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Anabela Mota Ribeiro

Berlim, cidade dos anjos

27.04.20

Começo por Potsdamer Platz. É um aglomerado de edifícios cuja arquitectura fere por ser tão exuberante. Não há vestígios do tempo (recente) em que esta era uma terra de ninguém. Nem do outro, mais longínquo, em que era uma das praças mais animadas da Europa, com os primeiros semáforos, automóveis e eléctricos. No cruzamento de linhas há hoje um pedaço do Muro, com inscrições nas duas faces – uma referência que serve a curiosidade dos turistas que querem saber onde acabava a Berlim Ocidental e começava a Oriental. Ver o muro de um lado e do outro, circundá-lo, parece o mais simples dos caminhos; e contudo, é o resumo de uma impossibilidade que se desfez.

Quando Wim Wenders filmou «As Asas do Desejo», o mundo terminava no Muro. Em 1987, dois anos antes do desmoronamento de um tempo, o realizador não podia prever a reunificação das duas Alemanhas e, sobretudo, que a topografia que o filme registava estava na iminência de desaparecer. Uma das cenas mais tocantes do filme é, justamente, quando um velho, narrador da História, vagueia por um imenso descampado, onde não existe nada, senão a sua memória do que ali se passava. Ele procura: «Não consigo encontrar a Potsdamer Platz, isto não pode ser Postdamer Platz». “Isto” é a terra devastada que percorre, ao mesmo tempo que lembra que ali, no centro fervilhante da Potsdamer Platz, ficava o Café Josty, onde à tarde se conversava e observava o público, e se fumava o tabaco comprado numa tabacaria de renome. «Não desisto enquanto não encontrar Potsdamer Platz».

Chego à Potsdamer Platz à hora de almoço. Talvez seja excessivo dizer que me parece um olho de vidro incrustado num lugar onde antes se via de verdade. Mas a Potsdamer é mesmo uma cidade de vidro que tem no centro o complexo Sony (a sede europeia é aqui), do outro lado da rua o edifício DaimlerChrysler, um centro comercial, um casino, a maior sala de espectáculos de Berlim, 17 salas de cinema e uma escultura de Jeff Koons dedicada a Marlene Dietrich (é uma flor azul fosforecente, como ela foi no cinema). O investimento que reconverteu a praça foi de 17 mil milhões de euros. Em nenhum outro lado se construiu tanto nos anos 90. Porque é que nada disto me espanta?

À hora do almoço, a Potsdamer está razoavelmente vazia. O Café Josty – outra incrustação, desta vez no interior na Praça Sony – tem uma esplanada pindérica e uma família a comemorar o facto de estar na esplanada do Café Josty, onde à tarde se conversava e fumava tabaco de renome.

Prefiro o café que fica no rés do chão do museu do cinema e que se chama Billy Wilder. A amostra não podia ser melhor: fotografias pelas paredes imortalizavam Charles Laughton e Marlene em «Testemunha de Acusação», Audrey Hepburn em «Sabrina», Shirley MacLaine, de meias verdes, em «Irma la Douce». Havia até um cocktail chamado «Sunset Boulevard». Mas a menina que me atendeu não tinha ideia sobre quem era Billy Wilder. Virei as costas ao “Willkommen, willkommen” da Potsdamer Platz e segui para o Monumento ao Holocausto, muito perto dali.

 

Se à época existisse, Wim Wenders teria escolhido este espaço para o encontro e desencontro de pessoas de carne e osso. É um labirinto ondulante, composto por 2700 blocos de pedra, que assinalou os 60 anos do fim da Guerra. Não há neles qualquer referência aos milhões de judeus que morreram naqueles anos – vozes discordantes criticam o facto de ser um memorial demasiado abstracto... Nem há nesta sequência uma ideia de pedras tumulares. O arquictecto americano que o criou gosta de pensar nele como espaço intregrante da vida dos berlinenses. Peter Eisenman preferia que fosse usado para encurtar caminho, por exemplo, mais do que “uma experiência sagrada”.

A minha primeira experiência foi arrepiante. Era quase escuro quando mergulhei no labirinto. À superfície vê-se uma sucessão de pedras desiguais, mas não se percebe que há um afundamento a seguir. Não se percebe que se cai no abismo (no horror de que somos capazes?). Podemos seguir o caminho que quisermos e fazêmo-lo com segurança, porque não temos dúvida de encontrar a saída, de nos salvarmos a qualquer instante. O que tornou a minha passagem sagrada foi o som de um violino que distingui ao fundo, e que me fez procurar por entre as pedras o ponto exacto de onde ele vinha. Era um som tristíssimo, que chamava e contagiava. Quando o encontrei, vi um jovem, parado, com uma criança que teria dois anos nas suas costas. A criança olhava para o céu de chumbo e o som era cada vez mais pungente. A perfeição daquele momento levou-me novamente ao filme de Wenders, à perseguição da inocência. Quase estraguei tudo quando lhe perguntei se o podia gratificar. Mas ele era apenas um rapaz americano, judeu, que prestava tributo à sua gente, e que, findo o prazer da música, enfiou o violino na caixa e partiu.

No dia seguinte, dia claro, voltei a mergulhar no Memorial. Devia escrever “atravessar” em vez de “mergulhar”, porque usei-o como atalho para chegar ao outro lado da praça.

Esta experiência, (corriqueira, mas sensorial), estaria vedada aos anjos de «As Asas do Desejo». Recupero um diálogo maravilhoso entre Damiel e Cassiel num descapotável que está para venda. «Mas às vezes farto-me desta existência de espírito. Gostaria de sentir um peso que anulasse a infinidade e me segurasse à terra. Sentir o agora, jogar cartas, ser cumprimentado, nem que fosse com um aceno, chegar a casa cansado, ter febre, ficar com os dedos sujos de ler o jornal. Supor em vez de saber sempre tudo. Comer borrego assado e beber vinho, sentir os pés descalços. Poder dizer “ah, oh”». Estes anjos querem experimentar o espanto, provar o sabor do café quente, sentir o vento frio na cara.

 

Há vinte anos, o realizador alemão Wim Wenders vestiu os seus anjos de sobretudo e pôs-lhes o olhar nostálgico de quem perde o caminho e se quer achar. A Berlim que então filmou já quase não existe. Persistem os fragmentos da vida de todos os dias: a discussão conjugal, a família árabe com crianças no banco de trás, aquele que no metro se preocupa com questões prosaicas, “Como vou pagar, com a pensão pequena que tenho...?”, aquele que se ocupa de questões existenciais, “Porque estou vivo?”. Ou aquele que se esvai em sangue, depois de um acidente, e enumera o que deixa por fazer ou aquilo por que vale a pena viver: “O cruzeiro do sul, Stromboli, as casas antigas de Charlottenburg, Albert Camus, a luz da manhã, nadar na cascata, os olhos da criança, o saltitar, os nervos das folhas, o ondular da erva, a paz do domingo, andar de bicicleta sem mãos, a bela desconhecida, o meu pai, a minha mãe...». Há uma parte de «As Asas do Desejo» que ficará para sempre, por mais que a cidade seja reconfigurada. Aquela que diz respeito à procura, à densidade que é própria do humano.

Todo o filme se passa na Berlim ocidental, erguida sobre os escombros da Guerra. Todos estamos ainda incrédulos_ como foi possível? A banalidade do mal doi. Se o povo alemão não fosse tão perseverante, tão organizado e tão rico não seria possível reconstruir a cidade em 60 anos, e agora, depois da queda do Muro, em 18 anos. Há nos mercados de rua vestígios dessa passagem do tempo e da abertura ao leste: candeeiros da Bauhaus a 70 euros, casacos de vison a 900 euros, mobiliário “vintage” em óptimo estado, talheres em prata, mapas antigos, medalhas e distinções militares (abundantes). Pergunto pelas obras de Marx e Engels e o alfarrabista diz que desapareceram. Deitaram-nas fora! Deixaram de as querer, de as procurar, de qualquer associação com esse tempo e o que isso produziu.

 

Não é só pelo desconhecido que a parte leste é a mais extraordinária de Berlim. Lá se conserva um tempo, austero, apesar de todos os sintomas da mudança. São muito visíveis os buracos das balas, as fachadas reconstruídas. Vem à memória a imagem do filme de Wenders quando uma mulher sacode o edredon na casa esventrada...Em Berlim, as pedras têm vida. Também há no lado ocidental avenidas praticamente refeitas. O tamanho da destruição percebe-se em coisas tão simples quanto: em dez casas, oito foram feitas de novo. E há a catedral a que os berlinenses chamam “dente furado”, a Kaiser-Wilhem, bombardeada em 43 e mantida tal qual. Mas na Berlim Oriental o tempo fechou-se sobre si e o mundo fechou-se em torno da ideia soviética de mundo.

Hoje, a zona oriental está transformada num centro nevrálgico, onde se instalam cadeias internacionais e artistas. É um novo mundo do qual se tem vontade de fazer parte. A par de Londres e Nova Iorque, Berlim é um ponto essencial no panorama da arte contemporânea. Noé Sendas, Filipa César, Rui Calçada Bastos, Nuno Cera, Gabriela Albergaria ou Adriana Molder são alguns dos portugueses que vivem em Berlim. Há um claro investimento do governo alemão na revitalização de Berlim como centro cultural europeu. E o custo de vida, ajuda. Um apartamento no centro de Berlim Oriental, com um quarto e uma sala custa cerca de 500 euros. Já não há existem os cabarés dos longínquos anos 20, cheios de fumo e luz difusa, embora tenha reaberto um dos mais famosos, com meninas vestidas a la Josephine Baker, para turista ver. Mas há o PergamonMuseum, com o colossal altar da cidade grega de Pérgamo, e as portas da antiga cidade de Babilónia – só para mencionar os “highlights”. Também há, num outro museu, o busto de Nefertiti, de uma elegância e beleza raras, que por si só justifica uma visita a Berlim. 

 

Passeio na Unter den Linden. Marlene cantou «Enquanto as tílias continuarem a florir na Unter den Linden, Berlim será sempre Berlim». A avenida, com tílias no corredor central, conduz à Porta de Brandemburgo – zona de fronteira onde a multidão celebrou a queda do Muro. Do outro lado, o Reichstag, (sede do Parlamento), é talvez o edifício mais visitado de Berlim. A renovação da cúpula, obra caleidoscópica de Norman Foster, atrai milhares de visitantes que esperam estoicamente, mesmo em dias de chuva miudinha, para subir uma rampa espelhada e ver uma boa parte de Berlim.

De um lado e do outro da Linden, há museus onde apetece passar o dia, a ópera nacional, jogadores de vermelhinha, vendedores ambulantes de gorros de pelo, bicicletas e bancas de salsichas.

A Linden está para a Berlim Oriental como a Kurfürstendamm está para a Berlim Ocidental: amplas avenidas, modelo glamoroso importado de Paris, intensa vida comercial e empresarial. Peço ao taxista que me deixe na Walter Benjamin Platz – a obra do filósofo alemão foi uma das influências de Wenders na criação d’ «As Asas do Desejo» -, e é aí que começo a andar pela Ku’damm.

Termino com um dos mais belos espaços da cidade, infelizmente vedado aos não-sócios: a biblioteca estatal de Berlim (Staatsbibliothek), um projecto de Scharoun que dialoga com a Philarmonie, do outro lado do passeio. (Deixaram-me entrar quando me apresentei como jornalista e expliquei estar a refazer o circuito do filme). São edifícios de cortar a respiração, integrados no Kulturforum, um complexo que inclui, também, museus como a Gemäldegalerie (colecção soberba, com Ticiano, Vermeer, Caravaggio...) ou a Neue Nationalgalerie, desenhada por Mies van der Rohe.

No filme de Wenders, uma longa sequência dá a conhecer esta biblioteca. Tenho alguma dificuldade em descrevê-la... Talvez me aproxime se disser que o espaço me pareceu, como n’“As asas...”, metáfora do tempo babélico que vivemos, de palavras cujo significado mais íntimo se esqueceu ou não se chega a compreender. E, ao mesmo tempo, da potencialidade absoluta contida nas palavras, da memória como núcleo da identidade, repartida por mil pessoas e mil livros.

Os diferentes espaços da biblioteca estavam ocupados por sócios. Depreendi que fossem, em grande parte, alunos de doutoramento, que anotavam, escreviam no portátil, “scannavam”, fotocopiavam. No filme, há 20 anos, ainda não se usavam os computadores, e todos estão recolhidos na leitura, no pensamento. Por entre os leitores, reconhecemos os anjos, que velam por eles. E no andar de cima, como eu previra, a partir do filme, estão os globos onde o narrador da História procura quem o queira ouvir. Li algures que o seu nome é Homero. Invoca a Musa, esclarece que os seus ouvintes são agora leitores. Era ele que ao princípio procurava Potsdamer Platz.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2006

 

 

Sicília (c/ livro de Goethe)

27.04.20

Numa segunda feira de manhã, a primeira de Abril, Goethe estava em frente a Palermo. Tinha deixado Weimar havia muito e a sua viagem a Itália aproximava-se do fim. Era outro homem, este que chegava à Sicília, de tal modo que não foi reconhecido por um cavaleiro de Malta que lhe perguntou pelo jovem impulsivo, cujo nome não recordava, mas que era o autor do Werther... Goethe respondeu-lhe: «A pessoa por quem tendes a amabilidade de vos interessar sou eu próprio!». Muita coisa deve ter mudado, espantou-se o outro... «Certamente. Entre Weimar e Palermo passei por grandes mudanças».

Dois anos antes da Revolução Francesa, animado por um interesse enciclopédico, o génio alemão percorria a Itália. «A viagem pode comparar-se a uma maçã madura que cai da árvore: a queda da árvore significa, como esta viagem, uma libertação e o início de novo ciclo». Eu vivia com uma frase de Goethe, transformada em linha condutora da minha vida: «O alvo da viagem é viajar». Mas nos dois últimos anos propus-me visitar a Itália seguindo as suas anotações e cartografia. Talvez procurasse, como ele, esse instante arrebatador em que nos dissolvemos para nos voltarmos a achar.  

Cheguei a Palermo num sábado de manhã, vinda de Paris onde estava há mais de uma semana. Só percebi que o facto era relevante quando regressei a Paris e tudo me pareceu subitamente civilizado e limpo. Provavelmente o efeito não seria tão espectacular se voasse de Lisboa. Estava um calor de Agosto; absurdo, quero dizer. Que se entranha imediatamente no corpo e constitui um cheiro de que ficamos impregnados. Era um cheiro a suor, a vida vivida, a Verão, que persistiu dia após dia.

A cidade que se anunciava aos pés dos montes escarpados, despertou em mim o mesmo sentimento que Nápoles, um ano atrás, e que Goethe descrevia desta maneira: «Quando quero escrever palavras só me vêm imagens aos olhos. (...), e faltam-me os orgãos próprios para dar expressão a tudo isto».

Há um feitiço que nos faz aderir instantaneamente a esta terra. Suja, pobre, sanguínea. Talvez seja a síntese improvável de culturas (grega, romana, bizantina, sarracena, normanda, espanhola); o magnetismo da terra  imortalizada pelo cinema_ sentimos que fazemos parte de um filme de Visconti, que somos colegas de trapaça de Totó, que era napolitano, mas que encaixa no estereótipo siciliano. Talvez sejam as pessoas; a sua pele curtida pelo sol, a camiseta esburacada, o vinco das calças, o nariz adunco, a brilhantina que puxa o cabelo. O meu personagem favorito, antecipo desde já, é aquele que me recebe num modestíssimo hotel, em Messina, lá mais para o fim da semana: cabelo armado num balão de algodão doce, anel no mindinho e no anelar, casaca cinzenta debruada a ouro, botões redondos, a reluzir. Um aprumo de outros tempos. A surpresa foi imensa quando lhe vi a boca esburacada, os lábios presos por um dente em cima, um dente em baixo. Fellini tê-lo-ia aproveitado, e aos neons que, por trás, anunciavam o nome do hotel.

Na chegada à Sicília, Goethe sublinha a “fertilidade luxuriante”, enternece-se com “a pureza dos contornos”, “a harmonia do céu, do mar e da terra”, elege o “Monte Pellegrino como a mais bela das pequenas montanhas do mundo”. Deixara Nápoles havia poucos dias e escapara dos suplícios do enjoo, (e, já agora, de uma tempestade que quase deitava tudo a perder), no interior do navio. Daí a dias, recuperei a passagem em que ele falava de ter curado o enjoo com pão e vinho, imobilizado numa posição horizontal. Eu estava em Vulcano, entre barcos, e o vinho Malvasia, um vinho licoroso originário da ilha de Salina, combinava com brioches e o pôr do sol. Era uma perfeição de cartão postal, celebrada com vinho da casa.

Goethe teria gostado de Vulcano, e sobretudo de Stromboli, a mais distante das ilhas Eólicas. Da sua aspereza vulcânica, das casas brancas e pequenas, dos sardões que se escapam das pedras quentes e atravessam o caminho. Mas acredito que Stromboli lhe interessasse pouco, mesmo sendo um geólogo apaixonado. A resposta é simples: depois de visitar o “monte ígneo” que é o Etna, que figura na Odisseia como uma coluna que segura o céu, qualquer vulcão se assemelha a um vulcãozinho.

Se é certo que Goethe não conhecia Stromboli filmado por Rossellini, os percursos íngremes, as ruas “íngrides”, eu não podia recusar sentar-me na soleira da porta da casa em que viveram. «In questa casa...», atesta uma placa de mármore, em letra de namorados. Ingrid Bergman e Roberto Rossellini viveram ali na Primavera de 49, durante a rodagem do filme. Doravante, sempre que vir a Bergman no cinema, pensarei no dia em que tomei pequeno almoço num café com vista para o mar, porque ele se chamava «Ritrovo Ingrid».

Conto sumariamente a história a Mauro, ou Marco, o estudante de geologia que me mostra as diferentes camadas de lava do Etna, explica porque o rio de lava é tão preciso e não transborda (porque as extremidades arrefecem rapidamente, e desse modo fazem uma barreira que impede que a torrente de fogo extravase), faz-me percorrer o rebordo de diferentes crateras. Mauro, ou Marco, nunca viu o filme em que Ingrid sente a terra a tremer, mas sabe da viagem a Itália de Goethe e interessa-lhe saber porque é que o alemão considerava esta “a rainha das ilhas”. É um siciliano orgulhoso. Tento recordar a definição precisa, mas não a encontro. Poderia ter respondido isto: «Quanto a Homero, foi como se me caísse uma venda dos olhos. As descrições parecem-nos poéticas e afinal são extremamente naturais, embora criadas com uma pureza e uma autenticidade que nos assusta». Goethe diz também que com a Sicília a Odisseia tornou-se para ele palavra viva.

Esta impressão persiste, passados mais de 250 anos. É um pouco infantil, mas senti uma aceleração no peito quando vi uma placa a apontar para a Riviera dos Ciclopes, e idealizei a cena: criaturas medonhas empurrando pedras para impedir que Ulisses aportasse naquela encosta. (Li algures que os ciclopes dormiam dentro das bocas do Etna...). Foi uma emoção perceber a correspondência entre as palavras milenares de Homero e aquilo que se desenrolava ante os meus olhos. E imaginar Goethe a subir de mula, e a sentar-se para, em segurança,  poder ver toda a área. «O vento soprava de leste, varrendo toda a esplêndida região que se estendia a meus pés, até ao mar. Vi a olho nu toda a costa, de Messina a Siracusa, com as suas reentrâncias e baías». Hoje não se vê senão Catânia, rente ao mar e aos pés do vulcão, e em dias claros avista-se Taormina. Mas Siracusa, a 60 km a sul de Catânia, e Messina, sensivelmente à mesma distância, a norte, já não se alcançam.

A autora do guia Lonely Planet aconselha a organizar a viagem em torno de uma ideia. Conselho avisado. É tão extraordinária a oferta que é fácil dispersarmo-nos ou repetir percursos óbvios. Goethe abordou a Sicília com a mesma paixão com que percorreu toda a Itália. João Barrento, autor da tradução que sigo, condensou do seguinte modo os princípios que orientam o escritor alemão: «a abertura dos sentidos (do olhar em especial), a distância integradora (daí o hábito de subir às torres) e o diálogo com as coisas (particularmente a natureza, o que explica o lugar dominante da observação de fenómenos geológicos, mineralógicos e botânicos). (...) Por outro lado, o presente é a grande via de acesso e o ponto de chegada para toda a reflexão sobre a arte, a história e a natureza».

No essencial, refiz os passos de Goethe: Palermo, Catânia, Taormina, Messina. Sacrifiquei Agrigento e o vale dos Templos, de que Goethe falou com máximo prazer. «As uvas de mesa crescem em latadas apoiadas em pilares altos. Em Março plantam as melancias, que estão maduras em Junho. Crescem por todo o lado nas ruínas do Templo de Júpiter, sem ponta de humidade». Posso dizer que não quis decepcionar-me, que não cri que fosse possível encontrar um cenário igual... Melancias a crescer no Templo de Júpiter? Mas a verdade é que tenho ainda fresco o desconforto de ter visitado Pompeia a torrar ao sol, e não me apetecia engrossar as filas de visitantes que admiram o vale, o vale, o imperdível vale... Por último, o Toni insistiu comigo: que encurtasse caminho e não perdesse Siracusa.

O Toni, segundo a mãe, minha senhoria em Palermo, é arquitecto e trabalha na câmara: é político. Será vereador? Toni combina uns calções justos com uns ténis da Prada, usa um brinco na orelha e uma barbicha que cofia enquanto faz uns ares de sedutor. Um cromo de qualquer caderneta siciliana. Por acaso não fala uma palavra de inglês, e comunica através da mãe, que fala francês por ter trabalhado na Bélgica, a fazer bolinhas de açúcar para bolos de aniversário. Desdenha de Taormina, (como é possível?, Toooni?), põe as mãos no fogo por Siracusa (faz bem; Goethe não visitou a cidade, que Cícero dizia rivalizar com Atenas: afiançavam-lhe que perdera a sua glória e interesse. Foi uma pena não ter ido).

A conversa passa-se ao pequeno almoço, entre os ovos e o mangericão. Uma coisa muito fina, isto de comer ovos ao pequeno almoço. O bom siciliano come uma granita de café, com panna, e brioche. A granita come-se, aliás, o dia todo. Gelo moído, com o sumo e a polpa de limão, ou framboesa, ou café. No topo, uma camada de natas. O brioche, mergulha no copo e rapa o fundo. É um pão molhado em pouco mais que gelo, sim. Também há quem meta no pão uma bola de gelado! Mas isto são invenções de tempos abonados.

Quando o escritor alemão visitou a ilha, o que encontrava em abundância era aquilo que a terra dava. «Os frutos e legumes são deliciosos, em especial a alface, tenra e saborosa como um leite; entende-se a razão por que os Antigos lhe chamaram lactuca. O azeite, o vinho, é tudo muito bom, e poderia ser muito melhor se se desse mais atenção ao modo de preparar os alimentos. Os peixes são dos melhores, muito delicados.  Tivemos também boa carne de vaca, ainda que as pessoas a não apreciem muito».

Abundam as descrições sobre os campos e o modo como são semeados. Goethe chega mesmo a desconsiderar «o desastrado do guia» que lhe «estragava com a sua erudição» o prazer do que se via no vale, «sempre a contar como Aníbal travou aqui uma batalha». Mais adiante, fala da surpresa do outro, que não contava que um homem das letras pudesse desprezar a memória clássica. Talvez não seja tão surpreendente: se é verdade que atravessa o livro a ideia de reconstituir momentos clássicos através das ruínas, é mais forte a ideia de que a viagem convoca um renascimento interior.

Ocorre-me novamente a noção de viagem como sinónimo de descoberta no teatro grego de Taormina. Num gesto excessivo, procuro a vibração das pedras no contacto com os pés, recupero pedaços de tragédias que ali foram representadas, escrevo postais em diferentes pontos do anfiteatro, meço a imponência do Etna. É mesmo a «mais incrível obra da natureza e da arte». No palco preparavam uma versão de “Il Gattopardo”, a obra de Lampedusa que Visconti adaptou ao cinema. É uma obra sobre o fim de um tempo, que concentra, como a Sicília, a decadência e o desejo num mesmo plano. A explosão da vida e a inevitabilidade da morte. Arrisco que tenha sido essa pulsão, presente em cada instante, que tenha feito desta viagem um lugar de descoberta e reconhecimento para mim. Como para Goethe: «Sempre pensei que ia aprender aqui muita coisa; mas que teria de recuar tanto, que teria de desaprender e reaprender tanta coisa, isso nunca pensei». Pode ser que Goethe tenha procurado o caminho para casa. Como Ulisses, o mais mítico dos heróis. Como cada um de nós, errantes.

Não tenho uma única fotografia destes dias maravilhosos_ não tenho, sequer, máquina fotográfica. Não sinto necessidade de registar em imagens isto que (incompletamente) traduzo em palavras. Goethe fazia-se acompanhar por amigos que ilustravam aquilo que via. Foram vários, em diferentes pontos da viagem; por alturas da Sicília, Kniep era aquele que fixava a paisagem. O facto de nunca ter procurado esses desenhos (se existem, e onde?) não é senão revelador do seguinte: já me basta o tesouro da descrição de Goethe e de sentir, como ele, que uma viagem pode interpelar a nossa vida. O que isso convoca dentro de nós, não tem imagem precisa.

 

 

Onde ficar

 

Grand Hotel e des Palmes, Palermo

Via Roma, 398; booking-despalmes@amthotels.it

Quartos sumptuosos, lustres admiráveis, escadaria de mármores. Um cenário de filmes que foi palco de intrigas e negócios. Acolheu a elite que chegava à Sicília. Um cinco estrelas ideal, nem que seja para ler umas páginas num canto do bar. O mais certo é ter vizinhos ingleses. Entre 100 e 200 euros.

 

Bed and Breakfast, Sicília

São cada vez mais populares em toda a ilha. Existem às dezenas em todas as cidades e disponibilizam fotografias na net. A decoração é quase sempre kitsh e duvidosa. Mas em época alta um quarto custa em média 50 euros por noite, o mesmo que um hotel de duas ou três estrelas. Como o nome indica, oferece cama e casa de banho. Muitos facilitam, ainda, o acesso à cozinha.  

 

Onde comer

 

Trattoria la Foglia, Siracusa

Via Capodieci 21; www.lafoglia.it

É um restaurante que lembra os almoços de domingo em casa da avó. As duas salas têm naperons a fazer de toalhas de mesa, fotografias da família proprietária e louça que parece comprada na rua, em feiras de antiguidades. A cozinha, evidentemente, é boa _ é impossível comer mal na Sicília. O pão é feito na casa e o peixe é muito fresco. O espada é por excelência o peixe da região. Cerca de 30 euros.

 

Antica Focacceria di San Francesco, Palermo

Piazza San Francesco d' Assisi, telefone 091 32 02 64

Um clássico da cidade cuja história remonta à Idade Média: era o restaurante onde se encontravam viandantes, peregrinos, gente humilde. Pão com rim fatiado é a principal atracção. Mas também pão com gelado. A esplanada cresce na Piazza São Francisco de Assis. Sugere-se um esparguete com pesto de pistachio, (molho muito popular na Sicília). Cerca de 25 euros.

 

Como ir

 

A Tap e a Ali Itália voam para a Sicília. A maior parte dos voos têm escala. A ilha tem dois aeroportos: o de Palermo é o principal, o de Catânia fica na costa leste. O comboio é ainda o de linha estreita. O que quer dizer que 200 km pela costa (entre Messina e Palermo) demoram mais de três horas e meia a percorrer, em cima de malas e com passageiros pelos corredores. O autocarro é o mais usado. Barato, constante, com o senão de quase sempre parar em todas as pequenas localidades (60 kms podem representar uma hora e um quarto). Táxi a preços proibitivos.  

 

Quando ir

 

Os meses mais temperados são os mais indicados_ entre Abril e Junho e Setembro e Outubro. Mas mesmo em Agosto, sob um calor abrasador, milhares de turistas e a inevitável inflação de preços, a Sicília é um destino extraordinário.

   

 

Publicado originalmente na revista NS do Diário de Notícias em 2006

 

 

 

Itália low-cost (Veneza, Florença e Bolonha)

26.04.20

A experiência de visitar Veneza tem qualquer coisa de A Rosa Púrpura do Cairo. Há um cenário de beleza idílica, com a espessura de um cartão-postal, e de repente ele ganha forma, profundidade, temperatura, e nós cabemos nele. No filme de Woody Allen, o impossível também acontece: Cecilia, a empregada de mesa que se refugia nos filmes da vida atroz que leva com o marido, recebe, do lado de cá do ecrã – do lado da vida –, o seu herói do cinema, qual príncipe sem cavalo branco, que a resgata para o plano da felicidade. Ela recebe-o como quem recebe um presente. E nós entramos em Veneza como quem entra num sonho.  

Entre este parágrafo e o filme de Woody Allen deve estar uma frase de Goethe: “Veneza deixa de ser para mim mais uma palavra apenas”, escrita quando o poeta alemão chegou a Veneza em Setembro de 1786. Depois de ter sublinhado esta frase, e de ter anotado “30 Agosto de 2013; a quarta vez em Veneza, creio”, pensei que “uma frase apenas” é uma folha de papel. Lisa, em branco, anódina. O que muda tudo é a vida que fica inscrita na folha, na frase, que salta do ecrã e nos leva para o paraíso da infância. Só aí é que acontecem as coisas fantásticas que acontecem nos filmes e em Veneza – como ver uma mulher com um ramo de flores no vaporetto e perceber que vai visitar um ente querido ao cemitério de San Michele, pequena ilha em frente a San Marco. Visitar um ente querido de barco?, um cemitério numa ilha?

O encanto de Veneza talvez esteja em transportar-nos para esse território onde tudo é possível. A cidade, ela mesma, parece impossível (perguntamo-nos: Veneza existe, deveras?). No filme de Woody Allen, Cecilia acaba mais ou menos como começou: a apanhar do marido, a ouvir do chefe, fascinada pelo cinema. Mas enquanto dura o mistério, enquanto, de facto, o herói a leva a jantar (não importa que o dinheiro que usa para pagar a conta seja falso), nada mais é preciso.

Era, portanto, a quarta vez que eu estava em Veneza, e estava fascinada como se fosse a primeira. De certa maneira, é sempre a primeira vez que se vai a Veneza por causa deste carácter exorbitante da cidade.

Um parêntesis para contar a minha efectiva primeira vez em Veneza: aterrei no dia 24 de Dezembro, frio de neve, cidade deserta. Percebi mais tarde que os dias 24 e 25 de Dezembro são os únicos dias do ano em que a cidade está vazia. Os enxames de turistas começam a chegar no dia 26. E como a população de Veneza se fica pelas 58 mil pessoas, eram pouquíssimos os que se encontravam no labirinto de ruas, atarefados a resolver compras de última hora. Diziam uns aos outros, como uma senha: auguri! Eram pessoas com um ar burguês (quem mais tem dinheiro para ter casa em Veneza?), ligeiramente envelhecido ou completamente envelhecido. Devem ter encontrado um modo de coabitar com os 13 milhões de turistas que invadem Veneza todos os anos. Pouco mais de um milhão por mês.

Nesse 24 de Dezembro a cidade estava silenciosa como nunca mais a encontrei. A acústica (tão particular em Veneza, por causa dos canais) permitia ouvir passos distantes, o rumor das águas, o deslizar de duas gôndolas. Comprei no mercado de Rialto iguarias para a ceia de Natal. Mais prosecco e panetone.

No dia de Natal havia o silêncio das manhãs de Natal (das casas onde não há crianças). Um silêncio que se prolonga pelo dia, quando as pessoas ficam mergulhadas no torpor que sucede aos grandes encontros. Foi no dia de Natal que percorri as ruas estreitas, transpus centenas de pontes, resisti à chuva de neve. Lembro-me de ter encontrado um café, um dos únicos abertos, e de ter tomado um expresso. Muito torrado e curto. Uma italiana é um café muito curto, não é? Pois então. Eu estava em Itália.

Ofereci-me de presente 20 minutos de gôndola. Um presente caro, mágico e triste. Triste porque sublinhou a impressão de que passeava por um cenário, como o de Morte em Veneza de Visconti. O gondoleiro estava, como eu, cheio de frio, e não cantou.

Mas Fábio, o gondoleiro desta quarta vez em Veneza, correspondia à imagem estereotipada do gondoleiro. Cantava O Sole Mio, apontava a casa de Marco Polo, a de Casanova, falava em português com sotaque do Brasil; é casado com uma brasileira, e esta “valência”, como se diz nos cursos de Gestão, tem sido muito útil para passear os milhares de brasileiros que, cheios de nota, aterram em Veneza. Eu não tinha muita nota, pelo contrário, e regateei o preço. Um passeio de 45 minutos, para quatro pessoas, custou 80 euros.

Talvez seja altura de dizer que o propósito desta viagem era adaptar a promessa de felicidade que Itália representa para mim ao orçamento low, mas mesmo low de que dispunha. E também é importante dizer que viajei com uma família que vive no norte, com uma criança de nove anos, e que todos os gastos, mas mesmo todos, foram objecto de discussão.

Estive quase a desistir da viagem quando choquei de frente com os preços dos voos. Veneza é capaz de ser a mais cara das cidades italianas (de todas as que visitei, é, sem dúvida), e o voo custava uma pequena fortuna. Mesmo comprando com um mês e meio de antecedência. Tive então a ideia de voar para Bolonha e fazer o resto da distância de comboio. Para terem uma ideia do quanto se poupou com esta manobra, passo a explicitar: numa companhia low cost, a partir do Porto, o bilhete para Bolonha andava pelos 140 euros (tudo incluído); na Tap, para Veneza, o preço era de 400 euros, também a partir do Porto. Acabei por voar na Tap, para Bolonha (opção muito acessível), a partir de Lisboa; e a família viajou com a RyanAir, do Porto.

Este impulso fez-me estender um mapa de Itália sobre a mesa e alargar horizontes. Se a opção era voar para Bolonha, talvez pudesse não me ficar por Veneza, que fica a uma hora e meia de comboio. Florença fica a meia hora de Bolonha (35 minutos, para ser exacta) e eu tinha muita vontade de ver o David de Miguel Ângelo, entre outras coisas.

Outro excurso para contar a primeira vez que fui a Florença. Eu era uma menina de 23 anos, fazia programas na televisão, o que me dava, facto novo, o conforto de não ter de esticar até ao fio o dinheiro do mês. Era um tempo em que se ganhava bem na televisão. Decidi ir sozinha para Florença. Não sei o que me passou pela cabeça para escolher Florença, e não Roma ou Veneza, para primeira cidade italiana. E sozinha, sim, porque gosto muito de viajar sozinha, do encontro a sós com uma cidade. É um diálogo íntimo como os diálogos íntimos que se têm com pessoas. Gosto de estabelecer um enredo e cumpri-lo com liberdade; é mais difícil consegui-lo quando temos de articular as nossas prioridades, ritmos e neuras com outras pessoas. Uma boa parte dos meus amigos não compreende o meu gosto de viajar sozinha. “E não tens pena de não partilhar o que estás a ver?” Não. Partilho de outra maneira, a posteriori, e depois de as coisas se sedimentarem em mim.

Nunca mais estive em Florença sozinha. Nem voltei a Siena, àquela magnífica praça onde me sentei e tive uma sensação de plenitude que ainda recordo. Achei que não precisava de mais nada para ser feliz. Olhava, sentada no chão, era tudo. Em Junho. Não tenho ideia do que comi (devo ter comido bem, porque só se come bem em Itália), mas não esqueço uma fachada amarela, da cor dos girassóis, que me apontaram como sendo a casa dos Médici. É a cor que não esqueço, mais do que a casa, porque tudo ficou guardado nessa tonalidade dourada e sonhadora.

Na viagem deste Verão, fim de Verão, não tive tempo para visitar Siena ou San Gimignano, a aldeia medieval que fica a dois passos de Florença. O dinheiro estava contado e o tempo também. Resumindo: a viagem durou de sexta à tarde a quarta. Apanhámos o comboio em Bolonha às seis da tarde. Assistimos ao cair da noite no vaporetto, ainda não eram oito da noite. Primeira imagem do que aquilo ia ser: águas azul indigo, reflexo pirilampo das luzes, casas terracota ou marmóreas nas margens.

Para a criança que estava comigo, além do deslumbramento de Veneza, havia a coincidência de num só dia andar de carro até ao aeroporto, de avião até Itália, de comboio até Veneza, de barco até ao centro de Veneza. Ela acrescentava, atenta: “E de táxi entre o aeroporto e a estação de comboio, em Bolonha. E de autocarro entre o avião e o aeroporto”. Os adultos não reparam nestas coisas. Mas uma criança olha para o que não foi ainda olhado, e essa foi uma das coisas mais extra-ordinárias de visitar Veneza com a Vitória. Ela transportou-me para o encantamento que é próprio da infância, sem reservas e sem medos, e que Veneza potencia por ser a tal cidade cenário de cartão.

Mas não é fácil ser criança em Veneza, vêem-se poucas crianças em Veneza, dou por mim a pensar que não vi nenhuma escola em Veneza – onde estão as crianças de Veneza? Não se vive em Veneza. Visita-se Veneza. Porém, e voltando ao meu ponto, todos somos crianças quando pomos o pé em Veneza. Não é preciso que esteja acqua alta, e que São Marco tenha água pelo joelho. O tempo estava glorioso.

Volto a Goethe. “A largura das vielas pode em muitos casos medir-se de braços estendidos, ou quase, e nas mais estreitas bate-se com os cotovelos nas paredes quando estendemos as mãos para os lados; há outras mais largas, aqui e ali também uma pracetazinha, mas em geral pode dizer-se que tudo é acanhado”. Desde a primeira viagem a Veneza que procuro estas vielas onde os meus cotovelos possam bater. Não as encontrei ainda. Mas desta vez encontrei uma onde os braços curtos da Vitória tocavam, sem dificuldade. Ficava perto da “nossa” casa, a dois passos da igreja e da ponte della Crocre, entre o Arsenale e São Marco. 

Era um piso térreo, construído à volta de um saguão, com um bom quarto de casal, casa de banho, cozinha, sala ampla (com sofá cama). Tinha também um pequeno jardim, impossível de usar por causa dos insectos. Bed and Breakfast, evidentemente, 200 euros por noite. Apesar de ser a parcela mais cara desta viagem, o preço não era absurdo se pensarmos que aí dormiam quatro pessoas. Se compararmos com os preços de Florença e Bolonha, era uma careza.

Em Florença o preço era 140, em Bolonha 109. Sempre para quatro pessoas, no centro da cidade, opções confortáveis. Encontrei-os no Booking.com. Só é preciso procurar com paciência e prestar atenção aos comentários que outros hóspedes fazem. Durmo frequentemente em B&B e posso dizer que estes eram melhores do que outros onde fiquei em Roma, em Paris ou em Madrid. E pela primeira vez os móveis não eram Ikea, ou desengonçados.

É fácil ser feliz em Itália. Tudo é superlativo em Itália. (“Boa noite é o que nós, gente do norte, dizemos sempre que nos separamos depois de escurecer; o italiano diz felicissima notte uma única vez, e no momento de nos trazerem a luz ao quarto, quando dia a noite se separam, e nessas circunstâncias a expressão tem um sentido completamente diferente”.)  Felicissima notte em vez de boa noite. Felicíssimo dia. Uma praça onde se encontram Neptuno, Hércules, David. As galerias Uffizi ao lado. Os tectos abobadados, pintados com esmero, no palazzo vecchio.  Ao dobrar da esquina, casas, igrejas, jardins, estátuas. Estupefacção permanente.

“Ali” morava Dante. O Dante (que estudei) e que começou um longuíssimo poema da seguinte forma: Nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per una selva oscura. Todos nos encontrámos já numa selva escura, interrogando-nos sobre o caminho que fazemos, quando vamos a meio. Então “o meio” eram os 30 anos. Dante escolheu o poeta Virgílio para o acompanhar na viagem. Mas Dante, que amava muitíssimo os poetas, pôs Homero ou Horácio nos primeiros círculos do Inferno, e pôs um suicida, Catão, a guardar as portas do Purgatório. Porquê, que quer isto dizer? Porque é que os poetas não estão no Purgatório, ou mesmo no Paraíso?

Continuo a pensar nos enigmas de Dante, nos nossos enigmas – como não amar Dante? “Ali” é a ponte onde pela primeira vez Dante viu Beatriz.

Poderia visitar Florença apenas para seguir o seu rasto. E teria, a dois passos, o baptistério, com as portas do Paraíso esculpidas numa folha de ouro muito amarelo; a catedral de mármore verde e rosa, que naquele começo de Setembro tinha uma fila de centenas de pessoas para entrar. “Aqui” tudo é extático e de certo modo irreal. Mas muito diferente de Veneza. Em Veneza é o cenário que parece fictício e nos atrai. Em Florença estamos já dentro do labirinto e tropeçamos em tesouros, uns a seguir aos outros. Não queremos sair.

Dois tesouros: a biblioteca dos Médici (Biblioteca Medicea Laurenziana) e o David (Dávideee, chamam-lhe os florentinos) na Accademia (é melhor pagar quatro euros extra e marcar entrada na Accademia – ficam a ser 15 euros; de outro modo, perde-se uma manhã na fila. Porque é que é diferente da réplica que está na praça principal? Porque é o original, e porque, por sabermos disso, nos parece maior, e mais brilhante, e mais gracioso).

Não chegámos a estar dois dias completos em Florença. Eu gostaria de ter estado mais tempo, é claro; sobretudo quando se vai pela primeira vez, dois dias é pouco. Mas de repente pareceu-me que Veneza tinha sido há uma eternidade, e isso deu-me a noção de que a marca de Florença já se sobrepunha, e que tinha visto muitíssimo naquelas poucas horas. O tempo permitiria que as impressões se sedimentassem. Era terça-feira à tarde e era preciso apanhar o comboio de regresso a Bolonha.

Como já escrevi, a viagem tinha o dinheiro contado. Imaginem o meu horror quando percebi que comprei bilhetes de comboio de primeira classe e não de segunda! Os bilhetes já não eram propriamente baratos. Andavam pelos 25 euros (entre Bolonha e Florença) e os 40 euros (entre Veneza e Florença, duas horas de distância). Felizmente a Trenitalia estava com uma promoção para famílias e as crianças não pagavam (a CP não quer fazer o mesmo?). Em todo o caso, tanta poupança e de repente eram malbaratados uns 15 euros, em média, por bilhete. Disse entre dentes, danada: “Ao menos um prosecco, para afogar as mágoas”. Alguém ouviu as minhas preces. A CP oferece um café de termos e um biscoito. A Trenitalia oferece um prosecco e uns frutos secos. Faço daqui um brinde à Trinitalia!, e deixo um recado: a CP não quer fazer o mesmo?

Bolonha é uma cidade surpreendente. Era a única das três que não conhecia, e se não fosse este estratagema para poupar massas no bilhete de avião para Veneza, provavelmente não a visitaria. O que eu perderia... Foi em Bolonha que vi uma das homenagens mais tocantes de uma cidade aos seus heróis.

Está na praça principal. São três painéis com as fotografias e os nomes dos bolonheses que combateram na Segunda Guerra Mundial. Uma fotografia especifica: partigiani combatentes: 14425, dos quais mulheres: 2212. Partigiani mortos: 2059. Feridos: 945. Presos: 6543. Fuzilados por represálias: 2350. Mortos nos campos nazis: 829. O que é que revelam as fotografias: que eram pessoas como nós. Nem mais pobres, nem mais ricas, nem mais desesperadas, nem mais destemidas. Eram caras como as nossas, anónimas. E contudo, heróis. Que morreram a lutar. É muito inspirador, em tempos de crise, passar pela praça e ver aquelas fotografias. As circunstâncias são outras, bem entendido. Mas aquelas pessoas dão-nos ânimo para continuar, ajudam-nos a não baixar os braços. Grazie.    

Que mais há para ver em Bolonha? O museu arqueológico (é muito gabada a colecção de artefactos etruscos e egípcios, mas só tive tempo para ver a ala greco-romana). A biblioteca, o teatro anatómico onde se fazia dissecação de cadáveres. Um centro histórico onde se come genialmente. No Tamburini come-se salame, presunto de Parma, mortadela, carpaccio..., a dez euros a tábua; uma tábua dá, à vontade, para duas pessoas. Na taberna Il Sole só servem bebidas; é suposto que se comprem fatias de pizza e paninis nas lojas vizinhas e que se peça álcool ao balcão. Não é exactamente o sítio mais limpo do mundo, apesar de ter uma tabuleta que diz: é vietati sputare sul pavimento. Mas o ambiente é divertido, muito local a marimbar-se para o turista, e gostei mais desse prosecco, a dois euros a flute, do que daquele que bebi em Veneza ou Florença.

Goethe não gostou especialmente de Bolonha. Refere-se à cidade apenas em três entradas no seu livro-diário Viagem a Itália. O seu anseio era chegar a Roma. “O meu desejo é mais forte do que os meus pensamentos. Sinto-me irresistivelmente atraído para diante, e tenho dificuldade em me concentrar no momento presente”. Mas fala de pedras maravilhosas, que viu nos arredores da cidade, e de um sonho que tivera um ano antes e que lhe ocorreu nesses dias que passou em Bolonha. Sonho perturbador. Eu tive pena de não poder demorar-me no presente, naquele meu presente, que era Bolonha. Tenho de voltar. Quanto à pequena Vitória, depois de Veneza e Florença, Bolonha pareceu-lhe secundário. Ou então era só o cansaço. Nós, os adultos, esquecemo-nos de que uma criança, mesmo que seja muito curiosa e bem comportada, não tem pernas para andar de manhã à noite. E a única maneira de ver três cidades em seis dias (nem isso) é não parar. Parar? Parada estou eu agora.

 

 

Como chegar:

Viajar de comboio, em Itália, é uma bela experiência. É confortável, pontual, há espaço para as pernas. A informação horária que está no site é rigorosa: http://www.trenitalia.com

Mesmo que viaje em segunda classe e não tenha direito a prosecco, recomenda-se. Ao meu lado, numa das viagens estava um cão labrador. A passageira contava que o preço do bilhete do cão era carote, mas só num pequeno troço da viagem exigiram que pusesse açaimo.

É possível comprar bilhete em máquinas na estação ou em guichets próprios. Nestes últimos, as filas são exasperantes. Comprar na máquina é fácil. Pense duas vezes antes de alugar um carro. Caos absoluto na estrada, mesmo a auto-estrada para uma estrada nacional.

 

Onde comer:

Esta é a secção mais fácil de escrever. Come-se tão bem em Itália, e em especial em Bolonha, que o difícil é que corra mal. Veneza, sendo tão turística e cara, exige escolha mais cuidadosa. No nosso caso, acertámos no primeiro dia com o restaurante e repetimo-lo todos os dias. Não fiquem horrorizados os gourmets: o propósito da viagem não era gastar fortunas à mesa. O restaurante, muito perto de São Marco, é uma extensão de um restaurante napolitano (bom argumento para nos fazer decidir): www.rossopomodoro.com. O preço médio das refeições: 15 euros por pessoa. Uma garrafa de prosecco honesto custa 10 euros. 

Em Florença, a média de preços manteve-se mas a qualidade subiu significativamente. http://www.trattorialemossacce.it tem pratos geniais, num ambiente só aparentemente modesto. É relativamente acanhado, por isso é preciso reservar. Mergulhar o biscoito em vin santo, um vinho entre o aguardente e o licor, que é bom demais!, é obrigatório.

Bolonha tem como alcunha a grassa. Os bolonheses levam muito a sério a relação com a comida. Por mim, continuava à mesa do Tamburini, a pedir carnes frias e queijos da charcutaria contígua. Cada prato, abundante, custa 10 euros. O serviço é um desastre absoluto. Desorganização que choca, até, um português (que tem fama de ser desorganizado, mas que ao pé de um italiano é um alemão). A qualidade compensa a espera de 45 minutos por um copo. Espreite no site http://www.tamburini.com

 

Onde ficar:

Além do Booking.com, sugiro os seguintes sites para encontrar soluções económicas: http://www.luxrest-venice.com e http://residenzaariosto.it/

 

 

 

Publicado originalmente no Público em 2013 

 

 

Bruno Nogueira

10.04.20

Tudo começou com um bastão, no Teatro S. Luiz. Se ele é capaz de se atacar com violência? Sim. Quantas vezes usa a palavra risível? Muitas. Como é que um rapaz que nem 30 anos tem é um dos maiores fenómenos da televisão portuguesa dos últimos anos? É o que vamos ver.

Bruno Nogueira nasceu em 1982. Um defeito? “Achar que todas as pessoas têm que pensar que tudo é risível como eu penso. Estar à vontade de mais. Ser teimoso. Ter muito pouca paciência para a burrice; não me refiro a pessoas que não sabem de política ou de história, mas a pessoas que fazem questão de complicar o dia a dia.”

Tem o descomplicómetro habitualmente ligado. Dizer que faz um humor corrosivo é pouco. É respeitador dos colegas (do estilo de dizer os nomes dos argumentistas que com ele habitualmente trabalham, e de sublinhar que provém do viveiro Produções Fictícias). Era possível entrevistar o Bruno Nogueira e o seu alter-ego Bruno Nogueira. Em qual é que ficamos?

  

Estamos no salão de Inverno do Teatro S. Luiz onde (mais a sério) apareceu. Aparecia com um bastão e dizia…

… “o meu nome é Bruno Nogueira e isso é uma coisa que me irrita.” Estávamos a começar o projecto Manobras de Diversão. Eu – se calhar tinha uma raiva contida que não percebia bem – começava sempre os meus textos assim.

 

Agora não usa o bastão, mas o seu humor tem uma violência indisfarçável. Não estamos tão distantes de alguns sinais que emergiam nesse Bruno de 18 anos.

A ideia do bastão terá sido minha. Era uma personagem que interrompia o espectáculo para expor as suas ideias mais controversas. No espectáculo funcionava. Na vida é mais perigoso.

 

No espectáculo continua a funcionar. N’Os Contemporâneos faz um arraso à Floribela-Luciana Abreu, que depois convida e recupera n’ O Último a Sair. É um exemplo do seu tipo de humor: violento, com nomes (o que é raro em Portugal), nada camuflado.

A Luciana, como o Roberto [Leal], como eu próprio, tem um lado muito risível. Havia nela coisas de tal forma expostas que servem o humor.

 

No youtube está o sketch no qual faz de Luciana, em África, à procura de uma criança descalça e faminta para adoptar.

Era um modo de levar até ao limite a ideia que se tem da Luciana. N’O Último a Sair, a Luciana, o Roberto são inteligentes o suficiente para usar isso em proveito próprio. O Roberto não precisava disto para nada, tinha a carreira mais do que feita. Aceitou porque percebeu que podia desmanchar a imagem preconcebida e cliché que tinha. Certinha, composta, o fato branco, Deus. O Roberto não deixa de ser isso, mas é outra coisa também – mais negro e divertido É um gesto de inteligência. Não sei se o teria.

 

Uma constante no seu trabalho, que tem n’O Último a Sair a sua máxima expressão: uma colagem entre a pessoa que é e a sua persona pública. Espreitamos pelo buraco da fechadura e aproximam-se a ficção e a realidade. Não sabemos onde está a barreira que as delimita.

Este paralelo entre a ficção e a realidade é o que me dá mais prazer fazer. Há um lado muito grande de improviso em que as pessoas estão a fazer delas próprias. Sempre conscientes de que aquilo é uma personagem. A linha entre a realidade e a ficção é tão ténue que é bom quando o espectador não percebe onde é que ela começa e acaba. Nós sabemos. Há coisas que digo que são apenas para servir o humor. Mas jamais serei capaz de fazer humor com uma coisa que é antagónica àquela que eu penso.

 

Se fosse um personagem como outro qualquer, e não o mentor do projecto O Último a Sair, como é faria o Bruno Nogueira?

Sempre trabalhei no campo de fazer de mim próprio. O achar que não há nenhum tema sagrado, que todas as coisas são passíveis de serem risíveis: a base da personagem seria essa.

 

Também nesta sala fez o seu primeiro espectáculo a solo. “Há imenso tempo que queria fazer um espectáculo no S. Luiz e ninguém me dava ouvidos. Comecei a namorar com a Maria Rueff e eis-me nesta sala, a fazer este espectáculo”. Porque é que diz estas coisas?

Seria estranho e delicado dizê-lo. Mas teria de ser eu a dizê-lo. Falando honestamente, acho que uma pequena percentagem de pessoas terá pensado isso, mas o objectivo era o humor. Não era uma boca. Como a Maria tinha notoriedade antes de eu ter começado, era uma realidade possível.

 

O público ainda não se tinha habituado a ouvi-lo dizer o pior sobre certas pessoas e às vezes sobre si próprio. Foi uma carreira planeada?, percebeu cedo que esse era o caminho?

Esse espectáculo, o Lado B e O Último a Sair foram planeados. Tudo o mais surgiu por acaso. A primeira vez que fiz stand up: no Chapitô, a mãe da Margarida Vilanova, que explorava o bar, queria fazer umas noites com leituras de textos. Fui lá fazer uma leitura em forma de stand up. Gostei da sensação, de ver como aquilo que eu dizia surtia efeito, provocava o riso. Tinha 16, 17. As Manobras: o Nuno Artur Silva tinha pedido a um colega meu textos, esse colega filmou-me a dizer esses textos. Textos sobre pacotes de abertura fácil. Não estavam à procura de actores, mas viram o vídeo e chamaram-me.

 

Ou seja, uma cassete que um amigo fez chegar ao Nuno Artur Silva fez com que fosse convidado para fazer as Manobras.

A partir daí, as coisas que foram surgindo foram sendo fruto umas das outras. A minha única regra, não só para trabalhar mas para a vida, foi só estar com pessoas em quem confio, acredito e com quem gosto de estar. E tenho de sentir que posso acrescentar alguma coisa.  

 

Mesmo não planeado, as marcas mais distintivas deste humorista já lá estavam. Como é que chegou a elas?

O meu pai tem o mesmo tipo de humor que eu tenho. Ou melhor, eu é que tenho o mesmo tipo de humor do meu pai.

 

Quando numa gala dos Globos de Ouro falou do Sr. do Bolo (Balsemão) e de puns, de quem falou foi da sua mãe, e não do seu pai.

Era como se fosse a minha mãe a dizer, mas não, [riso] era meu. O meu pai tem esse tipo de humor que não tem limites. A primeira vez que fui ao Levanta-te e Ri falei de nomes. Quando se falava de uma pessoa, dava-se sempre uma volta, arranjava-se um nome parecido. Não posso ser só bruto. Mas percebi que quando faço um discurso directo, quando chamo as coisas pelos nomes, [isso corresponde] à maneira como as pessoas pensam. Aquilo que dizem em casa, no carro, com a família, com os amigos, é trinta mil vezes pior do que alguma vez direi em palco. O pudor e os filtros que têm em público fazem com que sejam mais polidas.

 

Nesta altura da entrevista, quem está a ler, pode pensar que não tem sido senão polido.

Acha?

 

Muito cuidadoso, mais do que polido.

Se calhar. Inconscientemente. Estava a dizer que quando estamos em casa vemos uma notícia trágica e fazemos uma piada sobre o que se está a passar.

 

Já fez piadas sobre a morte de Angélico?

Não. Depende do bom gosto e do tempo. Está muito cru, ainda. Não há por onde pegar.

 

Quando foi a morte de Carlos Castro, no dia seguinte as anedotas eram às centenas. Isso tinha a ver com as pessoas em questão, com os contornos do crime? Simultaneamente estou a perguntar o que é que torna uma coisa imediatamente propensa à anedota.

Fiz um vídeo para agradecer os Monstros do [Fernando Alvim], disse uma piada: que tenho em relação ao Carlos Castro a mesma opinião que tenho acerca da aspirina: prefiro em pó. Depois disso veio um processo, da família. Há a ideia de beatificar uma pessoa depois que ela morre. Ou era um excelente actor ou uma excelente pessoa. Não ganho respeito a uma pessoa por ela ter morrido. Ponto. Não vale a pena estar a escarafunchar mais [a morte de Carlos Castro], mas é um tema tragicamente risível. Para mim e para milhões de pessoas. Não o dirão em público, certamente.

 

A partir do momento em que usa a palavra escarafunchar e o saca-rolhas foi uma das armas do crime…  

Para mim, todos os contornos são hilariantes. De a grande preocupação da família do Renato [Seabra] ser mostrar que ele não é gay, às correntes de apoio a um suposto assassino. A personagem [Castro], em vida, já era risível. O Angélico não era risível.

 

Foi no Levanta-te e Ri que se abriu ao público mainstream. Até aí estava no Curto-Circuito da SIC Radical, transformado em herói de malta nova. Voltando ao Angélico: o público que gostava de si podia ser coincidente com o público Morangos com Açúcar?

Há público que se cruza sempre. Há pessoas que gostarão de mim até eu falar de religião. Há pessoas que gostarão de mim até eu falar de gordos. Estamos sempre a ser avaliados. Estamos a ser avaliados à frase num espectáculo de stand up. N’O Último a Sair somos avaliados ao episódio. Pouco importa que o último tenha sido muito bom se o próximo for muito mau. A memória das pessoas fica no último. Essa pressão pode ser paralisante ou pode ser um motor.

 

A geração Morangos é conhecida pela preocupação com a imagem, o deslumbramento com a fama, a obsessão pelo sexo. No seu humor há um permanente ataque aos famosos. Eles parecem ser o seu alvo preferencial. Quando se inclui nessa categoria, pratica o género auto-depreciativo.

Em relação à geração Morangos: nada contra. Acho extraordinário se daí vierem mais talentos. Numa amostra tão grande, certamente não são todos canastrões. Há-de haver um ou outro que se salvará.

 

O Roberto Leal está a tomar conta de si. Essa seria uma resposta que ele poderia dar.

Acha? [riso] São caras com penteados estranhos (sou a pior pessoa para dizer isso), e mulheres com corpos já a aparecer. Passado um mês, todos dizem que não têm paciência para a fama, que os incomoda que os reconheçam na rua. Então não façam televisão! É um género.

 

Porque é que esse género o irrita tão particularmente, a ponto de sacar do bastão?

Porque são pessoas burras. Uma pessoa que não suporta ser reconhecida na rua não faz um trabalho visto por dois milhões de pessoas. Vai para um escritório, vai fazer teatro de rua, vai fazer o que quer que seja. Não é por serem figuras públicas que constituem um alvo; o que me faz comichão são aqueles que são famosos por serem famosos, como dizia o Sérgio Godinho. Porque aparecem. Porque não têm profissão. Porque são RP ou comentadores sociais. Não consigo conceber que ser comentador social seja uma profissão. A vizinha da minha mãe tem exactamente o mesmo trabalho. Só que não tem uma câmara à frente. Lado perverso: há público para isso. E a partir daí, fica-se desarmado. As pessoas querem ver os gordos a ser humilhados na televisão, pessoas a fazer figuras tristes numa tribo. Não consigo achar que muita gente a ver seja sinónimo de qualidade, ou que uma pessoa famosa que aparece na televisão tem mérito. Não tem mais mérito do que um sem-abrigo. 

 

Quis ser famoso?

Não. Quis fazer aquilo de que gostava, que era ser actor e fazer humor; e por acréscimo, e não me queixo disso, vem a fama.

 

Para estes que assistiam ao Bruno Nogueira no Curto-Circuito (esquecemo-nos que ainda não tem 30 anos…

Nem sei se vou lá chegar!, só faço anos em Janeiro.)

 

Para esses, era o “ganda maluco”. Deixou de ser o “ganda maluco” quando começou a fazer coisas nos canais generalistas e vocacionadas para um público mais abrangente?

A partir de certa altura, ser um “ganda maluco” deixa de ser um grande elogio para passar a ser meio-deprimente. Tive sempre a sorte tremenda de poder fazer na RTP aquilo em que acreditava. O Lado B não era um projecto para agradar a massas. N’Os Contemporâneos tentámos alargar mais o espectro. O Último a Sair tem o esqueleto de uma coisa generalista, de um Big Brother; mas o que se passa lá dentro é tal e qual o que eu gosto de fazer. Não facilitei. O João Quadros, o Frederico Pombares e eu escrevemos aquilo que achamos que tem piada. Posso dizer que até agora nunca ninguém tentou acalmar-nos.

 

Um projecto arrojado e com enorme violência de texto: Os Contemporâneos. Teria sido possível num canal que não o público? O seu humor é tão directo que tem consequências comerciais.

Num canal do Estado estou mais a salvo, por um lado; por outro lado estou mais sensível às críticas das pessoas do grande enigma que é o serviço público. (Ainda estou para tentar perceber, tal como o bom gosto, o [conceito de] serviço público). Provavelmente por ser na RTP tinha mais liberdade. Posso dizer que me ligaram uma vez de uma empresa e outra para a TSF [onde faço o Tubo de Ensaio]. Se eu podia repensar o texto que tinha escrito e no dia a seguir pedir desculpa... Eu disse que sim, à vontade, se pudesse dizer que tinha havido aquele telefonema.

 

Esses nomes é que nunca aparecem. Está muito dinheiro em jogo.

Estará? Mas posso dizer: ligaram-me da TV Cabo.

 

Todos nós já dissemos mal da TV Cabo.

Fiz um texto porque o serviço de apoio a clientes era mau. Paga, não consegue ver, está uns dias sem ver televisão, mas paga a factura integral; dizem que vão descontar, mas depois nunca descontam, e depois enganam-se outra vez, e depois… Às vezes, as pessoas põem-se um bocadinho a jeito. Têm de perceber que não há nada intocável, seja uma empresa, seja uma pessoa.

Há pouco tempo fui fazer uma gala da Liga Portuguesa de Futebol. Nunca na vida tinha visto tantas pessoas numa sala com tão pouca vontade de viver. De viver, de rir, de tudo. Reinava o medo! O medo do que se iria dizer a seguir.

 

O patrocinador zanga-se e corta – é isso?

É-me indiferente. As pessoas estavam era com medo que se falasse delas. Tanto que depois houve queixas sobre o tipo de humor. Uma coisa é estarem cem pessoas e serem três assim. Outra coisa é estarem cem pessoas e serem 95 assim, sem o mínimo espaço para rir.

 

Uma situação idêntica à de Ricky Gervais, quando apresentou os Globos de Ouro de 2011 e foi acusado de ter ido longe demais. Parece certo que não o convidam no próximo ano. Acha que o vão convidar para apresentar a gala da Liga Portuguesa de Futebol no próximo ano?

Se me convidarem para fazer o tipo de humor em que acredito, sim, se for para passar paninhos quentes em pessoas que não conheço de lado nenhum, não, não me interessa nada. O Ricky Gervais fez uma coisa inteligentíssima. Ali estavam 300 pessoas a assistir; em casa estavam milhões. Ele estava a fazer para casa. Em casa, adoraram. Disse as coisas que nós dizemos em casa. As pessoas que estavam na sala estão habituadas a que lhes passem a mão pelo pêlo. Mas não precisam. São famosas, têm dinheiro.

 

Têm segredos. Esse é o busílis?

Têm segredos e pontos fracos que acham que ninguém vê. Há coisas que, mesmo sendo muito transparentes, não gostamos que toquem nelas.

 

Começa a olhar para onde, para fazer a desconstrução e ver o potencial cómico de uma pessoa?

Se for uma figura pública, são uma série de antecedentes que são risíveis. Quando fiz um sketch a brincar com o Jorge Jesus n’O Último a Sair, toda a gente sabia que o Jorge Jesus se ia espetar ao comprido no português. Cada pessoa será diferente, não há uma regra. O José Rodrigues dos Santos pisca o olho no fim.

 

Confesse que em casa lhe chama “orelhas”.

Orelhas. Já chamei? É provável. Mas ele fez uma operação, dá-me ideia que sim, preste lá atenção no Telejornal, tem as orelhas no sítio. Mas por acaso não chamo “orelhas”. Não me é hostil. Irrita-me o piscar de olho, pronto.

 

Convenhamos, “orelhas” é muito soft.

Bem, em casa não sou um estivador! [riso] Sendo o humor a minha profissão, não quer dizer que em casa esteja sempre a praticá-lo.

 

O Dinis Machado tem no livro Reduto Quase Final uma crónica com um título que se transformou numa divisa perante a vida: “Qual é o lado mais cómico disto?”. Subscreve-la?, está sempre à procura do lado mais cómico de uma situação?

Sim. O humorista deve ter a capacidade de ver tudo através de (acho que era o Raul Solnado que dizia isto) uma lupa que torne as coisas normais em coisas risíveis. Uma pessoa que olhe para uma cadeira e um extintor não percebe que haverá um potencial cómico nelas.

 

Numa cadeira?

Pode haver. Se se dedicar a isso, acredite que pode fazer um texto de humor sobre uma cadeira.

 

Nessa crónica, Dinis falava de coisas como tropeçar e partir o dente da frente, de ficar nessa linda figura.

O grande triunfo do Obama, não em termos políticos mas em termos carismáticos, é ser uma pessoa descontraída. Passa a imagem de quem não tem um lado cinzento, quadrado. O que torna risíveis muitos políticos é o facto de se levarem tão a sério, não saberem sair de certas perguntas e situações com que são confrontados. As pessoas já não têm paciência para este tipo de políticos.

 

Acha Passos Coelho um pitéu em termos humorísticos?

Um pitéu?, agora fiquei assustado…

 

Por ser composto, engomado.

Menos composto e menos engomado do que José Sócrates. Sócrates é um personagem muito fácil de caricaturar. Pela intransigência, pela falta de jogo de cintura. Passos: ainda é muito cedo. A classe política está sempre exposta a levar tareia.

 

Está a ser muito politicamente correcto. Não se acredita que olhando para os novos ministros não tenha esfregado as mãos de contente com um ou outro.

Não tenho necessidade nenhuma de ser politicamente correcto. Ainda não me inteirei da pasta [risos]. O caso Fernando Nobre é um caso risível.

 

Na tarde em que falamos, segunda-feira, renunciou ao seu cargo de deputado.

Foi? Devia ter sido há mais tempo. Tinha uma grande estima por ele. Quando passou a ser político, houve qualquer coisa que se desmanchou.

 

É verdade que os políticos não são um alvo constante.

Nem política, nem futebol, nem sexo.

 

Porque não? São temas inesgotáveis.

Política é um tema chato. Sexo é um tema fácil demais. Já sei que se for para uma sala no norte e fizer um texto em que digo mal do Benfica, está ganho. Mas não me interessa.

 

O verdadeiro artista é o que é exigente consigo?

Não estou a dizer que escolho temas melhores. Interessam-me outros. 

 

O verdadeiro artista é o que escolhe temas desafiantes, campos adversários?

Não pego nesses temas porque, enquanto espectador, não os acho risíveis.

 

Segundo a wikipedia, mede 1.94.

Cuidado com a wikipedia. Há uns tempos dizia que eu vivia com dois gatos. Não suporto gatos! Mas um metro e 94, está certo.

 

A tradição dos humoristas em Portugal era baixinhos e gordinhos. Solnado, Nicolau Breyner, Herman.

Fernando Mendes.

 

Os dois humoristas mais notados da sua geração são altos e magros. Onde quero chegar é à utilização do seu corpo como matéria para o humor. Não é exactamente o seu tipo de humor. Buster Keaton fazia-o mais. Mas conta sempre com o impacto físico que causa.

Não só isso, como uma série de situações em que me vejo envolvido e onde a minha altura constitui um problema. Desde andar de avião a estar numa cozinha de uma maneira normal. Mostrar o ridículo do tamanho destas pernas é um tema que domino. Também a magreza. Bato-me pelo tema: porque é que não se pode chamar gordo a um gordo?

 

No programa chamavam gorda a uma gorda.

Porque é que é de mau tom chamar a uma pessoa gorda?

Ser gordo não era sinal de formosura?

 

Mas agora que dizer que se pode ter ataques do coração.

E eu posso morrer de fraqueza! [riso]

 

Um dos gangsters d’Os Sopranos tinha uma mulher muito gorda, mas muito gorda. Estavam a jogar cartas e ficou danado porque fizeram troça do tamanho da mulher. Ficou ainda mais danado quando chegou a casa e viu que andava a matar homens, ou em vias disso, e que ela furava a dieta!

E comia! A desculpa tem sempre a ver com o metabolismo, com qualquer coisa assim. O mundo é feito para as pessoas emagrecerem. A seiva, os comprimidos…

 

Mas como é que sabe da seiva?

Porque sei! Porque é um assunto que me incomoda. Quem é gordo tem mais opções para resolver a sua gordura do que quem é magro. Todas as pessoas que se queixam do peso comem que nem uns animais. Também me vai perguntar se como mal? Não, como que nem um animal. O meu metabolismo é assim.

 

Quando era criança, como é que seduzia as pessoas à volta?, pela graça?

Sim. Era muito tímido. Seis, sete, oito, nove anos, era gordinho, tipo bolinha.

 

Era “o badocha” apontado pelos colegas da escola?

Era bochechinhas, mas não fazia pregas nos braços. De repente, aos 16, houve uma coisa estranha no meu corpo e cresci. Parei no um metro e 94. Mas sim, era com o humor [que seduzia as pessoas à volta]. É um cliché, todos os humoristas dizem isto. Era um cartão de visitas para angariar mais amigos, para me safar de situações. Eu era aquele que provocava um amigo, que fizesse coisas parvas, que o punham de castigo. Do tipo: ver quem é que consegui dar com mais força um pontapé numa mesa onde estava um aquário. Ficaram cerca de 40 peixes espalhados pela sala, a morrer. [tosse seca] Era a minha forma de interagir. Não sabia fazer de outra maneira. Tenho dificuldade em ter uma conversa sem recorrer ao humor. Escudo-me. Dá-me a impressão de tornar a conversa mais interessante.

 

Conversa interessante?

Como dizer? Era como se eu fosse mulher e me viessem falar de roupa ou sapatos. Teria de recorrer a outra coisa para não ensandecer. São temas que não me interessam. Mas não é de bom tom terminar a conversa e dizer: “Essa conversa não interessa naaaada. Mas a ninguém, no mundo. Muito menos a mim. Portanto vou-me embora. Quando houver um tema interessante voltamos a falar.”

 

Só seria anti-social fazer isso. Mas não insano.

Tenho um bocado disto. Toda a vida vivi e trabalhei com pessoas mais velhas. Para os temas de que falavam as pessoas da minha idade, não tinha paciência.

 

Se as pessoas estão à espera do Bruno Nogueira, dá-lhes o Bruno Nogueira? Confesso que estava à espera que fosse mais o personagem, que tem muita graça e mete a punch line nos momentos certos.

Tem duas pessoas que pode entrevistar: pode entrevistar-me a mim ou a ideia que têm de mim. A ideia que têm de mim corresponde a isso. Isto sou eu sem pensar na ideia que têm de mim. Se me entrevistasse durante as gravações d’O Último a Sair, em que estava a fazer de mim, provavelmente seria outro tipo de discurso. Seria mais interessante? Se calhar. Mas não seria uma entrevista a mim.

 

Aquele que é, tanto quanto se vê, não quer ser apenas o humorista…

A atirar ao intelectual. [riso]   

 

Não por acaso, quando faz uma peça com a Cornucópia interpreta textos de Aristófanes. Com muito palavrão e tal. Mas Aristófanes. E sob a direcção de Luís Miguel Cintra.

Disse “intelectual” a brincar. Gosto como espectador, mas não era uma coisa que andasse desalmado para fazer.

 

Não precisa da caução dos intelectuais, da Cornucópia?

Não. Fico muito contente se vier, mas não me move. Assim como eles não precisam da caução da comédia para nada.

 

Em todo o caso, raras vezes um público tão jovem lotou o S. Luiz para ver Aristófanes. Evidentemente, era também um público que ia ver o Bruno Nogueira. 

Muitas pessoas iam para ver uma coisa e acabaram a ver outra. Não era uma coisa que ambicionasse. Claro que ter o Luís Miguel Cintra a encenar é um grande privilégio, aprende-se imenso, acrescentou-me muito enquanto actor. Mas foi pela experiência que fiz. Se o convite não tivesse nenhum, não faria.

 

Foi um actor dramático, e aplaudido, numa peça encenada por Beatriz Batarda, Azul Longe nas Colinas. Interessa-lhe não ser apenas o humorista?, quer ser o actor completo?

Interessava-me experimentar. Foi um convite. Jamais teria a iniciativa de fazer uma coisa dramática. À partida, não é por fazer uma peça dramática que se prova alguma coisa a alguém. Prova-se que se consegue fazer aquilo, mais nada. O risco é em grande parte da Beatriz. O papel mais sensível da peça é feito por uma pessoa que tem o carimbo da comédia. Ser no Nacional [Dona Maria] ganha outro peso. Mas ter conseguido extrair de mim aquilo é mérito dela. Fico orgulhoso de o ter feito.

 

Tem uma mãe como a do Herman que assiste na primeira fila e diz: “És um bom artista, não tinhas necessidade”? A sua mãe pergunta-lhe porque é tão violento?

A minha mãe e as vizinhas gostam muito d’O Último a Sair. É um barómetro para perceber coisas. Às vezes tem medo que me aconteça alguma coisa. Que alguém se passe e me dê com um barrote na cabeça. Tudo pode acontecer. Sei lá. Na gala da TV 7Dias, como estava um ambiente estranho, agradeci o prémio a uma pessoa que já tinha falecido, mas que ia ficar muito feliz por eu estar ali, que era a minha mãe. Fiz aquilo só pelo gozo de perceber a reacção das pessoas. [riso] Ficou um gelo na sala. Um silêncio de cinco segundos. Depois disse: “Estava a brincar, era só para aliviar o ambiente”.

 

Terão pensado: nem a mãezinha poupa.

Sim, sim. A minha mãe adorou!, fartou-se de rir. Contei-lhe, podiam ligar-lhe. Tenho muita sorte, não me lembro de uma única vez me terem censurado. O núcleo duro sou eu, o meu pai, a minha mãe e a minha irmã. Entre nós não há qualquer espécie de pudor.

O meu pai tem 69 anos. Plantou recentemente um jacarandá. Que demora uns certos anos a dar flor… Disse-lhe que era arriscado plantar um jacarandá aos 69 anos à espera de ver as flores… Seria o mesmo que o Manoel de Oliveira pôr um aparelho nos dentes. Já não faz sentido. Tudo bem, mas que faça primeiro o testamento. Digo isto obviamente a brincar.

 

O testamento? Deve ter mais dinheiro do que o seu pai. Ganhou montes de massa. Está rico?

Estou bem. Não estou rico. Ser rico é outra coisa. Ser rico é olhar para uma casa e comprá-la. Ser rico é o Ronaldo. Apetece-lhe uma casa para os seus pais, e nem olha [para o preço]. A extravagância que fazemos – ir a um supermercado, comprar uns iogurtes e não olhar para o preço – é o que ele faz com carros.   

 

O seu pai tem também dinheiro? Situe socialmente a sua família.

Uma família de classe média. O meu pai trabalhou durante muito tempo numa empresa que representava a Philips em Portugal, a minha mãe trabalhava na Gás Portugal. A minha irmã ficou a trabalhar onde o meu pai trabalhava e foi modelo durante muito tempo. Não tem 1.94. São os três muito, muito bonitos. Fui o único a degenerar na família.

 

Diz isso a sério?, sentiu-se o patinho feio?

Não, estava só a fazer género. Mas houve uma fase complicada em que o meu pai me levava a um barbeiro que me cortava o cabelo à Beatriz Costa. Era uma taça na cabeça e era gordinho e não escolhia as minhas roupas. [diz num tom gozão] Vejo fotografias e percebo alguma coisa da minha exclusão pelo ar que tinha. Um ar de demente, de pató, um nerd. Depois passei por uma fase bimba em que usei champô de camomila porque queria ficar louro. Devo ter usado demais e fiquei com o cabelo cor de laranja.

 

Já estamos na personagem Bruno Nogueira.

Não, não, é verdade. Foi uma fase muito estúpida em que pensei que o estilo estava ligado à cor de cabelo. Depois passei pela fase das marcas, porque fui para a escola secundária do Restelo. Quem não tinha um cavalo, um crocodilo no peito... A minha mãe ainda me comprou duas ou três coisas. Depois mandou-me ir trabalhar. Quando comecei a fazer teatro (é uma coisa que me faz comichão nos dentes no meio do teatro…, só andarem com cores escuras), só vestia preto e calças de bombazina castanhas. Parte de ser artista era aquilo que se vestia.

 

Quem é que foram sendo os seus modelos?  

O Herman. Esteve 30 anos a fazer do bom e do melhor. Ao fim de 30 anos é normal entrar em velocidade cruzeiro, com picos de genialidade, como sempre terá. Os Monty Python; vi uma reposição, era tão estranho que adorei. O Seinfeld, o Ricky Gervais, uma série de stand up comedistas. Tinha fetiche por alguns actores. Fui ver o Miguel Borges numa peça dos Artistas Unidos, Primeiro Amor, seis vezes.

 

Texto de Beckett. A peça era sublime. É compreensível que tenha ido seis vezes.

Seis vezes. Tive a sorte de, desde muito cedo, estar perto de pessoas que admirava muito. O António Feio, o Miguel Guillerme, o Herman, a Maria [Rueff], o Nuno Lopes, o Ricardo [Araújo Pereira], o Zé Diogo Quintela.

 

As pessoas acham que são dois galos para o mesmo poleiro. Dá-se realmente bem com o RAP?

Sim. Falamos sempre quando se escreve qualquer coisa sobre isso. A última era muito boa: eu vestido de Pepsi e ele de Coca-Cola. As pessoas precisam de criar rivalidade. A paz nunca vendeu.

 

O que é que o faz perder a cabeça? O que é que o faz ter vontade de pegar no bastão? Parece, estranhamente, muito racional.  

Está muito surpreendida comigo enquanto pessoa, não está? Ficou desapontada? Há pessoas que me abordam na rua com a falsa intimidade que a televisão provoca. As pessoas acham que no dia a dia estou em personagem! O que eu faço em palco, especialmente em espectáculos ao vivo, é o que eu gostaria de ser. Tanto no à vontade como na rapidez. Não sou aquilo na vida. Mas gostava. Também gostava de ser aquilo. No último espectáculo, no S. Jorge, estava em cima do palco a pensar como gostaria de ser aquela pessoa. Na vida não temos 800 pessoas a olhar para nós, acomodamo-nos mais.

O que é que me irrita? A falta de educação. Sem ser essas coisas? Mas isso tira-me do sério. Se tocassem na minha família, [perdia a cabeça].

 

Não acredito que não tenha ouvido sobre a sua irmã “a gaja é boa”.

Ah, mas sobre isso já me ri. Até ouvi pior. Depende da forma como é dito. Se é dito para ofender, à pedreiro, é uma coisa. Se é dito de igual para igual, no meu tipo de humor, é outra.

 

 

Publicada originalmente na Revista Pública, em Julho de 2011

 

Júlio Machado Vaz

05.04.20

Por fim, pergunto o  que é que o pode fazer viver com leveza. E ele responde coisas arrancadas à vida de todos os dias, tesouros banais: «Cantelães ao entardecer, a família reunida, um sorriso de mulher depois do amor. Mas em geral, viver é para mim um gozo lento, feito de tropeços. Habituei-me a isso, deixou de ser um drama. Drama seria parar».

Júlio Machado Vaz tem uma pacificada urgência de viver. Psiquiatra, comunicador, pai, filho, deitou-se literalmente no divã no livro «O Tempo dos Espelhos», experiência autobiográfica que o revela enquanto homem. Ei-lo, a céu aberto.

 

Há um tom "amarcordiano" no seu livro «O tempo dos espelhos». Todas as infâncias se parecem?

Não, não creio. Mas sou capaz de (quase) concordar no que às fantasias adultas acerca delas diz respeito. Com frequência suavizamos cores, recordações, feridas..., idealizamos, enfim! Os que podem, claro. Há infâncias tão agudas que não permitem o aparar de arestas.

 

Há um momento em que se percebe que se é mortal. A morte está, também, nos livros do Roth que lê, no Beatle Harrison que idolatrou, na família que parte mas que fica no coração. A hipocondria "esconde uma tristeza solitária". Como ultrapassar o medo?
Tem razão, o medo não desaparece, enfrenta-se. Neste caso, os anos trouxeram, como digo no livro, a pacificação pela mudança de acento tónico - do medo de morrer passei ao medo relacionado com o processo de morte. Essa mudança fez-me valorizar ainda mais a vida, que saboreio hoje como nunca o fiz no passado. Também porque o afunilar do caminho me "obrigou" a rever prioridades, exigências, caprichos. Compreendo hoje melhor uma frase do Eugénio de Andrade, solta em conversa banal: "Agora tenho tempo para os amigos, a música e os livros, o resto varro-o sem remorsos".

 

A psicanálise desencadeia, inevitavelmente, uma viagem interior, e um (ir)reconhecimento no espelho. Por que é que fazer análise mudou a sua vida? Por que é que ser psiquiatra mudou a sua vida?

A análise transformou uma comodista "vítima das agruras da vida" num homem responsável pelo seu destino, pese embora as limitações que a todos tolhem algumas opções. A psiquiatria foi uma escola de vida inigualável, pela extraordinária paleta de afectos e comportamentos que pôs sob os meus olhos. Trinta anos depois, as pessoas continuam a fascinar-me pelo sol e sombra que me depositam no colo. Na minha profissão existe o cansaço mas não a rotina.

 

O que é que, no seu mapa afectivo, reconhece como casa? A sua casa em Cantelães, lugar de chegada, é assumida como um "reinventar das origens". Mas no livro fala abundantemente dos seus lugares. A memória é o lugar que tudo acolhe...

Cantelães é "a" casa. Pelo que significa de chegada após um trajecto de vida e de trampolim para o que dela resta. E pelo privilégio de ter sido desenhada por meu filho mais velho, que melhor garantia poderia ter de que a lenda familiar continua a tecer-se? Mas outros lugares permanecem enroscados na memória, como este apartamento em que escrevo ou a casa de Anselmo Braamcamp. Como cantava Lennon e eu citei em «Muros»: "There are places I'll remember, all my life..., but I love you more".

 

As novas configurações da família, com a chegada e a partida de novos elementos, são um desafio. Fala de ser uma argamassa que une gerações...

Os netos foram e são uma festa indescritível. Mas, correndo o risco de escandalizar alguns, o "núcleo duro" da minha vida afectiva continua a ser preenchido por meus filhos. Porque vivemos a trio tanta coisa durante tanto tempo que será impossível experimentar algo de semelhante. Sei-o com a mesma certeza que me faz dizer que nunca a nível profissional me voltarei a aproximar do supremo gozo de fazer «O Sexo dos Anjos». Há geografias afectivas únicas, que não temem comparação, assim fomos - e somos! - eu, o Guilherme e o João.

 

Define-se como um "sub-depressivo". É fácil olhar para si, desde sempre, como sendo um melancólico, outonal, ventoso, nado e criado entre as brumas do Porto. Esse berço moldou-o?, e de que modo? 

O Porto é assim - esplendorosamente cinzento, pudera eu dizer o mesmo! O afecto sub-depressivo nunca me impediu de apreciar o milagre de estar vivo ou de  rir de mim próprio, condição sine qua non do humor, característica indispensável para suportar este mundo avesso à transcendência em que vivemos. Acresce que conheci a depressão "por dentro" e saí de novo para céu aberto. Que importa se não comungo de risos fáceis e por isso - para mim - menos preciosos? Os amigos não se queixam, os amores não falharam por isso, a profissão não sofreu, bem pelo contrário! É quanto basta.

 

O que escreve agora no seu diário, nem que seja sob a forma de blog, é substancialmente diferente do que escreveu nas páginas do seu diário que ofereceu a Eugénio de Andrade? Ou seja, é um homem diferente? O que o fez assim?

Sou um homem mais pacificado, logo, mais aberto por menos paranóico. Fez-me assim a vida vivida, com as respectivas nódoas negras e "medalhas". Quando escrevo textos pessoais no blog sei que alguns entenderão e outros rumarão a outras paragens por não lhes interessar. Há muito que abandonei a nostalgia de agradar a todos. Bem assim como a de gostar de todos... No fundo, já não preciso da aprovação alheia para me sentir alguém, não aspiro a reconhecimento público, embora o aceite com gratidão. Faço o meu caminho com os outros, apesar dos outros e não para os outros.

 

O seu pai perguntava se o seu querido filho não se deixava arrastar pelo prazer da frase... E fala disso como um epitáfio que lhe assentaria. Mais do que escrever um romance, quis fazer da sua vida um romance?

Nunca por uma ambição estética. Neruda confessou que viveu e isso resume tudo. Poderia ter eu vivido mais? De uma forma menos sofrida? Mais cedo? Seguramente. Mas não é tempo de lamentos, e sim de viver o que resta o melhor possível. A minha vida não foi nem será um romance apaixonante para os outros, de tão banal. Mas continuará a ser vivida apaixonadamente, como merece.

 

Este livro-introspecção é de um inesperado despudor, inclusive físico. Falar de entranhas, exames à próstata, minudências da higiéne, revela que superou o nojo?

O físico nunca me inspirou nojo, não partilho o horror judaico-cristão pelo corpo e seus caprichos ou meros rituais. Quando me vejo ao espelho não traço uma linha imaginária entre Espírito e Carne, "vejo-os" entrelaçados. O pudor que reduziu a metade «O Tempo dos Espelhos» foi relacionado com os outros e o seu direito a uma privacidade que procurei salvaguardar religiosamente. Tarefa difícil num livro autobiográfico. Não existimos numa campânula de vácuo afectivo e corporal. A minha própria exposição não me preocupou. Aceito que alguns a considerem até exibicionista, escrevi tão fundo quanto sentia necessário e ponto final.

 

É "o grande comunicador que ama cada vez mais o silêncio, que ama as crianças em pequenas doses". Paradoxalmente, parece haver de si para si um biombo. Pode ainda perder-se? Derrubar paredes, abrir comportas...

Posso perder-me, mas não através do meu estatuto de comunicador. Esse está cada vez mais delimitado e reduzido, pode viajar frenético mas nos carris que lhe imponho. A perder-me, será - com muito gosto! - nas suas margens, no leito do outro, que verdadeiramente sou eu e não uma imagem no ecrã ou uma voz na rádio.

 

Sabe que "descrever-se como fracassado é um exagero histérico". Diz que acalentou sonhos faraónicos no passado. Decretou falência porque, afinal, a vida foi outra e não aquela que idealizou. Proponho um exercício: mais que tudo, como falarão de si as pessoas quando partir? Consegue antecipar, ou tem pavor disso, ou não lhe interessa?

Cada vez me interessa a memória de menos gente. Mas a dessa..., apavora-me! Quero ser recordado como um bom pai, um bom amigo, um bom professor. No amor, ao menos!, como um filho da puta bem intencionado. Quando essas pessoas morrerem, aceito viver ainda um bocadinho no imaginário das que as terão ouvido, depois será o nada. Como para quase todos, afinal, o génio não existe por aí ao Deus dará e um nome na esquina de uma rua não garante doce recordação ou juvenil curiosidade.

 

 

Publicado originalmente na revista LA Mag em 2006