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Anabela Mota Ribeiro

Isabel do Carmo (s/ comida)

01.10.20

Isabel do Carmo é endocrinologista. É uma das maiores especialistas portuguesas em obesidade e comportamento alimentar. No seu consultório a fila de espera é de meses. Tem desenvolvido um trabalho intenso com anorécticas. Pensa que a bulimia é o paradigma da sociedade em que vivemos. Editou recentemente um livro que aponta 12 passos para perder peso com saúde, «Saber Emagrecer».

No mês de Agosto refugiou-se numa aldeia debruçada sobre o mar. A conversa correu à volta de uma mesa, na sombra do terraço.

 

O seu livro revolucionou a minha vida!

É engraçado que outras pessoas me têm dito isso. Amigas minhas, a senhora do café. Em termos de tomarem consciência das calorias ingeridas. Estou surpreendida. Julguei que, apesar de tudo, houvesse informação.

 

As bolachas integrais? Eu comia um pacote durante o dia, ia comendo bolachinhas achando que aquilo não era nada, e afinal duas bolachas equivalem a uma carcaça! A quantidade de carcaças que podia ter comido!

As pessoas enganam-se muito a si próprias. Fazem dietazinha, comem menos calorias do que aquelas de que têm necessidade e ficam sempre com um buraco para preencher. Preenchem com quê? Com qualquer alimento mítico.

 

O meu mito era o da fruta, «A fruta não engorda». Fazer uma alimentação mais saudável implica educar a família toda. Tenho andado a portar-me muito bem, mas fui passar este fim-de-semana a casa da minha mãe que ainda tem a ideia do «Come, come a carninha e a batatinha».  

As vossas mães atravessaram a segunda Guerra Mundial e os anos 50, em que, mesmo para a classe média, ter comida era muito difícil. A questão da comida, da comida suficiente, foi muito importante na vida das pessoas.

 

É por isso que quando vou a casa da minha mãe me dizem «Estás boa, estás boa». Nos anos 50 estar magra era o mesmo que estar doente.

Temos de ter uma perspectiva histórica disso. As pessoas eram de facto vulneráveis. Havia a tuberculose e não havia antibióticos. Há uma memória muito viva desse tempo. Agora, que os avós são um risco para as dietas...

 

Os jovens que têm agora quinze anos já têm uma atitude diferente da nossa, que andamos pelos trinta.

Agora há a saúde a todo o custo, a saúde como bem de consumo na sociedade de consumo. O slogan «Se eu não gostar de mim, quem gostará?» é o resumo deste egoísmo. Ela, a pessoa, é o mais importante: a sua saúde, o seu corpo, a sua aparência.

 

Contudo, as mulheres nunca estão felizes com o corpo que têm.

É incrível, não é?

 

O slogan de que fala, acentua isso. «Se eu não gostar de mim, quem gostará?», mas eu nunca gosto.

Há sempre um défice, nunca gostam de si: o nariz é não sei quê, as orelhas não sei que mais. As pessoas não são iguais ao modelo virtual. As imagens que nos aparecem são imagens modificadas. Não é Augusto? [volta-se para Brázio, o nosso fotógrafo] As pessoas querem corresponder àquilo, e depois são rodeadas de uma sociedade hiper-calórica. Isto é o diabo!

 

Exactamente. Com esta sociedade, consegue lá ficar assim...

Atravessa o labirinto e vê se resistes até ao fim sem pecar.

 

Vivemos numa série de paradoxos. Os próprios homens são os primeiros a dizer que não desejam as mulheres escanzeladas, que preferem a Jennifer Lopez que tem curvas. Mas parece-me que isto não tem nada que ver com o desejo ou com os homens; é de mulher para mulher.

Pelo menos, é o que se observa. Tenho uma paixão pela nutrição, que não é incompatível com a paixão pela política, pelo contrário: estamos rodeados de uma comida hiper-calórica, (cuja produção é centralizada em empresas multinacionais), é hiper-calórica porque num pequeno volume tem muitas calorias, é facilmente deglutível, e vende-se embalada. Todos nós temos a tentação de a comprar e comer, ninguém sai ileso. Entramos com um carrinho no supermercado e caímos ali como ratinhos.

 

Está tudo estudado, ao nível dos nossos olhos.

A estas criaturas que vivem neste mundo armadilhado, é-lhes oferecido um padrão cada vez mais magro – desde os anos 70, cada vez mais magro.

 

Fazer a gestão disto é complicado.

Há quem não faça. As bulímicas. Que são mesmo o elo mais fraco desta cadeia e rebentam. Comem e descomem. E atinge três em cada cem universitárias! Mas bulimia completa, a vomitar! Vomitam pelo menos três vezes por semana.  

 

Essas raparigas são provavelmente interessantes, cultas; isso deveria contar mais na sua auto-estima que as imperfeições físicas, (quase sempre exponenciadas, na forma como são vividas e apresentadas). Sucede que se perde toda a racionalidade: não conta que eu tenha lido isto ou aquilo, o que conta é que tenho celulite nas coxas.

É assim, e torna-se um pensamento obsessivo e viciante. Como o tabaco ou o álcool.

 

Podemos estabelecer uma equivalência desse tipo?

Com certeza.

 

Então estamos a falar de adição pura.

Claro que as coisas só se instalam em termos de patologia, como esta que estou a descrever, em pessoas que têm problemas de personalidade. Mas instala-se com muita frequência.

 

Instala-se de modo extremo nessas pessoas. Mas para as outras, para a mancha imensa que está no meio...

40% !

 

Quase toda a gente com quem falamos, tem esta paranóia.

Porque as pessoas são confrontadas com um modelo. A questão do modelo é que é importante. Na sociedade portuguesa há tantos homens com excesso de peso como mulheres. E quem procura as consultas, numa desproporção enorme, são as mulheres. Os homens procuram em função da doença.

 

Nós as duas sabemos que não somos obesas. Somos redondinhas, toda a vida fomos e provavelmente toda a vida vamos ser.

Vão.

 

Daqui para a frente, é só piorar!

Vocês não são redondinhas, vocês têm um corpo normal. Têm um corpo recomendável.

 

Ah, não, eu não tenho!

Sónia, de caras, olho para si e tem um peso recomendável sob o ponto de vista de saúde. Tem partes gordas no sítio onde elas devem estar no corpo da mulher, coxas, ancas e rabo, tem peito porque as mulheres têm que ter peito, e está bem.

 

Venha daí esse bolo!

O que não está bem é ter engordado 25 kg durante a gravidez, devia ter engordado dez.

 

Disse-me uma vez que o problema das anorécticas é uma recusa do corpo e das formas das mulheres. É uma recusa do crescer.

As anorécticas são um caso mais complicado. Não é só a questão do padrão, há uma personalidade muito particular. São muito menos que as bulímicas.

 

Fala-se muito mais das anorécticas que das bulímicas.

Porque são visíveis, são pessoas esqueléticas que andam entre nós. Ao passo que as bulímicas, têm um peso normal, tudo parece normal.

 

Todas as bulímicas vomitam?

80%. As outras tomam laxantes e diuréticos. Mas a verdade é que os ataques de fome e os vómitos são secretos, são escondidos; portanto, só ao fim de muitos anos se dá por isso – normalmente decorre durante muitos anos. Penso que as bulímicas são verdadeiramente paradigmáticas da nossa sociedade, da sociedade da abundância.

 

Já conheceu algum bulímico?

Já. São muito poucos e têm um recorte diferente. Enquanto que as bulímicas tiveram sempre um peso normal, todos os bulímicos que conheci tiveram uma fase de obesidade. Crianças, adolescentes, muito estigmatizados na escola, (sobretudo se ficam com o aspecto de ter maminhas), que evoluem para a bulimia.

 

Os homens parecem ser mais racionais na resposta.

É uma resposta mais adequada.

 

Surpreendeu-me no seu livro a permanente fusão entre o biológico e o psicológico. Quem tem apetite, o eu-biológico ou o eu-psicológico?

Embora utilize as palavras biológico e psicológico, acho que essa divisão não existe. Usamos essa distinção porque não temos outro instrumento para significar duas áreas talvez diferentes. Eventualmente haverá razões genéticas, metabólicas para que aquele indivíduo tenha tendência para engordar, e estas vão com certeza influenciar o comportamento e a parte dita psicológica. Suponhamos que uma criança é filha de pai e mãe obesos e nasce já com uma série de genes que facilitam o estabelecimento do excesso de peso. Esses genes vão condicionar um determinado metabolismo, que interfere com essas coisas de que se fala agora – a leptina, a insulina. Mas elas actuam numa zona do hipotálamo, (uma estrutura um bocadinho abaixo do cérebro), onde actuam também coisas de que falamos quando falamos do psíquico – a adrenalina, a serotonina. Actuam nos mesmos sítios, são do ponto de vista bio-químico da mesma família, interferem umas com as outras. Suponhamos que a criança, com estas condições, vai ficar gordinha, com células gordas para alimentar; se tem células gordas para alimentar, vai ter tendência a comer! O comportamento alimentar está a ser determinado por este fundo. Quando acordam, dizem «Este adolescente é obeso, vamos tratar isto». Vão sujeitá-lo a um regime – e ainda bem, a obesidade não faz bem a ninguém –, um regime que é difícil de suportar.

 

Parece que o prazer corresponde ao proibido, a restrição é sempre difícil. Pesa a tradição judaico-cristã, de que é exemplo o «Vou fazer dieta seis dias, ao sétimo tiro folga e posso comer tudo o que me apetece»?

É bom distinguir duas coisas: uma coisa é uma alimentação saudável, que era o que todos devíamos fazer. Ou seja, uma alimentação suficiente para os nossos gastos energéticos, que são poucos, que não tenha nem excesso de gorduras, nem excesso de calorias.

 

E o resto é dieta?

Para cada uma de nós, uma alimentação saudável será entre 2000, 2400 calorias. Alimentação saudável com legumes, arroz, massa. Mas ninguém emagrace com uma alimentação saudável! O que podemos dizer é que, com uma alimentação saudável, as pessoas não engordam. Quando um adulto ou criança quer emagrecer, não pode fazer estas 2400 calorias. Vai ter de as descer para 1200. É a tal dieta.

 

Nas tais 2400 pode entrar que quantidade de açúcar ou gordura?

Entra a gordura necessária para a confecção dos alimentos, sem fazer uma alimentação monótona ou chata.

 

Pode ser um arroz de tomate com rissois?

Rissois é que não! Rissois não é nada saudável, é uma bomba.

 

A minha perdição são os doces.

Os doces são feitos com açúcar e gordura. Os gelados? Têm imensa gordura, têm as natas! As vossas mães viveram numa época em que comer bolos, rissois ou gelados era um acontecimento quanto muito semanal, habitualmente quinzenal ou mensal. Ou seja, havia uma separação do sagrado e do profano; profano era o sempre, sagrado a excepção. Tinha um carácter ritualizado, com uma separação dos tempos: o tempo da festa, o tempo de comer coisas que não eram de todos os dias, e que, portanto, não faziam mal, não faziam engordar, não faziam doentes. Agora é excepção todos os dias!, temos bolos e gelados todos os dias. Vivemos enterrados na sociedade da abundância. Atascados!

 

Se eu pudesse, comia gelados todos os dias. Como é que se vive feliz com 1200 calorias?

As 1200 são menos do que aquelas que gastamos. Logo, há aqui uma diferença, um défice, um buraco que temos de encarar. Os médicos têm também de encarar e explicar à pessoa o seguinte: estão a aconselhar um regime o qual tem menos calorias do que aquelas que ela gasta. E não começar com o discurso moralizante da tradição judaico-cristã, «Deve fazer assim porque é assim, o que você tem é falta de vontade». Considere-se isto uma coisa difícil!, porque tem ali um buraco. Contornar isto? A melhor forma é dividir a comida ao longo do dia, seis vezes, sete vezes. Mas não é comer continuamente.

 

As minhas bolachas...

Pois. O petisco contínuo acaba por tapar o tal buraquinho das calorias que faltam, e o regime fica sem eficácia. Poli-fraccionar, mas com disciplina.

 

Rigor é importante?

É. Comer de duas horas em duas horas, ou de duas horas e meia em duas horas e meia, rigorosamente.

 

O quê?

Eu recomendo coisas que tenham pouco açúcar. Ou seja, iogurtes, leite, sobretudo estes para as pequenas refeições.

 

Quantos iogurtes se podem comer por dia?

Iogurtes naturais, sem gordura e sem açúcar, pode comer 4, 5. Têm uma vantagem: têm tanto cálcio como os outros. Como as pessoas precisam de ingerir fontes de cálcio todos os dias, importantes, fica suprimida a questão do cálcio e ao mesmo tempo há um nível de satisfação razoável.

 

Não é violento para o fígado?

Não têm gordura... A crítica que se pode fazer é que tem muitas proteínas, mas nós precisamos de bastante leite ou iogurtes ao longo do dia. Precisamos de três copos de leite ou o equivalente em iogurtes, e cada copo de leite vale dois iogurtes.

 

É verdade que não se deve comer a fruta sem um acompanhamento?

É. A frutose entra imediatamente em circulação, transforma-se em glicose e faz logo um pico de açúcar no sangue; fazendo um pico de açúcar, faz um pico de insulina e faz fome daí a uma hora.

 

Come-se a fruta com quê? Está visto que não pode ser com duas bolachas.

É evidente que não estão proibidas as bolachas.

 

Não, não, eu odeio as bolachas!

Qualquer dia tenho aí uma cartinha dos fabricantes de bolachas, como já tive de outras coisas...

 

Faço ideia. «Olhe que me está a estragar o negócio»...

Deste livro ainda não tive nenhuma. Mas por causa dos artigos e da televisão, já tive duas cartinhas. As bolachas não estão proibidas desde que a pessoa tenha consciência do que está a comer. Habitualmente comem aquilo como se fosse ar...

 

Se comer ao meio da manhã duas bolachinhas e uma maçã, e o mesmo ao lanche, mais o pão do pequeno-almoço, equivale ao fim do dia a três carcaças!

Pode ser, se tiver isso em linha de conta.

 

E se misturar uma peça de fruta com um iogurte?

É uma boa solução. Agora de manhã bebi leite com pedacinhos de fruta.

 

Não me diga que está a fazer dieta...

Tenho permanentemente atenção àquilo que como. Senão, estava um monstrozinho. Também permanentemente faço transgressões. A minha família é uma família de magros, e eu saí assim. Tenho tendência para engordar e tenho sempre de pensar naquilo que como. De vez em quando faço mesmo períodos de dieta; de outro modo, fico com um peso francamente prejudicial à saúde.

 

Considere a seguinte situação: uma mãe, que por acaso é esquelética, nunca tem doces em casa, nunca dá doces aos filhos; diz que têm em média uma festa de aniversário por mês e que essa vez é mais do que suficiente para comerem doces. A outra situação é a de um menino que mostra com um ar radiante, felicíssimo, a gaveta do armário onde os pais lhe põem gomas, chocolates, rebuçados. Os outros não pensarão que a mãe tão restritiva é má? Este sabe que os pais se preocupam em encher a gaveta de coisas boas.

O que está certo é a primeira opção. É muito difícil uma criança ter uma gaveta de doces e não ir lá de vez em quando. Ou então vamos submeter aquela criança a um esforço terrível. Vir com o cabaz do supermercado, com refrigerantes, bolachas, chocolates, e dizer «Está ali, mas não toca!»? É uma tortura. Digo sempre às pessoas para não terem as coisas em casa. É difícil resistir. Então as crianças... Porque as coisas estão estudadas para agradar, não é para fazerem bem à saúde.

 

É muito difícil educar as crianças quando os coleguinhas levam para a escola todo o tipo de guloseimas.

É um mundo louco. Vou muitas vezes a escolas ensinar às crianças o que é uma alimentação saudável, o que devem comer, o que não devem comer. Abre-se a porta da sala de aula e o bar em frente tem tudo o que não devem comer. Isto desaparafusa a cabeça de qualquer criança!

 

O problema do excesso de peso resulta muito do tipo de vida que as pessoas levam, sobretudo nos meios urbanos. Come-se de pé, depressa, mal e porcamente. Que conselhos dá para contrariar esta situação?

Por exemplo, disporem de tempo para se sentarem a almoçar.

 

Muitas vezes não dispõem desse tempo. Além disso, pode sair mais caro.

Há pessoas que não têm dinheiro para fazer uma refeição. Mas há escolhas a fazer. Quando se vai ao supermercado, não trazer refrigerantes, molhos, bolachinhas, gelados, reduz consideravelmente o cabaz, já se poupa. Depois, muitas vezes as pessoas não querem gastar em comida mais saudável, e são capazes de gastar em peças de roupa caras.

 

Gostaria de insistir na pessoa que trabalha na Baixa, é forçada a almoçar fora e não tem dinheiro para se sentar a comer.

É melhor levar uma boa sandes de casa, fruta, leite, iogurtes. Podem ser duas sandes, se for sem molhos e sem manteiga, com qualquer coisa que não seja muito calórico. Tomate, por exemplo. Pergunto sistematicamente às pessoas se têm frigorífico no sítio onde trabalham, e de um modo geral, vejo que têm. Há alguns casos em que há micro-ondas, podem levar qualquer coisa num tupperware e aquecer. É preciso pensar em soluções, não estar cristalizado. Por exemplo, fazer um almoço deste tipo no emprego e depois gastar o resto do tempo do almoço a andar a pé. Não estou a dizer, «Vá fazer uma refeição de peixinho cozido, fresco, caríssimo».  

 

Não sabemos, de facto, aquilo que comemos, está sempre a mudar aquilo que nos dizem. Há uns anos fazia-se a apologia da carne, agora ela é dispensável.

Os problemas de segurança alimentar mais graves começaram nos anos 60. No entanto ninguém deu por eles. Só passados 40 anos é que estas questões são postas de forma bastante viva. Nos anos 50, 60 começou o grande cataclismo, com a indústria agro-alimentar a constituir-se à base de pesticidas e fertilizantes. Foi também o grande boom da indústria pesada que infestou os campos, os rios. A natureza, os alimentos, ficaram infestados a partir dos anos 60 e toda a gente papou poluição e alimentos poluídos até mais não. Muito mais do que agora.

 

Actualmente há mais vigilância, há movimentos ecológicos, há a consciência dos cidadãos.

A investigação a respeito das consequências disto tem de ser muito rigorosa. Em relação aos alimentos, as questões estatísticas são super-difíceis de estabelecer, porque comemos uma série de alimentos ao mesmo tempo. São muito poucos os estudos sérios sobre alimentação. É preciso grandes populações, seguimentos de muitos anos. Na comunicação social é que aparecem muitas vezes conclusões precipitadas, mas as pessoas que se dedicam a isto de modo mais sério não são precipitadas, e salvaguardam sempre que pode não ser assim. 

 

Que opinião tem dos produtos biológicos? São mais caros, e a questão do dinheiro não é nada despicienda, sobretudo quando se tem filhos.

Sou completamente defensora. São a demonstração de que é possível cultivar alimentos sem a intervenção de químicos, fogem à lógica da grande indústria agro-alimentar que inunda tudo, e ainda por cima são uma alternativa em termos enconómicos. Um país como Portugal, não faz, não é? Mas podia incentivar a agricultura biológica. As unidades que conheci de cultura biológica eram de trabalho intensivo, as pessoas tinham muito trabalho. Mas era visível que tinham bons produtos, com sabor. Isto tem também que ver com o hedonismo, com o prazer da comida. Quando se come tomate biológico, como há aqui na aldeia...

 

Sabe a tomate.

Sabe a tomate. De repente descobrimos que aquela coisa que andávamos a comer, afinal não era bem o produto... Mais do que os preços, penso que o problema pior é a distribuição. Actualmente está tudo concentrado num posto de venda no Mercado Abastecedor Principal. Quando posso compro, mas é só quando posso, porque não tenho vida para isso. Portanto, sou uma enorme defensora dos produtos biológicos. Estou a falar de biológicos e não de naturais.

 

Qual é a diferença?

É uma enorme diferença. Estou a falar de produtos autenticados como biológicos, que não usam nem pesticidas nem fertilizantes e que não estão contaminados. Produtos naturais é tudo quanto há para aí de vigarices...

 

Se lemos num rótulo «produto natural»...

Ah, desconfiamos sempre, logo. O que é isso de produto natural?

 

Um artigo da Time republicado pela Visão falava de dez alimentos indispensáveis à saúde: alho, chá verde, tomate, brócolos, aveia, espinafres, mirtilo, frutos secos, vinho tinto, salmão. Achei estranho porque não tinha nem carne, nem lacticínios.

Os alimentos que enumerou são bons, mas são indispensáveis os outros. Esses que disse, contêm vitaminas e sais minerais em quantidade suficiente diária; mas são os acompanhamentos das outras coisas, dos hidratos de carbono e das proteínas.

 

Fala-se de si como a grande especialista da dieta mediterrânica, que aposta no equilíbrio, e mete tudo, incluindo carne e peixe.

Ah, claro, carne e peixe. Na minha perspectiva são indispensáveis.

 

A carne também?

Também. O que não é, é nas quantidades em que actualmente se come. Mas respeito, evidentemente, quem não a come. A minha filha não come. Faz falta, por causa do ferro. Concebo muito as coisas em termos do equilíbrio da natureza: as plantas vão buscar os minerais ao solo, os animais comem as plantas, e depois há animais que se comem uns aos outros. Neste momento, qualquer um de nós, tem o corpo cheio de bactérias, que estão a viver do nosso corpinho... Estão cá, e estão bem, não há mal nenhum. Simplesmente o humano tem tendência a romper com isto tudo e a comer mais do que pode, a matar mais animais do que deve, a destruir florestas... A questão é esta bulímia do ser humano, esta gula da sociedade da abundância.

 

É mais e mais e mais, e nem sempre em qualidade.

Não dá felicidade a ninguém. É o insaciável.

 

 

Publicado originalmente no Diário de Notícias em Agosto de 2002

Entrevista de AMR e Sónia Morais Santos