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Anabela Mota Ribeiro

Rui Cardoso Martins

04.09.20

Fala várias vezes da aflição. Da chatice que é quando nos morre alguém, da banalidade da morte, de personagens que se suicidam e que são pessoas que ele conheceu. Fala do triunfo da vida. (Assim é que tem que ser.) Se Fosse Fácil era para os Outros, o terceiro romance, é um gesto de sobrevivência. Também é uma cowboiada de rapazes.

Muito do que diz, (é o que mais importa?), é dito como se fosse pronunciado para dentro. Corre em paralelo com o que é dito para fora. No livro aparece entre parêntesis rectos, na entrevista entre parêntesis curvos.

A entrevista tinha como ponto de partida o último livro, aquele que começou a escrever depois de ganhar o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, em 2009. Escreveu um livro que é um on the road. Uma fuga contínua para a frente. Uma viagem, como são todos os seus livros.

Rui Cardoso Martins nasceu em Portalegre em 1967. Vive numa casa de que falaram a Tereza numa conversa de cabeleireiro. (Sempre a coisa prosaica a meter-se pelas frinchas...) Tereza Coelho, jornalista e editora literária, faleceu há quase quatro anos. Juntos tiveram dois filhos. O filho, de 14 anos, chegou a casa a meio da entrevista. A filha, de 12 anos, não estava. Ambos gostam de ler.

  

Não queria começar pela morte. Mas olhando para os seus livros (E Se Eu Gostasse Muito de Morrer, título do primeiro), parece que se movimenta entre mortos. Prefere começar...

Por morrer? Não. [sorriso] Não tenho medo nenhum. Penso nas consequências que isso teria nos meus filhos. Só nisso.

 

Isso decorre, presumo, da morte da sua mulher, Tereza, mãe das crianças.

A morte corrói a alma. Quem é que dizia isto? O Fassbinder. É um assunto normal. No entanto, transformou-se num assunto importante. Tendo visto, na minha infância, tantas mortes – que não eram minhas, que não eram da minha família – até muito tarde estive livre desse desgosto, dessa necessidade de responder à vida de outra maneira.

Vi coisas que não lembram ao diabo, e que têm a ver com o mistério do Alentejo. Um colega e amigo que se enforcou depois de ter morto uma pessoa. Uma colega que dá um tiro na cabeça e que dá um tiro no coração e que toma comprimidos. Tiveram que estabelecer a ordem – como é que ela fez isto? Era uma das melhores alunas da minha classe, estudava ao meu lado. As histórias que se contam (passou aqui um velho, parece que levava uma corda...), eram normais.

 

É bizarro, ao mesmo tempo, que a morte seja uma paisagem normal. 

Chegávamos ao Verão e do Arco do Bispo [em Portalegre] caíam três ou quatro pessoas, em cascata. Como é que isto era normal para mim? Só descobri muitos anos depois.

 

Foi através do exercício da escrita que olhou para essa normalidade que afinal não o era?

Eu tive um acidente gravíssimo na auto-estrada. Acho que já posso contar. É tão ridículo. Na altura escrevia o Contra-Informação, e pensei no meu obituário. Seria: “Co-autor do programa Contra-Informação morre na auto-estrada do Alentejo ao ouvir Santana Lopes a tomar posse”. Foi isto que aconteceu. Deixei-me dormir. Tive um acidente terrível com os meus filhos. Como se diz, por milagre não terminou. Não terminámos todos. Estava só com eles. Aquele segundo em que toda a gente diz: “Ai, ia adormecendo”... O carro entrou em derrapagem. Vários peões. Não bati numa ponte, não bati numa ribanceira, não caí num precipício.

 

Acredita que uma mão o amparou? Estou a perguntar se acredita em qualquer coisa.

Acredito que podia ter acabado tudo ali. E tive a noção de que, se alguma coisa tivesse acontecido por minha culpa, não poderia continuar a viver. Nesse aspecto sou um alentejano, e como todos os alentejanos, sou um samurai. Portanto nessa noite, quando vi que estava tudo bem, menos a porcaria do carro, que ainda hoje tenho (mandei arranjá-lo, por respeito; porque o carro aguentou), tive um ataque de lucidez. Que também pode ser descrito como um ataque de choro. Três ou quatro dias depois comecei a escrever o primeiro livro.

 

Teve o acidente no momento em que pensou que, se morresse, o seu obituário seria aquele; ou foi a posteriori que pensou que, se tivesse morrido, o seu obituário seria aquele?

Estava a pensar no meu obituário [no momento do acidente]. Estava um calor danado, 39 graus, três da tarde. Houve desmaios na tomada de posse. Eu estava entre Estremoz e Évora, ao pé de uma criação de porcos, ecológica, que já não existe. Daqueles porcos que comem bolota. Vamos lá ver: esta é a parte prática.

 

E descritiva, e romanceada...

Não é. Foi mesmo assim. Sei distinguir muito bem o que é facto e o que é ficção. Também sei que às vezes falseamos a memória e aquilo que sentimos. Aliás, é assim que trabalho. Falseando o que vivi. Como também sou jornalista, sei, tento saber, quais são os limites da coisa. Se foi só isto que me fez escrever? Claro que não. Uma série de pessoas disse-se que devia escrever. Houve outras que me disseram que não devia escrever. Mas o primeiro livro nasceu assim.

 

Neste romance, a páginas tantas, lê-se: “Só a mentira literária dá a voz do real, devias saber”. Lembrou-me esta passagem por saber muito bem onde fica a fronteira entre a ficção e o real.

É um conceito do Hemingway, que admiro muito na sua primeira fase. (Neste livro aparece um narrador que quer ser um jovem Hemingway no meio de velhos e gordos que fazem um concurso [de sósias de Hemingway]). Evelyn Waugh, que é um escritor satírico interessante, diz: “Gosto da maneira como o Hemingway põe os bêbados a falar”. Ele não diz: “Gosto muito da maneira como ele apanha os bêbados a falar”. Esta é uma conversa que já tive com o António Lobo Antunes. A literatura, mais do reflectir a vida, deve ser uma espécie de vida. Mas isso só se consegue com artifício, com técnica, com uma torção.

 

Sempre quis dizer a vida escrevendo-a?

Dizer a vida... Para já, acredito que não vale a pena escrever livros se não for para nada. Devem servir para mudar o mundo. A sério.

 

Não tem de se acanhar com as grandes frases. Sei que tem medo do ridículo.

Não tenho. Nem tenho medo dos lugares comuns. Os lugares comuns são aqueles em que todos nos reconhecemos. Mas há maneiras de os dizer e de os fazer. “Povo, povo, eu te pertenço, é assim que eu penso”. Os lugares comuns dizem muita coisa. Ainda hoje, a um amigo que está doente, e que está preocupado, disse: “Como se diz na minha terra, boas melhoras!” Como se houvesse más! [riso] Pelos vistos, no Alentejo, em Portalegre, há a possibilidade de haver más melhoras. E aqui está uma boa resposta para este enigma espantoso, que é o de, abaixo do Tejo, a taxa [de suicídio] aumentar seis, sete por cento. É uma má melhora. Assisti a alguns [suicídios] e não é uma coisa do passado. É inacreditável que uma das personagens que apareceram no primeiro livro se tenha matado neste terceiro.

 

Foi o que se matou no Grand Canyon?

Não.

 

Nas cataratas do Niagara?

Também não. Isso é tudo mentira. Isso é tudo uma fuga mental da personagem. Este livro tem a ver com várias coisas. Com a perda, evidentemente. Com a inacreditável chatice que é quando nos morre alguém, e as instituições continuam a cair-nos em cima.

 

(Continuam a chegar pelo correio cartões do banco com o nome de uma mulher morta. É isso?

Sim. E cartas de parabéns. Contas por pagar, mesmo quando já estão saldadas.) E com a degenerescência da Europa. Tenho aqui a moedinha que aparece no livro. Vou mostrar-lhe. [levanta-se e traz uma pequena caixa] É uma moeda que juntei com uma moeda de dois marcos, dois euros de marco. Tenho dois euros-dracma, por assim dizer, com [a imagem] do Rapto da Europa [que é um mito da antiguidade]. Esta moeda, não sabemos se vai existir daqui a uns meses, não é?

 

Nem sabemos se o projecto europeu, como o conhecemos, vai existir daqui a uns meses.

Isso preocupa-me, como é natural. As pessoas não souberam ver bem o que se estava a passar. Eu também não soube. Deu-se a coincidência de eu estar em Nova Iorque no dia em que a bolsa rebentou. A seguir, [foi a falência] do Lehman Brothers, e fui a correr até Wall Street. Apanhei um táxi com um paquistanês que me perguntou se eu ia lá levantar os 700 mil milhões de dólares que tinham sido negados pelo congresso. Entre a hora do pequeno-almoço e a hora do almoço faliram cinco bancos mundiais. Foi onde tudo começou. Hoje já se diz: “A grande crise financeira de 2008”. Há dois anos ainda não se sabia bem onde é que tudo tinha começado.

 

Tem as moedas guardadas, umas com as outras. Um euro com uma imagem da águia alemã, outra grega com o Rapto da Europa, e um euro português. Guardadas numa caixinha que podia ser uma caixinha de medicamentos. É dado ao simbólico?

[riso] Quem não é? Pronto, sou. Não gosto muito de metáforas e de imagens forçadas. O simbólico é tudo na vida. A força que está por detrás do amor é simbólica. É a necessidade de amarmos e de sermos compreendidos e de procriarmos e de dar sentido a isto. Temos aqui, quê..., [quantos anos]? No caso do Manoel de Oliveira, 104 anos, 105, 110. (Engraçado. Quando tínhamos o Contra-Informação, o Manoel tinha 96 anos e andámos a discutir... Gastar dinheiro com o boneco? O programa já acabou há três anos e ele ainda está a fazer filmes sobre a crise!)

O simbólico: no outro dia li um livro muito interessante (não li todo, que é muito longo e complexo); a tese de doutoramento do Nuno Crespo sobre Wittgenstein e a estética. Wittgenstein diz uma coisa que é a definição do que eu penso do meu trabalho: “Se não estiveres disposto a saber o que és, a tua escrita não passará de um engano”. É o que tento. Não tenho problema nenhum em me expor, em me mostrar, mas para saber o que sou.

 

Quando é que começou a saber quem era (para nos mantermos na expressão de Wittgenstein)?

Foi no tal acidente.

 

Era um homem maduro. E já tinha lido tanto. E já tanta coisa tinha acontecido. Como é que pode ter sido só nessa altura?

Na prática? Alguns exemplos do que me aconteceu. Uma vez um advogado chegou-se ao pé de mim e disse assim: “Tenho a casa de banho forrada com as suas crónicas. É verdade. Sempre que vou à casa de banho gosto de lê-las. Para sentir que a justiça tem um lado humano.” Achei aquilo tão..., não sei. Tão aflitivo e tão bonito. Outra coisa: o José Cardoso Pires disse numa entrevista que no jornal onde escrevia havia um rapaz novo que fazia umas crónicas de que ele gostava muito porque eram muito “pá pá pá!”. Fiquei muito orgulhoso.

 

Alguém me disse que um dos seus encantos é esse lado pá pá pá. Ou seja: ir direito ao assunto.

Sim. Mas o pá pá pá pode dar muitas voltas. Qualquer grande poesia é pá pá pá. A sério. Vai ao osso, não vai ao osso. Era uma das expressões que o Cardoso Pires usava. Para atalhar: a primeira vez que estou com o António Lobo Antunes (eu não o conhecia) chegou-se a mim e disse: “Boa noite, escritor”. Ai ai. “Não”. “Sim, sim. Você é escritor e tem de escrever. O Cardoso Pires já me mostrou as suas crónicas.” Depois encontrei o Dinis Machado que me perguntou: “Então o seu livro?” Mas qual livro?! [riso]

 

Já toda a gente tinha dado por isso menos você?

Que é que posso dizer? Tinha aqui em casa uma pessoa que era..., uma grande leitora. Uma grande leitora. [tocam à campainha] (Não me digas que são as frigideiras...Encomendei umas frigideiras que não pegam.)

 

Eram as frigideiras. Quando disse que tinha em casa uma grande leitora, coincidência ou não, mexeu no anel que tem no dedo mindinho. Deu-se conta?

Não. Não tem segredo nenhum: foi a última prenda que lhe dei. E tive que lho tirar do dedo. Não é assim um assunto de que possa dizer mais do que isto. Dei-lho no Natal, ela morreu a seguir ao natal. Sem saber que ia morrer. Tinha sido operada a um tumor benigno e morreu de gripe, de pneumonia, por razões que ainda estão em discussão – como é que dizem as pessoas? – no foro próprio, e que, a seu tempo, serão divulgadas. Não vou falar mais sobre isso. Mas mexi [no anel], foi?

 

Mexeu. Fale então da leitora que tinha em casa.

E que me dizia: “Não escrevas”.

 

Que era isso? Medo que se espalhasse?

Não. Ela achava, com razão, que é um ofício tão duro, tão complexo, tão absorvente, que, quando corre mal, se transforma numa tragédia. Ao mesmo tempo, tinha uma enorme confiança em mim. Disso tenho a certeza. Foi ela que me editou (no fundo) os livros, que mos leu. Os primeiros dois. O segundo: leu dois terços. Entreguei-lhe o último terço no dia em que adoeceu. Se vamos falar em termos cósmicos: foi no dia de Natal. Foi internada no Ano Novo, para me estragar as Festas. [riso seco]        

Este, [o terceiro], é claro que já não leu. Ou não sei se leu. (É preciso que diga uma coisa importante: posso dizer umas boutades pseudo-filosóficas – como: Deus, se existe, é má pessoa, porque eu, com os poderes dele, acho que faria melhor. Isto acho, exactamente. Se Deus existe, é má pessoa. Mas também acredito que a vida triunfa. “Não digas fim antes de acabar.”) Há uma série de princípios que assimilei depressa e que tinham a ver com a maneira como ela via as coisas. Nunca se deixava ir abaixo.

É evidente que o livro tem a ver com isto.

 

Já vamos ao livro. Estava a contar que começou a escrever depois desse cerco.

Fui empurrado à parede pelas pessoas que mais admirava. Transformou-se num pelotão de fuzilamento, no melhor sentido. E agradeço-lhes muito. Aos vivos e aos mortos. Eu era, e sou, muito amigo da filha do Cardoso Pires. A Ana. Vivi na casa dela. Uma casa que alugou e onde tínhamos uma vida de estudantes, de estroinas, como poucas vezes se viu.

 

A famosa casa de Arroios?

Ah, já lhe chegou a informação? Mas não sabem tudo, não sabem tudo. A casa de Arroios estava ao nível da casa da Maluquinha de Arroios [peça de André Brun].

 

Estava ao nível da Cabine dos Irmãos Marx, que era como chamavam a uma casa minúscula onde vivia o Alexandre O’Neill? Quero dizer: uma casa frequentada por literatos, onde toda a gente pára. (Sim, façamos uma pausa na morte para falar da vida.)

Vivi nessa casa uns anos. (Só para acabar: fiquei muito agradecido ao Cardoso Pires. Uma vez encontrei-o. Resolvi ir comer ao Pabe. Um restaurante de luxo. Não sei o que é que me deu. Nesse dia devia estar com algum dinheiro. Quando estava a sair, vi-o numa mesa, a beber um whisky. Estive quase a ir falar-lhe. Mas tive vergonha, tive respeito. E pouco depois ele teve aquele acidente vascular-cerebral. Nunca o conheci. Uma pessoa a quem devo tanto. Aproveito para dizer que gostava de o ter conhecido. Só conheço os livros. Se calhar conheço o melhor.

 

Nunca se sabe se o melhor de um autor está nos livros ou na vida.

Também dizem que ele tinha uma vida extraordinária. No caso dele, deve estar nas duas coisas.)

 

Por falar em triunfo da vida, era uma equação que trazia à chegada: começar pela folia e pela casa de Arroios, ou começar por onde começámos, pela coisa tétrica onde iríamos dar, mais cedo ou mais tarde.

Nessa casa aconteceram coisas muito interessantes. Era o princípio do Público. Foram viver para lá pessoas como o Luís Pedro Nunes, o José Fragoso (que foi depois para a RTP e agora está na TVI a fazer umas telenovelas quaisquer; no outro dia perguntei-lhe: “Já estás a fazer o que querias?”). Íamos trabalhar, muitas vezes, tendo passado a noite a dançar. A verdade é essa. Fez muito parte da nossa formação como jornalistas, por estranho que pareça.

 

Gajas. Copos.

Que maneira de pôr as coisas! [riso] Sim.

 

Estamos a falar de um jovem Hemingway. De um autor que gosta do jovem Hemingway.

Eu? Eu era um desgraçado. Às vezes estava a dormir há pouco mais de uma hora e vinham bater-me à porta para eu ir cantar uma balada de amor. Tinham acabado de chegar três loiras e era preciso animar aquilo. Num quarto, onde havia um crucifixo enorme. Lá ia eu. E cantava uma canção do Cole Porter. O True Love, que é muito bonita.

 

Cante lá. Quero ver se canta bem.

Suntanned, windblown/ Honeymooners at last alone/ Feeling far above par/ Oh, how lucky we are…

 

Quem é que no filme (High Society, 1956) cantava essa canção à Grace Kelly?

Creio que era o Bing Crosby.

 

Era então assim que as levava.

Não era eu! Eu fazia a animação. Desde pequeno tinha esta sina, já no Alentejo. Quando o Natal começava a ficar aborrecido, 40 pessoas à volta de uma fogueira, a assar castanhas, aqueles bacalhaus, até ser preciso abrir as janelas, que já estava tudo a ficar [atordoado], pediam-me para cantar uma canção. Quando eu começava a cantar, começava toda a gente a falar.

 

Não tenho ideia que no livro haja música americana, como há referência a autores americanos. Jack Kerouac, William Burroughs, William Faulkner.

Aparece o Thelonius Monk (músico de jazz).    

 

A casa de Arroios.

Era um tempo de grande trabalho, atenção. Nunca falhávamos. Viajávamos muito. Fui a Sarajevo, à África do Sul, à festa dos mortos no México. Fui no Lusitânica Expresso [até ao largo de Timor]. Aquilo era um poiso de amigos – e de amigas, já agora. Coisas cómicas: passavam por lá pessoas, deixavam umas caixas de tupperwares, toda a gente se servia. A grande tristeza que tive foi uma garrafa de um Porto vintage que o David Lopes Ramos me ofereceu (ofereceu-ma assim: “Para beberes daqui a 20 anos!”); na noite a seguir, cheguei lá e já estava bebida!

 

Fale-me desse tempo em que se tem 20 anos, se chegou há pouco a uma cidade como Lisboa, vindo do Alentejo, em que se quer ser tudo e se está a descobrir (quase) tudo.

Vinha disposto a não sei bem o quê. A aprender Comunicação Social. Sempre tive a noção precisa de que queria ser jornalista escrito. Mas mal cheguei à faculdade convidaram-me para a rádio. Eu não tinha qualquer talento para aquilo. Depois apareceu o Público. Foi uma sorte e um momento muito importante. O Luís Pedro e eu fomos de directa fazer o teste. [riso] Foi mesmo assim, de directa. Estavam 700 pessoas. E passámos. Continuámos, e continuámos, e correu bem.

(Era muito ingénuo. Sempre fui. Ainda ontem, a propósito destas moedas, me estive a lembrar de como era ingénuo. Os meus pais tinham-me oferecido umas moedas de prata, com o Vasco da Gama. Os meus amigos convenceram-me de que com aquilo, claro, só podia fazer um tesouro. Enterrámo-lo debaixo de uma árvore, numa caixa de sapatos. Aconteceu-me o mesmo que ao Pinóquio: achei que ia crescer a árvore das patacas. Quando lá fui buscar a caixa, já a caixa lá não estava. Eu era deste género.

 

Um bocado totó.

Um grande totó. Era. Era e sou.)

 

Quando é que perdeu a ingenuidade?

Nunca perdi.

 

Nem o desgosto, ou os desgostos sucessivos, o fizeram perder a ingenuidade?

Não. Mas já não me enganam. É esquisito. Acho que tive de aprender a ler melhor as pessoas. A profissão exigiu-mo. Foi também uma arma para começar a escrever sobre as pessoas e sobre mim.

 

Como é que se formou o jornalista que ganha dois prémios Gazeta? E paralelamente, o argumentista, que recorre sobretudo ao humor, na ficção. Era o tempo da fundação das Produções Fictícias (PF).

Aí entra muito o papel do Nuno Artur Silva, que logo no primeiro ano de faculdade me convidou para fazer teatro. Ele escrevia umas peças de teatro, um pouco kafkianas. Na peça, um homem que queria fazer um programa de televisão recebia um subsídio para fazer uma peça de teatro; eu fazia de funcionário do Ministério da Cultura, e obrigava-o a fazer uma peça de teatro. Era tão mau, tão mau actor, que dizia: “Sou funcionário do Ministério da Justiça!”. Enganava-me sempre. O Nuno e o Miguel Viterbo [também fundador das PF] começaram a escrever nessa casa de Arroios. O que diz Molero foi escrito lá [peça de teatro adaptada do livro de Dinis Machado]. E em casa do Nuno começamos a fazer projectos que nunca foram para o ar, a fundar as PF. Era o sistema de cama quente.

 

Sistema de cama quente?

É um sistema que existe em Hong Kong. Deita-se um, levanta-se o outro. Como dois chineses, naquelas fábricas horríveis. “Agora escreves a cena a seguir que eu vou dormir um bocadinho.” Uma estafa total, para conseguir entregar seis episódios, escritos à máquina (não havia computadores). Eu de manhã pegava ao serviço (como dizem os motoristas). Ia fazer reportagem, crónicas, ia para os conselhos de ministros. Posso contar o dia em que decidi deixar o jornalismo diário.

 

Conte.

Estive três horas à espera que acabasse o conselho de ministros. Com aquelas conversas [entre jornalistas]: “Onde é que já estiveste?”, tudo muito farto daquilo. Depois entrou o Dr. Marques Mendes, que, no Contra-Informação, se transformou numa grande vedeta.

 

“Ganda Nóia.”

É uma expressão que o José de Pina trouxe da sua experiência das aulas, como professor. Ganda nóia quer dizer grande paranóia, não é? Celebrizou o Marques Mendes. Mas antes disso, ao cabo de três horas, ele subiu para uma caixa de frutas para ficar mais alto e disse: “Não tenho nada a declarar”. Cheguei à redacção, disse ao Vicente Jorge Silva ou ao Jorge Wemans: “Vou-me embora, não aguento isto”. Tínhamos chegado ao ponto em que não havia nada a declarar, a não ser que interessasse. E em que não havia diferença entre dizer verdade ou dizer mentira. O que interessava era ganhar tempo. É o que se está a passar agora. Tive mesmo a sensação: “Se continuar nisto, vou enlouquecer”.

 

Não enlouquecia a fazer o Contra-Informação. Que era um delírio sobre a realidade. (Como é que apareceram alguns dos personagens mais famosos?

Era. O boneco, bastante injusto, da Dona Odete Santos, tinha três queixos. Ela dizia, com muita graça, que o boneco estava mal feito porque ela só tinha dois queixos.

 

O Bobi e o Tareco?

Foram uma invenção do próprio Pinto da Costa, quando disse: “Só admito ser gozado pela minha filha, pelo meu cão e pelo meu gato”. Tínhamos lá um cão e um gato e ficaram Bobi e Tareco. O meu contributo para a imortalidade da língua portuguesa é o “penso eu de que”.

Para o Herman, fiz, com o José de Pina, a Expo 97 [diz com sotaque do Porto], a exposição feita às escondidas de Lisboa. “Este homem não é do norte!” é meu e do Pina. O “Bocê não se desgrace” é do Herman. Saiu-lhe uma vez. Saiu tão bem que ficou.)

 

Explique-me como é que um tipo tem o bisturi tão afiado para apanhar estes personagens e não faz este exercício sobre si próprio, ou na sua escrita. Isto tudo é anterior à epifania que o fez escrever e olhar para si. Anterior ao acidente.

Hum, hum. Eu tinha tanto respeito pelo bons escritores... Os bons escritores são os do costume: o Camões, o Ovídio.

 

O Ovídio?

Ah. O meu pai é professor de Latim, Grego, Português. Uso no livro uma expressão do Satyricon do Petrónio: “Uma lasca de três assobios” – em relação a uma mulher. É uma expressão deliciosa. Foi o meu pai que me ensinou. Ensinou-me Fernando Pessoa, Cesário Verde. Ensinou-me no sentido em que podia discutir isto com ele. O meu pai tem um ideal de vida latino. Faz vinho na serra de S. Mamede e à noite lê a Bíblia em latim ou em grego. Os meus escritores sempre foram os clássicos. O Shakespeare.

 

O que é que aprendeu no Homero ou no Ovídio?

Aprendi que estavam a escrever para o seu tempo. E quando estão a escrever para o seu tempo estão a escrever para sempre. Isto tem que se lhe diga. O Homero era cego, mas sabia escrever coisas como: “Chegou a aurora dos róseos dedos” (como traduziu o Frederico Lourenço). Bonito. Sabia descrever um nascer do sol com esta precisão maravilhosa. Que é a precisão que a poesia dá. Um cego. Todos os clássicos sabiam falar dos seus problemas de juventude. No Satyricon, estão no banquete de Trimalquião que conta (isto faz-me lembrar a casa de Arroios): “Todas as minhas desgraças começaram quando, jovem, cheguei a Roma e na estalagem apaixonei-me pela mulher do estalajadeiro”. Que era uma lasca de três assobios. São coisas que percebemos hoje com a mesma intensidade.

 

Não falou de personagens. Falou de linguagem (dos dedos róseos) e do que faz que os clássicos perdurem. Falou de perícia.

Podemos falar de personagens. Ulisses. Uma das grandes figuras. Gosto muito da ideia da viagem. Os meus livros, até agora, são viagens. À procura.

 

Este livro é uma longa viagem à América. Depois há viagem que cada um dos amigos deste grupo empreende dentro de si. Como nas várias viagens de Ulisses. Há outro tipo de personagem forte no seu universo, o dos falhados, ou perdedores. Como Heitor, na Ilíada.

O primeiro livro já era uma viagem. De um jovem que está numa cidade de província. A província, o interior, que é igual em toda a parte. (Como é que traduziram isto em inglês?) Sítios de onde as pessoas querem fugir. Porque querem conhecer mundo, porque se sentem fechados. O narrador é um falhado que anda com uma granada no bolso e que perdeu a namorada; não conseguiu entrar na faculdade porque estava muito calor no dia em que fez o exame de acesso. É um herói falhado. No segundo livro já estamos em Lisboa.

 

Mas no subterrâneo. É aí que se passa Deixem Passar o Homem Invisível.

Com um cego. Também é uma viagem. Finalmente, agora, estamos no coração do império americano. Que recupera a ideia do império grego, e do romano.

 

Não por acaso, um personagem chama-se Adriano. Como o imperador.

Não por acaso. E fala sempre em termos imperiais. É aquele que sabe ser magnânimo. Que diz, quando um mendigo lhe pede dinheiro: “Se merecesses, era pagamento, não era generosidade”. Voltando à coisa: os meus livros estão cheios de falhados, é verdade. Vi tanta gente falhar, e falhei tanta vez. E acredito que o mundo está sempre a falhar. Mas sobrevivendo.

 

Era uma questão, um fantasma? Ser um falhado. Pensou que ia fazer coisas extraordinárias?

Nunca pensei nisso nesses termos.

 

Fazer um grande livro é fazer uma coisa extraordinária.

Mas eu alguma vez me atrevia a fazer um grande livro? Talvez um dia. Se isso acontecer... Espero que sim.

 

Está a pedir elogios.     

Posso dizer que estava cheio de medo deste livro. Agora já não tenho tanto medo. Como é escrito num tom de falsa ligeireza; como é escrito como se fosse uma cowboiada, uma sucessão de aventuras, tropelias, e fugas à polícia...

 

É uma contínua fuga para a frente.

Sempre fuga para a frente. Já não tenho esse medo. Suficientes pessoas já me disseram que o livro não é só isso.

Acredito que as coisas extraordinárias se fazem com muito trabalho. Mesmo os grandes casos de talento, se não tiverem muito... Tenho ali aquilo [aponta para um disco de vinil]. É a sinfonia do Novo Mundo do Dvorak. Quem diria que ia ser um europeu a escrever a música mais bonita sobre a pulsão que a América tem?

 

Esteve na América a acompanhar António Lobo Antunes na digressão que este fez...

Há quatro anos. Mas a minha grande viagem na América foi na juventude. Estive nos sítios todos de que fala o livro, há muitos anos.

 

A Tereza, editora de Lobo Antunes, estava convosco. Ocorreu-me se a viagem do livro não seria, também, a viagem destes amigos. Se o livro é devedor dessa viagem.

(Entramos na parte em que apreendemos o que está no ar.) Nessa viagem, em que fui em reportagem, para o Público, tive a noção de que o mundo ia mudar. Estávamos à beira da eleição do Obama, estavam a começar os grandes problemas financeiros. Os personagens do livro estão aflitos, sem dinheiro; um deles, o Carlos, já só faz viagens virtuais, como piloto de aviões num simulador que comprou em segunda mão. Vai à mercearia e quando volta a casa está a sobrevoar o oceano Índico.

 

Hoje é dia de eleições nos EUA. Há quatro anos, quando aterrei em NY, a dias da tomada de posse de Obama, deram-me a notícia da morte da Tereza.

Está tudo ligado. A mim estão sempre a acontecer-me coisas dessas. Ó Henrique. [chama o filho, que está noutra sala] Como é que se diz aquela palavra que discutimos no outro dia? Quando uma pessoa encontra outra... Serendipidade. 

 

Usa-se quando deparamos com acasos felizes, encontros inesperados.

Foi o Henrique que me explicou o que significa. Tenho muito isso. E entra no meu trabalho. Acredito – estamos a entrar no terreno místico, mas não religioso – que os artistas sabem captar antes do tempo qualquer coisa que anda no ar, e que só depois se revela. Já falei disto com artistas que admiro. Com o Pedro Cabrita Reis, o Paulo Nozolino, o Rui Chafes. É um conceito romântico. E essa coincidência [que apontou]... estranha. Mas é o que eu digo: a vida continua. Não vou estar sempre a falar da Tereza em termos saudosistas. Ainda ontem o Lobo Antunes me perguntou que idade tem a Tereza. [riso] Que idade é que ela tem? Os mortos continuam a estar connosco. Os vivos, as pessoas por quem nos apaixonamos depois, de quem começamos a gostar, e que se transformam na nossa vida, também. Assim é que as coisas estão bem.

 

Está a falar o rapaz alentejano, que aprendeu a olhar para a morte com naturalidade, e a reagir. É o impulso da vida.

Claro que é. E é não nos deixarmos vergar aos crápulas, aos aldrabões, aos vendilhões do templo, como dizia Jesus Cristo.  

 

É mesmo verdade que foi parar à Bósnia por causa de um desgosto de amor?

Ah! Não! Fui fazer reportagem. (Está para aqui com umas fontes anónimas...) Houve uma altura em que, um pouco extenuado pelo ritmo de trabalho no Público, um pouco extenuado pela vida que levava, fiquei capaz de fazer qualquer viagem. Fui para a Bósnia, digo hoje, com uma certa ligeireza. Talvez levasse o coração pesado. (Não tem interesse. Dou-me bem com as pessoas em geral. Dou-me muito bem com as pessoas de quem gostei. As vivas e as mortas.) Fui para a Bósnia para testar a minha competência de jornalista.

 

Mostra lá o que é vales debaixo de fogo – era isso?

É uma coisa de rapaz. Peço desculpa. Não quero estar a comparar-me, de maneira nenhuma, mas o Hemingway começou como jornalista, grande jornalista. Acabou a dizer que para se ser escritor tem que se escrever contra o jornalista. É uma coisa muito válida. A partir de certa altura, se ficarmos só na reportagem, nunca nos transformaremos em escritores. Eu pensei: “Se não for jornalista num sítio onde se pode perder a vida, onde já tantos perderam a vida...”. Naquele ano em que lá estive morreram uns 88. Uma barbaridade. “Se não for a esse sítio e não souber fazer o meu trabalho, ficarei sempre na dúvida se escolhi bem a minha profissão.” É uma coisa de rapaz. Embora haja mulheres que o fazem, e bem.

 

Queria saber como é que lidava com o medo?

Eu era muito novo. Não posso dizer que tenha estado em Sarajevo como repórter de guerra. Estive lá alguns dias e todos os dias havia uma bala que passava ao lado. Ou uma bomba que rebentava perto. Ou alguém que morria. Quando cheguei, tinham acabado de matar o vice-primeiro ministro dentro de um carro blindado da ONU. Um comando sérvio mandou parar, abriu, viu que estava lá um ministro bósnio protegido pela ONU, matou-o.

Não havia meios, como os outros tinham. Eu não tinha um blindado, como tinha a BBC, a CNN.  Eu não tinha dinheiro para pagar o [hotel] Holiday Inn; por isso é que ficava com famílias. Como o repórter espanhol, de que se fala no livro, que morreu no dia em que chegou, [estava alojado na casa de uma família].

 

Estava sem escudo.

Levava um ridículo colete à prova de bala da PSP, que só servia para estilhaços. Porque é que lá fui? Fui lá para contar o que se passava.

 

Essa é a resposta do repórter.

E contei. O que vi.

 

De facto, o que é que este homem foi lá fazer? Já passaram uns anos, já pode perceber o que é que lá foi fazer.

[Perceber] que me portava bem diante do medo. Só na guerra é que se vê, só nas viagens é que se conhecem as pessoas. Não é o que se diz? Eu tinha feito a tropa com os pára-quedistas na OTA, sabia proteger-me no caso de bombardeamento, sabia abrir e fechar uma G3 de olhos fechados. Só que num sítio daqueles tudo pode acontecer. É no inferno.  

 

Chama-lhe no livro “sucursal do inferno”.

É uma boa expressão. O Adelino Gomes, que também esteve lá, contou-me o momento em que saiu do Holiday Inn, escorregou no gelo e pensou: “É agora que vou morrer”. O Adelino tinha passado por Timor, Iraque... A maneira como me descreveu o medo que teve quando se estatelou no chão. Vinte graus negativos. Um frio. As pessoas sem nada para comer. Bombas a cair. Placas a dizer, como se fossem sinais de trânsito: “Atenção – Sniper”.  Eu queria ver se era capaz de o fazer. Podia lá ter ficado. Não fiquei. Ainda bem.

 

O seu caro Wittgenstein...

Foi para a Primeira Guerra. Para conhecer isso.

 

Foi como voluntário. Quando escreveu o Tratado Lógico-Filosófico, nesses anos, escreveu-o para ser “um ser humano decente”. Foi a expressão que usou.

Cá está. Mas eu andei lá a fazer um bocado de palerma e a fugir de um lado para o outro. Estive lá quatro, cinco dias. Depois estive em Mostar. Não foi muito tempo. Mas chegou para perceber que aquilo não era grande coisa. O que mais me chocou foi que conhecia Sarajevo de férias, tinha ido lá no inter-rail. Era mesmo uma cidade do leste, com platinadas, com um brilho de cabeleireiras, as roupas que encontramos nas lojas decadentes da Baixa. Os minaretes. Quando voltei, estava a biblioteca destruída. Ainda cheirava a fumo.

 

Ainda sonha com aquilo?

Não. Mas isto era o que qualquer jornalista passava!, a toda a hora. Lembro-me que uma vez tivemos que sair do carro, rebentou uma granada enorme, fomos para uma cave; na cave pus-me a discutir o F.C. Porto com dois soldados. Eles conheciam a equipa do Porto e do Benfica porque jogavam cá alguns sérvios e alguns bósnios.

 

Tenho de lhe perguntar outra vez como é que emerge a vida. Em vários momentos ao longo da entrevista, da sua vida, a morte está a rondar, e depois há uma força vital que se impõe. E que não o deixa sentir autocomiseração.

Nisso é que nunca me hão-de apanhar. Já tive a minha, sozinho. Tenho mais que fazer. Também digo às pessoas que se queixam de tanta coisa: preparem-se porque vem aí muito pior. E o muito pior pode ser muito mais rápido do que pensamos. A diferença entre a Sarajevo em paz e a Sarajevo em guerra é uma grande lição. Os desgraçados da Síria estão neste momento a passar por isto. E temos de estar à altura das circunstâncias. Está uma frase do Gilles Deleuze na estação de metro do Parque de que gosto muito: “Ética é estar à altura do que nos acontece”. (Já estamos a ficar muito intelectuais.) As pessoas têm muita razão para estar queixosas, mas se calhar vão ter mais.

 

Fale-me de um sonho da sua infância. O que é que queria ser? Nova coincidência: falo disto e o seu filho aparece aqui na sala.

Sonhei com o Henrique, ainda na barriga da mãe. Tinha a cara com que nasceu. [O filho pede: “Pai, deixa-me mandar uma mensagem do teu telemóvel.]

 

Ainda só falámos de um rapaz crescido, de um homem. Não falámos do menino.

A minha infância foi um pouco estranha. Muito feliz. Os meus pais eram óptimos. A minha mãe era professora primária. Uma daquelas professoras que marcam. O meu pai, para além dos seus conhecimentos de língua que são exemplares (quando preciso de alguma coisa pergunto ao meu pai ou ao meu filho; escrevem melhor do que eu. A minha filha também, a Sara), é um homem de uma honestidade aflitiva. Uma vez levantou dinheiro no multibanco e veio uma nota a mais. “Agora vamos ter que devolver esta.” Entrou no banco e devolveu-a. Para um miúdo, é um exemplo de vida. Ficou-me esta.

Por isso fazem-me confusão as pessoas que se aproveitam dos seus lugares para enriquecer. Fico mesmo doido. (Quando comecei a escrever humor, quis ter a certeza de que não podia ser acusado de nada que estivesse a criticar nos outros. Tinha que não ter telhados de vidro. Todos temos. A nível pessoal, todos fazemos as nossas asneiras. Mas herdei do meu pai e da minha mãe a noção de que vale a pena ser honesto. Talvez não se chegue muito longe, mas chega-se onde se quer.)

 

Ainda não me disse um sonho da sua infância. Uma brincadeira. Uma canção.

Nunca quis ser futebolista. Acho que queria escrever, para dizer a verdade. Porque não? Mas não me atrevia. A escrita é capaz de ser a maior invenção da Humanidade. Eu tinha muito medo de andar a estragar árvores. De escrever livros que não servissem para nada. Não sei se servem, a sério. E por isso não escrevo livros todos os anos. Todos estes livros foram exercícios brutais que tinham a ver com fases da minha vida, e que me transformaram. Não foi só conhecer-me [através da escrita]. Foi mudar-me. Sou uma pessoa muito melhor. O que me interessa é ser uma boa dona de casa.

 

É usar as frigideiras?

É. [riso] Nem que seja para bater com elas na cabeça de alguém que me queira entrar em casa, como num daqueles filmes cómicos.

 

Acabou por não me contar um sonho.

O sonho mais assustador que tive foi aquele em que me vi a mim próprio sentado na cama. E a dizer assim: “És uma desgraça”. Não conseguia falar. Isso acontece em estados de vigília e de cansaço. Muito depois disso vi um filme do [Ingmar] Bergman que se chama Sonata de Outono. A personagem diz que às vezes tenta dizer uma coisa, mas que sai sempre um grunhido de porco. Explicaram-me que há fases em que não conseguimos dizer nada, em que sai um som animalesco. Parecido, como diz no filme, e que reconheci nas duas ou três vezes em que me aconteceu, com um grunhido de porco. Rrrrgggggrrrr.

Um sonho acordado: quero ver todas as pessoas de quem gosto felizes.

 

Parece conversa de miss.

[riso] Quero ver os meus filhos felizes. Quero que acabe a fome. Queria muito – para ser concreto – que este país descobrisse um sentidozinho para o que está aqui a fazer. O nosso petróleo eram os eucaliptos. O nosso petróleo, afinal, é o turismo. Andamos sempre à procura de petróleo e o que estamos a ver é que muita gente não vai ter petróleo para se aquecer este Inverno. Isso faz-me confusão: não estarem a ver que a economia é uma questão de confiança, não é uma questão de contas. O que se vai passar neste país é um brutal corte de relações sociais, de felicidade, de filhos. O meu sonho é a qualidade.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2013