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Anabela Mota Ribeiro

Berlim, cidade dos anjos

27.04.20

Começo por Potsdamer Platz. É um aglomerado de edifícios cuja arquitectura fere por ser tão exuberante. Não há vestígios do tempo (recente) em que esta era uma terra de ninguém. Nem do outro, mais longínquo, em que era uma das praças mais animadas da Europa, com os primeiros semáforos, automóveis e eléctricos. No cruzamento de linhas há hoje um pedaço do Muro, com inscrições nas duas faces – uma referência que serve a curiosidade dos turistas que querem saber onde acabava a Berlim Ocidental e começava a Oriental. Ver o muro de um lado e do outro, circundá-lo, parece o mais simples dos caminhos; e contudo, é o resumo de uma impossibilidade que se desfez.

Quando Wim Wenders filmou «As Asas do Desejo», o mundo terminava no Muro. Em 1987, dois anos antes do desmoronamento de um tempo, o realizador não podia prever a reunificação das duas Alemanhas e, sobretudo, que a topografia que o filme registava estava na iminência de desaparecer. Uma das cenas mais tocantes do filme é, justamente, quando um velho, narrador da História, vagueia por um imenso descampado, onde não existe nada, senão a sua memória do que ali se passava. Ele procura: «Não consigo encontrar a Potsdamer Platz, isto não pode ser Postdamer Platz». “Isto” é a terra devastada que percorre, ao mesmo tempo que lembra que ali, no centro fervilhante da Potsdamer Platz, ficava o Café Josty, onde à tarde se conversava e observava o público, e se fumava o tabaco comprado numa tabacaria de renome. «Não desisto enquanto não encontrar Potsdamer Platz».

Chego à Potsdamer Platz à hora de almoço. Talvez seja excessivo dizer que me parece um olho de vidro incrustado num lugar onde antes se via de verdade. Mas a Potsdamer é mesmo uma cidade de vidro que tem no centro o complexo Sony (a sede europeia é aqui), do outro lado da rua o edifício DaimlerChrysler, um centro comercial, um casino, a maior sala de espectáculos de Berlim, 17 salas de cinema e uma escultura de Jeff Koons dedicada a Marlene Dietrich (é uma flor azul fosforecente, como ela foi no cinema). O investimento que reconverteu a praça foi de 17 mil milhões de euros. Em nenhum outro lado se construiu tanto nos anos 90. Porque é que nada disto me espanta?

À hora do almoço, a Potsdamer está razoavelmente vazia. O Café Josty – outra incrustação, desta vez no interior na Praça Sony – tem uma esplanada pindérica e uma família a comemorar o facto de estar na esplanada do Café Josty, onde à tarde se conversava e fumava tabaco de renome.

Prefiro o café que fica no rés do chão do museu do cinema e que se chama Billy Wilder. A amostra não podia ser melhor: fotografias pelas paredes imortalizavam Charles Laughton e Marlene em «Testemunha de Acusação», Audrey Hepburn em «Sabrina», Shirley MacLaine, de meias verdes, em «Irma la Douce». Havia até um cocktail chamado «Sunset Boulevard». Mas a menina que me atendeu não tinha ideia sobre quem era Billy Wilder. Virei as costas ao “Willkommen, willkommen” da Potsdamer Platz e segui para o Monumento ao Holocausto, muito perto dali.

 

Se à época existisse, Wim Wenders teria escolhido este espaço para o encontro e desencontro de pessoas de carne e osso. É um labirinto ondulante, composto por 2700 blocos de pedra, que assinalou os 60 anos do fim da Guerra. Não há neles qualquer referência aos milhões de judeus que morreram naqueles anos – vozes discordantes criticam o facto de ser um memorial demasiado abstracto... Nem há nesta sequência uma ideia de pedras tumulares. O arquictecto americano que o criou gosta de pensar nele como espaço intregrante da vida dos berlinenses. Peter Eisenman preferia que fosse usado para encurtar caminho, por exemplo, mais do que “uma experiência sagrada”.

A minha primeira experiência foi arrepiante. Era quase escuro quando mergulhei no labirinto. À superfície vê-se uma sucessão de pedras desiguais, mas não se percebe que há um afundamento a seguir. Não se percebe que se cai no abismo (no horror de que somos capazes?). Podemos seguir o caminho que quisermos e fazêmo-lo com segurança, porque não temos dúvida de encontrar a saída, de nos salvarmos a qualquer instante. O que tornou a minha passagem sagrada foi o som de um violino que distingui ao fundo, e que me fez procurar por entre as pedras o ponto exacto de onde ele vinha. Era um som tristíssimo, que chamava e contagiava. Quando o encontrei, vi um jovem, parado, com uma criança que teria dois anos nas suas costas. A criança olhava para o céu de chumbo e o som era cada vez mais pungente. A perfeição daquele momento levou-me novamente ao filme de Wenders, à perseguição da inocência. Quase estraguei tudo quando lhe perguntei se o podia gratificar. Mas ele era apenas um rapaz americano, judeu, que prestava tributo à sua gente, e que, findo o prazer da música, enfiou o violino na caixa e partiu.

No dia seguinte, dia claro, voltei a mergulhar no Memorial. Devia escrever “atravessar” em vez de “mergulhar”, porque usei-o como atalho para chegar ao outro lado da praça.

Esta experiência, (corriqueira, mas sensorial), estaria vedada aos anjos de «As Asas do Desejo». Recupero um diálogo maravilhoso entre Damiel e Cassiel num descapotável que está para venda. «Mas às vezes farto-me desta existência de espírito. Gostaria de sentir um peso que anulasse a infinidade e me segurasse à terra. Sentir o agora, jogar cartas, ser cumprimentado, nem que fosse com um aceno, chegar a casa cansado, ter febre, ficar com os dedos sujos de ler o jornal. Supor em vez de saber sempre tudo. Comer borrego assado e beber vinho, sentir os pés descalços. Poder dizer “ah, oh”». Estes anjos querem experimentar o espanto, provar o sabor do café quente, sentir o vento frio na cara.

 

Há vinte anos, o realizador alemão Wim Wenders vestiu os seus anjos de sobretudo e pôs-lhes o olhar nostálgico de quem perde o caminho e se quer achar. A Berlim que então filmou já quase não existe. Persistem os fragmentos da vida de todos os dias: a discussão conjugal, a família árabe com crianças no banco de trás, aquele que no metro se preocupa com questões prosaicas, “Como vou pagar, com a pensão pequena que tenho...?”, aquele que se ocupa de questões existenciais, “Porque estou vivo?”. Ou aquele que se esvai em sangue, depois de um acidente, e enumera o que deixa por fazer ou aquilo por que vale a pena viver: “O cruzeiro do sul, Stromboli, as casas antigas de Charlottenburg, Albert Camus, a luz da manhã, nadar na cascata, os olhos da criança, o saltitar, os nervos das folhas, o ondular da erva, a paz do domingo, andar de bicicleta sem mãos, a bela desconhecida, o meu pai, a minha mãe...». Há uma parte de «As Asas do Desejo» que ficará para sempre, por mais que a cidade seja reconfigurada. Aquela que diz respeito à procura, à densidade que é própria do humano.

Todo o filme se passa na Berlim ocidental, erguida sobre os escombros da Guerra. Todos estamos ainda incrédulos_ como foi possível? A banalidade do mal doi. Se o povo alemão não fosse tão perseverante, tão organizado e tão rico não seria possível reconstruir a cidade em 60 anos, e agora, depois da queda do Muro, em 18 anos. Há nos mercados de rua vestígios dessa passagem do tempo e da abertura ao leste: candeeiros da Bauhaus a 70 euros, casacos de vison a 900 euros, mobiliário “vintage” em óptimo estado, talheres em prata, mapas antigos, medalhas e distinções militares (abundantes). Pergunto pelas obras de Marx e Engels e o alfarrabista diz que desapareceram. Deitaram-nas fora! Deixaram de as querer, de as procurar, de qualquer associação com esse tempo e o que isso produziu.

 

Não é só pelo desconhecido que a parte leste é a mais extraordinária de Berlim. Lá se conserva um tempo, austero, apesar de todos os sintomas da mudança. São muito visíveis os buracos das balas, as fachadas reconstruídas. Vem à memória a imagem do filme de Wenders quando uma mulher sacode o edredon na casa esventrada...Em Berlim, as pedras têm vida. Também há no lado ocidental avenidas praticamente refeitas. O tamanho da destruição percebe-se em coisas tão simples quanto: em dez casas, oito foram feitas de novo. E há a catedral a que os berlinenses chamam “dente furado”, a Kaiser-Wilhem, bombardeada em 43 e mantida tal qual. Mas na Berlim Oriental o tempo fechou-se sobre si e o mundo fechou-se em torno da ideia soviética de mundo.

Hoje, a zona oriental está transformada num centro nevrálgico, onde se instalam cadeias internacionais e artistas. É um novo mundo do qual se tem vontade de fazer parte. A par de Londres e Nova Iorque, Berlim é um ponto essencial no panorama da arte contemporânea. Noé Sendas, Filipa César, Rui Calçada Bastos, Nuno Cera, Gabriela Albergaria ou Adriana Molder são alguns dos portugueses que vivem em Berlim. Há um claro investimento do governo alemão na revitalização de Berlim como centro cultural europeu. E o custo de vida, ajuda. Um apartamento no centro de Berlim Oriental, com um quarto e uma sala custa cerca de 500 euros. Já não há existem os cabarés dos longínquos anos 20, cheios de fumo e luz difusa, embora tenha reaberto um dos mais famosos, com meninas vestidas a la Josephine Baker, para turista ver. Mas há o PergamonMuseum, com o colossal altar da cidade grega de Pérgamo, e as portas da antiga cidade de Babilónia – só para mencionar os “highlights”. Também há, num outro museu, o busto de Nefertiti, de uma elegância e beleza raras, que por si só justifica uma visita a Berlim. 

 

Passeio na Unter den Linden. Marlene cantou «Enquanto as tílias continuarem a florir na Unter den Linden, Berlim será sempre Berlim». A avenida, com tílias no corredor central, conduz à Porta de Brandemburgo – zona de fronteira onde a multidão celebrou a queda do Muro. Do outro lado, o Reichstag, (sede do Parlamento), é talvez o edifício mais visitado de Berlim. A renovação da cúpula, obra caleidoscópica de Norman Foster, atrai milhares de visitantes que esperam estoicamente, mesmo em dias de chuva miudinha, para subir uma rampa espelhada e ver uma boa parte de Berlim.

De um lado e do outro da Linden, há museus onde apetece passar o dia, a ópera nacional, jogadores de vermelhinha, vendedores ambulantes de gorros de pelo, bicicletas e bancas de salsichas.

A Linden está para a Berlim Oriental como a Kurfürstendamm está para a Berlim Ocidental: amplas avenidas, modelo glamoroso importado de Paris, intensa vida comercial e empresarial. Peço ao taxista que me deixe na Walter Benjamin Platz – a obra do filósofo alemão foi uma das influências de Wenders na criação d’ «As Asas do Desejo» -, e é aí que começo a andar pela Ku’damm.

Termino com um dos mais belos espaços da cidade, infelizmente vedado aos não-sócios: a biblioteca estatal de Berlim (Staatsbibliothek), um projecto de Scharoun que dialoga com a Philarmonie, do outro lado do passeio. (Deixaram-me entrar quando me apresentei como jornalista e expliquei estar a refazer o circuito do filme). São edifícios de cortar a respiração, integrados no Kulturforum, um complexo que inclui, também, museus como a Gemäldegalerie (colecção soberba, com Ticiano, Vermeer, Caravaggio...) ou a Neue Nationalgalerie, desenhada por Mies van der Rohe.

No filme de Wenders, uma longa sequência dá a conhecer esta biblioteca. Tenho alguma dificuldade em descrevê-la... Talvez me aproxime se disser que o espaço me pareceu, como n’“As asas...”, metáfora do tempo babélico que vivemos, de palavras cujo significado mais íntimo se esqueceu ou não se chega a compreender. E, ao mesmo tempo, da potencialidade absoluta contida nas palavras, da memória como núcleo da identidade, repartida por mil pessoas e mil livros.

Os diferentes espaços da biblioteca estavam ocupados por sócios. Depreendi que fossem, em grande parte, alunos de doutoramento, que anotavam, escreviam no portátil, “scannavam”, fotocopiavam. No filme, há 20 anos, ainda não se usavam os computadores, e todos estão recolhidos na leitura, no pensamento. Por entre os leitores, reconhecemos os anjos, que velam por eles. E no andar de cima, como eu previra, a partir do filme, estão os globos onde o narrador da História procura quem o queira ouvir. Li algures que o seu nome é Homero. Invoca a Musa, esclarece que os seus ouvintes são agora leitores. Era ele que ao princípio procurava Potsdamer Platz.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2006

 

 

Sicília (c/ livro de Goethe)

27.04.20

Numa segunda feira de manhã, a primeira de Abril, Goethe estava em frente a Palermo. Tinha deixado Weimar havia muito e a sua viagem a Itália aproximava-se do fim. Era outro homem, este que chegava à Sicília, de tal modo que não foi reconhecido por um cavaleiro de Malta que lhe perguntou pelo jovem impulsivo, cujo nome não recordava, mas que era o autor do Werther... Goethe respondeu-lhe: «A pessoa por quem tendes a amabilidade de vos interessar sou eu próprio!». Muita coisa deve ter mudado, espantou-se o outro... «Certamente. Entre Weimar e Palermo passei por grandes mudanças».

Dois anos antes da Revolução Francesa, animado por um interesse enciclopédico, o génio alemão percorria a Itália. «A viagem pode comparar-se a uma maçã madura que cai da árvore: a queda da árvore significa, como esta viagem, uma libertação e o início de novo ciclo». Eu vivia com uma frase de Goethe, transformada em linha condutora da minha vida: «O alvo da viagem é viajar». Mas nos dois últimos anos propus-me visitar a Itália seguindo as suas anotações e cartografia. Talvez procurasse, como ele, esse instante arrebatador em que nos dissolvemos para nos voltarmos a achar.  

Cheguei a Palermo num sábado de manhã, vinda de Paris onde estava há mais de uma semana. Só percebi que o facto era relevante quando regressei a Paris e tudo me pareceu subitamente civilizado e limpo. Provavelmente o efeito não seria tão espectacular se voasse de Lisboa. Estava um calor de Agosto; absurdo, quero dizer. Que se entranha imediatamente no corpo e constitui um cheiro de que ficamos impregnados. Era um cheiro a suor, a vida vivida, a Verão, que persistiu dia após dia.

A cidade que se anunciava aos pés dos montes escarpados, despertou em mim o mesmo sentimento que Nápoles, um ano atrás, e que Goethe descrevia desta maneira: «Quando quero escrever palavras só me vêm imagens aos olhos. (...), e faltam-me os orgãos próprios para dar expressão a tudo isto».

Há um feitiço que nos faz aderir instantaneamente a esta terra. Suja, pobre, sanguínea. Talvez seja a síntese improvável de culturas (grega, romana, bizantina, sarracena, normanda, espanhola); o magnetismo da terra  imortalizada pelo cinema_ sentimos que fazemos parte de um filme de Visconti, que somos colegas de trapaça de Totó, que era napolitano, mas que encaixa no estereótipo siciliano. Talvez sejam as pessoas; a sua pele curtida pelo sol, a camiseta esburacada, o vinco das calças, o nariz adunco, a brilhantina que puxa o cabelo. O meu personagem favorito, antecipo desde já, é aquele que me recebe num modestíssimo hotel, em Messina, lá mais para o fim da semana: cabelo armado num balão de algodão doce, anel no mindinho e no anelar, casaca cinzenta debruada a ouro, botões redondos, a reluzir. Um aprumo de outros tempos. A surpresa foi imensa quando lhe vi a boca esburacada, os lábios presos por um dente em cima, um dente em baixo. Fellini tê-lo-ia aproveitado, e aos neons que, por trás, anunciavam o nome do hotel.

Na chegada à Sicília, Goethe sublinha a “fertilidade luxuriante”, enternece-se com “a pureza dos contornos”, “a harmonia do céu, do mar e da terra”, elege o “Monte Pellegrino como a mais bela das pequenas montanhas do mundo”. Deixara Nápoles havia poucos dias e escapara dos suplícios do enjoo, (e, já agora, de uma tempestade que quase deitava tudo a perder), no interior do navio. Daí a dias, recuperei a passagem em que ele falava de ter curado o enjoo com pão e vinho, imobilizado numa posição horizontal. Eu estava em Vulcano, entre barcos, e o vinho Malvasia, um vinho licoroso originário da ilha de Salina, combinava com brioches e o pôr do sol. Era uma perfeição de cartão postal, celebrada com vinho da casa.

Goethe teria gostado de Vulcano, e sobretudo de Stromboli, a mais distante das ilhas Eólicas. Da sua aspereza vulcânica, das casas brancas e pequenas, dos sardões que se escapam das pedras quentes e atravessam o caminho. Mas acredito que Stromboli lhe interessasse pouco, mesmo sendo um geólogo apaixonado. A resposta é simples: depois de visitar o “monte ígneo” que é o Etna, que figura na Odisseia como uma coluna que segura o céu, qualquer vulcão se assemelha a um vulcãozinho.

Se é certo que Goethe não conhecia Stromboli filmado por Rossellini, os percursos íngremes, as ruas “íngrides”, eu não podia recusar sentar-me na soleira da porta da casa em que viveram. «In questa casa...», atesta uma placa de mármore, em letra de namorados. Ingrid Bergman e Roberto Rossellini viveram ali na Primavera de 49, durante a rodagem do filme. Doravante, sempre que vir a Bergman no cinema, pensarei no dia em que tomei pequeno almoço num café com vista para o mar, porque ele se chamava «Ritrovo Ingrid».

Conto sumariamente a história a Mauro, ou Marco, o estudante de geologia que me mostra as diferentes camadas de lava do Etna, explica porque o rio de lava é tão preciso e não transborda (porque as extremidades arrefecem rapidamente, e desse modo fazem uma barreira que impede que a torrente de fogo extravase), faz-me percorrer o rebordo de diferentes crateras. Mauro, ou Marco, nunca viu o filme em que Ingrid sente a terra a tremer, mas sabe da viagem a Itália de Goethe e interessa-lhe saber porque é que o alemão considerava esta “a rainha das ilhas”. É um siciliano orgulhoso. Tento recordar a definição precisa, mas não a encontro. Poderia ter respondido isto: «Quanto a Homero, foi como se me caísse uma venda dos olhos. As descrições parecem-nos poéticas e afinal são extremamente naturais, embora criadas com uma pureza e uma autenticidade que nos assusta». Goethe diz também que com a Sicília a Odisseia tornou-se para ele palavra viva.

Esta impressão persiste, passados mais de 250 anos. É um pouco infantil, mas senti uma aceleração no peito quando vi uma placa a apontar para a Riviera dos Ciclopes, e idealizei a cena: criaturas medonhas empurrando pedras para impedir que Ulisses aportasse naquela encosta. (Li algures que os ciclopes dormiam dentro das bocas do Etna...). Foi uma emoção perceber a correspondência entre as palavras milenares de Homero e aquilo que se desenrolava ante os meus olhos. E imaginar Goethe a subir de mula, e a sentar-se para, em segurança,  poder ver toda a área. «O vento soprava de leste, varrendo toda a esplêndida região que se estendia a meus pés, até ao mar. Vi a olho nu toda a costa, de Messina a Siracusa, com as suas reentrâncias e baías». Hoje não se vê senão Catânia, rente ao mar e aos pés do vulcão, e em dias claros avista-se Taormina. Mas Siracusa, a 60 km a sul de Catânia, e Messina, sensivelmente à mesma distância, a norte, já não se alcançam.

A autora do guia Lonely Planet aconselha a organizar a viagem em torno de uma ideia. Conselho avisado. É tão extraordinária a oferta que é fácil dispersarmo-nos ou repetir percursos óbvios. Goethe abordou a Sicília com a mesma paixão com que percorreu toda a Itália. João Barrento, autor da tradução que sigo, condensou do seguinte modo os princípios que orientam o escritor alemão: «a abertura dos sentidos (do olhar em especial), a distância integradora (daí o hábito de subir às torres) e o diálogo com as coisas (particularmente a natureza, o que explica o lugar dominante da observação de fenómenos geológicos, mineralógicos e botânicos). (...) Por outro lado, o presente é a grande via de acesso e o ponto de chegada para toda a reflexão sobre a arte, a história e a natureza».

No essencial, refiz os passos de Goethe: Palermo, Catânia, Taormina, Messina. Sacrifiquei Agrigento e o vale dos Templos, de que Goethe falou com máximo prazer. «As uvas de mesa crescem em latadas apoiadas em pilares altos. Em Março plantam as melancias, que estão maduras em Junho. Crescem por todo o lado nas ruínas do Templo de Júpiter, sem ponta de humidade». Posso dizer que não quis decepcionar-me, que não cri que fosse possível encontrar um cenário igual... Melancias a crescer no Templo de Júpiter? Mas a verdade é que tenho ainda fresco o desconforto de ter visitado Pompeia a torrar ao sol, e não me apetecia engrossar as filas de visitantes que admiram o vale, o vale, o imperdível vale... Por último, o Toni insistiu comigo: que encurtasse caminho e não perdesse Siracusa.

O Toni, segundo a mãe, minha senhoria em Palermo, é arquitecto e trabalha na câmara: é político. Será vereador? Toni combina uns calções justos com uns ténis da Prada, usa um brinco na orelha e uma barbicha que cofia enquanto faz uns ares de sedutor. Um cromo de qualquer caderneta siciliana. Por acaso não fala uma palavra de inglês, e comunica através da mãe, que fala francês por ter trabalhado na Bélgica, a fazer bolinhas de açúcar para bolos de aniversário. Desdenha de Taormina, (como é possível?, Toooni?), põe as mãos no fogo por Siracusa (faz bem; Goethe não visitou a cidade, que Cícero dizia rivalizar com Atenas: afiançavam-lhe que perdera a sua glória e interesse. Foi uma pena não ter ido).

A conversa passa-se ao pequeno almoço, entre os ovos e o mangericão. Uma coisa muito fina, isto de comer ovos ao pequeno almoço. O bom siciliano come uma granita de café, com panna, e brioche. A granita come-se, aliás, o dia todo. Gelo moído, com o sumo e a polpa de limão, ou framboesa, ou café. No topo, uma camada de natas. O brioche, mergulha no copo e rapa o fundo. É um pão molhado em pouco mais que gelo, sim. Também há quem meta no pão uma bola de gelado! Mas isto são invenções de tempos abonados.

Quando o escritor alemão visitou a ilha, o que encontrava em abundância era aquilo que a terra dava. «Os frutos e legumes são deliciosos, em especial a alface, tenra e saborosa como um leite; entende-se a razão por que os Antigos lhe chamaram lactuca. O azeite, o vinho, é tudo muito bom, e poderia ser muito melhor se se desse mais atenção ao modo de preparar os alimentos. Os peixes são dos melhores, muito delicados.  Tivemos também boa carne de vaca, ainda que as pessoas a não apreciem muito».

Abundam as descrições sobre os campos e o modo como são semeados. Goethe chega mesmo a desconsiderar «o desastrado do guia» que lhe «estragava com a sua erudição» o prazer do que se via no vale, «sempre a contar como Aníbal travou aqui uma batalha». Mais adiante, fala da surpresa do outro, que não contava que um homem das letras pudesse desprezar a memória clássica. Talvez não seja tão surpreendente: se é verdade que atravessa o livro a ideia de reconstituir momentos clássicos através das ruínas, é mais forte a ideia de que a viagem convoca um renascimento interior.

Ocorre-me novamente a noção de viagem como sinónimo de descoberta no teatro grego de Taormina. Num gesto excessivo, procuro a vibração das pedras no contacto com os pés, recupero pedaços de tragédias que ali foram representadas, escrevo postais em diferentes pontos do anfiteatro, meço a imponência do Etna. É mesmo a «mais incrível obra da natureza e da arte». No palco preparavam uma versão de “Il Gattopardo”, a obra de Lampedusa que Visconti adaptou ao cinema. É uma obra sobre o fim de um tempo, que concentra, como a Sicília, a decadência e o desejo num mesmo plano. A explosão da vida e a inevitabilidade da morte. Arrisco que tenha sido essa pulsão, presente em cada instante, que tenha feito desta viagem um lugar de descoberta e reconhecimento para mim. Como para Goethe: «Sempre pensei que ia aprender aqui muita coisa; mas que teria de recuar tanto, que teria de desaprender e reaprender tanta coisa, isso nunca pensei». Pode ser que Goethe tenha procurado o caminho para casa. Como Ulisses, o mais mítico dos heróis. Como cada um de nós, errantes.

Não tenho uma única fotografia destes dias maravilhosos_ não tenho, sequer, máquina fotográfica. Não sinto necessidade de registar em imagens isto que (incompletamente) traduzo em palavras. Goethe fazia-se acompanhar por amigos que ilustravam aquilo que via. Foram vários, em diferentes pontos da viagem; por alturas da Sicília, Kniep era aquele que fixava a paisagem. O facto de nunca ter procurado esses desenhos (se existem, e onde?) não é senão revelador do seguinte: já me basta o tesouro da descrição de Goethe e de sentir, como ele, que uma viagem pode interpelar a nossa vida. O que isso convoca dentro de nós, não tem imagem precisa.

 

 

Onde ficar

 

Grand Hotel e des Palmes, Palermo

Via Roma, 398; booking-despalmes@amthotels.it

Quartos sumptuosos, lustres admiráveis, escadaria de mármores. Um cenário de filmes que foi palco de intrigas e negócios. Acolheu a elite que chegava à Sicília. Um cinco estrelas ideal, nem que seja para ler umas páginas num canto do bar. O mais certo é ter vizinhos ingleses. Entre 100 e 200 euros.

 

Bed and Breakfast, Sicília

São cada vez mais populares em toda a ilha. Existem às dezenas em todas as cidades e disponibilizam fotografias na net. A decoração é quase sempre kitsh e duvidosa. Mas em época alta um quarto custa em média 50 euros por noite, o mesmo que um hotel de duas ou três estrelas. Como o nome indica, oferece cama e casa de banho. Muitos facilitam, ainda, o acesso à cozinha.  

 

Onde comer

 

Trattoria la Foglia, Siracusa

Via Capodieci 21; www.lafoglia.it

É um restaurante que lembra os almoços de domingo em casa da avó. As duas salas têm naperons a fazer de toalhas de mesa, fotografias da família proprietária e louça que parece comprada na rua, em feiras de antiguidades. A cozinha, evidentemente, é boa _ é impossível comer mal na Sicília. O pão é feito na casa e o peixe é muito fresco. O espada é por excelência o peixe da região. Cerca de 30 euros.

 

Antica Focacceria di San Francesco, Palermo

Piazza San Francesco d' Assisi, telefone 091 32 02 64

Um clássico da cidade cuja história remonta à Idade Média: era o restaurante onde se encontravam viandantes, peregrinos, gente humilde. Pão com rim fatiado é a principal atracção. Mas também pão com gelado. A esplanada cresce na Piazza São Francisco de Assis. Sugere-se um esparguete com pesto de pistachio, (molho muito popular na Sicília). Cerca de 25 euros.

 

Como ir

 

A Tap e a Ali Itália voam para a Sicília. A maior parte dos voos têm escala. A ilha tem dois aeroportos: o de Palermo é o principal, o de Catânia fica na costa leste. O comboio é ainda o de linha estreita. O que quer dizer que 200 km pela costa (entre Messina e Palermo) demoram mais de três horas e meia a percorrer, em cima de malas e com passageiros pelos corredores. O autocarro é o mais usado. Barato, constante, com o senão de quase sempre parar em todas as pequenas localidades (60 kms podem representar uma hora e um quarto). Táxi a preços proibitivos.  

 

Quando ir

 

Os meses mais temperados são os mais indicados_ entre Abril e Junho e Setembro e Outubro. Mas mesmo em Agosto, sob um calor abrasador, milhares de turistas e a inevitável inflação de preços, a Sicília é um destino extraordinário.

   

 

Publicado originalmente na revista NS do Diário de Notícias em 2006