque estava realmente a lutar, porque me estava ser tirado um espaço físico, artístico, moral para fazer o teatro que eu queria fazer, fui... não direi moralista, mas autoritária, dogmática. Não é politicamente. É na vida. Mutilei-me, às vezes. Mutilei a vontade do público. Perdi anos muito interessantes em que podia ter feito um repertório diferente, o de uma mulher na maturidade. Andei a fazer coisas que eram o teatro que A Barraca devia fazer.

 

Teve pena de não ter sido a Medeia, as grandes personagens femininas?

Tive. Tive pena de não ter feito um repertório que as actrizes gostam de fazer. Os Tennessee Williams... Mas olhava para A Barraca e achava que esses sonhos – egoístas – não cabiam neste projecto. Mas cabiam.

Fui-me libertando desse peso, do peso da afirmação de um projecto transformador, instigador.

 

Foi um tempo em que esteve concentrada na função de directora da companhia, e menos na de actriz.

Exactamente. Eu não tinha percebido que podia ser as duas coisas.

 

No filme, a sua personagem conta ao miúdo da sua experiência política. Como é que a política entrou na sua vida?

Eu tinha 13 ou 14 anos quando foi a eleição do Humberto Delgado. O meu pai foi apoiante do Delgado, fez com ele a campanha.

 

O seu pai era político?

Não. Passou a sê-lo. Era um funcionário do Ministério do Ultramar, um homem com um grande anseio de liberdade. Depois do apoio à candidatura de Delgado, perdeu o emprego. Exilou-se na Bélgica. Quando vinha cá, era preso. Teve o resto da vida massacrado e não conseguiu reorganizar-se.

 

Foi vê-lo à cadeia?

Fui ao Aljube. E depois em Caxias. Esteve preso quatro vezes. Quando saiu de Caxias, a tensão arterial estava muito, muito baixa. Esteve mal. Os meus pais estavam separados. Mas a minha mãe, se sabia que estava preso, mobilizava-nos para o apoiarmos. Quando saiu, ainda nos anos 60, fazia parte daquele grupo de pessoas que iam para a Argélia, vinham da Argélia... nunca percebi muito bem esse projecto, mas sei que se empenhou nele. Portanto para mim foi fácil perceber o que era o fascismo.

 

Havia também conversas, um tom proselitista, ou não era preciso?

Não era preciso. Era fácil perceber. O meu irmão andava no colégio Portugal, na Parede, cujo director também era um antifascista. Eu, na faculdade, andei à volta da pró-associação. Entrei em 1963, estava a faculdade numa convulsão [na sequência das lutas de 62]. Então, aquilo foi como respirar.

 

Fez política activa?

Fiz, enquanto estava na faculdade. Já no teatro, vieram as eleições de 69, colaborei nas eleições de 69. Distribuía papéis, ia trabalhando o meu sentido de liberdade e os porquês desse sentido. Nunca estive enquadrada em nenhum partido (o meu irmão, sim). Tinha as opções todas feitas.

 

O que é que queria fazer com a sua vida quando foi para a faculdade estudar Românicas?

Escrever. Basicamente, escrever.

 

Publicou?

Havia uma colecção pequenina, a Best-Seller, que resolveu publicar um livro de poesia meu. O David Mourão Ferreira foi meu professor. E o Urbano [Tavares Rodrigues], e o [Lindley] Cintra, e o [Vitorino] Nemésio. Tenho livros de poesia do David Mourão Ferreira autografados. No primeiro ano, achava que ia ser escritora, no segundo achava que ia ser escritora e actriz, e no terceiro achava que ia ser actriz. Olho para aquilo e penso: “É a história da minha vida.”

 

Em três anos, em três livros.

Em três dedicatórias.  

 

A palavra é determinante para um actor. Mas não é a sua voz. É a voz de outro a que dá voz. Escrever é outra coisa.

É. Senti no teatro que era muito mais certa a comunicação que estava a ter com palavras de outros, e com o meu investimento emocional, com o que eu dava e valorizava o texto. Afinal, não precisava de escrever. Se calhar, não tinha nada para dizer.

 

O que é que antes dizia, quando escrevia?

Havia um grupo de que gostava muito, a Beat Generation. O Kerouac, o Ginsberg, o Carver.

 

Vida crua.

Sim. Esse grupo correspondia muito à minha sensibilidade e maneira de ser. Fui percebendo que a minha necessidade de comunicação se cumpria melhor a interpretar do que a escrever. Dava-me mais prazer fazer um recital de Cocteau do que escrever as minhas coisas. Frequentava os grupos da Natália Correia. Quem começou [a frequentar esse meio] até foi o meu irmão. Eu estava mais resguardada [riso]. Não me deixavam andar por onde eu queria. Era menina.

 

Pertence a uma geração em que as meninas eram virgens até tarde. Idealmente até casar. Ainda mais num quadro burguês. Há qualquer coisa desta educação que fica inculcada na pessoa. Conte-me quem foi essa menina.

A minha avó foi a pessoa com quem cresci, com quem aprendi a boa educação. A minha mãe vivia connosco, mas a figura maternal era a figura da avó. Tive uma mãe que foi mãe com 20 anos. Era mais próxima da minha mãe como irmã do que como filha. Só quando comecei a ser mais velha é que a reconheci como mãe. Ainda que a minha educação tenha sido tutelada pela minha mãe em termos de gostos, em termos de cultura.

A década de 60 foi de ruptura, de liberdade. Os valores começaram a ser outros.

 

Depois de Maio de 68?

Antes. As raparigas de Letras fizeram o seu 68 em 64, em 65. O que se estava a passar era muito forte. As greves de 62. As lutas de 65. A luta antifascista fez com que as raparigas e os rapazes se aproximassem. Houve uma ruptura com a separação dos géneros. Agora, eu tinha vagamente a dúvida se isso estava bem.

 

Ou se estava a transgredir...

E se a transgressão era um erro. Isso acompanhou-me durante os quatro, cinco primeiros anos de teatro. As eleições de 69 ajudaram-me a perder essa coisa do: “Isto será bem, ou é só indisciplina, galderice?”

 

Esse é o lado persecutório da educação.

Sim. Vamos voltar à educação do antes do 25 de Abril: politicamente eu sabia que não era como Salazar e a ditadura queriam, que não era como Hitler quis. E fui-me informando, fui sabendo. Mas do ponto de vista do comportamento tinha algumas dúvidas se não era tudo mais tranquilo e feliz dentro dos padrões que estávamos a ultrapassar.

 

Estava a vida, dentro de casa, dentro de si, a latejar. No filme, quando o miúdo assiste a uma discussão que a Rosa tem com a família, diz: “Eu achava que a minha família era fodida, e afinal a tua...”. A dela que parecia muito composta. Adoptando o palavrão, todas as famílias são fodidas, à sua maneira?

Pois, [pergunta] se a família não é uma estrutura repressora? Cada um sente a sua liberdade e o seu anseio de liberdade à sua maneira, e a família quase sempre cerceia essa liberdade. É muito difícil encontrar essa harmonia. A família é uma estrutura de defesa, dificilmente abre brechas na fortaleza que é. E a liberdade abre sempre brechas. E torna essa fortaleza numa estrutura mais frágil.

 

Rosa reconstitui esse ideal de família com um jovem rapaz, cuja família é desestruturada, e que tudo o que quer é uma muralha. Se calhar, é porque é uma coisa escolhida e construída, e não tem nenhum dos problemas que a família de origem tem...

Sim. Eles estão a pôr as primeiras pedras, e aquele terreno é tão deserto... Ela não tem ninguém em quem possa confiar, ele não tem ninguém, mesmo. E aquilo está tudo a nascer, aquela confiança está toda a nascer.

 

Nunca perseguiu, para si, na sua vida, o sonho da família estável?

Não. Mas na primeira fase do meu primeiro casamento era isso que desejava. Era o tal sonho da minha avó [riso]. O que me apetecia era levar o mais longe possível a minha liberdade, a minha vontade de fazer... mas com uma casa, um marido, filhos sólidos, um emprego. Foi por pouco tempo, cinco anos, que desejei muito isso.

 

O filme é também sobre o envelhecimento. É duro para si envelhecer?

É, muito.

 

Tem 70?

Tenho. Tive sempre um conflito muito grande com a idade. Está mal feito, mal pensado! Devíamos chegar à maturidade, ficar assim, e quando já tivesse passado o tempo, desaparecíamos. O envelhecimento, a doença, a dor são coisas muito más.

 

O que lhe pesa são as mazelas do envelhecimento? É não ter a mesma frescura?

Se não houver mazelas, não faz mal nenhum. O pior é a perda de energia, de vontade, de curiosidade. Desde sempre tive horror à velhice. É uma cavalgada inexorável para a morte. E a malta anda aqui a apagar velas e a cantar os parabéns, muito contentes, e não percebe que está a ir para velha [riso]. Custa-me sobretudo a ideia de morrer. Tenho imensa pena. Tenho quase a certeza que na base de eu querer ser actriz está achar que viver uma vida é pouco. Durante dois meses estou ali a viver outras coisas, a aprender outras coisas. Aquela vida é mais real para mim, mais desafiante, mais interessante do que a minha.

 

Porque ilude o medo de morrer?

Porque ilude o medo de ter só esta vida. É muito injusto, há muita coisa à nossa volta que nos desafia e que podíamos experimentar.

 

Foi dizendo várias palavras que sublinhei. Quer escolher uma para terminar? Uma palavra de que goste e que seja uma afirmação de vida.

Leveza. Passei a dar mais valor à leveza e a fugir a tudo aquilo que ma possa tirar. Outra palavra de que gosto muito é alegria. A alegria está perto da santidade. (Sou agnóstica desde os 13 anos, as pessoas riem-se quando digo isto...) Não se pode ser alegre no mal. Só se consegue ser alegre no bem. Fujo a sete pés de qualquer coisa que me tire a leveza e a alegria. Só quero isso.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2014

 

Ricardo Pais

26.03.20

Ricardo Pais é encenador. Pressente o teatro na sua vida como uma coisa insidiosa – um karma. Que é uma palavra inesperada numa «pessoa tão estruturada» quanto ele, diz ele. Quando se exilou em Londres, quando era muito jovem e contava com adversidades várias, fervilhava na urgência de ser refractário. Mas se fugir à tropa e à guerra colonial eram o pretexto, estudar teatro era «o super-objectivo».

Foi em Inglaterra que lhe disseram que devia ser encenador e não actor. Que devia tomar o seu destino nas mãos. O destino está sempre na mão de quem imprime as mudanças. De quem escolhe. Os papéis, os rumos, o que for. Foi em Inglaterra que um amigo lhe disse que ele não sabia o que é a humildade. Que devia mandar, por isso. Foi aí, ou foi antes, já não sabe bem porque as biografias são sempre uma reinvenção de nós próprios, que percebeu que a obsessão era fazer bem feito. Interpretar, cozinhar, guiar turistas pela National Gallery.

Antes disso, cá, aprendeu com o argentino Victor Garcia que o «palco é um lugar de uma pluralidade sensorial, sonora, visual». E aprendeu cedo, com o pai, que os «actos de variedades» promovidos por um grupo de teatro amador, lhe permitiam esganiçar-se frente a um microfone, estar no centro do palco, ser aplaudido. Mas isto foi há tanto, tanto tempo... Maceira-Liz, anos 50, uma cartografia improvável.

No Teatro Nacional de S. João, no Porto, recoberto a veludo e de um dourado sumptuoso, pulveriza um trabalho de toda uma vida. Subverte códigos, investiga linguagens, transcende a lógica interpretativa dos textos dramáticos. O projecto da sua vida.

E agora, Ricardo? A meses do final do segundo mandato e de um ciclo de dez anos, desenrola um balanço num sábado de manhã, num camarim do TECA.

É torrencial, vibrante e infinitamente carismático. É casado com a Regina, cuja presença, tutelar, se sente ao longo de toda a entrevista. Têm dois filhos. Tem quase 60 anos. 

 

 

Que biografia escreveria de si se tivesse ainda todas as páginas em branco?

Eu detesto biografia!, é um género que me irrita imenso. Há umas que foram marcantes para mim – a do Lawrence Olivier, a da Marlene Dietrich. No outro dia ia a passar em frente a uma montra e perguntei-me se gostaria de ter a minha biografia escrita. Pensei que não.

 

Porquê?

A gente só se revê naquilo que gosta que se diga de si. E há uma fatalidade nas biografias, que é a mentira. Porque a verdade de referência não existe, é completamente subjectiva. Não escrevia biografia nenhuma minha e agradeço que não escrevam nunca!

 

Nas biografias da Marlene e do Lawrence Olivier, o que é que lhe pareceu mais palpitante?

No caso do Olivier, deu para perceber os tormentos e as paixões de toda uma vida dedicada ao espectáculo, uma vida árdua e muito investida. É um personagem sobre o qual tinha feelings muito contraditórios; cheguei a querer sair de um espectáculo a meio porque não gostava nada do que ele estava a fazer, e assisti a outros absolutamente fascinado. Representava em termos de escola o que recusei toda a vida – a chamada escola inglesa do século XX; mas, por outro lado, era uma presença magnética e um actor com uma capacidade de composição desumana.

 

E a Marlene?

Era uma biografia autorizada que permitia perceber como é que se cria um mito e como é que os traços desse mito acabam por ser matéria de trabalho. Tudo indica que os mitos são feitos de informação, são feitos da mentira. Marlene Dietrich era o resultado da imagem que ela tinha criado de si própria e da alimentação dessa imagem até à exponenciação total. Isso interessava-me imenso, não só porque tem muito que ver com o teatro, como com a minha obsessão com a imagem das coisas, incluindo a de mim próprio.

 

É uma construção que não encontra limites?

Ela tem limites claros. Eu vi-a. Era uma pessoa de muita idade e vestia a sua célebre cinta, a que ela chamava medieval, aquele corpete que a mantinha numa linha fabulosa, e tudo aquilo era construído como se fosse uma evanescência. Com casaco de arminho, passava como uma pluma... E isso era tudo construído. Estava vestida, maquilhada e encenada para que em palco tudo resultasse assim.

 

O que então procurava era o contrário da encenação minuciosa. Procurava a verdade na representação.

Ah, continuo à procura. Uma verdade.

 

Mas o que é isso? O que é que lhe interessa na construção de um personagem, de uma pessoa?

Todos procuramos o máximo de excitação, com o máximo de verosimilhança e honestidade. Há 30 e tal anos, eu achava que não era honesto vendermos a imagem de nós próprios rigorosamente construída por fora. Achava que só o que de dentro para fora gerava imagem é que era autorizado.

 

Estava a ouvi-lo e a pensar em dois autores: Oscar Wilde e Sarah Kane. Nunca o imaginaria a encenar Sarah Kane, e imagino-o a encenar seja o que for de Oscar Wilde.

Sabe que o Manoel de Oliveira vai fazer “O Retrato de Dorian Gray”? É muito curioso que o Manoel se interesse por esse tema.

 

É o tema da beleza e da imortalidade. O Oscar Wilde exerce fascínio sobre si?

Os ensaios são fantásticos. O teatro acho fabuloso, também. É uma espécie de vaudeville de luxo, tem que ser feita com uma delicadeza e uma elegância fora de série. Tenho em relação a Oscar Wilde uma sensação que tenho em relação a muita coisa: o teatro é sempre uma arte menor, até na cabeça de quem o escreve. [Os autores] guardam o que é mais interessante para escrever em ensaio, em romance. Ionesco, evidentemente, é uma excepção, mas é um dramaturgo.

 

Mas isso porquê? Porque é do domínio da terra?

As pessoas apostam menos na ruptura quando escrevem teatro. Não é a atitude do Beckett, mas acontece com muitos autores. Acho mais interessante o Saramago como romancista do que como dramaturgo.

 

Quando o texto não é, à partida, susceptível de ser transformado numa peça teatral, tudo fica no plano das ideias e a ruptura é mais fácil. Quando se imagina uma dimensão terrena, um corpo que diz e interpreta, há uma convenção social que impossibilita que aquilo seja transposto para outro plano. Percebe o que quero dizer?

Percebo, e acho que tem razão. O teatro é uma arte sedimentada e de memória, as pessoas pensam sempre nele assim. Durante anos tentei mudar isso veementemente. Metade da minha vida foi feita a fazer teatro ao contrário, a provocar, mesmo à volta de textos convencionais, trazendo para dentro desses textos um conjunto de liberdades imagéticas que pudessem criar uma dimensão outra.

 

Estava a pensar no “Um Hamlet a mais” (2003). Nesse espectáculo, coexistiam a elegância da esgrima, o canto, o bailado num espaço delimitado, numa pequena geografia. Tudo aquilo era muito coreográfico.

Todos os meus espectáculos são marcados ao milímetro. Naquele nota-se mais. Havia momentos em que as pessoas se mexiam com a música, tinha-se a sensação de estar a ver dançar.

 

O modo como os actores estavam uns com os outros, era, ao mesmo tempo, muito sensual. Há um lado sensual no seu trabalho que eu acho que deriva da preocupação com a estética.

Felizmente foi ver o Caravaggio antes de falar comigo! [alusão a uma conversa anterior na qual eu falava da exposição do pintor em Londres] É fácil dizer-se do meu trabalho, nomeadamente de coisas como o «Hamlet», que ele parte de um conceito frio e desenhado no qual encaixam os actores; em vez de se dizer que foi construído a partir do trabalho dos actores. E na verdade foi.

 

Então, o ponto de partida é?
O ponto de partida são eles, ali. No «Hamlet» a esgrima ia ser condicionante de tudo. Havia aquela espécie de ludicidade elegante sobre a morte que é a esgrima. O grande trunfo do “Um Hamlet a mais” é a solidão. A solidão do Hamlet, a solidão da mãe, do pai. A minha mulher, que diz sempre as coisas mais acertadas sobre mim (isto não é rábula de Hollywood...), considerou que aquele era o espectáculo mais bonito que eu tinha feito depois do “Fausto, Fernando, Fragmentos” (1989). Era um espectáculo de construção muito parecida, aparentemente errática, seguramente a história toda ao contrário. São territórios onde, conhecendo bem a matéria-prima, me movimento com uma liberdade enorme.

 

«Hamlet» podia ser uma peça do domínio das artes plásticas. Ou podia ser um momento cinematográfico. Era um condensado de manifestações artísticas, não parecia ser “puramente” teatro.

Durante muitos anos, ainda ninguém estava nessa, e eu já estava no multimédia, no vídeo – fiz muitas experiências com o Joaquim Leitão. Desenvolvi o conceito, (que não tem nada de original), o conceito do teatro como lugar de encontro performativo, de encontro de várias artes.

 

Quando é que começou a pensar o teatro desta maneira? Em Londres?

Eu já não penso só de uma maneira. Eu penso de várias maneiras. O encenador é um intérprete. Tenho marcas de interpretação muito pessoais, e eventualmente tenho marcas de estilo que me distinguem, mas não me considero um autor, no sentido em que Manoel de Oliveira é um autor ou Renoir é um autor, ou Bob Wilson ou Laurie Anderson. Não construo espectáculos a partir de nada, não vou juntando coisas, todas da minha lavra, para dentro do meu espaço. Estou a interpretar um texto, juntamente com outras pessoas. Sou um leitor, como o público o deve ser.

 

Está bem, mas não é um encenador convencional...

Os encenadores são as pessoas que conseguem fazer da arte da interpretação uma arte própria e conseguem criar marcas claras da sua própria personalidade. A encenação é uma arte, é preciso ter método, é preciso saber construir com princípio, meio e fim. Conheço poucos encenadores a sério. Não só aqui. Trabalhos de actor fantásticos, mas sem marca estilística própria; muitas vezes com falhas graves do ponto de vista do gosto, no sentido de produzir para aquele universo as referências que o fazem parecer bonito, em vez de estar sistematicamente a tropeçar, (como faz na mobília), nos adereços.

 

Tralha?

É. Isso é o que mais odeio no teatro. Eu estava morto por me vir embora de Inglaterra, porque nunca pude com a tralha inglesa, a decoração vitoriana. O groth inglês é insuportável.

 

O equivalente português é o bibelot, a jarrinha, o naperon no sofá?

Um pouco. Mas uma boa parte dessa despesa, desse pires, já está feita nas telenovelas.

 

Chega a Londres, é encaminhado para o curso de encenação quando o que quer é ser actor. É engraçado terem outros descoberto em si qualquer coisa de essencial que ainda não tinha descoberto. O seu talento maior era para conceber, para dar a ler, e não para…

Não para actuar.

 

O processo de aprendizagem é sedimentado com o que lê, consome, vive. Tudo isso cria a sua marca estilística própria.

Era já visível que eu não estava na escola como os outros estavam.

 

Conte-me lá isso.

Sentiam que tinha grandes preocupações com a plasticidade, com os valores volumétricos, com o desenho. Os professores, os directores, sempre me acharam um bocadinho perigoso por isso. Embora, o meu trabalho de direcção de actores fosse tão apaixonado que ficava compensado. Aquilo era uma escola em que a direcção era ensinada como método de conduzir actores a determinada coisa. Como reinterpretação da interpretação dos actores e somatório delas.

 

Desistiu de ser actor?

Fiz muito mal em deixar de ser actor. Há tanto de bom no que eles me fizeram como de mau. Se tivesse sido actor, teria tido um destino completamente diferente.

 

Seria uma outra biografia.

Exactamente. Reconheço que o saldo da minha vida é muito positivo, porque tive, de alguma maneira, o destino nas minhas mãos. O futuro do teatro está sempre na mão dos encenadores. Raramente está na mão dos actores. O devir histórico do teatro é sempre marcado pela presença de encenadores. Quem decide, quem faz as peças, quem as distribui são encenadores. Quem mais livre foi estes anos todos que o Luís Miguel Cintra? Ele pôde escolher o que quis, e escolheu quase sempre maravilhosamente bem, e fazer o que queria, inclusive como actor nas suas próprias encenações.

 

Nunca teve uma companhia sua.

Nunca quis ter um grupo de teatro nem uma companhia. Pode dizer-se que temos a companhia do Teatro de São João... São pessoas que aprendem todos os dias nesta casa, têm aulas de voz permanentes, têm treinos de esgrima, têm treino de dança, têm ioga. Isto aqui é uma escola.

 

Imagino que seja uma dor de alma para si ver o João Reis, o seu actor, a fazer uma telenovela.

Por acaso, acho que ele faz com muita dignidade, qualquer pessoa vê logo que ali está um actor. A maior parte das pessoas que ali estão são umas criaturas que aprenderam a falar como quem está na discoteca, qualquer que seja o drama familiar, e desatar aos gritos assim que há um problema.

 

Ficamos esclarecidos quanto à novela! Gosta de melodrama?

Adoro, adoro. Adoro Fassbinder. Muitas coisas do Kurosawa são completamente melodramáticas e não perdem a dignidade. Não é o género que vitima necessariamente o trabalho, é a maneira como ele é abordado.

 

Isto é uma escola.

Estas pessoas confiam que a distribuição de trabalho que lhes fazemos é a boa distribuição, que os ajuda a progredir. Muitas das escolhas aqui na casa são feitas em função dos actores que vão estar disponíveis para cada projecto. E isso sim, é o espírito de companhia.

 

Está a chegar ao fim do segundo mandato à frente do S. João e ao fim um ciclo de dez anos…

Dez anos com um intervalo de dois – há [a direcção de] Zé Wallenstein.

 

Isto foi o grande projecto da sua vida?

Foi e é. Não quero ter mais nenhum, já não tenho idade, estou quase a chegar aos 60.

 

Chega?

Acho que sim, e seria incapaz de começar um projecto noutro sítio qualquer. Fui muito afortunado aqui porque encontrei logo as 30 pessoas que cá estavam, fantásticas, imensamente jovens. Os que fomos juntando foram peças fundamentais na sedimentação do projecto.

 

Foi fundamental ter tido como interlocutor Manuel Maria Carrilho no Ministério da Cultura? Não poderia ter feito este teatro sem ele?

Não se podia ter feito o Porto! É uma coisa que as pessoas estão a tentar esquecer. O que o Manuel Maria propôs, se deixou raízes em muitos sítios, foi muito traído noutros. Num país como o nosso, em que tudo passa pela administração pública, em que viver com a administração pública pode ser um pesadelo, ter a total confiança da tutela, saber que qualquer um de nós telefona ao ministro directamente, que tem no ministro um interlocutor válido, capaz de desencadear os mecanismos que nos permitem resolver os problemas com alguma agilidade, foi fundamental. Era uma grande diferença funcional. Mas a principal nota positiva desse tempo está naquilo que lhe disse: nós trabalhámos com um conceito de cidade. A crise ou a perda de Manuel Maria Carrilho não foi só a perda de um político que decidiu zangar-se. Foi a perda de um conceito inteiro de cultura, de quem toda a gente herda as pontas e reinterpreta mal, ainda por cima. 

 

Há dez anos, acreditava que Serralves e o São João iam ser um sucesso de público?

Se não acreditasse não tinha vindo para cá. Se há coisa que se inveja na vida é Serralves!, se há sítio onde se gostava de viver é Serralves. Não foram apenas as condições que o Manuel Maria Carrilho me deu, não sou propriamente um protegido do Manuel Maria Carrilho. Somos enormes amigos, tenho um respeito e uma admiração por ele únicos, mas não foi isso que fez o meu trabalho. Fui eu que fiz o meu trabalho, e por causa disso é que consegui aguentar-me contra ventos e marés, como diria o Dr. Pedro Santana Lopes. Os ventos e marés eram precisamente o partido dele. Consegui aguentar estes anos, de cara lavada, embora muito atrapalhado financeiramente, continuando a manter o prestígio e o bom trabalho no Teatro de São João.

 

Tem muito público. O que é sempre bom, e surpreendente.

Porque há uma compulsão de comunicar. Um dos grandes problemas do teatro é que não comunica ao mesmo nível que as outras artes comunicam, ou não quer fazê-lo. Comunica-se sempre de uma forma menos interessante, e quando tenta ser publicitário ou mercantil é quase sempre ridículo.

 

Porquê?

Porque as pessoas não sabem decantar a mensagem cultural e artística através das imagens de todos os dias, daquelas que se podem espalhar no metropolitano e não segregam as pessoas.

 

No sucesso do S. João entra também o seu talento para a comunicação?

Não é bem o talento, foi uma coisa criteriosamente trabalhada, como um cão. Aprendi a interpretar o que é preciso pôr num cartaz como aprendi a ler o Shakespeare. O que é que torna a cena três do acto dois, ou a cena dois do acto três, do “Noite de Reis” um pesadelo? O que é que mecanicamente é preciso desmontar para se conseguir ser claro, ter os planos todos activados de maneira a que o público perceba o que se está a passar?

 

A pergunta é: qual é elemento mais estruturante, ínfimo, a partir do qual…

A partir do qual se pode construir uma coisa. Exactamente.

 

Isso é seguramente válido para a construção de uma cena e para a comunicação de uma peça...

Certo. Trabalhar um texto no dia-a-dia é uma coisa duríssima. Não imagina o que sofro a fazer o UBU’s [de Alfred Jarry, em cena no Teatro Carlos Alberto, no Porto].

 

Mas o que é isso de sofrer?

Para já, é não perceber bem o que se está a dizer. Enquanto não percebo o que é que estou a dizer com o espectáculo, sou infeliz.

 

Porque vive na interrogação.

Vivo na interrogação, temática, ética, ontológica. Depois de tudo estar encaminhado, ainda há aquela coisa: resulta ou não resulta? Aquilo que estou a dizer chega às pessoas, não chega às pessoas, e como é que chega às pessoas? Para mim o espectáculo acabava no ensaio geral. O momento em que público entra é um desastre, embora adore pensar que cinco mil pessoas viram o «Hamlet» em seis dias. É fantástico, é lindo, é muito, muito comovente. O momento em que o público entra na sala é uma invasão da privacidade dos espectáculos. Não gosto muito de ouvir opiniões. Com toda a franqueza, só gosto de duas ou três. Oiço com toda a cordialidade, às vezes registo coisas que mais ninguém registaria, às vezes há uma pequenina coisa, sem qualquer importância que fica para a minha vida toda.

 

Mas ouve ou não ouve as opiniões?

Preferia não ouvir o que a maior parte das pessoas tem para me dizer. Preferia ficar comigo próprio porque sou tão crítico com os meus espectáculos, mas tão diabolicamente crítico... Eu vejo os vídeos, e a quantidade de coisas que desejaria que não fosse assim... Não imagina quantas são. Gostaria de ter sido infinitamente mais solto do meu próprio ideário, infinitamente mais longe de mim próprio, mais “original”, o que todos queremos ser.

 

Está assim tão fundido, revê-se assim tanto nas cenas?

Revejo-me completamente no trabalho. Não acho que o teatro tenha qualquer importância. Acho que se sair amanhã do teatro sou um homem feliz. Alguma coisa tenho que fazer porque sou hiper-sinestésico. Mas quando ali estou é uma questão de vida ou de morte. Também era assim quando era guia turístico ou quando fazia cozinha. Também é quando me debruço sobre uma questão gráfica ou de comunicação. O Teatro de São João e o Porto, sem qualquer veleidade e com muitos risos pelo meio, tiveram a sorte de me apanhar no momento em que podia fazer convergir num mesmo lugar tudo aquilo que tinha aprendido.

 

Cinquenta anos.

Sim, cinquenta anos. Na verdade, sempre desejei trabalhar em teatros a sério. Sempre gostei de teatros a sério. Em 78, 79 estava no Trindade, a fazer encenações a sério, com cenografia como deve ser, à grande e à francesa...

 

Mais à inglesa?

Não, à francesa. A minha escola de encenação é completamente continental.

 

Mas a sua inspiração é, culturalmente, anglo-saxónica…

Nesse sentido, talvez fosse mais americana. A minha escola era a única que ensinava o método de Stanislawski na altura em que fui para Londres.

 

É interessante a ideia de que tem que ser bom, seja a cozinhar, seja a ser guia turístico…

Tem que ser obsessivamente bem feito.

 

É vida ou morte.

São tudo questões de vida ou morte. Tenho que ser, ainda hoje, aplaudido pela minha cozinha em casa. Se as pessoas não disserem três vezes que está muito bom, fico preocupado. E já não é o público. O problema com os encenadores é que são excluídos dos espectáculos, deixam de estar à mesa a partir das estreias. Sou excluído do processo.

 

Precisa dessa aprovação?

Não é bem aprovação. Todos gostamos de saber que as pessoas se sentiram recompensadas com um espectáculo quando ele é mais provocatório, como é o caso do UBU’s, ou “As Lições”, porque aquilo é chocante.

 

A opinião da sua mulher é importante?

É fundamental.

 

Já reparei. No conjunto de entrevistas que li…

Falo muitas vezes dela?

 

Ao mesmo tempo, é uma figura muito discreta. Não a vemos nunca.

Faz questão de não vir às estreias, recusa-se liminarmente a ser fotografada para os jornais e para as revistas. É o anti-público. Os filhos já saem mais ao pai, nesse aspecto.

 

O que é que ela é? É rochedo, é casa?

Sabe, quando se tem uma vida inteira, de 30 e tal anos, com uma pessoa, é muito difícil encontrar a imagem sintética.

 

É que parece sempre pulverizado…

Não pareço pertencer a nada em particular, é isso?

 

É. Está sempre lançado.

Um dia a minha família entrou toda no ensaio do “Clamor” (1994), e eu devo ter feito a festa da praxe. Era a primeira vez que o André Gago, que estava a representar, via a minha família. Ele dizia-me: “É tão comovente, a gente vê-te tão prolixo no relacionamento com as coisas... Ver-te como pai de família, é como se fosse outra pessoa”. Mas a família não tem que estar no teatro.

 

E o teatro não é uma família, que é outra ideia que tem que ver consigo. Isto não é uma comuna…

Todos esses conceitos, tribo, família, ensemble, são expressões, variações sobre o tema comunitário do agregado teatral, que nunca subscrevi particularmente.

 

Mas então como é que é em família, com a Regina e os dois filhos? Como é que é esse homem de família que não vemos?

- Isso tinha que perguntar-lhes a eles. Eles têm uma visão de mim completamente diferente. Sou menos bom do que desejaria, embora tenha trazido a todos, incluindo à minha mulher, muita coisa que, se eles tivessem procurado, se calhar não tinham encontrado. Mas eles também me trazem o mesmo a mim. É como tudo. Em casa, sou uma pessoa vulgar, não tenho comportamentos divescos, nem vivo num mundo à parte. Se entrar na sala de ensaios, sentirá que família também é ali. A ternura que circula entre nós, o à vontade com que as pessoas estão a trabalhar...

 

Eu já assisti a um ensaio seu, d’ «A Castro», e imaginei que em casa não seria muito diferente daquele registo.

E não é. A Regina e eu temos preocupações tremendas com eles [os filhos], passamos a vida atormentados com o futuro deles.

 

Mas eles já são crescidos.

Pois são, o que é que quer? Ora aí está.

 

Um deles é actor e trabalha consigo.

Já não trabalha; vai trabalhar em comunicação e acho que faz muito bem. O outro está a estudar Psicologia e quer ser actor. Uma boa parte da nossa vida de marido e mulher é passada a pensar numa coisa chamada futuro, que já nem sei muito bem o que é, acho que já passou; e nos filhos, que, de alguma maneira, são esse futuro.

 

Isto reproduz a sua família de origem?

Nada.

 

Era tudo compartimentado, independente, quando era pequeno?

Não exactamente. Quando era pequeno era tudo muito “livre”, na medida em que não havia padrões éticos muito claros. A minha família não era propriamente uma família. Aos dez anos fui para um colégio interno, nunca mais tive pai e mãe na mesma casa, os meus pais separaram-se quando eu tinha 13. Eu sou filho de divorciados dos anos 50.

 

Coisa rara. Dessa descrição dos anos 50, que li algures, guardo a imagem das vivendas com os pequenos jardins, as senhoras de saias rodadas – uma coisa muito cinematográfica. Os papéis estavam firmemente distribuídos, era tudo arrumado e compartimentado.

Havia muitas famílias de saias rodadas e saiotes por baixo que apenas escondiam uma formalidade, não eram necessariamente famílias equilibradas.


Sim, mas as famílias são todas disfuncionais, ou não? [risos]

[risos] A minha era com certeza. As minhas irmãs e eu, ainda hoje, quando voltamos a esse tema, ficamos com a nostalgia de uma família a sério e de uma casa só. O meu pai estava em Viseu, a minha mãe estava em Lisboa. Havia um desamparo que tentámos, os irmãos, resolver nas nossas próprias famílias. Se tenho uma certa obsessão com os miúdos é em grande parte por isso: por ter sentido que durante anos e anos não tive ninguém que me protegesse. Até me encontrar com a Regina e passar a viver com ela em Londres, em 68, 69.

 

Encontraram-se lá?

Não, eu fui daqui e ela foi ter comigo. Casámos lá. Mas já namorávamos desde os 16 anos.

 

Isso é uma história de amor como já não se usa…

Desde cinco de Novembro de 56.

 

Por que é que gostou dela, consegue perceber?

Foi à primeira vista. Vi-a no pátio do liceu, achei que era muito engraçada, que me estava a piscar o olho.

 

E estava?

Não. Estava apenas a olhar naquela maneira muito particular dela. E depois, era também um caso de relação ferozmente difícil com o pai, como eu era ferozmente difícil com a minha mãe. Encontrámo-nos numa espécie de limbo psiquiátrico…

 

É sempre assim que as pessoas se encontram? E por que é que se apaixonam por aquela pessoa e não por outra?

Não tem que ver necessariamente com isso. A atracção é a atracção. Foi uma história longa. Partilhámos muita coisa. Devo à Regina ter tido a coragem de ir estudar para Londres quando era tão caro, tão difícil. Eu não tinha nenhuma bolsa de estudo, não era como o Luís Miguel [Cintra], o Jorge [Silva Melo] que estavam com bolsas da Gulbenkian. Não tinha nada porque a Fundação achava que não se devia investir em pessoas que eram refractárias à tropa e que provavelmente não iam voltar ao país. E não tinha um nome sonante, chamo-me Pais. Se reparar, a árvore genealógica da cultura portuguesa é toda feita de filhos, filhos, filhos. E os nomes, quando são sonantes... Chamar-se Lobo Antunes não é brincadeira nenhuma.

 

Por isso é que há um rapaz chamado José Maria Vieira Mendes, que é também Lobo Antunes, e que usa aqueles apelidos.

Tirou-me as palavras da boca. E que bem que ele use o nome da mãe que era fantástica!

 

Mas foi estudar para a Londres, impulsionado pela Regina.

Tínhamos que trabalhar imenso para pagar as propinas. Trabalhei dois anos ininterruptos. Trabalhava até sexta-feira na escola, sexta-feira à noite no restaurante, sábado de manhã ainda ia à escola, sábado à tarde estava no restaurante, ou guiava turistas (mais tarde fiz o curso de guia), trabalhava domingo à noite, vinha para casa entre a meia-noite e as duas, e voltava para a escola às sete e meia da manhã na segunda-feira. Nunca nos faltou nada, estávamos muito bem, divertíamo-nos.

 

Divertiam-se?

Imenso, e viajávamos. A Regina tinha sempre os seus pés de meia para as viagens, muito organizada com as finanças_ que é uma das minhas grandes dificuldades.

 

Não sabe lidar com dinheiro?

O dinheiro é ridículo e não gosto nada de lidar com ele. Tenho uma relação muito desprendida com o dinheiro e é por isso que as pessoas pensam que sou rico. A minha avó já dizia que nasci para ser rico. Pura e simplesmente detesto fazer contas. Acho que vai-se andado até dar. Penso que devo ter sido o único que se formou por lá sem apoio nenhum.

 

Por que é que não se aquietou? Acreditava suficientemente em si? O que é que queria para a sua vida?

A Regina diz-me agora que estou a mentir muito sobre mim próprio, que digo: “Nunca gostei particularmente de teatro, sou muito avesso ao teatro”. No outro dia a Regina disse-me: “Se é isso, para que foi uma vida inteira de sacrifícios a dois?”. Realmente, senti-me muito mal por ter dito aquilo, foi muito frívolo da minha parte. Eu fui daqui exilado, fugindo à guerra colonial, teria fugido à tropa nem que fosse para lavar escadas; mas na minha mira estava estudar teatro. Era o super-objectivo, esteve sempre lá. Mas entendo-o como uma espécie de praga que me foi imposta, como se tivesse sido condenado a estudar teatro ou a fazer teatro. O teatro era uma espécie de condenação, um karma. É ridículo usar este tipo de linguagem, uma pessoa aparentemente tão estruturada quanto eu...

 

Por que é que foi o teatro, porquê esse karma?

De miúdo, gostava de me exibir, de ler poemas, cantar canções, pôr-me em pé em cima de uma cadeira para chegar ao microfone. Aos cinco anos participava nas coisas do meu pai, de teatro amador, na Maceira-Liz. Depois na faculdade, o trabalho com o CITAC fascinante.

 

Mas quando vai para a Universidade é para estudar Direito, segundo consta da sua biografia. Voltando à ideia inicial, há os factos, depois há a deriva, depois há a invenção. Como diz a Regina, as pessoas inventam-se a elas mesmas quando se analisam retrospectivamente. 

É por isso que as biografias parecem sempre mentira, principalmente as autobiografias.

 

O Direito, que consta dos factos biográficos, não conta para nada. Mas o CITAC, estava a dizer, foi importante.

Foi importantíssimo. Tive contacto com algumas pessoas muito interessantes, o Jacinto Ramos, o Carlos Avillez e finalmente o Vítor Garcia. Com o Vítor Garcia tive a percepção de que o teatro era uma coisa gigantesca, que não tinha apenas que ver com personagens e intérpretes.

 

Era como o mundo todo caber num espaço limitado?

Essa é a grande utopia isabelina: o teatro como mundo. A pluralidade do universo audiovisual foi uma coisa que descobri com o Vítor Garcia. E foi por ter falado tão entusiasticamente disso na entrevista para o Drama Centre que eu acho que eles acharam que eu devia ser encenador.

 

Do que falou exactamente?

Falei da minha experiência enquanto actor ter sido vivida em função do que se pretendia, em função da encenação, no sentido mais nobre, lato e genial do termo.

 

O destino, como dizia, está na mão dos encenadores.

Então, eu devia ser encenador. Agora, se ouvir o meu disco perceberá o défice que foi, ao longo dos tempos, não ter estado em cena. Esse défice foi muito grave porque perdi a solidariedade com os que estão em cena. Não experimento o medo do lado deles, experimento o medo do lado da plateia. Também é verdade que há coisas que transmito às pessoas que só posso transmitir fazendo. O António Rama há tempos dizia-me: “Ensaiar contigo é fazer o que tu queres que eu faça”. Se eu fizer, ele é capaz de fazer a seguir.

 

O que é que ficou do desejo inicial de estar no palco, de ser actor?

Quando faço, aparentemente, sou muito expressivo, o que quer dizer que ficou lá a compulsão de representar, ou a compulsão de pôr as pessoas em acto. As pessoas percebem que há uma compulsão em vê-las fazer bem, como haveria se fosse eu próprio a fazer.

 

E assim foi alterada a rota da sua vida.

A minha vida? Eu fui roubado ao palco para fazer o palco. Mas o débito está lá. Eu quereria ter-me visto representar, eu quereria ter-me visto cantar.

 

Optando pela encenação, pôde ser o autor da sua biografia.

Sim, isso de alguma maneira pode dizer-se. Um amigo brasileiro dizia-me: “Você nunca se poderá dar muito bem comigo porque, tal como eu, não sabe o que a humildade é”. Houve outra pessoa muito importante, o Ruy Leitão [artista plástico, filho da pintora Menez], que entrou num espectáculo meu e a certa altura disse: “Tu, para estares a fazer isto bem, devias ouvir o que as pessoas têm para te dizer, em vez de estares sempre a dizer o que é que se deve fazer”. Foram dois pontos fundamentais do meu refazer ético: tinha que pôr a minha egocentria a produzir para fora. E a assumir que não era humilde e que tinha que mandar, mas que mandar tinha que ser uma coisa perfeitamente sublimada. Todo o processo da minha vida, a minha biografia, é a história de uma pessoa que tentou sublimar os seus próprios egos.

 

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias 

Beatriz Batarda e Luís Miguel Cintra

26.03.20

“Qual é a qualidade que mais aprecio num actor? A generosidade. Consiste no gosto de se expor, correr riscos, estar aberto a outras pessoas. É precisar deixar que lhe aconteçam coisas. Quando partimos para a profissão com a intenção de ser admirados, não estamos abertos à surpresa, à curiosidade, à generosidade da profissão e da vida”. Luís Miguel Cintra não disse isto a propósito de Beatriz Batarda, mas poderia ser.

Os dois encontram-se em Setembro, na Cornucópia, na peça encenada por ele e protagonizada por ela: “Ifigénia na Táurida”, de Goethe.

Batarda entrega-se com generosidade. Cintra está disposto a correr riscos. Mais do que tudo, é um reencontro de dois cúmplices.   

 

Porque é que decidiu encenar “Ifigénia na Táurida”?

LMC - Por sugestão do Frederico Lourenço, que fez a recriação poética do texto. Em Goethe, sente-se um profundo repensar do que é o Ser humano, o que é a Liberdade, o que são as relações do Homens uns com os outros, os Valores. Isso faz do texto uma obra apaixonante.

 

Algures na peça pode ler-se: Ifigénia teve a ousadia de determinar o seu destino.

LMC – Era um papel ideal para a Beatriz. Há nela uma aparente fragilidade física que convém à Ifigénia, mas sobretudo um domínio das nuances da alma humana e da representação indispensáveis à personagem. Na peça, tudo assenta no que se passa na alma de cinco personagens, e sobretudo em Ifigénia. Não há grandes façanhas de encenação, cenografia, etc. É um espectáculo de câmara. A única ideia que eu tinha era: despojamento máximo, verdade total na relação com o texto, ausência de exposição [do actor].

 

Porque é que Ifigénia é desafiante para si?

BB – Certas personagens aparecem na minha vida na altura certa. O que me tem permitido fazer uma viagem de descoberta e crescimento, que não acabou ainda. Aconteceram muitas coisas no último ano na minha relação com a profissão. Aconteceu ao nível da técnica, do exorcizar do meu narcisismo. Cheguei a um momento em que aceito as minhas fragilidades. É bom que a técnica seja dominada, mas ela é apenas um instrumento.

 

A ideia é: dominar a técnica para a seguir a esquecer?

BB - Dominar a técnica torna-se o objecto da nossa obsessão e do nosso esforço. Fica uma coisa muito cerebral, fechada sobre o domínio do texto, da interpretação, da relação com o público. Tem um efeito contrário: contribui para a minha desumanização. Porque o público não se reconhece, não reconhece a sua própria humanidade. Faz comentários à habilidade da actriz, ao fogo-de-artifício, mas não sente nada. Quando percebi que isso me estava a acontecer fiquei triste, porque não é essa a minha viagem.

 

Pode explicar essa constatação, esse processo?

BB – Começou com “O Construtor Solness”, depois “De Homem para Homem”, e finalmente com “A Menina Júlia”. Houve um mergulho que foi um equívoco. Quando surge uma peça cujo tema é: quem é que domina?, os deuses, o destino, nós próprios?, a quem cabe a decisão?…, isso tem um efeito redentor na minha relação com a representação. Como sacerdotisa de Diana [na peça de Goethe], tenho de entrar em contacto com a minha humildade, e assim descobrir a minha humanidade.   

 

Quando é que começa a vossa relação?

LMC – A Beatriz esteve na Cornucópia há muitos anos. Eu funcionava como um protector. Sentia uma diferença de idades muito grande; era como se estivesse a tomar conta dela. Depois, foi-se embora, estudar, fazer outras coisas. O “Solness” marcou o regresso, e senti o prazer de contracenar com uma pessoa agora adulta. Estávamos em situação de igualdade. Há uma evolução da minha relação com ela através do trabalho, dos nossos encontros no trabalho.

 

Quando é que o Luís Miguel deixou de ser “a referência” para passar a ser um igual? Costuma dizer que ele é o culpado disto tudo…

BB – O Luís Miguel há-de ser sempre o culpado… [risos] Continua a ser o mesmo para mim. O nosso percurso tem sido uma permanente confirmação. No nosso primeiro encontro eu era muito jovem, tinha 17 anos. Fiz de filha dele, várias vezes seguidas. Numa altura em que também perdi o meu padrasto. Essas coisas todas misturam-se…

 

Ele apareceu como um pai putativo? Artístico.

BB – Sim, um pai da idade adulta. Que não tem a ver com o sangue e a raiz, mas com aquilo que escolhemos. Tem a ver com reconhecimento, identificação, admiração. Com o que poderia ser um percurso para mim. É verdade que em todas as escolhas que fiz, e que faço, profissionalmente, penso no que me faz sentido a mim, mas penso sempre no que o Luís Miguel diria. Apesar de não ter trabalhado cá durante dez anos, a relação não se quebrou. O “Solness” foi muito importante porque o Luís Miguel permitiu-me que eu fosse adulta. [LMC ri]. Só me foi possível contracenar com ele – e só Deus sabe as dores que tive no meu diafragma – porque o Luís Miguel me deu essa autorização.

 

É uma maneira de ele lhe dizer que tem confiança em si?

BB – É uma maneira de dizer: reconheço-te.

LMC – Há muitas coisas que facilitam o nosso entendimento. Há referências culturais e um passado comuns, há amizades de família.

BB – A nossa relação é uma escolha.

 

Como é que tudo começou?

LMC – Conheci a Beatriz como filha do Eduardo Batarda e da Tchou. Reencontrei-a num filme do Manoel de Oliveira. No “Vale Abraão”, superficialmente. N’“A Caixa”, todos os dias. E disse: “Mas esta menina é uma actriz!, tenho a certeza”. Pelo prazer da contracena. Foi daí que saltou o convite para integrar a companhia [Cornucópia]. Além de que era linda!, e continua a ser. A primeira coisa que fez connosco foi o “Conto de Inverno”; toda a gente dizia que era muito bonita mas que nunca poderia ser actriz porque não tinha voz nem presença! Ela deu-me o prazer de os dois nos podermos vingar dessas pessoas. Houve ali uma teimosia…, eu sabia que tinha razão.

 

Que coisa foi essa que reconheceu na Beatriz, além do prazer na contracena? O que respondia aos outros quando lhe diziam que ela não poderia ser actriz?

LMC – Dizia: “Pode, pode, isso não tem importância nenhuma. A voz está pouco desenvolvida, tem falta de segurança. Mas o principal para se reconhecer um actor não é isso. Não são as habilitações técnicas. Isso conquista-se. O principal está no fundo da pessoa.

BB – Tem a ver com a alma.

LMC – O principal é esse prazer de jogar com os outros, provocar, receber resposta. É arranjar maneiras de continuar a fazer o que as crianças fazem – brincar umas com as outras. 

 

Não por acaso, em inglês, brincar, jogar e representar dizem-se da mesma maneira: play.

BB – Hoje em dia dou aulas [na Act] e confronto-me diariamente com isso: como é que se reconhece um potencial actor? A questão do talento pode ser um enorme equívoco. O que parece ser um talento nato, à vontade com o seu corpo, expansivo, não ter timidez a projectar a voz…, isso não faz um actor. Acontece-me ver miúdos reservados, tímidos, mas densos como seres humanos. Intuitivamente chamam-me mais a atenção esses alunos. 

 

Quando foi estudar para Londres, mais do que tudo, teve consciência de si própria, das suas ferramentas, potencialidades?

BB – Sei lá!, aconteceu tanta coisa. Só a experiência de cortar com os nossos laços, os fantasmas, o ser obrigada a sair do casulo burguês para ser confrontada com o mundo, esse embate levanta tantas questões sobre a nossa identidade... Tive medo. Pensei em voltar – como toda a gente. Só que obriguei-me a assumir a escolha que tinha feito. Estar ali tinha sido uma escolha.

 

Os vossos processos de trabalho são semelhantes?

LMC – Eu não consigo representar enquanto não tiver a certeza absoluta do que lá está escrito, depois de todas as dúvidas estarem solucionadas. Desespero os colegas, estou até à última sem saber o texto bem. É como se precisasse de muito tempo para pensar. A Beatriz precisa de um compromisso emotivo imediato. E depois pensa sobre ele. Pouco depois de sairmos da mesa [de leitura], eu vi a cara da Ifigénia! – não era a cara da Beatriz. Depois trabalha, trabalha, mas o compromisso está lá. Significa também que se atira de cabeça, sem defesas!

BB – Pareço uma maluquinha! [risos] Funciono por camadas. Como um óleo que vamos pintando. Para chegar ao efeito do despojamento. 

 

 

Publicado originalmente na Revista Máxima em 2009

 

 

É preciso estar atento e forte

15.03.20
Léxico destes dias: empatia, disciplina, obediência, confiança. E coragem, força, a calma possível. Precisamos de nos proteger e de proteger os outros — isto está só a começar. Precisamos de cumprir as medidas que nos são prescritas, compreender a gravidade deste tempo. Precisamos de confiar na informação oficial, na ciência, entregarmo-nos a ela. Precisamos de dominar a ansiedade, o medo, manter rotinas, criar "uma certa normalidade", como me dizia uma amiga no "limbo esquisito" de uma viuvez súbita.
Um dia é uma semana. Há uma semana, já com medo, eu conseguia pensar naqueles versos de Caetano: "atenção, tudo é perigoso, tudo é divino maravilhoso". Mas agora só consigo fixar-me na outra parte da canção: "é preciso estar atento e forte". É PRECISO ESTAR ATENTO E FORTE.
A seguir virá a recessão. A seguir estaremos num cenário pós uma coisa que ainda não sabemos o que é. Não ficaremos os mesmos. A Terra treme, a nossa Vida muda de lugar.
Somos todos responsáveis uns pelos outros. E o isolamento não nos pode tornar estanques, insensíveis, quebrar o vínculo: comunicar virtualmente, cuidar de nós mesmos e de quem está ao lado é o bem mais precioso, a safa possível. A solidariedade parece uma palavra impossível ou perigosa, porque nos põe em contacto. Mas o seu significado é outro, e o perigo vem do abandono, da indiferença, do virar a cara. Inventemos maneiras de ser solidários, partilhar recursos, pensar no concreto (terão dinheiro para ir ao supermercado?, para os mínimos da sobrevivência?). Todos vamos precisar de ajuda e de prestar ajuda.
Confio cada vez mais na ciência e admiro cada vez mais os médicos e profissionais de saúde. Como viverão cada um destes dias de incêndio? Que heróis.
Comprei comida, recolhi a casa, estou bem. Espero ser capaz, não quebrar — mas sei lá, sabemos lá?
Força, coragem. Empatia.
  

Carminho

15.03.20

Carminho é o mais recente fenómeno da música portuguesa. Um fenómeno que se sabe que não ficará por aqui. Sabe-se como? Ouvindo-a.

O seu disco de estreia, Fado, foi elogiado pelos pares, pela crítica, pelo público. Um estranho caso de consenso num país dado à discórdia e à maledicência. Os seus concertos esgotam. A Mesa de Frades, casa de fados onde canta à quarta-feira, enche-se para a ouvir.

Quem é ela? É uma menina que interrompe o discurso para dizer que apareceu um arco-íris bonito. É uma mulher que diz: “Os meus pais nunca sonharam para mim coisas que não sonhei. Nunca projectaram em mim nada que não tivesse sido uma decisão minha”.

Tem uma vida cheia. E tudo está ainda por acontecer. Isso constitui uma dádiva. Uma, das muitas que recebeu. Carminho, ou Carmo Rebelo de Andrade, também deu. Dá.

Isto tudo aparece no modo como ela canta.

 

Já está habituada ao sucesso? A ser considerada a grande revelação do fado. Ou está assustada com a velocidade com que tudo isto aconteceu?

Não estou de todo habituada. Tudo está a evoluir tão rapidamente que não chega a haver tempo para me acostumar. É especial o que me está a acontecer. Estou muito feliz, mas relativizo tudo isto. Agora tenho sucesso; mas o que é isso realmente representa? O que é que isso faz de mim? Não posso perder de vista o que estou a fazer, nem a certeza de que o que estou a fazer me está a fazer feliz.

 

O que é que já mudou na sua vida e em si? Que impacto tem esta exposição e este sucesso em quem é?

De uma forma prática, mudou o meu dia a dia. Para além dos concertos, tenho trabalho de casa. Não só de recolha de repertório, mas também de partilha com produtores, de preparação do que vou fazer. Trabalhar a minha voz, ter cuidados que antes não tinha. Grandes mudanças interiores: são as de me questionar constantemente. Posicionar-me no que eu acredito. É muito bom ouvir elogios, mas, se calhar, daqui a algum tempo, vou ouvir críticas. Não posso ficar aprisionada àquilo que os outros pensam do meu trabalho. Há que trabalhar interiormente para construir uma fortaleza que me proteja. Não me posso deslumbrar, nem ficar afectada demasiadamente.

 

Em que momento é que decidiu que era mesmo isto? Basta ir ao youtube e vê-la a cantar o fado com 12 anos para perceber que a história já é antiga…

Houve um momento. Foi no avião, do Brasil para Portugal, no fim de 2007, quando regressava de uma viagem à volta do mundo. E agora, o que é que vai ser? E foi instantâneo. Não havia mais a ponderar. O fado, além de ser o que mais gostava de fazer, podia também ser a minha profissão. Antes, achava que o fado era tão um braço meu, que não podia ser a minha profissão.

 

Como assim?

Eu achava – pensamento naif! – que era preciso ter um computador e uma secretária, um horário e um projecto, um orçamento, clientes. Dava-me tanto prazer cantar, era tão fácil, que não achava digno ter uma profissão onde não tivesse de ter esforço. Não era meritório. Agora percebo que é preciso esforço e empenho, que o talento é uma percentagem pequena em relação ao que é preciso fazer para se fazer disto uma profissão. É preciso muito trabalho, abdicar de coisas, nunca perder o fio traçado, encontrar equilíbrio para viver emoções fortes. Para se cantar o fado de modo verdadeiro temos de estar sempre a confrontar-nos com sentimentos. Custa e é trabalhoso.

 

Antes da viagem, tirou um curso superior.

Estudei marketing e publicidade. Para além do curso, ia cantando, ganhando uns trocos, uma coisa muito amadora. Foi aí que consegui dinheiro para a viagem. Já havia pessoas a perguntar-me porque é que não fazia disso a minha profissão, editoras fizeram-me convites para gravar. Nunca me senti preparada. Não sabia bem o que é que eu era, de que é que era feita, não sabia o que ia dar.

 

Quando se canta o fado, canta-se quem se é.

Exactamente. Então fui-me embora, fui viajar. E quando soube, soube com certeza que era aquilo.  

 

O que é que a viagem lhe fez? Pode resumir a viagem?

Parti sozinha para a Índia. Tinha 21 anos. Peguei na mochila, comprei um bilhete de avião, que é uma volta ao mundo com vários destinos. Chega-se lá e não há nada. Não temos marcações, é muito à aventura. Um dos meus objectivos principais era fazer voluntariado. Sabia que ia, através do voluntariado, encontrar mais respostas acerca de mim.

 

Sabia como? Intuía?

Durante a faculdade fiz voluntariado. Tinha tido experiências, isso fazia-me crer que era por aí. Não me enganei. Fui primeiro para Calcutá, para a primeira casa que a Madre Teresa fundou. Tratar moribundos. Tratar dos últimos momentos dessas pessoas, dar-lhes alguma dignidade (quem está ali não tem família, não tem casta). Ia cheia de certezas, que tinha amor para dar, amizade, conforto. E aquilo de que os outros precisam não é nada daquilo que nos achamos que eles precisam. Se calhar precisam disso, mas num formato que ainda não conhecemos. Precisei de ir ao encontro dessas pessoas; elas é que tinham de me ensinar, mostrar o que eu tinha para dar.

 

O que é que fazia?

Dar-lhes de comer, a higiene pessoal, tratar-lhes das feridas, umas conversas, um carinho. O que é que podemos fazer para que eles se sintam amados, respeitados, dignificados? Descobrimos que cantar uma música pode ser suficiente. Ou um sorriso. Ou o modo como se penteiam os cabelos. Como se está atento à pessoa e responde quando ela chama. Nunca deixar as pessoas nuas. Não mostrar repugnância. Temos de fazer um esforço para libertar-nos disso e ver o outro para além das suas feridas. O que nos repugna são as feridas, mas o que faz com que precise de nós são as feridas… É lutar com os nossos medos e saber do que somos capazes.

 

Sabia que era capaz disso?

Não, e descobri.

 

Nunca se tinha ocupado, aqui, de uma pessoa assim?

Na faculdade, fiz a volta dos sem abrigo durante dois anos, à noite, a dar refeições. Estive também num lar de idosos acamados a dar apoio aos almoços, jantares, fins de tarde. Mas precisei de ir mais fundo. Também por uma questão pessoal: cresci numa família privilegiada. Tive uma infância feliz. Eu brinquei. Eu tive os meus brinquedos, que eram meus. Pude ter o meu território. Pude viajar, pude estudar, pude ter amigos, pude sair à noite. Não tive que ser mãe antes do tempo, não tive que tomar conta dos meus irmãos. Pude fazer coisas que, mesmo em Portugal, não estão garantidas. Hoje em dia dou-me com pessoas muito diferentes de mim. E penso, em relação a pessoas que estão ao meu lado, com quem trabalho, que não tive e passar por aquilo por que elas passaram. Tive necessidade de me despojar dos meus bens e dos meus privilégios, misturar-me com pessoas que sentem outras coisas. E tentar ser uma delas. Continuo a ser privilegiada, porque, assim que tenho medo, posso pirar-me.

 

Saber que tem uma rede muda as coisas.

É um trapézio com rede. Ainda assim, fiz o exercício de desprender-me de tudo o que tinha em casa, ir, tentar dar-me ao máximo às pessoas, respeitá-las como elas são, nas suas diferenças. Foi uma luta muito grande. Isto são frases muito bonitas ditas assim… Às vezes nem me sinto bem em dizê-las, porque parece que sabia o que ia encontrar… Não. Foi um percurso.

 

Conte um episódio.

Foi duro perceber que, além do tempo que tinha dispensado, além do dinheiro que tinha pago, além da disponibilidade, ainda tinha que fazer o trabalho bem feito. Não podia falhar. Por exemplo: estava atarefada, abria o armário da roupa, tirava uma fralda e desarrumava as outras; mas como estava com pressa não arrumava. Uma freira deu-me um raspanete, disse-me: “Houve alguém a arrumar isto por ti”. Cerrei os dentes e fiquei furiosa! Não respondi, obviamente. Por dentro, pensei: “Que lata!, venho eu do meu país, saio do meu quentinho, estou a pagar para estar aqui, e ainda me vêm dizer como é que devo fazer”. Mexeu com o meu orgulho. Tive de pôr-me no meu lugar. Percebi que o tempo disponibilizado e o dinheiro eram apenas o compromisso. É quando a pessoa assina o papel. O fazer é outra parte. Elas são voluntárias, mas não se dão ao luxo de falhar só porque o estão a fazer de graça.

 

Que é que aconteceu a seguir à Índia?

Um mês depois, encontrei-me com a minha prima Rita, que me acompanhou na viagem. Da Índia fui para a China, Tailândia, Vietname, Laos, Cambodja, Malásia, Singapura, Timor, Austrália, Nova Zelândia, Ilha de Páscoa, Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Uruguai e Brasil. Um ano.

 

Que contacto manteve com casa?

O que podia. O que eu queria.

 

Estou a perguntar até onde queria distanciar-se do que tinha aqui, das referências; até onde estava isolada.

Não levei telemóvel. Era impossível as pessoas contactarem-me. Isso foi muito importante para mim. Não podia ser interrompida no meu propósito. Mas até fui: o meu irmão casou a meio e tive de vir a Lisboa. Estar aqui foi estranho. Mas depressa recuperei.       

 

Ia cantando, durante a viagem? Cantando sozinha, como vinha a cantar agora, subindo a rua.

Vinha? [riso] Fado, não cantei. Estava a expurgar, a deitar fora. Mas cantei no voluntariado. Havia uma senhora que todos os dias queria que lhe cantasse os parabéns!, em inglês. E eu cantei. Cantei em Timor numa Ordem Religiosa, que pretende combater a fome e a pobreza na ilha e ajudar jovens a encontrar um ofício. Também dei aulas de português. Foi um voluntariado diferente: foi um investimento no futuro. O meu quarto, pequenino, era parede com parede com a capela. Acordava às seis da manhã, com os meninos a cantar. Eles sabiam imensos cânticos.

 

Era uma preocupação, ganhar o seu dinheiro para se sustentar na viagem?

Sim. Já ia mais ou menos preparada. Mas cantei na Embaixada de Portugal na Argentina, Chile e Uruguai. Ganhei mais uns trocos, para me aguentar. Viajei a muito baixo custo. As dormidas: o mais barato que havia. Comida: o mais baratinho que havia. Não comprei nada.

 

Ao perguntar-lhe se cantou, quero chegar ao seguinte ponto: quando é que o que viveu esse ano, essa em quem se transformou, apareceu na sua forma de cantar?

Muita gente me disse que eu estava a cantar de modo diferente, quando cheguei. Eu não conseguia identificar. A intenção, a vontade de cantar, era a mesma. Mas o que saia era diferente. Realmente fiquei diferente. Estou ainda a tirar sumo daquela experiência. E tento aprisionar o mais possível tudo o que conquistei nessa viagem. Não quero perder essa liberdade de me dar aos outros. Rapidamente recuperei vícios. Há uns que me custa reconhecer.

 

Em que é que está a pensar?

No egoísmo com que às vezes vivo. Certos sentimentos que sentimos e não gostamos de sentir. Entrar em mesquinhices porque não se está aberto para o essencial. Quando estamos muito perto, temos atitudes possessivas, estranguladoras. Não gosto disso. É uma luta constante em mim.

 

O catolicismo é central na sua vida?

Sim. Mais do que o catolicismo: a Fé. Tenho Fé. Mais importante do que a religião que tenho, é Deus. É um braço meu. É tão natural como respirar. Depois, toda a prática está lá. Quando se está do outro lado do mundo, (na China há muito poucas igrejas), tenho sempre comigo Deus. E rezo.

 

Nunca se sentiu desamparada?

Não. E é assim desde sempre. É uma dádiva. Não tenho mérito nisto: foi Deus que quis que eu fosse próxima dele.

 

Como foi a sua infância feliz?

Nasci em Lisboa, sou a mais nova de quatro irmãos, e com três anos fui viver para o Algarve. Vivemos numa aldeia ao pé da Serra. Paderne. Perto de Boliqueime. Vivi uma infância despreocupada.

 

Foi importante? Ter vivido num espaço menos ameaçado do que são as cidades hoje em dia. Em Lisboa brinca-se menos da rua.

Não é um pormenor insignificante. O que mais me ocorre: são pessoas diferentes. Até à quarta classe, aprendi a dar-me com todo o tipo de pessoas. Frequentei uma escola internacional em Vilamoura. Tinha estrangeiros, algarvios, lisboetas. [pausa] O sonho dos meus irmãos era ter um café! (Os colegas tinham todos um café). Para poderem beber Coca-Cola quando queriam e comer gomas à vontade. Os outros meninos achavam que nós éramos pobrezinhos, porque estávamos sempre com os mesmos calções. Herdávamos a roupa uns dos outros. O meu irmão herdou calções de ganga de todos os primos.

 

E no seu caso?

Tinha uns vestidos que picavam, mas até tinha roupas giras. Uma coisa que tenho da minha infância: sempre me destaquei por alguma coisa. Por causa disso, ficava mais sozinha. Ouvia imensa música. Chorei a morte do Freddy Mercury com sete anos! Fui para um cantinho do jardim chorar! É o episódio mais hilariante da minha vida! Aquele que pode ser contado, um dia, nas biografias quando eu for uma grande estrela! [risos] A minha irmã tinha mais seis anos do que eu, e os rapazes tinham as brincadeiras deles; eu aprendi a brincar sozinha. Aprendi a confiar no meu gosto.

 

O que é que ouvia?

Fado. A minha mãe é fadista. Ouvia Amália, Marceneiro, Maria Teresa de Noronha. Ouvia Queen, REM, Simon and Garfunkel. E música clássica. Depois da quarta classe, vim para Lisboa. Fui para as Escravas, um colégio de freiras. As minhas amigas não achavam piada ao fado. Houve ali uma fase em que escondi que gostava de cantar…

 

Como é que começou a cantar?

Cantávamos todos, no carro. Para não discutir, para não andarmos à batatada. Cantávamos tudo. O meu pai e a minha mãe abriram uma casa de fados, o Embuçado. Ia com a minha mãe fazer as compras, ia à tarde estar com o pessoal, bisbilhotar em tudo. Um dia, a minha mãe foi convidada para um concerto de beneficência; perguntaram se os artistas tinham um filho que quisesse cantar. “Querem cantar um fado?”, “Não, nós não queremos”. Eu quis.

 

É a tal coisa que está agora no youtube…

É. A primeira vez que cantei em público, para alguém que não os meus pais e os meus irmãos, foi no Coliseu dos Recreios, para uma sala a abarrotar!

 

Com medo?

Não, com inconsciência. Ia com umas sabrinas com os pés todos encarquilhados. Estavam apertadas. Estava furiosa porque ia com uma saia aos folhos… Era naquela idade em que não se é nem carne nem peixe, nem menina nem mulher. Eu queria usar saltos altos e alcinhas. Graças a Deus a minha mãe teve bom senso. Na altura odiei, mas agora acho querido. Ia ser ridículo ver-me com 12 anos e vestida de Marilyn Monroe.

 

Cantar em público: teve continuidade?

Passei a ser uma espécie de mascote. Acompanhei a minha mãe em sessões de fado em paróquias, acções de beneficência, jantares de amigos. Adorava! Ao fim de semana ia ao Embuçado e de vez em quando cantava. Ouvia os outros fadistas. Estava lá a Beatriz da Conceição, a Celeste Rodrigues. Foi ali que conheci a Amália. Comecei a apaixonar-me. Os meus irmãos não ligavam nenhuma, e eu estava sempre com a minha mãe, a dormir nos bancos…

 

Nos fadistas que referiu, não está Argentina Santos. Há nela um lado castiço que aparece também na maneira como você canta. Surpreende que esteja mais próxima desta (na maneira de cantar) do que de Maria Teresa de Noronha (do mesmo meio social).

Não referi porque ela não cantava no Embuçado e fui poucas vezes ouvi-la à casa de fados dela [A Parreirinha de Alfama]. Mas admiro-a muito. Esse lado castiço: vem da Beatriz da Conceição. O meio social: quando vim do Algarve, fui para um colégio onde todas as meninas tinham um percurso parecido ao meu. Mas eu falava algarvio e tinha rosetas! Achavam que eu era uma tacanha, e até achavam que eu não era de família.

 

Como é que lidou com isso?

Nunca me interessou. Adoro a minha família porque é a minha família. Só somos aquilo que fizermos e quisermos ser. Nunca procurei, através da minha família, chegar a lado nenhum. Nem senti que o nome Rebelo de Andrade me levaria a algum lado. Só agora me deparo com o facto por me perguntarem sobre a minha “família aristocrática”. “Não acha que chega mais longe por ser filha deste e daquele?”. “Ah é, isso acontece?” E descobri que acontece. Sou muito naïve.

 

Muita gente do meio, tece-lhe rasgados elogios. Do Carlos do Carmo ao Camané. Tem uma máquina de luxo a trabalhar consigo. Com pessoas como o João Pedro Ruela, fundamental no percurso de Mariza, que faz a direcção de produção do seu disco e é seu manager. Ou o cineasta João Botelho que assina os seus vídeo-clips.

Há quem diga que foi estratégico. Não ter querido gravar logo, esperar, criar expectativa nas pessoas. Não foi nada disso.

 

Toda a gente já tinha ouvido falar da Carminho e ainda não havia disco.

Sim. Falava-se e não havia nada. Foi uma escolha inteligente: não pôr o carro à frente dos bois. Eu não estava pronta. O Carlos do Carmo e o Camané viram-me crescer. Ouviram-me crescer. Influenciaram-me directamente. Deram-me muitos conselhos. Têm carinho por uma pessoa que viram crescer. A equipa de luxo: vem da influência desses opinion makers. Foi sorte de percurso, foi destino, foi estar no sítio certo à hora certo.

 

Vive com os seus pais. É curioso pensar na que chega da Mesa de Frades às quatro da manhã e que volta para o seu quarto de adolescente…

[riso] Vivo com os meus pais e vivo muito bem. Os meus pais sempre me deram muita liberdade. Perguntaram-me como é que consegui viajar pelo mundo e voltar ao meu quarto. Sou ainda aquela também. Mas não vou ficar naquele quarto para sempre.

 

Que projectos tem?

Está tudo para acontecer e isso é fabuloso! Vou cantar muito este disco, tenho concertos marcados para 2010. Nunca paro de ler e de procurar repertório, para poder amadurecer nessas coisas. Não quero cantar letras que não entenda, que não falem de mim ou que falem de uma coisa oposta àquela que eu sou. Nesta fase, só consigo cantar aquilo em que acredito, aquilo que sinto, aquilo que reconheço. Aí, consigo ser mais verdadeira.

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2010

 

Leonor Baldaque

04.03.20

Leonor Baldaque nasceu em 1977. O seu romance de estreia, Vita (La Vie Légère), vai ser lançado em França no dia 19 de Janeiro pela Gallimard. Foi escrito em francês. É neta de Agustina Bessa-Luís, sim. E actriz de Manoel de Oliveira (sobretudo). Aprendeu com Emily Dickinson que “não” é a palavra mais selvagem da língua. Começar a usá-la mudou a sua vida.    

É uma jovem mulher, de pele diáfana, recortada de um quadro pré-rafaelita. Senta-se com modos elegantes, exala uma aparente (mas só aparente) fragilidade. Fala de um vestido bonito e de Espinosa. Fala de Manoel de Oliveira e de férias com os avós em Biarritz. Durante muito tempo, foi a neta de Agustina. Mudou-se para Paris. Emancipou-se. Iniciou um ciclo de vita nuova, título de Dante que poderíamos usar para falar dela, em que procura, cada vez mais, encontrar-se com quem é. Vita (La Vie Légère) vai estar nas livrarias francesas em meados deste mês. Não é todos os dias que um romance de estreia é publicado pela prestigiada Gallimard. Leonor Baldaque veio a Lisboa receber um prémio pela sua interpretação em A Religiosa Portuguesa (Eugène Green, 2009). Falámos no hotel onde estava hospedada.

  

O que é que foi preciso para que escrevesse um livro em francês?

Foi preciso deixar Paris. Paris, o cinema, é uma outra vida, um outro ambiente. Não convida à intimidade. Sentia uma grande vontade de escrever um livro há anos, com imensas tentativas falhadas. Comecei o romance em Roma, durante um mês que lá passei, de trabalho intenso. Foi antes das filmagens d’ A Religiosa Portuguesa. Pela primeira vez soube que não era o início de um romance que, como tantos outros, ia ficar inacabado. E que estava muito ligado a essa herança da cultura antiga que há em Roma.

 

Leu os clássicos, em Roma?

Não li nenhum autor francês para não perder o fio da minha prosa. Li autores ingleses, sobretudo poetas. Coleridge, Wordsworth, pelo contacto íntimo com a natureza. T.S. Eliot pela música e interioridade, Milton, pelo som que emerge de tudo o que descreve… E li os clássicos: Homero, Ovídio, Lucrécio, os pré-socráticos. Queria que o meu romance tivesse como que saltado o tempo, da Antiguidade até hoje. Um romance pagão, profundamente ligado a um tipo de juventude de hoje, ou de amanhã.

 

Mas porquê em francês?

Em francês porque não me exprimo bem em português. As pessoas não notam, mas tenho dificuldade. Sinto-me à vontade a fazer cinema em português porque não sou eu que falo, as palavras já estão escritas. Para mim, é uma língua de representação.

 

Como sempre aconteceu na sua vida, cá? O português, e essa que era em Portugal, funcionavam como um exercício de representação?

Sim. Associo Portugal a uma sociedade de aparência. Se calhar tem a ver com uma cultura do norte. Sempre me senti observada pelo facto de ser neta de uma pessoa conhecida. Chegar a França, não ser ninguém, e começar a exprimir-me em francês mudou a minha vida. O francês é uma língua que me permite falar livremente, escrever livremente. Fiz os meus estudos na escola francesa. Herdei imenso desses primeiros anos de aprendizagem. O momento em que comecei a passar as férias em França, graças à minha avó e ao meu avô, foi determinante para aprofundar a língua e a cultura. Passávamos um mês no País Basco.

 

A sua avó, numa entrevista, fazia referência às férias em Biarritz como sendo um tempo importante na vossa memória afectiva; estava em casa e observava os movimentos dos netos na praia, depois chamava-vos da janela para virem almoçar. Que recordações tem desse período? Que importância é que isso teve para si?

Teve muita importância. Antes de mais era autónoma. Normalmente ia sozinha com os meus avós. Um ano ou outro ia a minha irmã, mas nas recordações que tenho, mais intensas, estava sozinha. Lembro-me de ir comprar um gelado sozinha, de ir às livrarias – nessas pequenas cidades de província há sempre livrarias muito boas –, de chegar a casa com um livro que eu tinha escolhido. São memórias muito ligadas a cultura, e ao sonhar um futuro para mim.

 

Que idade tinha?

Quando comecei a ir tinha oito, nove anos. E depois fui sempre até aos 16, 17. A escola já tinha começado em França, assistia à rentrée, e queria fazer parte daquilo.

 

Retomando o meu fio: escreveu numa língua que não é a sua língua materna. Um acto tão íntimo e vital como criar foi feito numa língua que não aquela que acompanhou um período essencial e formativo da sua vida.

Não estou de acordo com essa concepção. A infância e a adolescência são períodos muito importantes, mas considero que o período essencial da minha vida começou quando saí de Portugal, e hoje vivo coisas muito mais importantes ainda. Desse ponto de vista, sou mais deleuziana do que freudiana : construímo-nos com o passado e com o inconsciente, mas acima de tudo com as linhas de fuga que o nosso imaginário traça, e com o mundo social que nos rodeia e de que nos rodeamos. Estou sozinha e estou a construir-me, eu própria, tentando fazer tabula rasa, sem os condicionamentos, as regras. Todas as minhas grandes experiências de vida começaram em francês. E vivi coisas muito fortes com a literatura francesa, e com a literatura inglesa, muito mais do que com a língua portuguesa.

 

É tentador dizer, e talvez redutor, que ser neta de uma grande escritora deve ter pesado na decisão de escrever em francês. Seria mais fácil impor-se numa outra língua?

Não foi uma decisão, foi uma necessidade, um apelo, uma evidência. No meu diário escrevo em francês, como nas cartas aos meus amigos. Tudo o que é autêntico em mim sempre escrevi em francês. E não teve nada a ver com a minha avó ou com aquilo que era em Portugal. A minha identidade nasce e sempre evoluiu em contacto com o que me era estranho, muito mais do que com aquilo que me era familiar. A família onde se nasce é um acaso. Aquilo que somos profundamente não tem nada a ver com o sítio ou com a família onde nascemos; tem a ver com aquilo que nos chama. Se todos pensassem assim, os divãs dos analistas estariam vazios.

 

O seu romance termina com a palavra “vague”, e pensei n’ As Ondas da Virginia Woolf.

Não é a única [riso]. As pessoas que leram o romance falam-me d’ As Ondas da Virginia Woolf. Foi uma escritora determinante, naquilo que me ensinou sobre a literatura e sobre como é que se chega a certas emoções e efeitos. Mas nunca pensei nela durante a escrita do romance. A referência às ondas, ao mar, à água em geral, nasce de uma experiência íntima que tenho com esse elemento. O facto de ter crescido perto do mar sempre foi um apelo para partir. O mar está muito presente no romance e na minha vida como elemento de liberdade.

 

E de descoberta?

A palavra é liberdade. A minha identidade nasce do confronto com o que me traz um perfume de liberdade. Que muitas vezes vem de um encontro de coisas que me são completamente estranhas.

 

Como é que se contaria naquilo que lhe é essencial?

O que é essencial para mim é crescer em permanência, descobrir em permanência. E tentar ser cada vez mais próxima daquilo que sou. É um enorme caminho que dura a vida inteira. É essencial exprimir-me de forma artística, quer isso tome a forma de um filme quando trabalho como actriz, quer isso tome a forma da escrita. É essencial contar a vida, não a minha vida, mas a minha relação com o mundo, através da escrita.

 

Não a sua vida? Porquê?

A escrita auto-biográfica aborrece-me infinitamente, porque é muito mais finita do que a imaginação. A questão da imaginação sempre me obcecou. É um abismo.

 

Factos biográficos: o que é que importa saber?

Nasci no Porto e vivo em Roma [riso]. Não sei o que dizer mais. Os dados biográficos são dados geográficos. Talvez daqui a muitos anos me interesse falar dos meus dados biográficos. Estou a viver em Roma, num momento de grande trabalho no segundo romance.

 

No livro fala-se de corredores e de lugares de transição; há referência a Setembro, que é um mês de transição. É como se o tempo que importa, a que se refere, seja um tempo que está a correr, que é de passagem.

Exactamente. Interessa-me a mutação permanente.

 

Então vou insistir e pedir-lhe que fale dos corredores entre o Porto e Roma.

Entre o Porto e Roma houve o facto de crescer numa família onde há uma escritora e tudo o que isso me trouxe de encontros com escritores que nunca teria conhecido tão cedo de outra maneira.

 

Por exemplo? O que é que a sua avó lhe deu a ler? Ou foi a sua mãe que lhe deu a ler?

Ninguém me deu a ler nada. Eu própria fui à procura dos livros ou dos nomes que me interessavam. Tinha uma enorme biblioteca à disposição e a possibilidade de ir à livraria comprar o que queria. Kafka, Balzac, Wilde, Maupassant, Stendhal, tudo isso veio de frequentar a biblioteca dos meus avós e dos meus pais. Foi muito importante crescer com uma pessoa na família como a minha avó; é um grande exemplo de perseverança, de força, muito activa no campo público.

 

Foi também um pouco intimidatório, sendo ela uma pessoa tão poderosa e singular?

Intimidatório, não diria. Ninguém me intimida. Diria que foi muito estimulante. A minha avó e o meu avô são pessoas muito cultas e exigentes. E trocistas. Cada vez que ia visitar a minha avó, ríamos imenso de Portugal inteiro. O que fez com que desde cedo não levasse a sério nenhuma forma de autoridade. Respeito as pessoas pelo que são, pelo que fazem, não pelos seus cargos. Sempre quis ter cuidado para não fazer parte das pessoas que eram troçadas à mesa dos meus avós, e para isso era preciso trabalhar muito, ler muito, falar pouco para dizer as coisas certas. Foi graças a essa exigência que pude ir tão longe no estudo da literatura. Mais do que ler eu estudava os autores.

 

Estudar significa tentar perceber a mecânica da peça?

Exactamente. Como é que tal autor faz entrar a personagem na sala, como é que faz para mostrar que ela sofre, um olhar que se desloca. Como é que isto se concatena. Como é que o ritmo avança, como diminui, como se chega ao clímax, como é que depois se desce, onde é que se fica.

 

Esse lado oficinal, que importa dominar, a seguir é preciso esquecer; para que o talento possa emergir. Sabia isso?

Sim. Estudei violoncelo durante anos, dos nove, dez, aos 20. Pensei que ia ser violoncelista. Foi determinante perceber que quando o lado prático e oficinal está integrado é preciso esquecê-lo, para tocar com a alma, com aquilo que se é. Não ser apenas um bom artesão mas tornar-se num artista.

 

É uma mulher bonita e sofisticada, para quem a dimensão física manifestamente importa. Se pensarmos no romance, ele é muito sensorial.

Não faço qualquer distinção entre o espírito e a matéria, ou a forma e o conteúdo. A vida é profundamente física e profundamente espiritual. A vida é matéria, é comer, é dormir, é amar. Hoje em dia é muito mais chique dizer que se é intelectual. Tudo o que é da ordem do físico ou do sensorial é sempre qualificado como inferior. Queria mostrar que a distinção entre físico e espiritual, interioridade e exterior, não tem sentido. Foi um ponto determinante do romance, fazer essa permanente metamorfose, entre o deslocamento físico, a forma como todos os elementos da natureza agem neles, e o modo como se sentem uns com os outros, as conversas que têm.

 

Porque é que o violoncelo ficou pelo caminho?

Porque apareceu o cinema. Porque apareceu a faculdade. Porque achei que nunca seria uma grande violoncelista. Ou teria sido uma grande violoncelista ou então não me interessava. Escrevo porque quero tentar fazer qualquer coisa de importante. É aquilo a que aspiro. As pessoas que admiro são os grandes escritores, os grandes artistas, os grandes homens. Se lá chego ou não é uma outra questão, mas posso tentar, posso trabalhar para isso.

 

Achou desde sempre que era uma questão de trabalho? Estou a perguntar também pela confiança em si, no seu talento.

Tenho imensa confiança no trabalho. Havendo a predisposição, sem o trabalho, muitas vezes o resultado é morno, pouco evoluído. Acredito na perseverança. A Vita foi um romance em que trabalhei durante dois anos e meio, e é mínimo, tem 110 páginas. Sei-o de cor, posso justificar cada palavra. Foi um trabalho que pediu imenso de mim – é nisso que acredito.

 

Escreveu a jorrar e depois depurou?

Consegui escrever a jorrar dez, 15 linhas, depois trabalhei essas linhas durante horas, dias, semanas. Houve, talvez, três páginas que escrevi a jorrar e que ficaram assim. Foi um trabalho sobre o ritmo, sobre a articulação dos eventos, das sensações, sobre como evitar a metáfora e aquilo que considero lugares comuns. O maior desafio é justamente esconder o trabalho.

 

Para os leitores da Pública, que não puderam ainda ler o livro, como é que o apresentaria?

O que queria neste romance era mostrar três pessoas que não têm qualquer relação de poder, uma em relação às outras, e que vão bem juntas. São pessoas com um enorme amor pela vida e umas pelas outras, numa fase de transição, completamente abertas a tudo o que lhes possa acontecer, a todo o tipo de sensações. Como se fossem porosas. E que têm ao mesmo tempo receios. Porque ser poroso e sentir intensamente pode assustar. O Conrad tem um livro que se chama Shadow Line; gosto da primeira página, que li 20 vezes, é como um poema. Os meus três personagens estão a chegar à shadow line, a essa linha de demarcação, muito ténue, em que a leveza corre o risco de ficar para trás. Era essa fase que queria captar.

 

Mesmo que não goste do exercício autobiográfico, é inevitável fazer uma projecção e pensar na pessoa que era quando estava na fase em que eles estão. Na sua curiosidade e medo. Numa das últimas frases do livro, Vita diz que o medo nunca a impediu de viver.

Pois é, mas eu sou cada vez mais assim. Estou a tornar-me numa pessoa que tem cada vez mais medo, porque cada vez mais quero fazer coisas que me assustam. O meu próximo romance assusta-me ainda mais do que este. Cada vez mais puxo adiante essa shadow line. Nunca a atravessei. O meu objectivo é nunca atravessar essa shadow line. A partir do momento em que uma pessoa deixa de ter medo daquilo que empreende, é porque aquilo que faz já não é muito arriscado. Por outro lado tenho cada vez mais segurança, também. Porque conheço um pouco melhor o trabalho que faço.

 

Os nomes têm importância. Deu como nome, à personagem central e ao romance, Vita, o que, em italiano, significa vida.

Todos os nomes surgem, depois é que percebo o que querem dizer. Millicent soa-me bem, é um nome inglês, de rapariga, mas que achei que iria bem a este rapaz. Paul evoca em mim a fragilidade dos criadores, dos artistas. E Vita é uma rapariga exuberante, como é a vida. Tudo o que ela diz é inesperado, intenso, como a vida pode ser. Ao mesmo tempo é o diminutivo em inglês de Victoria, de vitória. É uma rapariga que está sempre a combater com os elementos, com ela própria, a imaginar-se em situações extraordinárias, ou a vivê-las.

 

Voltemos à decisão de deixar Portugal. Foi qualquer coisa com o pegar na vida e inventá-la? É uma expressão usada no começo do romance.

Até hoje é para mim um mistério como é que consegui sair de Portugal. A minha vida era tão confortável… Justamente, era um excesso de conforto. O conforto não me convém. O conforto relativo, sim. O necessário para ter silêncio para escrever. Ou para estar tranquila antes de entrar em cena. A minha ideia era muito simples: quero viver em Paris.

 

Tinha 22 anos e uma licenciatura em Línguas e Literatura Inglesa quando foi para Paris estudar teatro. Entretanto, tinha começado a fazer cinema com Manoel de Oliveira.

Não foi por causa de Oliveira que fui para Paris, mas foi ele que pela primeira vez me estendeu a mão para um mundo que não era o meu. As minhas primeiras filmagens, no Inquietude [1998], deixaram-me um gosto de subversão que nunca se perde.

Em Paris descobri que queria viver a minha vida, encontrar pessoas que nunca poderia encontrar cá, frequentar o meio do cinema. Tenho um enorme fascínio pelos artistas. Por tudo o que parece loucura, que não é dogmático, que não segue nenhuma regra. Pensei encontrar isso no meio dos artistas.

 

O oposto daquilo que era a vida familiar e social no Porto.

Não sabia que ia à procura do oposto. Foi lá que o descobri. Ia à procura de uma outra forma de ver o mundo. No meio do cinema, em Paris, não há o paternalismo automático que há cá entre um homem e uma mulher, onde o homem is in charge, toma conta. A cinéfilia tornou-se uma espécie de trabalho, a tempo quase inteiro, durante alguns anos, e é um mundo que atrai todo o tipo artistas e intelectuais. Impressionou-me a troca de saberes. O que eu penso sobre aquele livro. O modo como aquela pessoa vê aquele cineasta. Agradou-me a leveza, a festa, o encontro permanente, os festivais, as pessoas que se encontravam nos festivais e que depois se encontravam em Paris. O divertimento puro. A aprendizagem permanente. Até a superficialidade – coisa malvista na sociedade em que cresci.

 

A frivolidade, sim, pode ser bem vista.

A minha avó podia permitir-se ser frívola e falar de frivolidade. Tinha uma base de reconhecimento intelectual que era inabalável.

 

A sua avó escreveu o aforismo: “O sucesso não vale tanto quanto um vestido novo”. Uma mulher da sua idade não o poderia dizer.

[pequena pausa] Eu nunca diria uma frase dessas. Embora goste imenso de vestidos, e de novos, ainda mais!

 

A frase é dita para provocar.

Claro! No fundo, acho que prefere o sucesso. [riso] Mas há uma aceitação da beleza e da impertinência das mulheres que é extraordinariamente maior em França. De resto, uma mulher em Paris, é mulher se for impertinente e sedutora. São as puritanas que lá se sentem menos bem. Uma sedutora não é considerada uma vadia… Em Portugal é difícil criar esse equilíbrio. As parisienses são espirituosas. Encontrar essa sociedade foi como abrir uma janela, em especial vinda de uma sociedade fechada, católica, à portuguesa – os retiros dos católicos da Rive Gauche são ocasiões para rapazes e raparigas namorarem, sem depois se confessarem.

Em Roma começou por adoptar uma vida de quase reclusão. Cortou a internet em casa, e praticamente vive sem telefone.

Não é uma vida monástica, mas é quase uma vida monástica. Em casa tenho livros e música. Acordo, sento-me para ler, tomar notas, escrever. Saio, vou a museus, passeio. É a minha vida desde há dois anos.

 

E as contas? Não há uma única referência a dinheiro no livro. A maior parte das pessoas não pode levar essa vida de que fala. A contingência material impõe-se.

Eu posso viver com muito pouco. É uma coisa que me vem dos dez anos de Paris, onde vivi na abundância e numa quase pobreza. (Não, não posso dizer pobreza, é ofensivo.) Vivi momentos em que tive de contar dinheiro para tudo. Vivi momentos em que podia comprar um vestido ou uma garrafa de vinho. E outros em que comprar fruta era um luxo, em que não podia permitir-me ir ao cinema. Portanto, sempre soube que em Roma corria o risco de ter pouco dinheiro. É preciso dizer que não vivo sozinha. O meu marido foi a primeira pessoa a acreditar que eu tinha de escrever. Que tinha de parar de trabalhar no cinema, se era isso que queria, e sentar-me a escrever o meu romance. Quando uma pessoa vai à procura da sua liberdade tem de aceitar que corre o risco de não ter dinheiro, de passar por momentos de dificuldade. A verdadeira liberdade implica isso. Por sorte, nunca conheci essas dificuldades em Roma, porque o meu marido trabalha. Mas temos uma vida diferente daquela que teríamos se eu tivesse continuado a trabalhar. Mesmo socialmente, foi um risco não aceitar fazer filmes, isolar-me. O que é que se diz? “Estou a escrever um romance”. As pessoas olham-nos como se fôssemos diletantes.   

 

Fale dessa aprendizagem que fez em França, dessa consciência de que podia viver com pouco. O que era o núcleo essencial que tinha de ser mantido?

O que não pode ser afectado é a minha intimidade (o amor, a relação com o meu marido). A minha liberdade. O meu crescimento, o meu caminho. Tudo aquilo que possa impedir o meu crescimento enquanto pessoa, enquanto escritora ou artista, elimino. Aprender a dizer não… Emily Dickinson diz que “não” é a palavra mais selvagem (the wildest) da língua.    

 

Quando mandou o romance para a Gallimard tinha esperança que fosse aceite?

Não! Sinceramente não. Mas enviei, porque é a melhor editora francesa. Foi uma sorte. O acaso fez com que três das vinte pessoas que fazem parte da comissão [de leitura] o tenham defendido, convencido os outros membros e o Antoine Gallimard (director, neto do fundador, que assiste a todas as reuniões da comissão). Enviei em Dezembro e tive a resposta em Abril. Em Maio conheci o meu editor.

 

Nos anos de Paris trabalhou com algumas editoras fazendo leituras de romances sobre os quais dava a sua opinião. Fez também algumas traduções. A Gallimard estava entre elas?

Não. Fiz, por exemplo, para a Flammarion. Mas a Flammarion não era uma editora para o meu romance. Não enviei para nenhuma das casas com quem tinha trabalhado porque não eram as indicadas.

 

Agora começa o trabalho de promoção e de encontro com uma crítica feroz, exigente. Atemoriza-a?

Não. Porque me sinto armada. Sei exactamente o que quis dizer com cada frase. Sinto-me no meu lugar, escrevendo. É ali que pertenço, que me sinto forte, onde nada me faz medo. Podem não gostar – acho normal. É assim o jogo, quando se entra na arena, há pessoas que gostam e outras não. Tenho muito medo antes, durante o processo de escrita. Mas uma vez que está pronto…

 

O romance não é nada sentimental. Você não é sentimental.

Não, não sou. Nem sou saudosista. Desfaço-me de tudo. Tenho uma grande capacidade de me reconstruir. Não tenho nenhum filme meu em casa, nem fotografias, nada que me ligue a Portugal. Quero que qualquer sítio onde me instale seja uma vida nova. Não é porque queira esquecer, fugir. Quero é avançar. Eu não evoluo com o peso do passado. Não preciso das memórias para me sentir ancorada. Não me sinto com os pés na terra porque tenho um passado, memórias, uma família. Sinto-me ancorada quando trabalho.

 

Como é que se tornou tão convicta?

Sempre fui. (Não, não é verdade, não é verdade que sempre fui convicta.) Trabalhando. Trabalhando sobre mim, sobre quem sou, pensando no que me impedia de avançar. Conhecendo-me, analisando-me, conversando muito.

 

A palavra tapisserie aparece pelo menos duas vezes. Mas a ideia de fios entrelaçados perpassa todo o livro. Numa tapeçaria pode contar-se uma história.

Queria um texto sem psicologia. A tapeçaria não tem profundidade. É a mesma técnica de Homero, segundo Auerbach. É uma visão de superfície. Não queria escrever um romance cinematográfico. Penso que a interferência do cinema na literatura destruiu muitos livros. Há muitos escritores que, não podendo ser cineastas, escrevem. A escrita é um mundo em si. O cinema é uma outra linguagem, com outras possibilidades. O movimento em cinema e na escrita não pode ser dado da mesma forma.

 

Há um momento em que se apontam palavras nucleares e fala-se de nós, narrativa, palavras.

Palavras essenciais para mim? Nós. Porque é uma coisa que estou permanentemente a desfazer. Narrativa, sim, porque estou a construir a narrativa da minha própria vida. Estou a dizer como é que digo a minha vida. A minha vida é aquilo que faço. Palavras… É a minha procura permanente: a palavra certa. A palavra certa para contar a vida. Para dizer quem sou e como quero viver o meu tempo.

 

 

Publicada originalmente no Público em 2012