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Anabela Mota Ribeiro

Agustina Bessa-Luís (2006)

08.10.20

«Doidos e amantes», o mais recente romance de Agustina Bessa Luís, foi escrito para ser apresentado semanalmente, sob a forma de folhetim. Conta a história de Maria Adelaide, a filha do fundador do Diário de Notícias, que rompe com o quadro conjugal e foge com o motorista. Foi «um Amor de Perdição para a Havaneza» do início do século XX. Agustina persegue esta criatura e traça-lhe a biografia.

Sob o signo de Maria Adelaide, perseguimos a biografia da própria Agustina. Como ela conta, esse é um modo seguro de a encontrarmos: «a minha biografia está nos meus livros». Numa tarde de sábado falámos do impulso de liberdade, do poder, do segredo, de dinheiro. Dos temas de Agustina.

 

Maria Adelaide, centro de «Doidos e amantes», é uma senhora burguesa, de fortuna prodigiosa, que causa escândalo nas primeiras décadas do século XX quando foge com o motorista. Cai socialmente em desgraça e é tida como louca.

É tida pelo marido. Não se sabe até que ponto tinha uma pontinha de desvario ou aquilo foi a soma de muitas coisas juntas. Aquela ascensão muito rápida, com uma grande fortuna, grande mesmo...

 

Considera que era louca?

Suponho que a Maria Adelaide era instável. Ela começou por ser testada como uma doente mental. O marido estava seguro quanto aos chamados alienistas, os grandes médicos da época, que ao mesmo tempo eram homens de grande intervenção na política.

 

Egas Moniz e Júlio de Matos foram alguns desses médicos.

Nessa altura, as teorias do Freud começaram a ser aceites e aplicadas; e, quanto à maneira de reconhecer um louco, Freud diz que é aquele que não é capaz de trabalhar, de se sustentar, e que não é capaz de ter relações sexuais normais. Ora quando Maria Adelaide vem para o Porto e diz que faz bordadinhos, é para provar que se sustenta. Portanto, ela devia estar aconselhada. E quanto a não ser capaz de ter relações sexuais normais, aí entra o motorista. Dizem que a violou, e ela opôs-se terminantemente: “não, não, tivemos relações de minha livre vontade”. Eu acho que ela mente.

 

O motorista não foi seu amante, quanto a si?

Ele era sempre um criado, do princípio ao fim.

 

É bonito, dedicado e humilde. Escreve:“ele é criado e será sempre criado”. O que procurou nele? Nitidamente não procurou o sexo...

É um companheiro. Um acompanhante.

 

Ela inventa a sua própria aventura porque tinha uma vida entediante?

Não, ela queria fugir daquilo que era uma ameaça constante, que era o marido apoderar-se da fortuna. A fortuna era dela; era a fortuna do pai, que foi o fundador do Diário de Notícias, e do padrinho, que era o conde de S. Marçal. Eu vivi lá, na rua do Eduardo Coelho.

 

Por que é que o dinheiro pode tresloucar uma pessoa, fazê-la perder o controlo da sua vida?

Está reconhecido que é difícil uma pessoa que tem determinada educação, uma personalidade formada por essa educação e por essa maneira de viver, manter-se inalterável quando tudo se modifica_ a respeito dessas fortunas que se podem ganhar com os euromilhões. Ainda no outro dia veio alguém dizer, suponho que era um médico, “cuidado, uma pessoa que herde uma fortuna dessas pode ficar completamente transtornada”. Primeiro não sabendo geri-la, depois não sabe o que fazer... Deve ser arrasador.

 

O que é que faria com todos estes milhões? Quando fala de dinheiro, fala da presença intermitente do dinheiro na sua família, com períodos de bonança e períodos de carência, fala do seu pai, do jogo e do casino; como se o dinheiro não representasse grande coisa na sua vida. Interrogo-me como é que gere o dinheiro.

Tenho a felicidade de não ser milionária. A pessoa, ou tem gestores, conselheiros, e hoje não faltam, ou já nasce milionário e tem toda uma aparelhagem que o protege... Conheci alguns e são pessoas diferentes. Há uma distância..., nascem assim. Só entre eles é que têm confiança.

 

O que cava a distância é a desconfiança em relação aos outros, em relação à intenção dos outros?

Sim. Um grande, aquele americano que se meteu no cinema, Howard Hughes. Era frágil, acabou por ficar perturbado e ligar-se a uma seita religiosa. Tinha uma desconfiança total. Contava-se que tinha tido uma pane uma vez numa estrada, e que lhe apareceu um homem qualquer que o ajudou; quando morreu, deixou-lhe muito dinheiro. Foi uma coisa que o emocionou: uma pessoa que não esperava nada dele e que o ajudou. O homem muito rico acha sempre que se espera qualquer coisa dele.

 

E é verdade?

Se essa fortuna é reconhecida, imediatamente há um pensamento, mais ou menos secreto, de saber o que aquilo pode render. Não se deixam conhecer de perto, as pessoas muitíssimo ricas. Um deles foi o Gulbenkian. Tinha uma admiração enorme pelo Salazar, porque o Salazar não tinha o mínimo de subserviência dele.

 

É a única atitude que pode granjear o respeito dessas pessoas.

Sim, mas Salazar era primeiro-ministro, e era um homem com muito poder. Gulbenkian coleccionava pessoas que fossem raras. As mulheres pela beleza, os homens pelo seu poder e influência.

 

Como se fossem jóias raras.

Exactamente. Como se fossem quadros. Era um homem muito curioso. “O Convidado Debaixo da Mesa”, que escrevi, era a história dele. Aquele domínio que exercia sobre a família toda... Por exemplo, dava um colar à filha, lindíssimo, mas depois andava sobre ela a ver o que é que fazia ao colar: se o vendia, se o guardava, se o dava.


Mas é uma desconfiança mesmo em relação aos seus, não só em relação aos de fora.

Sim, sim. O Franco dizia a respeito da família: “no se puede dejarlos solos”. Ele é que sabia.

 

E como é que gere o dinheiro?

Olhe, sou muito generosa em gorjetas, e já me apercebi que isso é pouco normal. Lembro-me que a primeira que vez que fui a Macau, não havia ainda aeroporto, perguntaram-me se queria qualquer coisa que não estivesse no contrato dessa viagem. Eu disse: visto que tenho que ir a Hong Kong para apanhar o avião, gostava de passar uma noite no hotel Shangri-la. O hotel tinha um prestígio muito grande, do tempo da guerra, de figuras notáveis que passavam por lá, e eu gostava de ver como era. O preço era exorbitante, e eram para aí quatro ou cinco pessoas a levar as malas, que não eram nenhumas! Mas eles arranjavam maneira e depois ficavam à espera da gorjeta. E eu dava a gorjeta como se ficasse lá um mês!

 

Mas porque é que dá gorjetas tão generosas?

Não sei. Porque há uma expectativa. Há tempos vinha uma página numa revista sobre os actores de cinema, os que davam gorjeta e os que não davam. Os que não davam, tinham as maldições em cima deles.

 

Ou seja, está a pensar na posteridade.

Não, é no dia-a-dia. Mais do que o dinheiro, o importante é o nome.

 

O que eu digo, quando digo que está a pensar na posteridade, é que se alguma vez fizerem uma lista dos generosos nas gorjetas...

É muito importante o nome da pessoa, como ela é avaliada. É mais importante do que uma fortuna no banco. Havia um imperador romano que quando fazia uma guerra, não ficava com os saques: dava tudo. Um dia perguntaram-lhe: tu não tiras lucro nenhum, e ele disse: se me acontecer alguma coisa, peço ao povo de Roma e eles fazem-me um monte de ouro aqui em casa. Aquilo com que ele se preocupava era com o nome público.

 

Aí está uma coisa de que fala cada vez mais: de como é importante e de como lhe dá prazer ser apreciada pelos que lhe são próximos, e pelos simples. Porque é que lhe interessa o que pensa o senhor da mercearia ou a modista?

Eles são os meus personagens, devo-lhes muito, sabe? São mais os meus personagens do que aqueles que me estão próximos. Nunca retrato uma pessoa próxima, nunca. É melindroso. Voltamos ao caso da [Maria] Filomena Mónica [de cujo livro de memórias falámos antes da gravação]: era incapaz de uma coisa daquelas, acho uma falta de cortesia. Não é pudor, é uma traição às relações humanas. As relações humanas têm as suas portas. Tem que se saber sempre até onde é que se pode ir quando se é vivo. Um romancista está sempre muito independente disso porque diz tudo nos romances. Agora, tratar a realidade como ela é, com os nomes reais e tudo, é muito perigoso.

 

Há no «Doidos e amantes» uma personagem fascinante, que é a criada. Não me lembro como lhe chamou, a mim ocorre-me chamar-lhe Juliana porque tem qualquer coisa de terrível, como a Juliana do Eça. Essa criada contou-lhe muitos pormenores relativos ao Manuel e à Maria Adelaide, com a mesma “gula com que comia nêsperas”. É fácil imaginá-la entretida com uma criada e o seu mundo uma tarde inteira...

Sim. Em toda a minha juventude, pelo menos até casar, essas pessoas tiveram muita importância na minha vida. Numa altura em que a [nossa] empregada se chamava Rosa, ela sabia de todos os pormenores do casamento, das peripécias que antecederam o casamento, e sabia de mais perto que a minha própria mãe. Ainda que eu nunca fosse uma rapariga de segredos. Fui sempre muito frontal em tudo, o que às vezes cria uma certa angústia nos outros... Há muitas pessoas que são respeitáveis, mas que não são capazes dessa franqueza. O dizer as coisas, às vezes até de uma maneira seca e brutal...

 

A sua fama de perversa julgo que vem muito daí.

Vem. Ontem estava eu a ouvir as notícias na rádio, e estavam a falar de mim; a dizer que estávamos em Paris e que o Manuel António Pina tinha dito: “ai, eu gosto muito de ouvir a Agustina”. E eu, que estava ao lado, disse assim: “eu também, eu também”. [risos]

 

Olha-se como personagem? O que é que a faz seguir uma narrativa? Em relação a Maria Adelaide, o que é que a fez seguir esta intriga “que parece um caramanchão de rosas bravas”?

Foi o enigmático. Não se sabe aquilo que a motivou verdadeiramente. Eu acho que o que motivou a fuga dela foi a procura de uma vida perfeitamente plana, sem nenhum horizonte_ ela quis viver assim. E viveu assim até morrer, sem sinais de ostentação; mas creio que vinha uma pessoa trazer o dinheiro todos os meses, não a deixaram ficar na miséria. Quem ficou com a fortuna foi o marido, disso não há dúvida. A fortuna era bastante importante para comprar todos os advogados e toda a gente.

 

Quando ele contrata o Curry Cabral, Sobral Cid, todos os alienistas famosos, fá-lo porque quer preservar a fortuna e apossar-se dela?

Podia ser. Até essa data, no princípio de 1900, um conselho de família podia decidir que a pessoa era louca e apoderar-se dos bens. Depois essa lei deixou de vigorar, e era preciso que houvesse médicos; aí entram os alienistas que tinham que assegurar as condições de saúde mental da pessoa.

 

Além do interesse pela fortuna, entrou o despeito? O seu nome e estatuto de marido foi ultrajado naquele quadro burguês: a mulher troca-o pelo motorista.

Ele conhecia o motorista e estava convencido de que era um pobre diabo. Aquilo era um pretexto. O motorista ou o jardineiro, nessa altura, têm uma capacidade de confidência na pequena relação de todos os dias, de todas as horas, de dependência erótica, que acaba por gerar essa relação, que pode ser até sexual. O jardineiro também era grande figura! Foi, durante muito tempo, agora é que já não há jardineiros.

 

Nem mordomos.

Os mordomos já têm outra posição, são mais evidentes. O mordomo tem que se manter na obscuridade, o jardineiro é uma figura ligada à natureza e que facilmente se disfarça. É uma figura que o Alexandre Dumas aproveita numa série folhetinesca extraordinária, “Os Fidalgos da Casa Vermelha”: é uma mulher muito bonita e o jardineiro tem uma paixão por ela. Um dia, ela tem um acidente, desmaia, ele aproveita para a violar e ela fica grávida. É um pouco aquela história do “Fala Com Ela”, do Pedro Almodovar. Eu li isso tinha para aí quinze anos e achava uma coisa terrível: como é que ela ficou desmaiada tanto tempo e suportou todos aqueles trâmites amorosos! Lindíssimo e muito bem construído, nessa altura sabia-se fazer romance.

 

Curiosamente, neste livro o sexo não aparece como força motriz. Aqui trata-se menos de sexo e mais do desejo de viver uma vida autêntica.

Sim, trata-se mais do poder, e o poder era a liberdade dela. Adquirindo essa capacidade, essa possibilidade, essa ocasião que lhe é oferecida. Ela procurou corresponder a uma oportunidade que lhe foi dada. O que eu tenho é a narrativa dela, «Doida não», e aquilo que vem nos jornais. Ela faz também a sua história nos jornais, um pouco empolgada pela importância que aquilo lhe dá, como heroína.

 

Escreve que ela podia ter sido actriz, que se porta como uma leoa, sempre pronta às ovações mais extraordinárias. Ela precisava de uma plateia.

Ela tinha na casa dela um palco e fazia teatro. E era muitíssimo louvada. Um dos que a louvavam imenso como actriz era o Júlio Dantas, um homem de grande gosto.

 

O poder exprime-se de diferentes modos: através do dinheiro, como Gulbenkian, do poder político, como Salazar, e da liberdade, como Maria Adelaide. Aquele que mais lhe interessa é o da liberdade, não é?

É o que mais interessa porque usa esta definição de poder de modo completo. É aquele que trazemos desde que nascemos.

 

Seguiu Maria Adelaide pelo mistério, pelo enigma que ela contém. Personagens destas são objectos fascinantes. Mas gosta destas pessoas? Eu, aliás, ainda não percebi muito bem como é que gosta de pessoas, como é o seu modo de gostar...

Também é difícil... Eu não gosto das pessoas na medida em que há uma espionagem delas em relação a mim e que pode influir na minha liberdade. E estão sempre presentes, desde o meio familiar, desde o meio social. Há sempre de um para outro essa intenção de limitar a liberdade do outro. Nessa medida, não gosto delas. Mas, ao mesmo tempo, são indispensáveis, até para testar a minha capacidade de liberdade. Depois, há muitos sentimentos. Esse estado revolucionário da paixão também existe na vida das pessoas, e pode tomar o primeiro plano. Mas o que predomina sempre é o estado de liberdade. É o aspecto mais fascinante do ser humano, essa intransigência quanto à sua liberdade.

 

Foi uma bênção não ter sido uma criança muito “olhada” pelos adultos? Esse olhar vampiresco e atentatório da liberdade teve-o o seu irmão, que mereceu todas as atenções. Isso deixou-a entregue a um impulso de liberdade, entregue a si mesma.

Acho que não teve uma dimensão muito grande, esse facto. Reparei nele mais tarde, quando a razão já estava muito acentuada. Como criança, nunca me apercebi disso. Havia uma ligação de afecto muito grande. E esse afecto era sempre enrodilhado desse desejo de apropriação, que é o primeiro e o mais reconhecido atentado à liberdade. Hoje há uma linguagem disponível para explicar tudo isso. É das coisas mais difíceis de gerir, essa liberdade em que o afecto está incluído. A relação homem-mulher, por exemplo.

 

E com os filhos, também.

É muito difícil de analisar. A Maria Adelaide desprende-se completamente do filho. Esta civilização é muito protectora. E é protectora porque espera tirar alguma coisa dessa situação...

 

Nem que seja tirar amparo na velhice.

É, apoiando-os na velhice. É uma contrapartida que há.

 

Ei-la na acrópole dos folhetinistas, como escreve aqui. Porque é que foi tão importante para si escrever um folhetim?

Não sei. Ainda há pouco lhe falei do Alexandre Dumas, que considero um marco. Sempre gostei do folhetim. É preciso ser muito engenhoso, ter o gosto da intriga. As pessoas gostam de toda aquela intriga, e de participar, “eu faria assim, acho que ela não fez bem”, porque estão envolvidas.


A telenovela é o folhetim dos tempos modernos?

Com certeza que é. O que é raríssimo é ser conduzida por um folhetinista. O Dickens é um grande folhetinista. Comecei por ler os folhetins no jornal, diários, e lembro-me de uma vez ter adaptado «A Morgadinha dos Canaviais» do Júlio Dinis a folhetim, mas com desenhos ˗ era uma banda desenhada.

 

Desenhos seus?

Do meu marido. Ele desenhava muito bem. As pessoas estavam entusiasmadíssimas, se um dia falhava, mandavam perguntar logo porque é que falhou. Simplesmente, e porque já estava aborrecida da Morgadinha, comecei a tomar partido! Toda a gente julgava que estava a traduzir os sentimentos do próprio autor, e não! [risos]

 

«Doidos e amantes» começou por ser publicado semanalmente no jornal Independente, como um folhetim. E agora, em livro, tem tido um grande sucesso. Que importância teve o folhetim na sua vida de leitora e de escritora?

Teve muita importância. Uma criança de seis anos, como eu, era defendida de ler os livros com mais categoria, que era preciso procurar. O jornal vinha todos os dias ter a casa, com essa suculenta intriga. O espantoso é que depois discutia-os com a minha mãe! E a minha mãe discutia aquilo como se eu tivesse a idade dela!

 

Mas tão pequenina, sentia-se à vontade para discutir o que fosse com a sua mãe?

Sim. Gostava imenso dessas histórias, ainda hoje gosto. Os sucedâneos são as biografias, a que chamam folhetinescas. Têm o testemunho de muita gente, muitas vezes contraditório. Temos que adivinhar o que se quis dizer. E eu sigo, até na televisão.

 

Já escreveu a sua fotobiografia, partindo da genealogia. Há várias maneiras de contar a história de uma pessoa. As diferentes fases podem ser demarcadas em função de cidades, trabalhos, casamentos. Preferiu contar a sua história a partir do seu mapa genético. De que outra maneira podemos contar a sua história?

A fotobiografia foi uma coisa diferente. Os personagens eram aqueles que envolviam a minha presença no mundo. Era uma homenagem. Era como quem numa lápide procura fazer uma inscrição. Mas, verdadeiramente, a minha biografia está nos livros. Quando pergunto a pessoas amigas: “acha que devo fazer a biografia?”, elas dizem: “não, a sua biografia está nos livros”. Quando fazemos uma biografia, temos que omitir muita coisa, ou mentir. Porque a vida de todos nós está cheia de peripécias incontáveis.

 

Por que é que são incontáveis?

Há escândalos de família, que tiveram influência sobre nós, no nosso poder criativo. Não podemos contar, porque aquilo é realmente um descalabro, é ofensivo. Hoje as coisas mudaram, mas [isso] causa uma atmosfera de depressão tremenda nas pessoas. O segredo é indispensável numa civilização. Se se anula o segredo, a pessoa não tem defesas.


Mas o segredo é diferente do decoro.

O decoro é uma forma de preservar o segredo. Aquela cortesã chamada Farineia, que na Grécia era muito escandalosa, é julgada pelo tribunal. E o juiz pergunta-lhe: “tem alguma coisa a dizer para sua defesa?”, e ela tira a túnica e aparece absolutamente nua. Foi o bastante: era tão perfeita e tão bela que o decoro não tinha aí nada a ver. O decoro é introduzido na sociedade para velar os defeitos de cada pessoa. O decoro aparece porque há um modelo e há a necessidade de se parecer àquele. Há imensas mulheres que se parecem umas às outras; parecem-se porquê? Porque há um modelo. E, nessa medida em que elas se aproximam, o decoro vai desaparecendo.

 

Mas então, como procurá-la e descobri-la nos seus romances?

Conto a história de uma figura, o avô. O avô tinha um grande amigo de quem foi sócio e a quem emprestou dinheiro. A dívida cresceu, cresceu, e esse amigo mandou matá-lo. Quem o matava era um ladrão, um assassino que andava sempre a fugir da polícia e a quem esse meu avô recolhia, às vezes. Uma vez, por gratidão, ele disse-lhe: “estou encarregado de o matar, foi fulano assim assim, que me paga para isso”. Ele ficou de tal maneira desprovido, até de juízo da própria situação, que lentamente definhou e morreu por desgosto.

 

Desgosto?

De ter que reconhecer que nada era seguro, inclusivamente uma grande amizade. Como é que eu podia contar uma coisa dessas? Não podia. Visto que há toda uma linhagem envolvida e isso era lançar-lhe uma espécie de maldição. Portanto, o que impede que essa verdade seja encarada em todos os seus aspectos é o respeito que se tem que ter pelo segredo.

 

Pronto, não vasculhamos mais no seu segredo!

[risos]

 

 

Publicada originalmente na revista Selecções do Reader’s Digest, em Janeiro de 2006