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Anabela Mota Ribeiro

Catarina Portas e Nuno Portas

31.12.20

Nuno Portas tinha 35 anos quando nasceu a sua terceira filha, Catarina. Viveram juntos apenas seis anos. Mas cresceram juntos, descobriram juntos, construíram zonas de intimidade. A história deles, contada por um e por outro, lê-se nas próximas páginas.

O gravador já estava desligado quando Catarina disse o seguinte: “Ele nunca estava aqui, (não vivia na mesma casa que eu); mas sempre que precisei, estava lá”. E ficou decidido que essa frase tinha de entrar. “Essa frase vai-me safar”, comentava, trocista, o pai… Essa ficou gravada. Mas não ficou aquela que Catarina disse na rua e que se resume basicamente nisto: ele sempre lhe deu imensa corda e sempre a levou a sério. Foi sempre uma relação entre iguais.

Funcionou como constatação, umas três horas depois de tudo ter começado.

Antes disso, havia o atraso dos dois (“O meu pai está atrasado uma hora ou uma hora e meia”, avisava ela ao telefone uma hora antes). Quando Nuno finalmente chegou, quis saber se a filha já tinha chegado há muito tempo… “Porque ela atrasa-se mais do que eu”. Essa foi a primeira coisa que quiseram dizer que tinham em comum: uma relação particular com o tempo. Depois, foram as fotografias na loja de Catarina, A Vida Portuguesa. “É preciso posar?, eh pá, vou ser gozado por esta…”.

A conversa cúmplice já tinha começado. A cumplicidade é imensa. Tratava-se de saber de que forma, (com que pudor), ela ia ser revelada.

Por fim, sentaram-se lado a lado, beberam vinho branco e cerveja, comeram pão e acepipes. E conversaram. 

 

 

Trouxeram, cada um, um papel com notas… porquê?

CP – O meu pai estava muito preocupado, ontem… Achava que isto podia cair no mero elogio.

NP – Numa entrevista destas, com as relações afectivas que há, estamos muito na defesa. A nossa prestação é capaz de ser muito marcada por uma grande admiração mútua. Não é só uma questão de amizade, de relação pai-filha. A pouco e pouco, há uma cumplicidade, uma relação directa. Não estou a ver tabus especiais que me ponham em cautela… A Catarina nasceu em 69, e nesse ano eu estava a fazer – no que a mãe dela me ajudou muito – a tese para as Belas Artes, aqui no Chiado. Na noite em que ela nasce há um terramoto…, uma brincadeira de terramoto, mas existiu. À volta do 25 de Abril…, quando é que foste para Inglaterra?

CP – Em 75. E para Paris em 78.

 

Vamos devagar. A vossa história começa quando?

NP – Antes de 78, quando fui para Madrid três anos, a Catarina tinha nove anos. E quando vim de Madrid fui directo para o Porto. Nessa altura já havia uma separação entre nós.

CP – Entre a mãe e o pai.

NP – Entre a mãe e o pai, não com ela. Pacífica, mas dolorosa. 

 

Viveram junto quanto tempo?

CP – Seis anos. Nós, o Miguel, a tia Isabel… Continuo a viver na mesma casa e pergunto-me como é que cabia lá aquela gente toda. 

NP – Do período em que ela era muito pequena, não tenho muitas memórias. Eram coisas muito convencionais: passear, e tal. Quando ela começaria a ter mais interesse, mais conversa, eu já estava a caminho de outro sítio. Como a mãe dela.

CP – Mas sempre nos vimos muito. Há uma coisa importante: a intensidade desses momentos. Porque não nos víamos todos os dias.

NP – Tinha de ser tudo combinado.

CP – O meu pai ia a Paris, ou eu ia de férias [com ele].

NP – Neste contexto está o Miguel que vivia comigo, o Paulo que vivia com a mãe. Ao princípio era difícil o Paulo estar com a Catarina. O Miguel tinha optado por ficar comigo. Tiveram educações diferentes, escolas diferentes e...

CP – Resultados diferentes, como se nota.

NP – Podia ser tudo ao contrário, mas a verdade é que é assim. O Miguel tinha 11 anos quando nasceu a Catarina. O 25 de Abril foi muito turbulento para os casais portugueses. Foi uma coisa muito libertária.

 

Como é que conta a vossa história? E como é que, pequena, olhava para este pai, com um percurso errático, mas forte.

CP – Uma das imagens que tenho de pequena, é de o meu pai chegar das viagens, trazer-me presentes, e mandar-me postais.

NP – Que agora não envio…

CP – Lembro-me de um postal do Babar, escrito a vermelho, com aquela letra muito engraçada que ele tem. Acho que ainda o tenho. O pai sempre viajou muito.

NP – Porque me internacionalizei muito cedo. A mim chamavam-me como teórico, ao Siza chamavam por causa da obra.

 

A sua mãe também é arquitecta?

CP – É, paisagista.

NP – Foi minha aluna na escola. Mas também trabalhava no jardim de infância onde estava o Miguel… Foi numa reunião em Marrocos que a gente se conheceu mais propriamente. Uma reunião sobre o habitat dos países do Terceiro Mundo. Eu estava a trabalhar no LNEC nessa altura. O Teotónio Pereira, depois do 25 de Abril, fechou o atelier, considerando que “agora” não era altura de arquitectura, era altura de revolução! Só o Teotónio é que se lembraria disto. Achava que havia prioridades históricas.

CP – O meu pai estava sempre em trânsito, mas nunca me senti com falta de pai.

NP – Eu não senti complexos de culpa.

CP – Fui para a escola em Inglaterra. E depois fui para uma escola em Paris e não sabia francês e tive que aprender. Não há nada que nos faça melhor do que esse tipo de choques. Que nos obrigam a reagir. Em vez de estarmos comodamente no mesmo sítio.

NP – Saint François Xavier, não era?

CP – Era o nome da minha escola. Nas idas a Paris do meu pai, íamos ao cinema. Via filmes que não eram para crianças. Eric Rohmer e Nicholas Ray, gosto por causa do meu pai.

 

Tratou-a sempre como adulta?

CP – Sim. 

NP – Eles ficaram todos cinéfilos, no sentido exacto do termo: o gosto em estar no cinema a ver um filme.

 

Tinha uma parte de família convencional, com os Natais e as festas na escola?

CP – Sim, e com os meus avós. Era uma coisa importante, as férias em Vila Viçosa com os meus avós. Vila Viçosa tornou-se “a terra”. Foi onde o meu pai nasceu, onde o meu avô foi presidente da câmara. E isso leva-nos a outra coisa: ao sentido de comunidade. Se alguma coisa passa na família, é esse sentido de pertencermos a uma comunidade, de não estarmos aqui sozinhos.

NP – Todo o tempo em que o meu pai não estava a trabalhar nas pedreiras – era engenheiro de minas – ia para a casa do povo. Não interessava se eram fascistas ou não; era um homem totalmente dedicado aos outros.

CP – No funeral apareceram pessoas que não conhecíamos de lado nenhum e que diziam: “O seu avô emprestou-me dinheiro para comprar uma bicicleta. Graças a isso consegui ir trabalhar para a pedreira de não sei das quantas e sustentar a família”. 

 

O avô é uma figura fundamental na família?

CP – Fundamental.

NP – O Paulo está sempre a falar nele. Era muito sereno. Mesmo no período do divórcio, nunca… Estávamos a tratar de uma separação litigiosa, de pessoas e bens, que dividiu os nossos amigos; uns defendiam a Helena [Sacadura Cabral], outros defendiam-me a mim. Depois, felizmente, o juiz declarou que as culpas eram iguais. O meu advogado era o Jorge Sampaio. Foi a minha primeira fuga ao casamento católico…

 

A maneira como fala do seu divórcio, é como se ele fosse vivido por toda uma geração, sobretudo por aqueles que tinham uma formação católica.

NP – Isso está bem documentado no filme sobre o Nuno Bragança.

CP – “O homem que dava pulos”. Ah, não vi.

NP – O Frei Bento [Domingues] diz que passa por uma série de casais católicos uma grande perturbação É numa altura em que começam a casar os padres!, o que é uma coisa estranha: só eles queriam casar, nós queríamos descasar! Os famosos padres progressistas, os católicos progressistas... Estávamos no mesmo grupo com o Pedro Tamen, o Nuno Bragança, a Helena Vaz da Silva.

CP – Mas eu não fui baptizada.

 

Porquê?

CP – A minha mãe achou que havia duas coisas que eu devia fazer quando eu achasse. Baptizar-me e furar as orelhas! Furei as orelhas mais tarde, mas não me baptizei.

 

Tudo isso tem que ver com a escolha. É outra atitude em relação aos filhos.

NP – Curiosamente a Margarida esteve no Graal, (aquele grupo a que pertencia a Maria de Lourdes Pintasilgo).

CP – Sempre nos foi atribuída uma grande porção de responsabilidade na nossa vida. [virando-se para o pai] É verdade, isto. Nunca houve na minha educação – e na dos meus irmãos também não – o momento: “Se tiveres boas notas tens uma bicicleta”. Era: “A tua obrigação, no mínimo, é teres boas notas”. 

 

O que é que aconteceria se incumprissem?

NP – Tu tiveste más notas numa certa fase.

CP – No Liceu Francês. Eu já sabia o que é que queria e desleixei imenso as disciplinas de ciências; aquilo não me interessava nada.

NP – E o passo seguinte, isso é que eu tenho na cabeça…

CP – O que é?

NP – Quando a Catarina diz…

CP – Que ia fazer chapéus?

NP – Não. Embora as duas coisas estejam ligadas. É quando ela diz: “Não vale a pena porem-me na universidade”.

CP – A mãe até hoje… [gargalhada]

NP – A mãe tem essa atravessada, mas eu não tenho. Achei que a Catarina tinha uma cultura tão evoluída para a idade, que a universidade…

CP – Isso é a história da leitura. Quando fui cortada dos meus amigos e fui parar a Paris, embora tivesse os meus primos, comecei a ler em francês e descobri que havia livros incríveis. Basicamente, a minha actividade entre os seis e os 16 anos – que foi quando comecei a namorar – foi ler.

 

Numa das fotografias antigas que nos cedeu, está enfiada a ler, numa cadeira, e todos à volta estão a fazer qualquer coisa.

NP – À volta dos teus 14 anos, 15 anos, comecei a ver que tinhas uma enorme apetência por coisas de carácter artístico, romanescas…

CP – A verdadeira razão por que não fui para a universidade foi por causa das médias do Liceu Francês. São muito mais baixas.

(NP – Ela é mais ou menos do ano da Inês de Medeiros.

CP – A Inês é um ano mais velha). Não tinha média para entrar em História de Arte na Universidade Nova.

 

Porquê os chapéus? Numa família de intelectuais, não é a escolha mais obvia…

CP – Acho que foi o meu gesto de rebeldia.

NP – Sempre gostou muito de moda.

CP – Ainda fiz testes para a St. Martin’s, em Londres. Desisti dos chapéus porque não me interessava nada essa parte da criatividade da moda. Do que eu gostava era da actividade manual. Sempre adorei bordar. A minha avó ensinou-me a fazer tricot. Quando se está a coser, por exemplo, quando se tem uma actividade repetitiva, quase monótona, isso deixa a cabeça muito à solta. Para pensar, para ter ideias. E gostava muito dos chapéus da minha avó. Outra coisa: o marido da minha mãe é um coleccionador de objectos e de arte. Sempre cresci a ir com o Afonso aos antiquários. E ia aos livros perceber o que tinha visto. Quis ser arqueóloga e antiquária.

 

De certo modo, as duas estão presentes no que agora faz, ainda que as buscas, as pesquisas sejam outras.

CP – É incrível olhar para trás e perceber que estava lá tudo! Eu queria ser arqueóloga e antiquária, mas tinha a certeza que ia acabar em arquitectura. Inventando umas distracções, digamos, mas era óbvio que a coisa ia acabar ali. E depois, afinal, não foi.

NP – Ela tem uma grande propensão para descobrir aquilo a que os economistas chamam nichos. Os chapéus eram um nicho. Eram uma coisa em decadência completa.

CP – Eu sabia que se aprendesse as técnicas de chapelaria com as duas últimas modistas de alta costura de Lisboa, ia ser a única pessoa em Lisboa a saber fazer chapéus. Trabalhei com a Dona Virgínia (da Laura Sobral de Sousa) e com a Maria José que fazia os chapéus do Ayer. 

 

Tinha a preocupação de ser autónoma?

NP – Foi viver com o Miguel, na casa que era minha.

CP – Fui muito sossegada, mas aos 16 deu-me uma rebeldia.

NP – Expliquei à mãe: “Deixa-a ficar aqui”. Onde é que eu estava?

CP – No Porto. Foi tudo combinado entre a minha mãe e o meu pai.

 

Porquê essa rebeldia? Era o desejo de quê?

CP – Fiquei com uma pressa muito grande viver. Lembro-me de olhar para o mundo e de pensar: mas que estranho. Isto tudo é tão pouco consequente, ao contrário dos livros.

 

Apaixonou-se aos 16? Pelo menos começou a namorar aos 16.

CP – Também.

NP – Era o Jorge, não era?

CP – Foi o Nuno, depois o Jorge.

 

Nuno…

CP – Também se chamava Nuno, é verdade [risos]. Mas a minha vida não foi nada facilitada. Fiquei a receber a pensão de alimentos que o meu pai dava à minha mãe e a minha mãe pagava-me o passe e os almoços do liceu. “Ai é, queres ser independente? Então vai lá experimentar”. O meu irmão Miguel obrigava-me a pagar a minha parte das despesas. Não tinha um tusto. O meu único luxo era comprar a Marie Claire francesa uma vez por mês.

NP – Depois foste para O Independente.

CP – Tinha acabado o liceu e queria ir para fora. Para Lovaina fazer História de Arte ou para St. Martins fazer chapéus.

 

O “não vou para a universidade” tinha sido um statement inconsequente?

CP – Eu não queria ir para a Universidade em Portugal. Foi uma atitude um bocadinho snobe… Entretanto aconteceu O Independente. Comecei a dar ideias e o meu irmão Paulo disse: “Faz tu”.

 

Como era a sua relação com o Paulo?

CP – Óptima. Passámos férias muito divertidas em Vila Viçosa, construíamos cidades inteiras! Talvez por termos um pai urbanista. Fazíamos prédios, ruas, praças, cinemas… Desenhávamos os edifícios em papel e colávamos sobre cartolina.

NP – O Paulo fazia jornais desde pequeno. Sempre desenhou muito. É muito minucioso a fazer e a pensar as coisas dele. Suponho que foi uma das razões por que se revelou um ministro eficaz. Nunca fez a tropa, foi Ministro da Defesa e deu-se bem com os generais e os coronéis. Consideraram-no sempre. Até pessoas que não concordavam com ele, e que eram meus amigos, diziam: “O teu filho é uma surpresa… Quem diria que ele conhece os dossiers dos militares e discute como se fosse um militar?”. Para mim não era surpresa porque eu já sabia que ele era um trabalhador incansável. Podia-se discordar das ideias dele, mas tinha-se admiração por ele. O Miguel também, mas o Miguel é mais disperso.

 

Porque é que saiu d’ O Independente?

CP – Como sempre li muito, escrever era muito fácil. Nunca pensei nisso como uma profissão. Queria uma coisa que me desafiasse mais. Era um sítio onde me sentia demasiado protegida. Tinha um irmão director, um namorado director gráfico, vários amigos. Estava demasiado amparada.

NP – Já vamos na terceira reviravolta da Catarina. Que ela toma por ela. Está sempre a pensar no passo seguinte. Não se acostuma.

CP – Foi sempre um problema na minha vida não tolerar a rotina. Mas isso tem a ver consigo…

 

Por ter aprendido a viver neste carrossel?

NP – Sempre fiz muitas coisas. De arquitecto propriamente dito, depois de investigação (que era uma coisa que não se fazia na arquitectura), depois voltei à escola onde me tinha formado; fiz concurso para entrar, porque, por razões políticas e outras, nunca entraria na escola. Estranhamente entrei. A PIDE não levantou problemas.

 CP – Lembro-me de a PIDE ir lá a casa. Lembro-me das botas, e de haver um grande nervosismo. A minha mãe disse que me ia levar à escola. Havia umas listas do Miguel e a minha mãe pegou nelas e meteu-as atrás do contador.

NP – Suponho que iam atrás de documentação do Miguel. Que era dirigente da UEC.

CP – Embora menor.

NP – Talvez também atrás de mim. “O senhor está aqui acusado de ter ido clandestinamente a Cuba”. “Não, tenho muita pena, mas não fui”. E dizia-me o pide: “Talvez seja melhor o senhor corrigir e não dizer que até tinha pena…”. [gargalhada] Este sinistro homem foi o que matou o [Humberto] Delgado. Chefe Tienza. Foi o executor. Era de Elvas. Foi escolhido por conhecer muito bem o território do lado de lá da fronteira. Foi a minha única experiência directa com a PIDE. O resto era no aeroporto, “dispa-se”, livros, tirar o rolo da máquina fotográfica, essas coisas.

CP – Onde é que íamos?

 

Na terceira revolução da Catarina.

NP – A Catarina muda não por uma questão de inconstância mas no momento certo em que pode mudar. “É disto que vou fazer a minha vida?” A Catarina não diz isso. “Agora vou fazer isto, e depois logo se vê”.

CP – Mas levei o jornalismo muito a sério.

NP – Ela fez coisas, para a idade dela… As entrevistas que ela fazia na Marie Claire… Por exemplo, ao Siza.

 

Mandava as entrevistas ao seu pai para ele ler e dizer se gostava?

CP – Não. Mas a entrevista ao Siza foi um bocadinho cunha do meu pai… Quer dizer, não foi cunha, mas quando liguei ao Siza, o Siza sabia que eu era filha do meu pai.

NP – A melhor entrevista que o Siza deu.  

 

Tinha o desejo de que o seu pai aprovasse as coisas que estava a fazer? No fundo, que a admirasse.

NP – Sempre tivemos uma grande admiração mútua – mas isso também com os irmãos. Segundo, uma confiança nas escolhas sucessivas que o outro ia fazendo – mesmo quando me cheira “isto vai dar gato”. Mas não faço disso um drama.

CP – Havia essa história de o meu pai nunca estar. Mas sempre que eu quisesse ligar, falar, estava sempre presente, disponível. E sempre me ouviu. Não criticou antes de ouvir.

NP – Raramente critiquei. Num caso ou noutro posso ter dito: “Cuidado”. Faço umas voltas…

CP – Nunca, nunca disse: “Que disparate imenso, isso é uma asneira”. Era de um modo muito subtil: “Mas tens a certeza?”. É aberto.

 

Há poucos anos, trabalhou num documentário sobre a obra do atelier de Teotónio Pereira. O que implicou trabalhar sobre a obra do seu pai.

CP – Soube que ia ser feita uma exposição no CCB e propus-me, com a Joana Cunha Ferreira, fazer os filmes dessa exposição. Trabalharam juntos durante anos.

NP – Dezassete.

CP – Tinha um enorme interesse por arquitectura.

 

Como se estivesse à procura do pai de outra maneira? Era outro olhar, outro ângulo.  

CP – Claro que houve isso. Mas eu já tinha tido um momento assim quando fiz um livro com a Helena Torres,“Olivais: História de um Bairro”.

NP – [As torres dos Olivais] foram os meus primeiros projectos com o Teotónio quando saí da escola.

 

Quando vai à Igreja do Sagrado Coração de Jesus, prémio Valmor em 75, olha para ela como uma obra do seu pai ou como uma peça de arquitectura?

CP – Olho para aquilo como uma peça de um atelier. Mas há coisas que sei reconhecer de onde vêm… A utilização do mármore, por exemplo. O meu avô, uma das coisas que fez foi desenvolver a indústria do mármore em Vila Viçosa. Filmámos uma conversa entre o meu pai e o Teotónio e isso iluminou-me uma série de coisas na vida do meu pai e no meu entendimento da arquitectura.

 

Porque é que não era importante para si, e ainda muito novinha, ter a opinião do seu pai acerca do que fazia?

CP – Mas perguntava! O meu primeiro texto publicado foi…, como é que se chamava a revista, pai?, aquela de urbanismo que o pai tinha?

NP – Ah, era a Cadernos Municipais. 

CP – Escrevi uma redacção sobre uma cidade – não se lembra? E o pai achou muito gira! (tão querido, tão babadinho…) Eu tinha 12 ou 13 anos e ele publicou! Mas sempre tive um certo receio… Só não submeti mais vezes as coisas à aprovação porque tinha receio. O meu pai é um hiper-crítico.

NP – Quando foi o livro de Goa, li [a primeira versão]. Fiquei preocupado porque achei que estava um pouco desleixado.

CP – Desleixado? A utilização desse adjectivo é o quê? [risos]

NP – Já se passou há muitos anos. A tua mãe dizia o mesmo. Não era bem desleixado. Era a história, talvez…

 

Muda um trabalho quando o seu pai diz uma coisa destas?

CP – O meu pai apontou-me coisas, e eu não estava muito de acordo. Ouvi-o. Não quer dizer que tenha mudado. Hoje percebo melhor a crítica dele do que percebi na altura [em relação ao livro de Goa].

 

Discutiram muito a vida toda?

NP- Nós rimos.

CP – Temos opiniões muito diferentes uns dos outros.

 

Essa é a imagem que se tem da família Portas.

CP – Mas nós não discutimos! Há uma abertura de espírito muito grande. Estamos sempre prontos a aceitar que os outros tenham ideias diferentes, e essas ideias podem ser discutidas. Não quer dizer que discutamos uns com os outros. Antes de qualquer outra coisa, somos esta entidade-família.

NP – Como no Alentejo. A minha família, o meu pai, os meus irmãos, sempre funcionámos como um clã que se auto-protegia. Apesar das diferenças. O meu pai era dirigente da União Nacional. Era um salazarista convicto. Nunca ganhou nada na vida com isso. Era mais uma das dedicações que tinha à causa pública. O meu irmão esteve quase um mês em Caxias e ele não meteu cunhas para o libertar. E um dia, já tarde, disse-nos: “Vocês tinham razão numa coisa e é a única crítica que faço ao Salazar. Não ter deixado discutir a questão colonial”.

 

Significa que esta diversidade…, e esta trapalhada – vamos dizer assim – já vem de trás?

CP – [risos] Já, já.

NP- Pelo menos na minha família. Depois há a família da Margarida, os Sousa Lobo. O tio dela foi o chefe de gabinete do Vasco Gonçalves. Nunca foi PC na vida. Simplesmente era muito eficiente e o Vasco Gonçalves era acima de tudo em engenheiro militar. Antes de o MFA ser de tipos muito à esquerda e especialmente do PC, a maioria eram engenheiros militares. Isso explica muita coisa…

 

Lembra-se de ouvir estas histórias deste sempre? Ficava, como agora, a ouvir atentamente e a aprender?

CP – Divirto-me muito, porque o meu pai conta histórias extraordinariamente.

NP – Encaixo muitas histórias umas nas outras e a dada altura já não sei onde estou.

 

Não teve a sensação de estarem todos ocupados com a política, com as grandes questões, e não lhe darem atenção a si ou aos seus assuntos?

CP – Não. Nas viagens para Vila Viçosa – que eram um clássico das nossas vidas – aquilo era: o meu pai ao volante, o Miguel, o Paulo e eu. E eles não se calavam!, a discutir política, nhonhonho, e eu ouvia. Eu tinha menos actividade política do que eles, para não dizer nenhuma. Aliás, acho que fiquei vacinada.

 

Para o Miguel e o Paulo, era uma maneira de se digladiarem?

CP – Sim. Mesmo agora, quando estamos juntos, estamos sempre a falar uns em cima dos outros.

 

Tinha vontade de participar? Era uma maneira de se fazer ouvir.

CP – Nunca acreditei muito na política. Não da forma em que os meus irmãos acreditam. Acho que as pessoas devem ter uma atitude política, mas a actividade partidária nunca me seduziu. Quando cheguei aos 20 anos, o Cavaco estava no poder. Nada daquilo me parecia interessante.

 

Nesse campo e noutros, não sentiu a pressão do apelido? Não sentiu que tinha de honrar o apelido Portas? Era um exemplo de excelência.

CP – Nunca dessa forma – honrar o apelido Portas. Os meus irmãos ainda não tinham entrado na vida pública. Mas sim, havia o exemplo do meu avô, do meu pai. Não tenho um especial respeito pelo dinheiro. Isso vem do meu pai.

NP – Sempre vivemos com o justo.

CP – Obviamente precisava de dinheiro para viver, mas nunca tomei decisões na minha vida em função de: vou ganhar muito dinheiro.

NP – Acontece assim: quando ganhamos mais dinheiro ficamos tão admirados que procuramos gastá-lo depressa!, [risos] em coisas que há muito tempo sonhamos fazer. Seja na política, seja na cultura há um elo comum nisto tudo: um certo sentido de militância, às vezes até excessivo. As pessoas podem não entender. “São chatos, estão sempre com estas coisas”.

CP – Ele é muito inquieto e irrequieto. Herdámos todos do meu pai esta enorme curiosidade sobre o mundo, e a vontade de o pensar e comunicar isso. De alguma forma, essa é a nossa matriz.

 

Reconhece-se nisto?

NP – Eu nunca estive ligado a uma ideologia política dura, como o Miguel se ligou ao PC, ou o Paulo na fase em que andou a estudar todos os teóricos do pensamento liberal. Tirando a militância católica, que era mais ética do que de ideológica política, em vez de ter crescido em dogmatismo, fui perdendo o dogmatismo. Fui ganhando um sentido relativista. Nesta altura não tenho nenhum absoluto do ponto de vista político e social. Tenho aquilo a que o Giddens chamaria um pensamento reflexivo. Estou sempre a fazer o feed back, a voltar atrás. Não tenho dogmas. Nem do ponto de vista social, nem estético, nem urbanístico. O que faz com que as pessoas desconfiem, pelo facto de eu ter muitas dúvidas. Não é por ter muitas dúvidas: é por assumir a incerteza. Como lidar com a incerteza?, é a minha preocupação teórica em matéria de urbanismo de há dez, quinze anos para cá.

 

Na prática é: como viver na instabilidade?

NP – No fundo é. A instabilidade é uma condição.

CP – Sempre foi, nas nossas vidas.

NP – É uma condição e não um azar, um falhanço. São escolhas que se vão fazendo. Significa também que hoje a sociedade é mais individualista do que colectivista. Que os modos de vida são mais diversificadas, e eu aceito isso. Isto é uma vida de uma instabilidade consentida, mental, física, monetária. Ao fim de 50 anos, vivo da reforma. Os meus colegas enriqueceram. Eu nunca enriqueci. Mas não me queixo. Eles [os filhos] é que podem ter perdido com isso, porque agora podia dar-lhes dinheiro e não tenho. Mas também se habituaram a viver sozinhos e por conta deles. É raríssimo pedirem-me dinheiro. Num caso ou noutro, numa aflição, já se sabe que se pode contar com isso e que eu arranjo mais facilmente do que eles. 

 

Foi assim com o seu pai?

NP – Para o bem e para o mal, é igual ao que era com o meu pai. Eles não se têm dado mal com isto. Não me criticam por isto.

 

Porque é que nunca teve sentimentos de culpa? Olhando para este quadro seria fácil pensar que teria sentimentos de culpa.

NP – Como o resultado não foi um desastre… [riso]

 

Mas quando eles eram pequenos não sabia qual seria o resultado. E disse no começo da entrevista que não sentia culpa.

NP – Pois não, não sabia. Pisei o risco. E aí, foi uma sorte a Catarina ter tido a mãe que teve, ou o Paulo ter tido a mãe que teve.

CP – Ele era mais inseguro.

NP – Já o Miguel teve de se aguentar mais sozinho porque viveu comigo. Mas ganhou logo o conforto de um partido que era uma espécie de super-mãe! Uma super-mãe dura.

 

Não teve uma grande dúvida sobre se seria um bom pai?

CP – O meu pai tornou-se muito mais atencioso à medida que foi envelhecendo. Começou a ligar mais frequentemente, a ficar mais preocupado.

NP – Quando decidi ir viver com a mãe da Catarina, estava a auto-excluir-me da Igreja. Para um católico de toda a vida, de colégio de jesuítas, foi um acto muito difícil. Seguramente, aí tremi nas decisões. Foi inseguro, fui imaturo. Tive muita sorte, encontrei pessoas que me ajudaram e sem as quais não teria podido fazer o que fiz. Nem sair das fronteiras, nem ter feito as obras que fiz como arquitecto e investigador, e o que fiz como professor (que é o que valorizo mais). Mudei tanto de vida, de job, e com risco, como a Catarina.

 

Onde se reconhecesse nela é sobretudo nessa procura?

NP- A Catarina já é o começo da geração que faz auto-educação, que deve menos aos pais do que aquilo que lhes parece.

 

Em que é que se sente que é absolutamente filha do seu pai – que a marca está lá?

NP – É melhor eu ir-me embora… [levanta-se e vai embora]

CP – Em termos físicos, tenho as sardas do meu pai (temos todos). E as olheiras. As minhas decisões são sempre viradas para: “Em que é que me posso enriquecer intelectualmente com isto? O que é que posso aprender? Em que é que isto é excitante?”. Isto tem imenso a ver com a cabeça do meu pai. Ele adora pensar. Assistimos à última aula dele e foi incrível. Para ele, falar de arquitectura nos anos 50 é falar do Rossellini, como é falar do jazz… consegue entrançar isso tudo. A música e o cinema também vieram dele. Foi o meu pai que me fez ouvir o “The River” do Bruce Springsteen, no walkman dele.    

 

E as vossas zonas de tensão?

CP – Não tive os conflitos com o meu pai que tive com a minha mãe. Com a minha mãe eu estava todos os dias. Quando as pessoas crescem, para perceberem quem são, têm de se opor a alguém. Como não estamos tantas vezes juntos quanto gostaríamos, queremos tanto gozar os momentos em que estamos juntos, que passamos por cima de alguma coisa mais susceptível. Acho que se passa o mesmo com os meus irmãos.

 

Têm uma relação íntima?

CP – Falamos mais de ideias do que das nossas intimidades. Tanto eu como o meu pai e os meus irmãos. É verdade que às vezes até falamos com algum pudor. Estar menos tempo com uma pessoa não quer dizer que a relação é menos rica – pelo contrário.

 

[Nuno chega]

 

Estava a perguntar à Catarina se têm uma relação íntima?

CP – Agora vou eu! [e sai]

NP – Não tanto. Nem com os irmãos. Não é um problema de ser rapariga. Pode ser acanhamento. Há coisas que não se perguntam. Há muitas coisas da vida da Catarina acerca das quais não tenho a mais pequena ideia. Nem quero saber. Não ando preocupado com isso. Se for importante e se quiser contar, ela conta. E eles também não me fazem perguntas sobre a minha vida íntima.

 

[Catarina volta]

 

Falam muito?

CP – Sim. Sempre que o telefone toca à uma da manhã eu sei que é ele. Por causa da distância, falamos muito ao telefone.

NP – “Viste o que disse o Paulo hoje?” – coisas deste género.

CP – O meu pai está sempre em trânsito. Não sei como ele aguenta! Eu não aguentaria. Apanha para aí três aviões por semana.

NP – O Miguel também se mexe muito. O pior é o Paulo. Mas é tudo cá dentro, de feira em feira! – como lhe chama a malta!

 

 

Publicada originalmente na Revista Pública, em Março de 2009

 

 

 

 

   

 

 

 

 

Costiera Amalfitana

28.12.20

Nao havia rosas em Paestum. Mas a Primavera despontava nas colunas do templo de Neptuno. 

Tento imaginar quantas pessoas seriam precisas para abraçar uma coluna, se as colunas pudessem ser abraçadas. Não podem. Uma cerca de madeira protege os templos, barra o acesso. Porém, a vegetação irrompe por entre a pedra carcomida, e isso é visível do sítio onde estou. Os templos impõem-se na extensão de terra plana, com o mar à esquerda e os montes à direita, como uma pessoa majestática. 

Parece que o poeta latino Virgílio fala das rosas de Paestum. Nunca li a Eneida e não era o perfume das rosas que perseguia. Só mais tarde soube da riqueza do húmus, das rosas que seguiam dali para Roma. O meu enredo era o dos templos. Comecei a viagem rumo à costa amalfitana em Paestum por causa dos templos, e não das rosas. A Primavera estava a despontar. Davam chuva para o fim do dia.

Quando se olha para o mapa, Paestum (diz-se "pestum") fica uns 80 quilómetros a sul de Nápoles. Primeiro apanha-se uma auto-estrada que parece a estrada nacional 1 até Salerno. Na fila que antecede a portagem, comprei uma gravação pirata do Pino Daniele. Há Paolo Conte? Não. Então Pino Daniele. Cinco euros. O gamanço começava. O esquema era ilegal, mas consentido.

Depois segue-se por uma estrada nacional, ignora-se a construção alarve, põe-se a cabeça de fora para perguntar: Paestum? Sempre em frente. Espreitam das casas anúncios a mozarella de búfala. Gente que trabalha o campo faz pausa para almoço. Vendem-se alcachofras, belas como rosas, na beira da estrada. Sempre em frente. Quando se avista o primeiro dos três templos, esquece-se a demora. 

A Magna Grécia passava por ali. Paestum ou Poseidonia. Em honra do deus Poseidon. O maior dos três templos é-lhe dedicado. A cidade foi erguida no século sexto antes de Cristo. Há vestígios de um anfiteatro, casas e quartos e salas, o fórum, a piscina. Um vaso soberbo relatando o mito O Rapto de Europa e outros artefactos expostos do outro lado da rua, no museu. Frescos elegantes.

Os mais famosos revestiam a tumba do mergulhador. Ficaram assim conhecidos por causa do mergulho na eternidade das águas - especulou-se - do seu protagonista. Estado impecável. Outro fresco retrata cinco homens num banquete, dois amantes trocam carícias, um terceiro observa-os com ironia, os outros olham na direcção oposta.        

Os guias apontam os factos importantes: cidade portuária, seis quilómetros de extensão, posição geográfica privilegiada, amostra do esplendor helénico. Goethe visitou-a na sua célebre Viagem a Itália, escrita em jeito de diário.

Tenho a página aberta no dia 23 de Março de 1787. "Sem saber bem se andávamos sobre rochedos ou ruínas, distinguimos algumas grandes massas alongadas e rectangulares que já tínhamos notado à distância, e verificámos serem os restos de templos e monumentos de uma cidade em tempos rica". Paestum havia sido descoberta há poucos anos quando o poeta alemão a visitou. 

Vendem-se em todas as línguas livros com o antes e o agora. Vendem-se as coisas que se vendem junto a parques arqueológicos - tralha. Do que não se fala: do solo liso como uma folha, revestido a verde. Das fileiras de ciprestes e pinheiros. Dos sardões pequenos, com a cauda mais verde do que o corpo, que atravessam o caminho. Do dourado das colunas dóricas sob a luz das duas da tarde. 

Subi pela litoreana. Uma estrada que acompanha o litoral, como o nome indica, frequentada por prostitutas e camionistas. No Verão deve ter enxames de banhistas, pessoas que apanham barcos com a facilidade de quem apanha o autocarro. O mar estaria ao alcance da mão, não fossem as árvores entrelaçadas. É uma linha quase recta, antes do famoso serpenteado da costiera amalfitana. A planura acaba-se uma vez que se passa Salerno, a grande cidade. 

A palavra costiera dá mais do serpenteado, e soa bem. Por costiera amalfitana entende-se o percurso entre Salerno e Sorrento, 50 quilómetros. A primeira coisa que impressiona é que a terra seja tão fértil e que tenha um corpo tão bravio. Marcas de um solo vulcânico, rente ao Mediterrâneo. O Vesúvio, que submergiu em lava Pompeia e Herculano, mas que não chegou a Paestum, não se vê deste lado da costa. Mas na baía de Nápoles vê-se de todo o lado. Até chegar lá, percorre-se uma estrada de precipícios, caprichosa. 

O Pino Daniele já se calou. O disco chama-se La grande madre e não ouso dizer que é la grande porcaria. Mas anda lá perto. Uma réstia de respeito pelo compositor do E po che fa amolece-me a sentença. Digamos que a guitarra eléctrica, tão pirosa quanto o cabelo cor de palha do Pino, me desconcentra. E o tom napolitano, pigarreado, passional, não vai bem com a paisagem. Volto a encontrar-me com ele nas ruas imundas do centro histórico. 

Nápoles não se parece com nada, a não ser, em certos traços de carácter - o orgulho, o mistério - com Palermo. São como duas primas que partilham uma herança familiar, mas que assumiram naturezas distintas. As costas, também. O Etna, o vulcão siciliano a que Homero chamou "monte ígneo" (num tempo em que se usavam palavras como ígneo), é desmesurado e arruma com o Vesúvio a um canto. É nas imediações do Etna que fica na Odisseia a Riviera dos Ciclopes, e no mapa Taormina, com a sua beleza irreal. Mas a costa parece-me menos acidentada do que esta que agora atravesso, de carro, rumo a Sorrento.

A costiera amalfitana lembra-me um amante que não se rende. Requer tempo e persistência. Obriga a caminhos sinuosos para chegar ao seu âmago. Enfeitiça por ser insolente, e por ser tão bela, é claro. 

Já a conhecia vagamente do mar, dos barcos grandes como carreiras, que ligam as localidades que têm mais de doze habitantes. No Verão de há dois anos conheci-a num barco pequeno, junto a Positano. (Obrigada, Raffaella!) Não tenho ideia de alguma vez ter visto um azul assim. Um azul cobalto? Às vezes safira? Um azul que reflectia o sol de Agosto e que chamava para o mar.

Nesse Verão, eu ainda não sabia nadar. (Agora sei nadar cinco metros. No próximo Verão espero ter coragem para saltar para a piscina.) Em todo o caso, não era preciso saber nadar para saber que nadar naquele mar é o paraíso. Os turistas endinheirados que congestionam a costiera durante o Verão acham o mesmo. Sendo que nadam e saltam para a piscina. E fazem vida de barco, grande ou pequeno, veloz ou nem tanto.

As praias têm a extensão de uma toalha de praia e a areia é escura e tem calhaus em vez de areia. Outras são recônditas, de acesso difícil; prometem ser mais macias, mas se calhar é só a sugestão da água transparente. O que não vi: um areal digno desse nome, como o que conhecemos das praias portuguesas.

A perspectiva da costiera é completamente diferente quando se está nas alturas. Começa-se a subir logo depois de Salerno. Vêem-se casas de cores cálidas (pêssego, terracota, amarelo), escadas no lugar de ruas (é assim em Positano). Cúpulas de igrejas, mosteiros, torres de vigia. Miradouros onde mal cabem duas pessoas e um carro. Intermináveis campos de limões. Jardins de glicínias. E uma assombrosa sequência de mar, penhascos e vida em estado bruto.

Há aldeias tão pequenas que não aparecem no mapa. Celebra-se a chegada a Amalfi como se se chegasse a uma grande metrópole (é verdade que foi uma grande potência, antes de ser destruída por um tremor de terra, no século XIV; mas hoje é uma cidade mínima). Segue-se a placa que diz Ravello e começa-se a subir a pique. Há outras placas e informação contraditória. A distância estará entre os cinco e o oito quilómetros. Não importa porque parece bem mais. Como se fossem os nossos joelhos e não o carro a fazer o esforço da subida.

Porque é que toda a gente vai a Ravello? Porque de Ravello se vê o mundo. Eu não vi, mas vi ver. Ou ouvi dizer. Em Ravello já era evidente que a previsão meteorológica estava certa. A única incógnita era a hora a que o manto cor de chumbo chegaria a Sorrento. (Nessa noite acordei com o trovão. Parecia que a Terra e todas as aldeias da costa se iam desmoronar.)

Ravello tem vistas para as quais não há adjectivos. E talvez por estar tão no cimo do mundo parece inexpugnável. Os guias estão cheios de nomes famosos que a escolhem. No Lonely Planet pode ler-se que era o "playground" da Jackie Kennedy. Que Gore Vidal passa lá uma parte do ano. O coração da casa, partindo do princípio que as vistas para a costiera são o terraço, é a piazzeta. Tão adorável quanto a piazzetta de Capri. E como esta, ocupada por esplanadas onde se assiste ao cortejo de pessoas bonitas.

Pedi uma água San Pellegrino, que é capaz de ser a melhor água do mundo. Eu só preciso de beber San Pellegrino para me sentir em Itália. Além de que é um prazer fácil de sustentar.

O gamanço institucionalizado é uma praga que assola a costiera, sobretudo nos meses de Verão. Um capuccino custa o preço de um espumante. Um bilhete de barco, quinze minutos, entre Sorrento e Capri, custa 15 euros. Um bed and breakfast modestíssimo custa, 70/100 euros. Ficar depenado três dias depois de chegar é comum.

O outro gamanço é um modus vivendi, sobretudo em Nápoles. Notas falsas, é mato. No caso de receber uma, siga o conselho dos locais: pague com ela na vez seguinte! É favor não interromper a cadeia. Contas saldadas. (Na véspera, em Nápoles, perguntara à recepcionista do hotel se era seguro deixar o carro na rua, de modo a poupar a fortuna que pediam pelo parque. Ela olhou-me com uma expressão que estava entre a piedade e o divertimento: "Aqui roubam-nos". Não era a primeira vez que estava em Nápoles, nem sequer a segunda; mas era a primeira em que usava um carro.)

Para arrumar já a questão: se não é um condutor excepcional, NÃO se atreva a guiar um carro em Nápoles. E mil cuidados na costiera. A ultrapassagem (conhecem o filme de Dino Risi Il Sorpasso?) é um exercício potencialmente perigoso. Os napolitanos guiam como vivem: transgredindo. São sobreviventes, frequentemente belicosos, transbordantes. O carro é só uma extensão do corpo. Seria até estranho que a condução fosse diferente. Para um alemão, deve ser uma coisa suicidária.

Há um comboio rápido entre Roma e Nápoles (demora apenas uma hora e dez), barcos de meia em meia hora para todo o lado, autocarros e comboios (entre Nápoles e Pompeia, são 20 minutos).

E há vespas. E famílias inteiras empoleiradas em duas rodas, e playboys como nos filmes, e mafiosos como nos filmes, e pessoas com a pele curtida pelo sol e pela vida agreste. É normal não usar capacete e contar com a complacência da polícia. É normal buzinar, esbracejar, praguejar. Como num interminável dia de Verão.       

E agora Sorrento. "Quando quero escrever palavras só me vêm imagens aos olhos, da terra fértil, da amplidão do mar, das ilhas olorosas, do monte fumegante, e faltam-me os órgãos próprios para dar expressão a tudo isto". Goethe descreveu as coisas melhor do que ninguém e socorro-me dele para transportar o leitor para a vista do hotel. O monte fumegante é o Vesúvio que já não fumega. As ilhas olorosas são Capri à esquerda, Ischia e Procida na outra ponta do golfo de Nápoles. A fertilidade da terra e a amplidão do mar continuam a inundar-nos os olhos. A costa mantém a beleza hipnótica. Ninguém quer pôr cera nos ouvidos, como Ulisses, para resistir ao chamamento das sereias. Tenho de ler essa passagem da Odisseia para encontrar no texto as coisas que os meus olhos viram.

Para já, o meu guia é a Viagem a Itália.

Goethe ilumina zonas sombrias, cria perplexidades, partilha experiências de todos os dias. Fala dos dramas que por altura da viagem estava a trabalhar. Ifigénia na Táurida e Tasso.

Sobre Ifigénia e o seu sacrifício, uma referência: há um belíssimo fresco no museu de arqueologia de Nápoles, vindo de Pompeia.

Sobre Torquato Tasso: poeta do século XVI, nascido em Sorrento, sangue do sangue de Goethe (confessou este, na velhice). Temeu ter vendido a alma, e por isso fez-se examinar pela Inquisição. Uma daquelas figuras inadaptadas, que sempre procuram o absoluto, como no-lo revela Maria Filomena Molder na introdução à edição portuguesa do texto de Goethe. Os Artistas Unidos encenaram a peça há uns anos, a partir de uma tradução do texto feita por João Barrento.

Tasso está em estátua no centro da vila. Alguém lhe tinha posto flores. A partir da praça que tem o seu nome, bifurcam-se os caminhos. São estradas pedonais e estreitas. As lojas de souvenir vendem cerâmica, caixas de música, tarecos. Vendem limoncello (que dizem ter descoberto). Vendem sandálias feitas à mão. Colares e pulseiras e brincos feitos de coral. E camafeus. Vendem gravatas de seda a preços módicos. Em Sorrento não há Prada ou Missoni. Mas em Capri, sim. Em Sorrento, o sapateiro vai almoçar a casa. Em Capri, vendem as mesmas sandálias ao dobro do preço porque a Jackie, a Brigitte ou outra qualquer dessas levou um par de cada. 

Sorrento tem o hotel mais bonito, pelo menos, da costiera amalfitana. Mas pode ser do mundo. O Excelsior Vittoria acolheu casamentos de aristocratas, cabeças coroadas em férias de Verão, artistas em fase crepuscular (Caruso viveu lá perto do fim). No Excelsior batem à porta e perguntam: "Permesso?". Devemos responder: "Avanti!", como no filme do Billy Wilder. (Avanti é um filme hilariante, rodado na região: não percam). O Excelsior tem um luxo que não agride, objectos art deco que apetece levar para casa, frescos nas paredes, cadeirões onde se passa a tarde a ler. Tem um terraço com uma vista que é o seu maior tesouro.

Ficar no Excelsior custa uma exorbitância. Tomar um bellini com vista para o Vesúvio, não. O jardim tem limoeiros, oliveiras, pinheiros. E de novo glicínias. Não vi rosas. Mas a ladear o caminho havia camélias.      

 

 

Publicado originalmente no Público em 2012

 

 

 

 

Macau

28.12.20

Como é que se diz O Sole Mio em mandarim (ou cantonês)?

O gondoleiro veste calças pretas, camisa riscada, chapéu de palha e fita vermelha. Maneja o remo com destreza, desliza na água azul-piscina. Os passeantes abraçam-se como amantes de Veneza, sorriem, tiram fotografias. Têm uma felicidade atónita, o paraíso é mesmo ali. Talvez lhes falte o sol. O astro-sol, não o “sole”. Mio. Suo. O dia está ameno, com nuvens esparsas, de um branco algodão-doce. Um eterno dia de Primavera.

Talvez o céu seja o mais fictício dos céus, e o facto de as nuvens não nos acompanharem no caminho, não correrem (às vezes as nuvens correm), seja o mais perturbador daquele paraíso. Damos dois passos, três, olhamos para o céu. São duas da tarde, são dez da noite, o cenário mantém-se inalterado. O mesmo céu azul, com as suas nuvens esparsas, que devem ter sido escolhidas para fazer um bom contraste do branco com o azul. Se a intenção fosse a aproximação ao real, o céu seria idealmente limpo, sem a ameaça de nuvens, mesmo que brancas, mesmo que esparsas.

Ali, aquele paraíso, é a Veneza onde os gondoleiros cantam em mandarim (ou cantonês) o clássico que nos habituámos a ouvir por Pavarotti e pelos gondoleiros de braços vigorosos, tatuados, tisnados pelo sol de Veneza. E não é preciso saber como se diz  O Sole Mio em mandarim (ou cantonês, não consegui deslaçar o enigma). Um chinês que vem do fim do mundo, um indiano que vem do umbigo do mundo, um oriental acompanha ciao com um sorriso (muito mais exótico do que Ni Hao) e balança o corpo de cá para lá na altura do O Sole Mio. Os gondoleiros são das Filipinas, da Malásia, de um país pobre, e projectam a voz como um pássaro virtuoso. Cantam a letra toda em mandarim (quem diz mandarim diz cantonês) e O Sole Mio no original. Alguns prolongam-se nos trinados para gáudio da malta que passa (e dos passeantes que pagaram não sei bem quanto para andar de gôndola; se as minhas conjecturas estiverem certas, pagaram mais 20% do que pagariam em Veneza, a vera, a sereníssima.)

Ora aí está uma coisa que não cabe nesta Veneza que venho descrevendo: o adjectivo sereníssima. O epíteto da vera Veneza soa – não falso, mesmo num lugar onde tudo é falso – mas deslocado. Ou mesmo absurdo. Porque na Veneza do Venetian tudo é estridente, bling bling, cacófono. A discrição, o azul aristocrático, a rugosidade que vem com os anos e confere sapiência e distinção – nada disso cabe ali.

Deve ser igual na Veneza de Las vegas. Pelas fotografias, parece. Mas a essa nunca fui.

Se eu fosse Veneza, a vera, a sereníssima, eu ia a Macau exigir direitos de autor. Um americano entenderia isto. Um americano é sensível ao tema dos direitos de autor. Um americano processa por dá cá aquela palha às dez da manhã e conhece a sentença às três da tarde. Assim também eu poria processos por dá cá aquela palha. E se fosse Veneza, acharia duvidoso que me copiassem o palácios dos Doges, a ponte Rialto, o serpenteado dos canais, o ambiente de um quadro de Canaletto.

Mas esperem! Um americano não entenderia isto! Porque um americano copiou isto mesmo para a sua América – ou seja, para Las Vegas. E são estes mesmos americanos que chegaram a Macau e reproduziram ali o que já tinham feito em Las Vegas. O Venetian. Pois, pois.

Como é que se diz o mui portuense “estou p’ra minha vida” (ou um palavrão aceitável) em americano?

Portanto Veneza é quando um homem quiser – pensaram macaenses, americanos, o homem que sonha. E se vou a Veneza quero tudo aquilo a que tenho dinheiro – exigiram milhões de consumidores. Gondoleiro que canta O Sole Mio incluído.E já agora a Cartier e a Prada, as botas australianas Ugg (porque todas as actrizes de Hollywood as usam) e o Kentucky Fried Chicken (porque agora somos muito ricos e convém que tenhamos os problemas de obesidade dos países ricos).

Mas que digo? O Venetian é um entretém que não conta para nada. O centro comercial igual a Veneza, quero dizer. A gôndola é um entretém para casais recém-casados, e é a possibilidade que um miúdo de 12 anos tem de ver Veneza.

-      Já foste a Veneza?

-      Sim, a do Venetian.

Vero. E faz assim tanta diferença saber que aquilo é uma Veneza de fancaria?

Um entretém. O que interessa é o jogo. Macau faz 8.29 vezes as receitas de Las Vegas. Ou seja, Macau faz em quatro dias o que Las Vegas faz em 31. Um casino de Macau faz, por dia, 130 milhões de dólares. Um casino de Macau recebe por dia 80 mil pessoas. As receitas do jogo em 2013 foram de 45.2 biliões de dólares. O que interessa é a massa. Vai dar ao mesmo, mas são coisas diferentes. Joga-se por causa da massa e joga-se porque a vida é um jogo. Talvez não haja desafio maior do que fintar o destino, fazer-lhe xeque-mate de vez em quando. Os deuses, quando não estão do nosso lado, chamam a essa audácia descomedida hybris, e castigam-na. Pecado capital. Mas a Grécia Antiga e as suas tragédias pertencem a outro reportório, além de serem de outra geografia. Pode ser que entrem nesta se alguma vez se lembrarem de reproduzir o Parténon e fizerem casinos debaixo das colunas de mármore rosa. Não é (ainda) o caso.  

O Venetian, antes de mais. É, como todos os edifícios do Cotai, um complexo constituído por três partes: um hotel, um centro comercial e um casino. Os edifícios irrompem como plantas viçosas numa terra fértil. Há centenas de guindastes para onde quer que se olhe. (Já não via tantos guindastes desde a Expo 98.) Não são bem plantados, são mais implantados, os edifícios, as palmeiras, os canteiros irrepreensíveis.

A terra, ela mesma, aparece onde antes era nada. A frase é inexacta porque antes era ali água, água entre ilhas e o aeroporto. Agora há um aterro, um corredor largo que uniu Coloane e a Taipa. Daí o nome: Cotai, mix das duas ilhas. O aterro trouxe com ele o progresso e a construção, o desenvolvimento e a massa. Se o aterro fosse uma pessoa, seria a mais sôfrega que conheci. Assim, o aterro revela a intenção de pessoas, e continuam a ser as mais sôfregas que conheci. Pessoas que querem mais terra, e mais, e mais, e ali inventam o que se parece com um paraíso – para muitos.

Estou em frente ao Venetian e penso que sou uma das 14 mil pessoas a olhar pela janela e a ver o Venetian. Potencialmente uma das 14 mil pessoas. O meu hotel tem sete mil quartos, e se cada quarto tiver duas pessoas, estaremos 14 mil pessoas a olhar para os guindastes e as gôndolas. Potencialmente. Mas seremos poucos, entre os 14 mil, os que têm dois quatros no número do quarto. Um quatro, para um supersticioso, é um signo nefasto. Imaginem dois...

O meu quarto era o 3404 e é bem possível que tivesse sido recusado pelo seu número aziago. Como não sou supersticiosa achei o 3404 uma opção tranquila.  

Convém dizer que não jogo, nunca joguei e acho que nunca jogarei (só não sou mais peremptório no “nunca jogarei” porque pode dar azar, nunca se sabe...). Nunca joguei no computador, nunca tive uma consola, não jogo no Facebook, nem quando me convidam para jogar Mahjong como se estivéssemos num filme do Wong Kar Wai. Se estivéssemos, eu jogaria. Mas na realidade, sem os vestidos da Maggie Cheung e os cigarros do Tony Leung, não estou disponível. Só para amar.

Fui quase todas as noites ao casino, aos casinos, não jogar, ver jogar. Esclareço o plural de casinos: o Cotai deve ser entendido como um complexo de circulação fácil de bens e pessoas. Circula-se entre hotéis, shopping e casinos como se tudo fizesse parte do mesmo parque de diversões. (Tudo faz parte do mesmo parque de diversões.) No meu hotel, quando me dirigia ao pequeno-almoço, passava pela Gucci e pela Rolex, e um pouco mais à frente da sala de refeições, guardado por uns guardas de farda amarela, ficava o casino. Do meu hotel ao Venetian eram minutos a pé, do Sheraton ao Venetian eram minutos a pé, do Four Seasons ao Venetian eram minutos a pé. Tudo ligado por corredores internos, formigueiro onde nada é deixado ao acaso. Artificialidade absoluta. Mas uma artificialidade confortável, onde a música de fundo é Sinatra.

E tudo a funcionar non stop. Um casino é como Veneza: é quando um homem quiser.

Cada hotel tem o seu núcleo de lojas e casino. O Venetian é o Venetian pela sua excentridade. Talvez venha a ser destronado pelo Parisian. Com torre Eifell e tudo, bien sur, quando o Parisian abrir. Não há-de tardar muito, que time is money, pensam os americanos que põem processos por dá cá aquela palha e são sensíveis ao tema dos direitos de autor. Mas para já, O Sole Mio.

Até então, tudo o que eu sabia de jogo estava no filme de Jacques Demy A Baía dos Anjos. Depois daqueles dias em Macau, tudo o que me interessa no jogo está na cara das pessoas que jogam. É uma maneira de continuar dentro do filme do realizador francês; ou seja, na psicologia do jogador. Mas nos casinos do Cotai não há a Jeanne Moreau, com o cabelo de um louro branco e vestidos sumptuosos. Nem havia o glamour do rapaz que a segue, e dança com ela, e lhe empresta cem francos para jogar numa máquina de flippers, o Claude Mann.

No filme ele pergunta-lhe:

-      Porque é que estamos aqui, juntos, neste quarto?

-      Porque é que eu te arrasto como um cão de guarda? Porque me dás sorte. Como uma ferradura.

E neste momento ele parte-lhe a cara, que é o que acontece quando as pessoas estão descontroladas e se portam como idiotas desesperados. Não importa que da janela se visse o Mediterrâneo e o filme de passasse na Côte D’Azur. De que serve Nice?

Não há um excesso visível nos casinos do Cotai. Os jogadores têm cara de pedra, não se vislumbra inquietação. Não têm uma gestualidade exuberante, não beijam as fichas, são silenciosos. É raro ver um pequeno grupo à volta de uma mesa, a excitação sobre as suas cabeças, o som da alegria ou desapontamento. Nessa altura, sabemos que ali se passa qualquer coisa de atípico.

Atípico é melhor do que anormal. Porque normal é tudo, dentro de uma anormalidade que só é anormal para nós e para os nossos códigos. Querer jogar dois milhões de patacas, querer jogar 48 horas é normal. Jogar e respirar não são diferentes. Se se deixar de respirar, morre-se. Se se deixar de jogar, está-se morto. Que sopro é que os alimenta? Para quem joga é ganhar.  

As caras são de pedra, os corpos vão até ao canto mais próximo, beber chá, café, água. Não se consomem bebidas alcoólicas. (“Jogue de modo responsável” – dizem os avisos). Ninguém joga até ficar exangue. Quem são estes jogadores? São a empregada do escritório, o ajudante da oficina, agricultores, professores, farmacêuticos, burocratas, donas de casa enfastiadas, jovens com mais de 21 anos, a nossa avó (que  imaginaríamos pacatamente em casa), o melhor amigo do nosso pai. Pessoas como nós. Vestidas modestamente. Ao mesmo tempo, uma concentração de malas caras e relógios-jóia que não se vê em mais lado nenhum. (Nunca vi tantas malas Chanel ou Hermès como em Macau. Verdadeiras e falsas; sendo que aqui o falso – das malas – é mais verdadeiro que o falso do Venetian).

Há um movimento que me magnetiza, um gesto delicado, feito da esquerda para a direita, com a mão. É um modo de dizer:

- Rien ne vas plus.

Acabaram-se as apostas. A maior parte dos funcionários dos casinos faziam-no banalmente. Sem pose. Coisa genuína. Para mim, constituiu a parte mais bonita daquele cerimonial.

Não me lembro qual era o gesto para

- Faites vos jeux.

Façam as vossas apostas. É uma grande frase, uma porta aberta para a orgia em que o jogo se transforma, mesmo que se trate apenas de uns minutos de transe, aqueles em que dura o lance.

E que jogam eles? Baccarat, sobretudo baccarat. A roleta, a sua elipse que enfeitiça, é coisa para a Jeanne Moreau. Jogam baccarat e poderiam falar, como a Moreau, do fascínio, de uma existência idiota virada do avesso, de luxúria e de pobreza, do mistério dos números. Da sorte. Da felicidade de jogar que não se compara a nenhuma outra, explica ela quando ele lhe pergunta porque é que ela joga.

Como é sabido, em Macau joga-se. Na China talvez se jogue em todo o lado, mas oficialmente só se joga em Macau. O velho casino Lisboa, no velho centro de Macau, tem agora um novo edifício que se vê de todo o lado e que termina com uma flor de lótus. Se a poluição o permitir, vê-se a flor de lótus do Cotai. É raro. A poluição é tal modo pastosa que parece que estamos sempre com óculos sujos ou que o vidro é fosco. Problema sério.

O velho Lisboa ilumina-se à noite. Nos corredores da galeria comercial, depois da recepção do hotel e de um restaurante onde almoçam famílias, vêem-se prostitutas a andar em passo estugado. Andam em par, com um vestido curtíssimo. Muito jovens, impressionantemente jovens. São como bichos que andam em círculos, presas nas catacumbas, para trás e para a frente. Impressionantemente jovens e bonitas, muito bonitas. É a imagem que dói mais.

Fico a olhar para a flor de lótus no cimo do Lisboa. Lembro-me então dos comedores da flor de lótus, os lotófagos, que figuram na Odisseia e na Divina Comédia. As propriedades alucinogénias da planta são conhecidas, mas a mim sempre me impressionou que fosse também a flor do esquecimento, e que alguns dos que a comiam não se lembrassem mais do caminho para casa.

De repente fez-me mais sentido que a flor de lótus seja o símbolo de Macau. A alienação talvez seja a mesma que o jogo convoca. E ambos, de certa maneira, exilam a pessoa de si própria, a fecham na sua adição. Como é que encontram, depois, o caminho para casa?

Desci para o pequeno-almoço às oito da manhã. Era dia de ano novo, decidi comer catorze lichias (prefiro lichias a passas). Eram pequenas e rosadas. Em Portugal era meia-noite e estava a começar o ano novo. O meu 2014, apesar do quatro, será um ano bom. Terá mais oito horas e catorze lichias. Bom jogo à partida.

 

 

Guia prático

Há várias companhias que fazem Portugal-Macau ou Portugal-Hong Kong. Se optar por esta possibilidade, é importante saber que pode apanhar o ferry que liga HK a Macau directamente no aeroporto. É mais ou menos uma hora, num mar calmíssimo; servem uma refeição incomestível, mas a embalagem é engraçada.

A Emirates Airlines está a transformar o Dubai numa central importantíssima para ligar as duas partes do mundo. Às cinco da manhã tem um tráfego de estação de comboios em hora de ponta, mas luxuoso e eficiente. Os voos têm preços muito concorrenciais e os aviões são confortáveis; mas o melhor é o serviço. Simpatia profissional de nota máxima.

O voo está entre as 17 e as 18 horas, qualquer que seja a escala e companhia. Como em Macau são mais oito horas, o jet-lag não é um problema menor. Leve comprimidos para dormir (e não se vicie!). Valem a pena. Senão, os primeiros dias são dias perdidos em termos de energia.

A comida e o táxi têm preços razoáveis, talvez um pouco inferiores aos de Portugal. Mas o espaço é um bem precioso, e o preço dos apartamentos ou dos hotéis é fogo.

Para circular, é indispensável ter um cartão com a morada do sítio onde fica hospedado em cantonense. A maior parte dos taxistas não fala inglês nem faz um esforço para entender o cliente. Na verdade, só em hotéis ou restaurantes voltados para turistas falam inglês.

Todas as ruas, mas todas, têm uma inscrição em português e em mandarim. O mesmo com os estabelecimentos comerciais. A presença portuguesa é visível sobretudo aí. Há um restaurante Vela Latina..., mas serve comida asiática.

O roubo não é um problema sério (exceptuando carteiristas em zonas apinhadas). O crime está ligado, normalmente, a dívidas de jogo.

O que comprar? Pérolas lindas e caras, a dois passos do Leal Senado (um colar pode custar mil euros). Não se pode dizer, mas toda a gente compra carteiras e relógios falsos (em especial na vizinha Zhuhai, na China; nesse caso, precisa de visto. Para ir a HK, não é preciso visto.) Há imitações para todos os gostos e bolsas; quando são cópias perfeitas, custam cerca de 10% do valor da peça em loja.

Em Macau usa-se a pataca, em HK o Hong Kong dólar e na China remimbis. Se levantar dinheiro na máquina, a comissão é absurda! Atenção a isso.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2014

 

  

Frei Bento Domingues

23.12.20

Frei Bento Domingues sublinhou em Tomás de Aquino: “Se faço uma coisa porque está mandado, mesmo que seja por Deus, não sou livre, só sou livre quando faço, ou deixo de fazer, porque é mal ou é bem”. Quis ser um homem livre. Tinha pó a Salazar. Deu-se com Sá Carneiro ou Salgado Zenha. Acolheu membros das Brigadas Revolucionárias na clandestinidade. Vive num convento em Benfica. Nasceu em 1934 numa terra onde se “plantam carvalhadas”…

Este é Frei Bento no tempo em que ainda não era Frei Bento. O que nasceu nas Terras de Bouro, creu em bodes e bruxas no cruzamento de caminhos, leu às ovelhas orações em latim. E este é Frei Bento que fez discursos considerados subversivos, que foi apontado como persona non grata nos anos 60, que andou por África e pela América Latina. Este é Frei Bento, com quem muitos se enfureceram porque defendeu a ordenação de mulheres, e que esteve de costas para um baile porque um padre não podia assistir a um baile. Um heterodoxo. Colunista do Público. Conversador fascinante. Espírito livre. 

Serviu um lanche de pão com queijo e café. Confessou as mazelas físicas próprias da vida sedentária. Mostrou um curativo numa perna. Tudo coisas normais. Tudo coisas que fazem parte. Como Tomás de Aquino faz parte.

Parece mais novo do que é. Fala com sofreguidão. Acabou com a boca seca, três horas depois de termos começado. Sem tabus. “Eu até achava que se alguém me chamasse pai me insultava!”

 

Há quanto tempo não lhe chamam Basílio?

Desde 1953, quando entrei para os dominicanos, em Fátima. Antes de tomar o hábito prostramo-nos, pedimos a misericórdia de Deus. “A partir deste momento vais chamar-te Frei Bento”. Agora já não fazem isso, por causa das complicações com os documentos. Em relação a mim, teve a ver com o padroeiro da minha aldeia, São Bento.

 

A São Bento da Porta Aberta, perto da sua terra, milhares de pessoas vão em peregrinação. Muitas deles a cumprir promessas. A pé.

Foi o lugar onde chorei mais, meu Deus. Tinha para aí cinco anos, atravessámos a serra para ir ver “o fogo do lago”. Imaginava um lago a arder, para mim era ter uma visão. Cheguei lá, junto a uma vendeira que pôs cobertores no chão, sentei-me, e acordei no outro dia de manhã. Perguntei: “Quando é o fogo do lago?”, “Foi ontem”. Desatei a chorar, chorei até casa. Tinham-me roubado o paraíso.

 

Comoveu-se ao falar disso. Como se fosse o menino a quem roubaram o paraíso. Sabia que o seu nome ia ser mudado, tinha uma preferência, ou não pensava nisso?

Ao meu irmão, que se chamava Domingos, puseram-lhe o nome de Frei Bernardo. É mais velho que eu três anos e três meses. Somos da Ordem de São Domingos, dos Dominicanos, a ordem dos pregadores. Era um bocado arbitrário. Umas vezes iam ao calendário e punham um nome. Alguns pareciam anacrónicos, absurdos. Mas gostei. Na minha família havia duas listas de nomes. Os que eram da parte da minha mãe eram nomes pagãos, romanos (Leontina, César). Os que eram do lado do meu pai eram bíblicos (Abraão, Jeremias, David). Tinha um tio que também se chamava Basílio; entrou nos Dominicanos no Brasil e puseram-lhe o nome de Frei Bernardo.

 

Na literatura brasileira há um famoso Bento, personagem central do Dom Casmurro, de Machado de Assis. Era tudo menos santo, e padeceu de ciúme.

Eu li. Muito bem escrito. Quando fui a primeira vez pregar à minha paróquia, um homem que se metia bastante nos copos, gritou: “Sr. Padre Basílio, não insista!, esta gente está como está, e assim vai morrer!” [riso].

 

A sua mãe chamava-lhe Basílio?

Não, a partir de determinada altura também não. Chamava-me Bento. Com o “e” muito aberto, que é o costume no norte.

 

Nasceu Basílio de Jesus. Tem um irmão que é frei, e um tio. Esta via estava-lhe predestinada?

A minha mãe era profundamente cristã, e o meu pai também. Não eram convencionais, de um cristianismo sociológico. Coisa esquisita: o meu avô, o pai do meu pai, morreu muito cedo, e a minha avó tinha três filhos. Um deles era esse meu tio que depois de chegar ao Rio de Janeiro entrou nos Dominicanos. A minha avó tinha-o impedido de ir para os Franciscanos, em Braga.

 

Porquê?

Ela estava muito enraizada na mitologia local, terrível, que compaginava com a religião católica. Eram costumes de raiz pagã. Em pequeno tinha medo que os meus pais estivessem errados e que a minha avó é que estivesse certa. Eles não tinham medo daqueles bodes que apareciam de noite, nem das bruxas. Há lugares onde ainda hoje, de noite, não ia lá… Cruzamentos de caminhos, de ribeiros.

 

Uma fantasmagoria. O que é que a potenciava?

Aquilo só naquela geografia, acima da jeira, da estrada romana, em plena serra, penedos enormes. Era uma religião do medo. Cheguei a acompanhar um tio meu, ao moinho da água, no Verão, para as bruxas não se aproximarem, porque se fosse sozinho tomavam conta dele. O meu pai e a minha mãe achavam que era tudo treta. Quando andava com as ovelhas, e perdia ovelhas, tinha de ir procurá-las, porque a minha mãe não acreditava em visões, queria era as ovelhas na corte. Aquilo era para mim uma aflição louca.

 

A primeira coisa que marcou a sua infância foi o medo?

Não. Foi o espanto. “Como é que as pessoas ainda não tocaram o céu?”. Subia até ao cume para tocar, via um novo e dizia: “Acolá é que é, enganei-me”.

 

“Aquela coisa é que é linda”, como dizia o poeta. No monte é a mesma coisa, “acolá é que é”. Mas nunca se chega a tocar.

É evidente que era uma parvoíce. Era parvo, era pequeno. As faíscas rachavam penedos. As casas tinham latadas de uvas. Quem tinha viola em casa, por exemplo: [as faíscas] vinham e percorriam a viola – aconteceu isso com o meu pai. Recomendavam que não nos abrigássemos nem debaixo de árvores nem debaixo de penedos. E faziam orações a Santa Bárbara e a São Jerónimo. Havia um certo encantamento nisso.

 

Esteve para ser pastor ou desde sempre esteve para ser dominicano?

Dominicano foi uma coisa dos 13 anos. Um padre brasileiro, muito jovem, a estudar em França, passava as férias em Portugal. O Padre Adriano. O pároco [da terra] pediu-lhe para pregar a Nossa Senhora do Livramento, na romaria de Terras de Bouro, numa capela muito bonita. Durante oito dias, uma novena. Os padres tinham a mania de falar do inferno, de morrer em pecado mortal. É evidente que depois as pessoas faziam os descontos, não levavam aquilo muito à letra, mas era o tom.

Esse padre falava através das coisas da agricultura, via que as pessoas eram de trabalho. Estava vestido com um hábito branco. E falava-nos de como Deus nos tinha no seu coração, da graça de Deus. Deus não era temor, Deus era amor. Escolhi isso para a minha vida. Se Deus não nos amasse ia para o desemprego, porque Deus só sabe amar.

 

Deus no desemprego é uma ideia insólita.

Eu ficava a olhar para aquilo como para uma aparição. Fui-me confessar. “O que é que queres ser quando fores grande?”. E eu, não sei, aquilo saiu-me como uma bala, mas de dentro do coração: “Quero ser como você”. E assim foi. Fui para a Escola Apostólica fazer o liceu. Morreu aos 39 anos com um cancro. Ele era a alegria.

 

Acha que foi isso que o tocou?

Foi. Também não tinha a ânsia de que as pessoas se convertessem. É uma coisa muito chata, quando vejo padres que parece que só gostam das pessoas se elas se tornarem católicas.

 

A sua atitude não é essa, mas, senso comum, é isso que se espera de um clérigo.

Tenho convicções a partir da fé e procuro defendê-las; mas não me custa nada que outros tenham outras convicções, ou que não tenham nenhumas. Uma vez que não estraguem a vida a ninguém… Se pessoas, grupos, instituições estragam a vida aos outros, aí encolerizo-me.

 

Escreveu: “Não existe sagrado fora do homem”.

O que é que é sagrado? Há leituras do sagrado que em nome de Deus dão cabo dos homens, como fez a Inquisição, como fazem certas religiões, certos cultos. Quem for herético, uns são apedrejados, outros são mortos. O sagrado é o ser humano. O ser humano é que levanta a questão da divindade.

 

Reconheci nesta frase um leitor de Tomás de Aquino.

Estudei apaixonadamente, até hoje.

 

Lê ainda no latim, ou já numa tradução?

Leio sempre no latim.

 

O que é tão fundador em Aquino é uma relação umbilical entre a Teologia e a Filosofia, entre a revelação e a razão.

Aquino fez comentários de Aristóteles e comentários das Escrituras. E fez um grande guião, que era a Suma da Teologia, para as discussões que havia. Mudava muito de opinião segundo as bibliotecas por onde passava. Era um leitor inveterado. O problema: não podia ver as coisas pelo lado da razão serem uma, e pelo lado da revelação serem outras. Era uma escuta dupla, a escuta do mundo e a escuta da escritura. Teve 12 secretários exclusivos a quem ditava, para não se cansarem. Tinha uma letra muito má e depois as pessoas não entendiam; então ditava.

 

Não é espantoso sabermos que há tantos séculos – Aquino é do séc. XIII – um homem tinha 12 secretários, e que as suas palavras cheguem até nós? Diga-me uma frase dele que funcione para si como um leitmotiv.

“Como é que é verdade aquilo que dizemos que é verdade?” Se dizemos o credo, se não procuramos saber o que é que significa, qual é o seu alcance? São Tomás, nessa grande obra de síntese que fez, [tem uma atitude] muito interrogativa. Tudo o que digo da ordem da fé tem uma pluralidade de interpretações.

 

O problema é quando a interpretação é literal?

É a desgraça absoluta. É querer meter Deus num conceito. Tomás de Aquino dizia: “O credo é uma mediação para nos espraiar no mistério insondável de Deus”. O que é mais criminoso nas religiões são as afirmações apodícticas. Esse Deus não pode existir. Se Deus coubesse nos nossos conceitos era mais pequeno que os nossos conceitos. Os nossos conceitos, a nossa linguagem, evocam-n’O, misteriosamente. Como toda a linguagem da poesia.

 

Foi a base interrogativa de Aquino que o inspirou quando em 1962/63 fez no Porto a exposição O Mundo Interroga o Concílio?

A exposição foi concebida e montada pela Juventude de Cristo Rei, de idades, predominantemente, entre os 15 e os 20 anos. Já tinham estado com o meu irmão. Eles é que se organizaram, fizeram estatutos, uma revista, calendário de reuniões, cursos, actividades de cinema e teatro. Eu era, apenas, o assistente nomeado pelo Convento Dominicano. Como me chamava Frei Bento e o grupo tinha tendências inconformistas, chamavam aos seus membros “peixinhos vermelhos em água benta”.

 

Não é por modéstia que está a dizer isso? Não foi realmente o mentor do grupo?

Não. Vinham falar comigo, vinham confessar-se. Tinha pessoas ali à volta, o Dr. Sá Carneiro, uma classe média alta. Havia a avenida [do Marechal] Gomes da Costa, as moradias, as meninas da Foz, toda a elegância. E depois havia Xangai (onde agora está o [liceu] Garcia de Orta), um bairro de lata, os pobres. Queria que se encontrassem aqueles mundos e convidava tudo para o mesmo grupo. Fazíamos passeios juntos, pessoas muito ricas, pessoas pobres. Depois deu bronca.

 

A bronca era sobretudo política, ou porque desafiava as convenções sociais juntando essas pessoas?

Primeiro era social. Uma vez o meu prior agradeceu os bodos do Natal, bacalhau, isto e aquilo. Fiquei chateado de ele ter agradecido. A seguir era eu que fazia a homilia, e disse: “A comida de Natal desta gente [pobre] é a vossa dos dias de jejum”. A assistência às missas era classista. Às missas da manhã iam as empregadas. Esse mundo não tem nada a ver com o mundo evangélico.

 

A exposição, realizada no salão do convento, teve problemas com a PIDE.

Quando a exposição foi realizada, eu encontrava-me em pregação na Bemposta, Diocese de Aveiro. Os jovens tinham ido à Ferreirinha, das ferragens, levaram de casa revistas Paris Match e fizeram 12 painéis grandes com recortes. Eram todas as questões do salazarismo: as sindicais, da fome, da guerra colonial, o bispo no exílio. Coincidia com a estrutura da Encíclica Pacem in Terris de João XXIII.

A exposição tinha sido um êxito espantoso e os pro-associativos (estudantes do liceu que lutavam pelo direito a uma associação, considerados de esquerda) desejavam visitá-la no 1º de Maio. Espalharam muitos folhetos a anunciar a visita. O jornal Agora, de extrema-direita ou assim considerado, publicou um artigo com o título: “Pavilhão soviético no convento”.

De repente tenho informações de que a PIDE vai intervir. A praça junto ao convento estava pejada de gente, muito exaltada. Queriam que abrisse a porta: “Não, não, aqui a polícia não manda”. E levaram gente da extrema-direita, gente que era contra aquilo tudo. A polícia sentiu-se frustrada e foi-se queixar ao bispo e ao governador civil. O prior do meu convento obrigou-me a que dentro de 24 horas estivesse fora do Porto.

 

Foi para onde?

Vim para o convento de Queluz. Tinha já alguns contactos em Lisboa, com o Nuno Bragança, com gente que estava a começar O Tempo e o Modo. Houve uma conferência na Igreja de São João de Brito, na cripta, do Padre Manuel Antunes. Também intervim. Não sei a dizer o quê. Sei que quando cheguei ao convento, o meu superior disse: “Já me chegou cá que fizeste uma intervenção… Não podes ficar em Lisboa. Vai tirar o passaporte”. Só me deram o passaporte para Roma, o que foi um equívoco deles; Roma era onde estava o concílio.

 

Tinha 30 anos. Ainda no Porto: o que é que lhe provocou essa adversidade, face àquilo que era natural em si, e que era a interrogação?

Somos todos humanos, uns tão ricos, outros tão pobres, outros miseráveis. Nas homilias não podia não dizer o meu espanto por aquelas coisas. Já tinha estudado Teologia, em França, e assistido a uns debates acesos a esse respeito, por causa dos padres operários, da Jeunesse de L’Église. A problemática entre política e fé estava muito viva. O pânico dos pais era que houvesse rapazes ou raparigas que se entusiasmassem por outro que não era da mesma classe social. Era a primeira vez que havia em Portugal um movimento misto de rapazes e de raparigas.

 

 

A questão de fundo, para os pais, era o sexo?

Não queriam que se misturassem nas festas. Mas fazíamos passeios, excursões, algumas de três dias. Uma vez na Guarda, os rapazes e as raparigas calcorrearam os dormitórios uns dos outros; veio uma irmã dizer-me que estavam a dormir uns com os outros. Eu disse: “Se estão a dormir não há perigo” [riso]. Tinham essa obsessão. Em Marco de Canaveses fizemos um magusto, e as pessoas dançaram. Os padres não podiam participar em bailes. Então sentei-me num banquinho de costas para o baile [riso]! Não é que o administrador apostólico, aquele que substituiu o D. António Ferreira Gomes, quando ele foi para o exílio, fez muitas queixas de mim? “Você esteve num baile”, “Ai isso é que não estive, estive de costas para um baile”! Coisas ridículas.

 

De onde lhe vem essa têmpera? O normal na sua condição seria acatar as indicações superiores. Porque é que não via pecado onde os outros viam pecado?

As pessoas é que tinham os olhos cheios de pecados. No evangelho vem: “Se o vosso olhar for puro, tudo será puro”. Há todo um arsenal exterior em que nunca me reconheci. Ontem estava a ler uma coisa do Santo Inácio, As Regras Para Sentir com a Igreja [Concílio de Trento, século XVI]; “Se vês que é branco, mas a hierarquia da Igreja te diz que é negro, tens que dizer que é negro”. Disse para mim: “Este homem é doido”.

 

No seu caso, não sentiu sempre com a Igreja, no sentido em que não se conformou com a hierarquia.

A hierarquia é essencial à Igreja como serviço da comunidade, mas a comunidade é que é a Igreja. Santo Agostinho tinha dito, de uma forma genial: “Convosco sou cristão, para vós sou bispo. A primeira é a minha salvação, a segunda até pode ser a minha condenação, se não me portar bem como bispo”. Uma coisa é o serviço à comunidade que posso prestar, outra coisa é a graça de Deus, transformante da minha vida.

 

As contendas que foi tendo com a hierarquia ao longo dos anos, nunca o fizeram repensar a opção de fundo que tomou para a sua vida?

Não, ao contrário. Gostavam que fosse um menino mais bem comportado. Perante determinadas afirmações o que achava inaceitável, achava inaceitável. Se me demonstrassem que as coisas podiam ser de outra maneira, que estava a ver errado, melhor para mim. Kant dizia que a nossa razão levanta questões que ela própria não pode resolver. Estou aberto à revelação.

 

Deixe-me voltar ao Basílio, a biografia do Basílio. A formação daquela pessoa foi determinante para percebermos este Frei Bento e o modo como ele se integra na hierarquia da Igreja?

Há questões que vêm da infância. Meu Deus, estávamos numa aldeia onde éramos todos pobres. Não havia fome porque as pessoas trabalhavam, mas era uma vida terrível. Chovesse ou fizesse sol, descalço para a escola. Quase ninguém fazia a 4ª classe, os pais não estavam interessados nisso. Na minha família, os meus pais interessavam-se muito.

 

Sabiam ler e escrever, os seus pais?

O meu pai até saiu da aldeia, e esteve três anos fora para fazer a 3ªclasse. Lá não havia escola. Era juiz de paz, regedor, presidente da junta de freguesia. A minha mãe era muito mais convulsiva, extremamente racional. As raparigas do tempo dela iam a uma escola não-oficial, onde aprendiam. Havia um livro para todos, aí pelos anos 20. Uma vez, era o dia em que lhe calhava ter o livro para preparar a lição, estava comer papas de milho, pegou numa colher de papa, meteu no meio dessa página e fechou-a. Resultado, o professor nunca mais quis as miúdas na escola.

O meu pai recebia o jornal que lhe mandavam, havia dois ou três livros em casa, e os da escola. Mas ela dizia-nos: “Os livros têm o que lá põem, os jornais têm o que lá se escreve. Não se deve acreditar em tudo”.

 

De onde é que lhe vinha essa atitude dubitativa?

Creio que era a personalidade. Era uma mulher resolvida, congregava energias. Crescemos numa grande liberdade, questionávamos tudo, dentro de um universo muito fechado. Eu não tinha jeito nenhum para os trabalhos agrícolas, era um nabo. Os meus irmãos eram óptimos.

 

Quantos irmãos tem?

Um já morreu, éramos cinco. E os meus pais ainda adoptaram outro, a mãe tinha morrido quando nasceu. Foi tratado muito melhor que qualquer um de nós.

 

Para mostrar que não havia distinção?

Não era para mostrar, era assim – ele nem sequer tinha mãe...

Eu tinha um livro em latim, não sabia nada de latim, mas gostava muito dos sermões que começavam com uma frase em latim. E fazia sermões às ovelhas, quando ia com elas para os montes. O eco dos penedos, as ovelhas espantadas a ouvir latim… Íamos à escola aprender outra língua. A língua que falávamos todos os dias, na escola, não valia.

 

Como assim?

Cheguei à escola e o marido da primeira professora, que era legionário, mau como as cobras, mandou-me ler uma palavra. “Maçã”. Mas nós dizíamos “mação”. Deu-me uma bofetada. Maçã para mim não existia. Chegou o plural, dizíamos “maçães”. Deu-me outra. Cheguei a casa e disse: “Ó minha mãe, o Sr. Santos está a dar cabo da fruta toda” [riso]. De aldeia para aldeia, julgávamos que os outros eram estúpidos e falavam mal. Recordo-me de em criança me rir disso. Eram regionalismos, muito localizados.

 

Diga-me uma palavra que fosse mesmo própria da sua terra.

“Aproveita este bocanho”. Bocanho é aquele bocadinho de tempo entre uma chuva e outra. O “b” e o “v”: lá era tudo “b”. Só que as pessoas que vinham para Lisboa confundiam tudo. Daí é que vem o “voi”.

 

Lá era “baca”.

Lá não havia confusão, era tudo “b”, como em Espanha. Chegávamos à escola e não encontrávamos palavra nenhuma. Havia outra coisa, horrorosa: o palavrão.

 

Horrorosa?

É. Uma pessoa que vá de fora… Não há palavra nenhuma que não tenha um acompanhante. Senão não tem força! E as crianças? A minha mãe ouvia os vizinhos, quando estava a fiar à noite, a gritar, a discutir, a sonhar. Sonhavam em palavrão! Ainda não sabiam falar bem e já diziam palavrões. E até corruptelas de palavrões. Um miúdo estava na eira, quase não falava, a mãe chamava: “Abílio!”, e ele: “Xoda-se”. É feio pela abundância e pela ausência de vocabulário.

 

O que isso denota é uma deficiência de vocabulário. Não têm outras palavras/recursos para continuar a discussão.

Nem sequer precisa de discutir. Manda a pessoa para aqui, manda a pessoa para acolá, e pronto. Anda a discutir com o gado, a chamar palavrões às vacas. Não acho nada bonito. Havia um padre que dizia: “Não se confessem dessas coisas. Isso não é pecado, é feio”. Aquilo não tem intencionalidade nenhuma.

 

A maior parte do palavrão diz respeito a actos da sexualidade ou nomeia órgãos sexuais. Talvez essa carga de pecado tenha que ver com isso.

É quando noutros lugares lhe dão uma interpretação maliciosa que as pessoas acordam. Lá era um desafogar, ou então em admiração. Houve uma transmutação social do palavrão. Ao tornar-se tão habitual, tão constante, passa a ser algo sem conotação. Quase diria que é a retórica dos que não têm retórica. Era uma linguagem enfática. Havia pessoas conhecidas pela abundância com que repetiam e associavam uma série de coisas. Diziam: “Lá está aquele a plantar carvalhadas”.

 

Carvalhadas, ou carbalhadas, como lá se diz, bem como carbalho, são corruptelas do palavrão para o órgão masculino.

É necessário ver que havia uma distinção muito grande entre essas palavras e a realidade. Vou contar uma história que se passou comigo. Um vizinho que estava com as vacas num nevoeiro enorme passou o tempo à sacholada ao nevoeiro e a dizer palavrões. Cheguei a casa, contei à minha mãe, e ela disse: “Esse homem é assim, muitas asneiras, mas é uma jóia de homem; e tem uns filhos que não dizem uma palavra dessas e são uns sacanas”. Aquela abundância não revelava o coração, era só literatura. A maldade, a malícia, isso é que era a zona do pecado.

 

A sua mãe foi a pessoa que mais o marcou?

Nunca tive o temperamento dela, a capacidade de iniciativa. O meu irmão, o Frei Bernardo, tem muito mais isso que eu. Eu tinha era espanto pela minha mãe. O meu pai era a doçura, só me lembro de uma vez ficar furioso comigo. A minha mãe estava-nos sempre a ralhar, por tudo e por nada. Para mim, e para os meus irmãos, foi mais significativo a paixão que tinham um pelo outro, até ao fim, e que não escondiam. As pessoas lá nem mostram muito a ternura. Ainda hoje tenho-os muito presentes, sempre comigo. Essa maneira de matar os pais é muito má.

 

Qual maneira?

As pessoas morrem e querem é não se lembrar. Faz-lhes pena. Tive um problema com a morte da minha mãe. Fui visitá-la ao hospital, a Braga: “Ainda bem que vieste ver-me, é a última vez. Vens tão raras vezes”. Começou a fazer-me o sermão, mas não acreditei muito. A minha mãe era imortal. Na manhã seguinte foram os meus irmãos que estavam no Porto que me bateram à porta: “A mãe morreu”. Creio que não acreditei. O meu irmão e eu celebrámos a eucaristia do funeral. Não me lembro nada de a levarem para o cemitério.

Regressei a casa uns meses depois. O meu pai estava sentado à lareira e perguntei-lhe: “Onde é que está a mãe?”. Aquilo foi horroroso. Ele diz: “Então a mãe não morreu?”. [extrema comoção] Tinha vivido na ilusão. A partir dali comecei a dizer: “Se ela viveu comigo este tempo todo, vai continuar”. Foi uma transmutação interior. Anda sempre comigo. Lembro-me dela todos os dias, falamos todos os dias.

 

Que idade é que tinha quando isso aconteceu?

Foi em 80 e poucos.

 

Já era um homem feito, maduro.

Mas abalou-me muito o facto de ela morrer. Já tinha feito tantos funerais…, as pessoas morrem. Recusa. Não sei o que se passou. Percebi o que é a morte. É a gente não ter interlocutor. A não ser quando faz o ricochete, que fiz depois.

 

Vendo essa paixão entre os seus pais, não desejou replicar isso na sua vida? Quando era novo, não quis ter uma família, uma mulher?

O problema não era que não houvesse atracção por mulheres. Mas nunca tive essa ideia de constituir família. Às vezes encontro padres que dizem: “Dediquei-me a Deus, mas bem gostaria de ter filhos”. Eu até achava que se alguém me chamasse pai me insultava! Não fazia parte. Na família somos dois padres, o meu irmão mais novo não casou, e tenho uma irmã que tem 12 filhos e netos (já nem conheço os nomes deles todos). Há uma compensação da natureza.

 

Não ter pensado nessa vida para si tem uma relação com a sua decisão precoce? Foi como se se comprometesse com um futuro que inviabilizava qualquer outro.

Tenho a certeza. Nunca tive aquelas crises de vocação. Houve tantas convulsões na Igreja desde que me conheço…, nada, nunca passou por mim. Imaginar-me casado?, nem pense!

 

O que é que sacrificou ao assumir o sacerdócio?

Nada. O importante foi a profissão religiosa, os votos religiosos. Matavam-me se me dissessem: “Não podes ser um dominicano”. Foi a alma da minha vida desde que disse ao Padre Adriano: “Quero ser como você”. Foi uma coisa não imitativa.

 

Isso parece paradoxal. Como não imitativa se disse: “Quero ser como você”?

Era aquela alegria do mundo. Não era “agora vou configurar-me”. Nunca me passou pela cabeça andar à procura de um modelo. Ele era inspirador, mas o que eu queria era ter a liberdade que sentia nele. Andei por imensos países a fazer cursos, em contextos de guerra, quer na América Latina, quer em África. As pessoas hoje empregam sempre [a expressão] “um desafio”. Não sentia nada aquilo como “um desafio”. Era o que tinha que ser.

 

Esteve em Angola, no Peru...

Moçambique, Colômbia, Chile, Argentina. A primeira vez fui ao Brasil. Não havia ninguém para ir a uma coisa que fizeram sobre o Óscar Romero [Bispo salvadorenho; apelava nas suas homilias à não violência e denunciava violações dos direitos humanos. Acabou assassinado] e pediram-me para ir.

 

Nesses sítios, esteve porque escolheu ou porque o mandaram?

Ora aí está outra história: se não chamassem por mim estava sentado. Foram sempre os outros que me puseram perante coisas que era bom fazer. Mesmo hoje. Conferências, artigos, prefácios de livros. Quando comecei a escrever para o Público pensei que não aguentaria nem meio ano – foi em 1992. Mas se me dão a oportunidade de poder explicar, escrever, reagir da forma que penso, com toda a liberdade… Da parte da Ordem tive sempre toda a liberdade. Era uma traição a mim mesmo não o fazer.

 

Em quase todos esses cenários, o conflito estava à flor da pele. Já em Portugal, a sua relação com a PIDE tinha sido belicosa. Isto revela uma pessoa para quem a dimensão política é importante.  

Talvez sim, não sei. Quando cheguei a Lisboa, com o Nuno Teotónio Pereira, a mulher, mais um pequenino grupo, fundámos o [jornal] Direito à Informação. Foi clandestino até aos anos 60. Andei sempre em coisas. Porque havia pessoas que me diziam que era preciso, e eu sentia que era preciso.

 

É verdade que acolheu membros das Brigadas Revolucionárias clandestinos?

Sim. E pior, estavam outros, de outros movimentos, em quartos muito perto! Sabia que essas pessoas andavam envolvidas em coisas…

 

Ataques bombistas.

Não, não eram bombistas. Havia como objectivo nunca atingir nenhum alvo humano – digo, das Brigadas. E observaram isso. Havia ali uma ideologia. Mas não era isso que eu discutia, isso era um problema dos grupos. Eram pessoas que estavam em situação tal que se eram apanhadas iam para a cadeia. Escondia-os como a quaisquer outros perseguidos políticos. Não hesitava. Era também levar pessoas à fronteira, para fugirem à tropa.

 

Antes do 25 de Abril?

Sim. Depois não achei muita graça a nada. As pessoas partidarizavam demasiado as coisas. Vou à União Soviética em 1975 e publicam cá – o Saramago – uma entrevista minha a um tipo da Novosti [agência de notícias russa], entrevista que não fiz! Foi publicada dois dias seguidos no Diário de Notícias. Completamente inventada. Quando regressei mostraram-me aquilo, e publicaram um desmentido. Não vou dizer que Saramago é que tinha a culpa; certamente pediram-lhe, venderam-lhe a coisa. Conheço muito bem o fulano que andou atrás de mim o tempo todo na União Soviética. Eram as circunstâncias.

Mesmo quando tenho que ir responder à António Maria Cardoso, por causa de uma homilia a crianças…

 

Uma famosa homilia que foi lida como um ataque à guerra colonial.

Disse às crianças o que era o fundo da minha alma. O problema é que liam sempre as coisas como se andasse…

 

Como se fosse um subversor político.

Não é só isso. Como se tivesse alguma ambição no campo político.

 

Nunca teve?

Nunca me passou pela cabeça. Muitas vezes fui solicitado para ser deputado, sobretudo nos primeiros tempos: nunca [quis]. Era uma coisa em que me acharia ridículo. Havia coisas que apoiava – devia apoiar, pareciam mais interessantes que outras. Andava noutra, e continuo noutra.

 

Escreveu: “O desejo anuncia ao mesmo tempo o que nos falta e aquilo em que nos podemos perder”.

Claro. É mesmo isso. Porque somos seres imperfeitos. Não somos, vamos sendo. A filosofia alentejana é a melhor do mundo, é um verbo: “ir sendo”. E estamos sempre em transformação. As pessoas atordoam-se com ídolos, atordoam-se com realizações de nada, fixam-se, não viajam. A vida é mística, e o místico é aquele que nunca pode parar porque o seu desejo é mesmo de infinito. As pessoas chegam a determinada altura, incorporam esse desejo, e transformam o infinito numa porcaria. De serem ministro, de serem presidente. Não em estilo de serviço – isso acho bem, a política deve ser reabilitada. O que é que há de mais importante para nós? O que é que nos realiza mais? As pessoas perdem-se. Idolatram coisas que não valem um corno, como dizem na minha terra, e pronto.

 

Nesse envolvimento político, houve um tempo em que esteva mais com um pé na Igreja e outro fora da Igreja?

Não, nessas coisas julgo que estava na Igreja. Posso dizer [que acolhi membros das Brigadas] porque eles já o revelaram. Acolhi outros. Uns pediram-me, e os outros também me pediram. Estava numa zona em que havia dois quartos. Também era necessário arranjar comida.

 

Vivia em andares, sozinho?, como era?

Houve uma altura em que vivia só com outro [clérigo] num andar, na Conde de Almoster. Depois vivemos em oito apartamentos dos estudantes dominicanos, antes de construírem o convento. Eu tinha essa possibilidade, e achava que não a podia negar. Negar em nome de quê? Era uma questão de consciência. Estávamos dominados e era necessário da libertação do regime. O meu maior amigo político era o Sá Carneiro; quando formou partido disse-lhe que entre nós tinha acabado.

 

Porquê?

Ia começar outro jogo. Convidaram-me para a fundação do Partido Socialista.

 

Trabalhou com quem?

Com o Salgado Zenha, o Sottomayor Cardia, o Ribeiro Sanches. Os outros estavam no estrangeiro. Mas quando disseram para ir para a fundação, não fui.

 

Explique melhor porque é que, no momento em que se formaliza um grupo político, seja do seu amigo Sá Carneiro, seja dos socialistas, recua.

Não é um recuo. Era importante, quando caísse o regime, haver mais formações políticas. O Partido Comunista era o único organizado. O que era importante, do ponto de vista humano, era uma pluralidade de formações, que fossem alternativas umas para as outras, que fossem capazes de construir alguma coisa. Do ponto de vista pessoal, nunca tive nenhum interesse em coisas dessas. Quando chega o momento de me dizerem que podia aceitar este ou aquele cargo, zero, zero absoluto. Aí já me sentiria ao serviço de uma causa, quando o que quero é a causa das causas, a alma de todas causas.

 

Em termos de convicção pessoal, estava mais próximo da Ala Liberal, mais próximo do Partido Socialista? Ou a convicção pessoal entrava muito pouco?

A convicção pessoal entrava pouco. O que temos mais dentro de nós, quer seja do ponto de vista religioso, quer do ponto de vista cívico ou humano, é o sectarismo. O sectarismo cega. A pessoa já não vê nada ao lado, e também não pode ver nada para a frente, as transformações. Tenho amigos em posições políticas muito afastadas umas das outras. Quando conversamos, digo o que penso, mas é uma questão de sensibilidade. A pergunta que me fez, faziam-me muito na altura: “O que é que faz na Igreja?”. O que faço é para a comunidade, a da Igreja Católica e para as outras. Querer fazer da Igreja um partido, isso detesto.

 

Imagino que os seus colegas de “partido”, da Igreja, a hierarquia, não tenham visto com bons olhos isso que era a sua leitura.

Muitas vezes [a Igreja] negou-me a jurisdição, de não poder confessar nem pregar em determinadas dioceses, durante os anos 60.

 

Achavam que podia veicular uma ideologia vermelha?

Não era nada disso. Muitas vezes apreciavam-me quase como um rival. Eles sim, tinham apoios e queriam a vitória de determinadas forças.

 

Reduziam aquilo a uma disputa pelo poder.

Era. Diziam que eu queria construir outra Igreja.

 

Acusavam-no do pecado da soberba?

Era só ignorância, sou incapaz de construir seja o que for.

 

Como é que olhava para Salazar?

Na escola fiz mais de 50 redacções sobre Salazar e as estradas. Era uma mania de uma professora que tinha, muito engraçada. E para a minha aldeia não havia estrada. A minha aldeia, Travassos, só teve estrada, telefone e luz eléctrica em 1980. Muitas pessoas criaram uma ideologia: ou Salazar ou o caos. A minha ideia era que quanto mais tempo estivessem com Salazar, maior seria o caos. Só que também não tinha aquela coisa de dizer que só este caminho ou aquele. Por isso, a malta de esquerda nunca me achou sólido. Não suportava era a PIDE, as pessoas a ter medo. Isso sim, era de atirar tudo pelos ares.

 

Gosta muito de rezar missa?

Muito. Não sou “misseiro”, mas gosto imenso de celebrar a eucaristia, e com pessoas que também queiram. (Agora andam a dizer que os re-casados devem ir à eucaristia porque são católicos, mas que não devem comungar. Esta enormidade é chamar uma pessoa para jantar, “e agora não comes”. “É para que sintam que falharam a sua primeira aliança”. Deixem esse jogo com Deus.)

Há uma frase do evangelho: “Vinde a mim, vós todos que andais aflitos, cansados, e eu vos aliviarei”. Encontro na liturgia um lugar de alívio e de inquietação.

 

 

 

Publicado originalmente no Público em 2011

Mário Soares (80 anos)

07.12.20

Quem é Mário Soares? O Soares, o Mário, que brincou num jardim com vista para uma casa de malucos. Que apresentou Cesariny a Miterrand. Que emprestou 20 paus a Luiz Pacheco quando saía, atordoado, de certa morada na António Maria Cardoso. Que acenava a Maria de Jesus da sua cela, no Aljube. O Mário que foi aluno do Cunhal. O Mário a quem o Agostinho da Silva chamava Danton. Que descobre num jornal amarrotado que a América aceitara o fascismo português num projecto atlântico defensor da liberdade. Que gosta de pintura. Que podia ter sido um escritor. Que se encontrou com a história quando as agulhas estavam afinadas. Depois do degredo em S. Tomé, do exílio em Paris, regressou a uma estação apilhada, era gente estarrecida, a clamar pelos seus heróis. Antes disso, reconstituiu os passos do general sem medo, defendeu centenas de perseguidos políticos, conspirou tanto quanto era possível. O Mário, sempiterno da política cá de casa, (leia-se: pátria), primeiro-ministro e presidente, a atiçar adversários, a medir a inteligência do Cunhal, a competência do Cavaco. A seduzir o povo. O descomplexado, que afronta uma multidão que lhe é hostil, que sabe o suficiente da natureza humana para nunca ter sido traído. Diz que de si vai ficar uma nota de rodapé nos compêndios de História. Tem uma espantosa relação jubilatória com a vida. Esta semana, o rei fez 80 anos. 

 

Em todos os livros que folheei, artigos de opinião que li, preparando-me para esta entrevista, quase toda a gente diz em que há momentos em que parece fechado em si, inatingível. Não se consegue perceber muito bem em que é que está a pensar.

Se calhar são momentos brancos que tenho no meu espírito. Não dou por isso. Lembro-me do Conde de Abranhos, que não falava, só dizia duas palavras, e como tinha uma testa grande, toda a gente estava convencida que ele dizia coisas maravilhosas.

 

Numa dessas descrições dizia-se que estava na varanda do palácio, a olhar o rio, e que parecia distante.

Gosto de olhar o mar e o Tejo. A coisa que mais recordo do Palácio de Belém, onde nunca passei uma noite, e estive lá dez anos a trabalhar, é aquela varanda voltada para o Tejo. Tem cores fabulosas, então no Inverno... Quando tinha que reflectir sobre qualquer problema, em vez de estar sentado, ia passear para a varanda.

 

Mas ia mesmo reflectir?

Ia reflectir, naturalmente, sobre as coisas. E ia vendo, ao mesmo tempo, os barcos passar. Não direi contar os navios...

 

Pensa melhor sozinho ou conversando com outros?

Sabe que o exercício da Presidência da República é um exercício solitário (e também o de Primeiro Ministro). Realmente a responsabilidade é dele. Nunca me lembrou de dizer: «Houve um conselheiro que me disse isto ou aquilo». Tinha relativamente poucos, mas aqueles que tinha e com quem falava relativamente pouco, era para trocar opiniões e testar as minhas opiniões, mais do que qualquer outra coisa, porque a responsabilidade era minha.

 

Também é certo que nunca foi um homem de seguir os conselhos dos outros.

Essa é boa! Não, não.

 

Acho que pensa sempre pela sua cabeça e que faz o que lhe dá na real gana.

Penso pela minha cabeça, é verdade, mas vou-lhe já dar dois exemplos. O meu pai, que era um pedagogo, um homem político, um homem da cultura, influenciou-me muitíssimo e queria que eu fosse para Direito, dizia: Tu tens duas habilidades». Não sei fazer nada com as mãos. Nunca tive uma máquina fotográfica, quando era pequeno deram-me uma, mas pôr o rolo, tirar o rolo, nunca fui capaz de fazer. Mesmo a máquina de escrever só utilizei quando estava no exílio. Tinha uma máquina Baby e não tinha secretárias. Habituei-me a escrever à máquina nessa altura, com dois dedos.

 

O «Portugal Amordaçado», escreveu à máquina ou à mão?

À mão. Alguns capítulos reproduzi-os à máquina, mas o original foi sempre à mão, com canetas das que se deitam fora a seguir. Mesmo quando era Presidente, estava a assinar e as televisões estavam em cima, assinava com estas canetas. Depois havia tipos que me mandavam canetas, «Vi que o senhor tem uma muito ordinária..». Mas realmente nunca utilizei essas canetas.

 

Não tinha habilidade para as coisas manuais.

Não tinha habilidade nenhuma para as coisas manuais. E o meu pai disse-me: «Tu tens alguma capacidade de falar e escreves com facilidade, portanto deves ir para Direito. Também podias ser escritor».

 

E porque não foi?

Tive uma facilidade demasiada para poder ser bom escritor. Os escritores bons não são os que têm facilidade de escrever, são os que escrevem bem. Eu escrevo quase sem emendas, aquilo sai tudo direitinho, e por isso não sou um torturado da forma. Os bons escritores têm que ter o ofício da escrita, que é uma coisa que se adquire. Entre os meus defeitos, tenho a impaciência. Sou impaciente, às vezes colérico, nas coisas pequenas, nas grandes não. Estava destinado a ir para Direito, mas no sétimo ano três professores meus influenciaram-me bastante. Um deles foi o Agostinho da Silva. O nosso amigo não podia dar lições, tinha sido expulso do ensino, dava explicações, e o meu pai pôs-me lá. O Agostinho da Silva perguntou ao meu pai: «De quê é que quer que eu dê explicações ao seu filho?», «Cultura geral, o rapaz está muito pouco interessado pelas coisas, só pensa em jogar futebol, dizer asneiras, é insubordinado». O tipo passeava comigo e falava-me de tudo, era um encanto. Foi ele que me despertou para a cultura, para as exposições, ia comigo ao cinema. O outro professor, saiu-me no sexto e sétimo ano, era o Álvaro Salema, um filósofo comunista pouco ortodoxo que tinha estado preso na Ilha Terceira. O terceiro foi o Álvaro Cunhal, imagine.

 

Nunca lhe teve medo?

Nenhum. Fascínio.

 

Dizem que tinha um olhar gélido.

Ele tinha um olhar penetrante. Com a idade, ficou com esse olhar gélido. Eu tinha 15 anos e ele tinha 26, ou 16 e 27. Era jovem, muito magro, aquela fotografia que vem no livro do Pacheco Pereira, ele era assim. Tinha fascínio pela inteligência do Cunhal, porque era um visionário, estava sempre a falar da aurora da revolução que aí vinha, do comunismo como uma coisa mítica. Sucede que essa influência era um pouco compensada por um espírito crítico muito agudo do Salema e do Agostinho da Silva.

 

Onde é que vai buscar, nas suas influências, a ligação à terra, às pessoas, que é uma coisa que muito o caracteriza?

Isso é a minha mãe. A minha mãe era filha de camponeses, o meu pai também, mas a minha mãe era terra-a-terra. O meu pai montou um colégio, mas quem administrava e dirigia aquilo tudo era a minha mãe. Esse sentido prático de camponês, herdei dela. A parte visionária e sonhadora, talvez do pai. O meu pai era repúblicano, nunca foi sequer socialista, e católico progressista avant la lettre – nunca me obrigou a ir à missa. Esteve muito tempo fora, exilado e preso, e na clandestinidade em Portugal, durante o primeiro período da ditadura. Veio para casa em 1935 quando fundou o colégio. Depois ficou doente, perdeu uma perna. Só começámos a conviver com os meus 13, 14 anos. Antes, o meu pai aparecia como uma figura mítica, nos sítios mais estranhos, para eu o poder ver e para ele me poder ver a mim.

 

Esses encontros fugazes são inesquecíveis para si?

Então não são? Nunca mais esqueço na vida de a minha mãe ter começado a chorar, ela que nunca chorava, a dizer «Temos que ir a Peniche, que o teu pai vai hoje partir para os Açores». Fomos de carro, chegámos lá e vi o barco. A minha mãe desesperada, o meu irmão e eu, tinha menos de dez anos, vimos o meu pai a ir para os Açores, não me posso esquecer. Depois meteram-me num café em Peniche e uma coisa que fixei: a minha mãe ia a beber o café e tinha uma mosca dentro!

 

Esta pequena história já conta tanto daquilo que é! Descobre na graça, agarrando-se à graça, uma exaltação da vida e da alegria. Para não soçobrar.

Nunca tive problemas de soçobro. Isso é que não tive. Nunca tive depressões. Eu sou simples: não sou vaidoso, não estou sempre a posar para alguém, digo aquilo que penso, não quero fazer passar gato por lebre. A minha mulher costuma dizer: «Tu és mais do simples, és simplista!, não vês a complexidade das coisas». Talvez tenha um bocado de razão. O meu espírito é muito racional, não sou dado a desvios místicos, nunca fui tocado pela religião nem pela fé.

 

Nem pela xaropada do amor...

«Xaropada do amor», nunca disse isso.

 

Pois não. Mas disse que o «Werther» do Goethe era uma xaropada, que não conseguia conceber que alguém se matasse por amor.

Isso é difícil para mim, não consigo conceber. Mas acredito no amor.

 

Mas morrer pela coragem, é outra coisa.

Não é pela coragem, é o sentido do dever. O que faz avançar um tipo contra uma baioneta é o sentido do dever. O que pôs aquele chinês perante um carro foi o sentido de que ali está o povo, e que ele o representava, tem que morrer ali se for necessário. É o que é extraordinário naquele retrato, Tiananmen. Estávamos a falar de quê?

 

O início era ser permeável aos outros, ser influenciável...

O nosso amigo Agostinho da Silva chamava-me «Danton», um dos heróis da Revolução Francesa, o tipo da Liberdade, que está muito bem descrito n’«Os Miseráveis» do Victor Hugo. Os meus professores disseram: «Você não pode ir, vai agora servir a burguesia?, você está no caminho do Comunismo». Os professores de Direito são todos uma cáfila de reaccionários, isso é verdade. Fui para Letras. Estive praticamente nove anos na Faculdade de Letras, andei para lá a conspirar pelos claustros, fui preso sucessivas vezes, quase sempre na época dos exames. Portanto, ia perdendo anos, ou por outra, não passava.

 

Mas o seu pai não se preocupava com isso.

Não. E por outro lado, o meu pai tinha uma fraqueza: achava que politicamente tinha saído a ele, e, por isso, nunca me disse «Estás a perder anos». Eu saía da cadeia, entrava na cadeia. Comecei a ser politicamente conhecido. Os amigos do meu pai, tudo gente do reviralho, republicanos, alguns socialistas, alguns monárquicos, gostavam imenso de mim porque achavam que eu era um tipo que levava o facho. E não se importavam nada que fosse comunista. O meu pai chamava aos comunistas «os teus camaradinhas». Nunca fui um comunista propriamente dito, no sentido de acreditar no comunismo como uma religião...

 

Não dava vivas ao «Marxismo-Leninismo»?

Eu considerava-me marxista-leninista. Depois deixei de me considerar leninista e passei a considerar-me só marxista.

 

Isso foi em que altura?

Nos anos 48, 49, quando estava preso e a minha mãe, com o seu espírito prático, foi lá levar um tacho de metal com arroz, um arroz de bacalhau de que eu gostava, e disse aos polícias: «Embrulho isto num jornal para guardar o calor, não tirem o jornal, ou vejam agora que não está lá nada dentro». Era o jornal do dia, e então li o Diário de Notícias do dia em que, calcule você, o Caeiro da Mata assinou em nome de Portugal o Pacto do Atlântico. E eu disse: «Estou aqui a lutar pela liberdade, internado um mês na Penitenciária e os tipos da liberdade, da América, vão meter um regime fascista num pacto que é da defesa da liberdade? Estes tipos estão doidos, é uma traição completa!». Fiquei desiludido com aquilo mas, no dia seguinte de manhã, levantei-me logo bem disposto! Isso é que é a minha sorte, mas é genético, não sei a quem é que o devo.

 

Quando é que passou a ser só marxista?

Deixo de ser marxista-leninista na altura do Norton de Matos, em 49. O que eu tenho é uma formação marxista, porque li os textos do Marx. Não li «O Capital», nunca, não se pode ler, não aguentei, ao fim de três páginas estava na mesma. Mas li o «Anti-Dühring», uma coisa horrível de ler, pior que a xaropada do Goethe. E fiz as leituras clássicas, li a cartilha, o Staline, o Lenine. Entrei na prisão e o Tito era um herói fantástico, quando saio da prisão, o Partido Comunista manda dizer que o Tito era um traidor e estava ao serviço da CIA. Não aceitei!, «Bem, com estes tipos não posso entender-me, não faz muito sentido». Então, comecei a ler o Trotski. Nunca fui trotskista, embora o Trotski me tivesse impressionado muito porque era um grande escritor, as memórias são um livro extraordinário.

 

Isso lê-se como um romance, como o Freud.

Pois lê, e eu sempre fui sensível à escrita. A partir daí fiquei um pouco solto, os meus amigos comunistas deixaram de falar comigo. Recebi cartas de amigos a dizer «Nós gostávamos de ti, tu eras assim, eras assado, mas agora que cortaste com o Partido Comunista, és, objectivamente, um traidor». É verdade que saí e que eles me expulsaram, as dois coisas são verdadeiras.

 

Essas coisas doíam-lhe? Ou acordava bem disposto no dia seguinte, à mesma?

Não. Fizeram operações... Tentaram inclusivamente influenciar a minha mulher para se separar de mim. A minha mulher tinha muito prestígio nessa zona porque recitava poesia, era muito bem recebida nos círculos operários, era uma pessoa que o Partido Comunista utilizava muito para esse tipo de animação. Quando comecei a ser considerado traidor, tentar influenciá-la, fizeram diligências muito concretas, conversas muito sérias para dizer que ela não podia estar casada comigo.

 

Já era casada no papel ou era só namorada?

Já era casada. Eu casei no Aljube porque a minha mulher ficou grávida. A minha mulher engravidou na altura em que eu estava na campanha do Norton de Matos. Depois o meu filho estava para nascer e resolvi casar com a minha mulher.

 

Não era uma coisa mal vista?

Não era bem vista. Mas em minha casa não houve problema nenhum. O meu pai era generoso e aberto e eu disse: «Vem para cá a minha mulher, vou casar um dia destes», «Mas como é que vem para cá?», «Então, pai, vem para o meu quarto». Assim foi.

 

E as consciências católicas?

A minha mulher não era católica nessa altura. Ela converteu-se com o filho [acidente de aviação de João Soares, no qual este se salvou miraculosamente], muito mais tarde.

 

A sua mãe, o seu pai, estes professores, são as influências. Mas quem são, realmente os seus interlocutores? Parece-me evidente no seu percurso que são poucas as pessoas que estão à altura, aqueles que considera iguais.

Não, não. Sabe que sempre fui um aluno medíocre...

 

Sei que o percurso não foi brilhante.

Medíocre. Nunca chumbei, nunca fui um aluno que passasse do 12, 13, no sétimo ano fui um bocadinho mais acima. Na Universidade, a mesma coisa. Em Letras tive aqueles desaires todos, Direito fiz de seguida porque só ia lá fazer exames.

 

Marcello Caetano foi seu professor.

Um bom professor. Só o conheci na universidade. Um dia chamou-me, «Você é um aluno a quem demos uma boa classificação no primeiro ano, acho que lhe vou dar uma boa classificação no segundo, fazemos isto muito seriamente. Se estudar um pouco mais pode ficar cá na casa». Depois vem acompanhar-me à porta e diz assim: «Claro, tem é que abandonar essas fantasias da política». Eu olhei para ele e respondi: «Ó senhor doutor, mas quem é que lhe disse que tenho assim tanto interesse em ser professor desta casa?».

 

Nunca foi, portanto.

Nunca passei da nota que ele me deu, um 14, no segundo ano. Nunca tive esse complexo dos bons alunos. Eu lidei com muito bons alunos. Quando era Secretário-Geral do partido tinha o [Vitor] Constâncio que tinha tido as notas mais altas, o [António] Guterres tinha tido 20 no Instituto Superior Técnico, o [Jaime] Gama, o António Reis tinham sido excelentes alunos em Letras..., todos eram tipos notabilissímos. E eu, um pobre tipo. Mas nunca pensei que fosse superior a nenhum deles. Achava que eram tipos muito melhor preparados do que eu, tinham estudado nas alturas próprias, eu tinha passado muito tempo a ler romances, a ler isto e aquilo, nunca fui um estudioso. Mesmo como advogado, achava-me mediano, sempre achei. Tinha alguma capacidade de falar em público e de convencer as pessoas, tinha facilidade de me dar às pessoas, de me relacionar.


Como é que isso se faz? Como é que é tão sedutor, tão persuasivo?

Não lhe sei responder a isso. Se perguntar ao Júlio Pomar como é que ele é capaz de olhar para si e a fazer aqui neste papel, eu, nem que estivesse um ano, não era capaz.

 

O seu talento é chegar às pessoas?

É um dom. Tenho muitos defeitos, mas tenho, pelo menos, uma qualidade, que é comum aos romacistas, aos pedagogos e aos políticos. Tenho o que Pascal chamava de «sprit finesse»; quer dizer, a capacidade intuitiva de olhar para uma pessoa e a compreender. Tive muitos acidentes na minha vida política, mas nunca fui traído. Quando havia tipos que estavam para o fazer, eu entendia-os antes. As cisões que houve no Partido Socialista, várias, percebi sempre.

 

Percebe quando as pessoas falam verdade?

Normalmente sei. Nunca me senti enganado nem por uma mulher nem por um homem.

 

Isso é espantoso.

Não é nada espantoso. É uma coisa que nasce com as pessoas, não lhe sei explicar. Não era capaz de fazer discursos como fazia o Guterres, muito bem concatenados, que explicavam ali uma data de coisas... Nos algarismos engano-me sempre, confundo os milhões com os milhares... Tenho grandes lacunas na minha educação. Nunca me julguei superior. Estou a falar-lhe com sinceridade. Também há outra coisa: nunca me tomei excessivamente a sério. Conheço um pouco a natureza humana, essa experiência de vida tenho-a, e aprendi com os romances, com os filmes, as peças de teatro, com as coisas que me aconteceram na vida.

 

Com as pessoas com quem foi estando...

Muitos me influenciaram. Um tipo que me influenciou imenso foi o Manuel Mendes, escritor, desenhista, revolucionário, com uma graça esfuziante, extraordinária, podia ter sido tudo na vida, mas morreu antes da ditadura e foi toda a vida contra a ditadura. Nos anos 50 foi um dos meus amigos mais íntimos e constantes, estávamos presos ambos e ele foi o meu padrinho de casamento. Não faz ideia quantas coisas ele me contou que me vêm ainda hoje à cabeça. Mas conheci grandes figuras da cultura portuguesa. Fui amigo do Dr. Jaime Cortesão, do Dr. Azevedo Gomes, do Carlos de Oliveira, do José Gomes Ferreira, do Cesariny.

 

Do Cesariny?

Meu grande amigo, toda a vida. Apreciei-o sempre muito. Quando fui visitar Paris, levei o Cesariny comigo porque ele foi expulso de França, no tempo do De Gaulle, por causa da homossexualidade. Apresentei-o ao Miterrand: «Olha, vocês expulsaram aqui este amigo que eu trago, que é um tipo de génio, mas homossexual, como muitos outros». O Gide também era, o Oscar Wilde. Fui amigo do Luiz Pacheco.

 

O Luiz Pacheco está quase cego.

Uma vez, nunca mais me esqueço, ia a sair da PIDE. Tinham-me posto em liberdade depois de ter estado dois meses lá dentro. Eu vinha mais ou menos alucinado, a chegar perto da Brasileira, e o gajo diz-me assim: «Estás bom, Mário? Tens por acaso aí 20 paus que me emprestes?». E eu disse: «Por acaso tenho». E tinha.

 

Sentiu-se sempre confortável ao pé dos artistas?

Sim, sim. E eu tinha a singularidade de saber tudo o que se passava na política, portanto os tipos procuravam-me. Mas alguns também foram influenciados pelo Partido Comunista.

 

E viraram-lhe a cara, também?

Sim. Há o caso de um amigo, o Armindo Rodrigues, era um bom poeta, escolhi-o, aliás, para esta edição [Os poemas da minha vida]. Quando veio o vinte e cinco de Abril, o Armindo fez-se comunista, estranhamente, porque não tinha nenhum temperamento comunista. Ganhou-me um grande... não direi ódio, mas um grande azar. Os comunistas a certa altura acharam que eu é que tinha sido o tipo que impediu que eles chegassem ao poder – o que é verdade, de certa maneira. Não fui só eu, mas contribuí. Era eu Primeiro-ministro e ele tinha escrito já uns artigos um pouco impertinentes contra mim, morre o Ary dos Santos, com quem eu tinha boas relações, estava em câmara ardente na Sociedade dos Autores, era amigo dele e ele era um grande poeta; julguei-me no dever de ir lá. Os comunistas acharam que aquilo era uma provocação! A única pessoa que me falou foi a Isabel da Nóbrega. Cumprimentei uma irmã dele, uma hostilidade seca e um silêncio de morte, fui-me embora. No dia seguinte, dizem-me que o Armindo Rodrigues tinha escrito um artigo contra mim no jornal: «Mário Soares, ontem assisti a um acto inaudito da sua parte! O descaramento com que foi à cerimónia de um camarada que morreu! Pus-me a pensar nas relações que tivemos antes de você ser o nosso inimigo, e, uma vez que sou mais velho, devo morrer antes de si...».

 

«Escusa de ir ao meu funeral»?

Escreveu: «Venho proibi-lo de ir ao meu funeral, e dei ordens em minha casa para, se isso acontecer, o expulsarem a pontapé escada abaixo». Isso não me impede de considerar o Armindo Rodrigues um grande poeta, foi por isso que o seleccionei. Houve muita gente que me fez coisas dessas. Não tenho nada que me amargure na vida. Realmente não tenho nenhum ódio a ninguém, sou assim constituído.

 

O Salgado Zenha foi o único que lhe ficou “atravessado”? Porque aquela separação, aquela zanga fraternal magoou-o mesmo.

O Zenha não me magoou muito porque não foi uma coisa que considerasse inesperada. Percebi que havia um distanciamento dele em relação a mim a partir dos últimos anos. Sempre tive pelo Zenha uma grande admiração. Era muito melhor jurista do que eu, muito melhor advogado do que eu, com uma formação jurídico-administrativa muito superior à minha, um homem de grande consciência e rectidão moral. Sempre lhe chamei a consciência moral do partido, e não retiro. Fui Secretário-geral porque o Zenha nunca disputou o lugar de Secretário-geral; naquelas coisas das conspirações dizia: «Esses gajos gostam todos de ti»; a verdade é que, talvez pelo feitio, eles gostavam de mim, o Jaime Cortesão e tal. Quando chegamos à altura de eu ser convidado para o governo disse: «Quem tem de ser convidado, também, é o Zenha». Entrou para Ministro da Justiça e aquilo passou-se muito bem. Depois, quando houve a crise da Fonte Luminosa, saímos do Governo, não participámos no Quinto, derrubámos o Quinto e veio o Sexto. O Almirante Pinheiro de Azevedo convidou-me para ser vice-presidente do Governo. Eu não queria ficar, achava que era melhor ficar na Assembleia, que o mais importante era ganhar as eleições.

 

Mas Zenha entrou, e foi Ministro das Finanças.

Aquela história da greve do Governo foi feita em parte por mim, mas instalei-me no Ministério das Finanças onde estava o Zenha. Fizemos as eleições, ganhámos pela segunda vez as legislativas e é posto o problema de formarmos governo. O General Eanes, que apoiámos, fez uma declaração, sem nos consultar, dizendo: «Se for eleito Presidente, nomeio Primeiro Ministro o Secretário Geral do Partido Socialista» – era eu. Mesmo assim, quando estávamos a trabalhar para formar o Governo, propus que fosse o Zenha Primeiro-ministro, porque achava que o Zenha estava muito mais preparado do que eu.

 

Mas é evidente que era o senhor o animal político.

Os meus colegas do secretariado, a começar pelo Zenha, entenderam que não queriam. De modo que ele não quis ir para o Governo, ficou na Assembleia. Ele gostava que eu fosse para Primeiro-ministro e ele continuasse nas Finanças. Eu achava que na Assembleia devia ficar um de nós. Ele ficou na Assembleia, um pouco a contragosto, e eu nomeei para Ministro das Finanças um tipo indicado por ele, o Medina Carreira. Era uma coisa feita em colectivo, havia um slogan, não sei quem o inventou, talvez Manuel Alegre, que dizia «Soares e Zenha, não há quem os detenha». A partir daí o Zenha ficou um bocadinho... não digo melindrado, ressentido. Ele não se sentia um tipo muito amado pelas pessoas, tinha um feitio um pouco sarcástico, tinha alguns complexos. Quando apareceu candidato, fiquei espantado, mas não muito, estava numa certa lógica de separação.

 

Como é que soube que ele ia ser candidato?

Pelos jornais.

 

Já não se falavam há algum tempo?

Nunca deixámos de nos falar, mas houve uma separação. Eu tinha tido a coisa com o Eanes, o Eanes ainda era Presidente, o Eanes era grande amigo do Zenha porque o Zenha tinha seguido o Eanes. A cisão entre o Zenha e eu próprio foi a propósito do Eanes, da crise do ex-Secretariado, como se chamava. Fiz ali umas malfeitorias, ganhei o congresso e depois tive que varrê-los, tive que exercer o poder. Um belo dia, quando se fez a lista de deputados, (eles representavam no congresso quarenta por cento), queriam ter a mesma percentagem [na lista de deputados] do congresso. Eu disse: «Não faço isso», «Então, nenhum de nós fica», «Então, não fica nenhum». Perdi os 40 melhores deputados que tinha num dia.

 

Mesmo assim ganhou as eleições.

Ganhei as eleições por maioria em relação ao que tinha ganho antes, mas não por maioria absoluta. Depois comecei a pescá-los à linha. Claro que o Zenha nunca se deixou pescar. Pensei sempre que íamos restabelecer a nossa velha amizade. O que me chocou mais que tudo foi quando na televisão eu lhe disse: «Ó Zenha, nós somos da mesma família» – família política –, «fizemos todo o percurso juntos, desde comunistas até à fundação do partido». Ele diz-me: «Não sou da tua família, estás muitíssimo enganado». Aí levei um murro no estômago, confesso. Perdi aquele debate, foi talvez o único debate que perdi com o Zenha. Não fui capaz de lhe responder nos mesmos termos porque tinha uma grande amizade por ele.

 

Acabou por ganhar as eleições.

No dia em que fui eleito mandei um ramo de rosas à esposa do Freitas do Amaral. E a primeira pessoa que chamei como Presidente da República foi o Zenha.

 

Conte-me lá o teor dessa conversa.

Chamei-o para o ouvir sobre uma história, talvez do Conselho de Estado, ele entrou na sala e disse-me, com um sorriso: «Como é que trato o Senhor Presidente?», e eu disse-lhe um palavrão!, «Como é que nos havíamos de tratar se sempre nos tratámos por tu?». Sempre tive uma enorme amizade por ele. Foi o meu companheiro de sempre, fez-me coisas extraordinárias, auxiliou-me quando estava no exílio. Depois, deu-se aquele incidente. Às vezes acontece. Com o Felipe Gonzalez e o Alfonso Serra sucedeu a mesma coisa.

 

Tenho dificuldade em perceber em que momentos se sente abalado, hesitante, receoso.

Não sou muito dado a receios, para dizer a verdade. Mas, por exemplo, quando o inspector Sachetti, às três da manhã, naquela sala fatídica do terceiro andar da PIDE, um cochicho onde punham os tipos a fazer a tortura do sono, que me aplicaram a mim por duas vezes, três dias e quatro noites sem dormir, e o inspector Sachetti, sorridente, perfumado, bem vestido, entra ali e diz-me: «Tem andado a brincar connosco, não responde às nossas perguntas, não colabora, o Dr. Salazar cansou-se, vamos mandá-lo para S. Tomé». Um tipo está preso, não sabe o que lhe vai acontecer, é um choque. A única coisa de que me lembrei foi que havia um livro que o meu pai tinha feito com dois pintores, que se chamava «Quadros da História de Portugal», e num dos últimos quadros havia uma pequena ilha, com um coqueiro imenso e um preto lá em cima, por baixo estava «S. Tomé». Era tudo quanto eu sabia de S. Tomé. Ele continuou: «É como quem atira uma pedra a um poço: vai fazer umas onditas, mas daqui a uns meses ninguém se lembra que existiu um advogado chamado Mário Soares».

 

Sentiu-se intimidado?

O pior é que acreditei que o gajo estava a dizer a verdade! No outro dia levam-me para o Instituto de Medicina Tropical para me darem umas vacinas, e eu disse: «Porque é que me querem vacinar, se me querem matar?». Mas o que eu pensava era: «Nunca mais vou sair de S. Tomé». No avião puseram-me em primeira classe.

 

Porquê esse luxo?

Porque ia acompanhado de um inspector da PIDE, e porque havia muita gente na classe turística. Via-se pancadaria no aeroporto, varreram aquilo tudo à pancada porque estavam lá tipos a dizer-me adeus. Eu estava quase sem comer desde a véspera e vem comissário de bordo muito delicado: «Os senhores querem jantar?». O inspector da PIDE diz: «Não queremos, já jantámos». Eu digo: «Senhor inspector, se me dá licença, eu quero. Não sei se é o meu último jantar, deixe-me ao menos jantar bem». Aquilo era muito bem servido na TAP, eu bebi aqueles vinhos franceses, e por fim o homem disse assim: «O senhor fumará um charuto?», «Fumo, com certeza!».

 

Acreditou que podiam eliminá-lo?, que ousariam tanto?

Eu tinha sido advogado do [Humberto] Delgado, que tinha sido eliminado. Fui sozinho a Badajoz. Os espanhóis estavam danados, não queriam arcar com a responsabilidade do crime! Fui falar com o juiz e fiquei no Hotel onde ele tinha sido raptado.

 

Tudo isso é uma aventura! Dizia numa entrevista que não precisava de ler o Sandokan quando era jovem porque a aventura estava na rádio quando relatavam as últimas da Guerra Civil de Espanha. Não há aventura maior do que a vida. Ciente dos riscos que corria em Badajoz, reconstituindo os passos de Delgado, não conseguia prescindir da dimensão da aventura.

Sim, sim.

 

Se pensar na eternidade, o que é que acha que vai ficar de si?

Não faço ideia nenhuma e é coisa que me interessa relativamente pouco. Não acredito na eternidade, na imortalidade, na alma. O que fica de mim é um rodapé num livro de história.

 

É assim, de um modo tão sucinto, que vê o seu nome?

É. Homens que para mim foram gigantes, como Jaime Cortesão, António Sérgio, Afonso Costa, essas figuras da república, quem é que os conhece hoje? As coisas são muito relativas e há que ter a humildade de as considerar como tal. A vida é sempre curta. O que é preciso é que a gente viva com dignidade e deixe uma memória simpática do que fez. Sobretudo as pessoas vivem no coração dos seus amigos.

 

Quando se pensa na eternidade, podem fazer-se várias aproximações. Há a aproximação metafísica, que exclui, porque a especulação metafísica interessa-lhe pouco...

A especulação metafísica interessa-me muito, eu não acredito é na imortalidade da alma. Acredito na memória, e que a memória possa transmitir-se de pessoa em pessoa. Mas essa mesma memória, que é muito afectiva, na primeira geração é total, na segunda é diluída, na terceira geração quase desaparece.

 

Tem sobre a secretária a fotobiografia do António Lobo Antunes. Daqui a 50 anos ler-se-á um livro do Lobo Antunes? Daqui a 50 anos persistirá uma memória de si?

Não, não, é diferente, o Lobo Antunes é um grande escritor.

 

E o senhor não é um grande estadista?

Não, não sou um grande estadista. Nem sequer me considero estadista, para lhe dizer a verdade. Considero-me um político.

 

No sentido de homem de Estado que interveio...

Intervim, fui político. Aconteceu-me que estava nos bons sítios nos bons momentos. Se começar a pensar por que é que me aconteceram certas coisas, há sempre uma grande dose de arbítrio e de mistério. Ajudei a fundar o Partido Socialista, dizia aos meus camaradas: «O Partido Socialista é como um Stradivarius que podemos vir a tocar e que nos serve admiravelmente quando houver democracia». Éramos uns dois ou três mil socialistas em todo o país no vinte e cinco de Abril, dispersos, alguns bastante desencorajados, dez dias depois éramos cem mil. O partido teve uma expansão extraordinária porque foi talhado num bom momento, e nós estávamos ali, tínhamos um programa. As pessoas afluíram, fomos o partido mais votado, e foi isso que me levou a ter várias posições que vim a ter. Se não tivesse sido isso, talvez tivesse entrado como qualquer outro exilado.

 

Estou a tentar a perceber se é apenas um exercício de humildade, esse que está a fazer, ou se está mesmo a relativizar a sua importância no curso do século XX português.

Não é um exercício de humildade nem de relativização. É um exercício de realismo. Eu acho que foi assim.

 

Podia ser qualquer outro se estivesse no mesmo lugar à hora certa?

Pois podia, então não podia ser?

 

Então e as suas características pessoais? O seu carisma, o seu famoso carisma que fez que rapidamente mobilizasse as pessoas...

Talvez... Uma vez um psicanalista disse-me que quatro ou cinco psicanalistas analisaram os políticos na televisão, no 25 de Abril, a ver quais eram os complexos, as deficiências, os pontos altos e os pontos baixos. Acharam que eu era o menos descomplexado de todos, o menos aflito com a sua imagem, o mais seguro das coisas que dizia.

 

O tom descontraído, o estar bem na sua pele, é um ponto essencial do seu carisma. As pessoas dizem sempre que é das poucas pessoas que está bem num bairro de lixo ou num hotel de luxo. Foi sempre muito seguro de si e descontraído?

Acho que sim.

 

Isso é porque o seu pai o educou para ser um príncipe, um lutador, um vencedor?

O meu pai educou-me não sei para quê. Tentou educar-me o melhor que pôde e eu senti que fui um filho querido. O meu pai e a minha mãe, o único filho que tiveram em comum fui eu. A minha mãe tinha um filho anterior e o meu pai também.

 

Os outros irmãos não viviam consigo?

Quando o meu pai esteve exilado, viviam. Tinham mais 17 e 18 anos do que eu. O meu irmão mais velho tinha um nome horrível, chamava-se Tertuliano. O meu pai era professor de História, gostava muito de Roma e pôs-lhe um nome romano. Como me pôs a mim, e pôs a um sobrinho meu Augusto. Eu disse-lhe: «Olhe que o pai, se me tem posto a mim Tertuliano, nunca mais lhe tinha perdoado».

 

Seria um complexo na televisão, ter um nome desses.

O meu irmão até gostava do nome, tanto que o pôs a uma data de afilhados. Os meus pais, apesar da vida agitadíssima do meu pai, viviam muito concentradas sobre mim. Suponho que fui asmático até aos 16 anos, pela ansiedade da minha mãe. A minha mãe estava sempre a encher-me de camisolas, punha-me pachos de algodão em rama com álcool para não me constipar no Inverno, punha-me botijas na cama...

 

Tem uma memória física disso ou lembra-se de ouvir falar?

Perfeitamente física. Estou a ouvir os gritos do meu pai e da minha mãe, «Mário, não andes sem chapéu, estás a apanhar sol na cabeça», parecia que era uma coisa terrível apanhar sol na cabeça. Aos 16 anos explodi, comecei a ir para a praia, aprendi a nadar. Era muito magro e tinha um certo complexo junto dos meus colegas que eram fortes; davam-me encontrões e eu ia abaixo. Nunca tive grande musculatura nas pernas e nos braços. Mas a verdade é que quase todos os meus colegas de liceu morreram já, e eu resisti. À medida que os anos foram passando, tornei-me mais forte, menos vulnerável.

 

Sentiu-se, então, um filho muito querido.

Sim, e isso deu-me uma grande segurança interna. As atenções dos pais, dos irmãos, da família. O meu pai tinha a mania de me pôr em cima de um banco para eu falar, «Faz lá um discurso». Talvez achasse que era o centro do mundo. Depois percebi que não era. Mas isso deu-me uma certa confiança em mim próprio.

 

No liceu gostava de brincar aos políticos e queria fazer de Primeiro-ministro. Quis sempre ser político, o que interessa é isso.

Sim, mas nunca achei que a política fosse mais importante que outras coisas. Fui um pouco político à força. Fui político porque não podia viver na ditadura. Era uma incompatibilidade física. Não era possível viver num regime como aquele, em que uma pessoa para conseguir alguma coisa era preciso ser subserviente. Isso levou-me a ser resistente à ditadura desde muito jovem e depois enveredar pelo Partido Comunista. Depois tive as minhas lutas com o Partido Comunista, como se sabe, porque também não concordava com aquele modelo. Se tenho vivido numa democracia inicialmente, podia ter sido advogado, escritor, jornalista.

 

A sua importância na história ter-se-ia diluído?

Com certeza. Vivi numas circunstâncias muito excepcionais. Pronunciei-me muito cedo contra a guerra colonial e paguei por isso, estabeleci laços de solidariedade com os militantes dos antigos movimentos coloniais, recebi a simpatia da gente política europeia por causa disso e por causa de ter sido advogado da família do Humberto Delgado. Com esse facto tive uma grande solidariedade das organizações judiciárias e da Associação Internacional dos Advogados. Isso condicionou um pouco a minha vida. Depois, o exílio. A seguir ao exílio, vinha com ideia de que podia ser talvez deputado, podia fundar um jornal, era a minha ideia, quando vim no comboio. Nunca esperei que o Estado aluísse como aluiu. Não se esqueça que era uma ditadura feroz e, de um dia para o outro, aquilo aluiu, ninguém a defendeu.

 

O mais espantoso é que aconteceu sem sangue.

Caiu como um fruto podre. Estava eu e estavam outros e tomámos a dianteira das coisas. Fui secretário do Norton de Matos, em 49, depois fui do Humberto Delgado, mas não tive grande importância na candidatura do Humberto Delgado. Se o Estado tem caído numa outra altura, não era eu que tomava a dianteira, eu ia na onda. Por acaso caiu quando eu tinha 49 anos.

 

Está a dizer-me que não falhou o encontro com a história.

Mas não dependeu de mim, não é mérito meu, isso é a minha certeza.

 

Gostava ainda de voltar atrás e de lhe perguntar: na cadeia, quando não falou, foi para honrar o seu pai?

Aí não entra o meu pai. Entro eu e os meus companheiros, só. O meu pai, sempre foi uma pessoa que me ensinou a dignidade e a honra, mas o que se passava é que eu, perante aqueles esbirros da polícia...

 

Esbirros é uma palavra que já não se usa. Mas as pessoas da sua geração conheçam-na bem. É engraçado quando uma palavra situa uma geração.

Esses esbirros tentavam sacar-me o que tinha. Eu não fiz o que fizeram alguns comunistas que defendi, estou a lembra-me do Octávio Pato, meu colega do MUD Juvenil. Era um dos principais dirigente do Partido Comunista e com grande espanto meu convidou-me para ser advogado dele_ eu já tinha saído. Ele não disse sequer como se chamava, apanhou cargas de pancada monumentais, foi espancado em pleno julgamento, na minha frente! O juiz disse que ele o estava a insultar e os polícias começaram a bater-lhe, eu aos berros!, os juízes fizeram orelhas moucas, arrastaram-no da sala, uma tragédia. Ele é um herói, não abriu a boca. Eu não fui assim. Em primeiro lugar nunca me bateram na polícia, deram-me assim uns encontrões, mas nunca uma sova.

 

Por que é que não usaram a violência física sobre si e recorreram a outros métodos?

A repressão era de classe. Os operários e os tipos rurais eram espancados. Os intelectuais e os tipos da burguesia, como eu era, filho de família, eram tratados de outra maneira. Não eram batidos porque isso podia ter um reflexo muito maior se se sabia cá fora. A heroicidade dos que passaram pela cadeia e que resistiram é extraordinária, tem que se prestar essa homenagem. Nunca denunciei um colega, mas quando diziam: «Como é que você se chama?», «Chamo-me Mário Alberto Nobre Lopes Soares», «Onde é que mora, quem é o seu pai, quem é a sua mãe?», isso sim, respondia. Quando diziam: «O senhor encontrou-se com o senhor fulano de tal?», «Não senhor, não me encontrei», «Ah, mas temos a informação de que...», «Então, a informação é falsa». Isto é uma coisa diferente, bastante mais articulada e subtil. Se for ver os meus autos que estão na Torre do Tombo... Eu nunca os vi, mas sei o que lá está.

 

Nunca viu?

Nunca tive curiosidade. O tal Sachetti disse-me: «O senhor é um limão que não deita suco, a gente aperta, aperta e não pinga». Eu tinha uma cultura jurídica e a experiência dos interrogatórios que faziam aos outros, defendi dezenas, senão centenas de presos políticos. Vou contar-lhe esta coisa que não sei se já contei a alguém, acho que não. Havia um tipo, tinha sido meu colega de curso na Faculdade de Letras, chamava-se Farinha, fazia trabalho para a PIDE e ninguém sabia. Um dia fui preso, e quem é que me calha em rifa como inspector? Eram três horas da manhã, estava ele sentado à secretária e eu em frente. Abre uma gaveta e tira um pistolão, começa a falar comigo e fazer rolar a pistola. «Você sabe que posso matá-lo agora, e não me acontece nada, se me chateia muito, eu mato-o». Eu respondo: «Não me admira, você é um criminoso». «Vou dizer que tentou fugir ou agredir-me e eu defendi-me, que foi em legítima defesa. Toda a gente acredita, ninguém me vai condenar, se calhar, até vou ser condecorado aqui na polícia». Isto que hoje parece uma coisa ridícula tinha uma carga emocional naquele tempo... A gente acreditava, aquele gajo era um desvairado.

 

Foi nessa altura que percebeu que era um tipo resistente?

Costumo dizer que a cadeia é uma grande universidade. Porque se aprende imenso, sobre si próprio, antes de mais nada. Percebi que resistia, que tinham uma máquina e eu era um grão, mas que não me esmagavam. E isso é a sensação mais exaltante que se pode ter na vida: um tipo dizer «Eu resisto», e resiste. Se não resiste, é o diabo.

 

Amar e ter medo é o normal das pessoas? É isto que caracteriza o humano, o amor e a palpitação do medo, da coragem, da bravura?

São dois fenómenos muito diferentes. Eu do amor não lhe falo, aí não entro.

 

Oh, que pena!

Faz parte das questões de natureza mais íntima que não têm interesse para os outros. Mas do medo, sim. Li uma vez um livro sobre a Joana d’Arc. Ela é interrogada antes de ir para a fogueira: «Então tu não tiveste medo?», «Tive, mas venci-o primeiro que os outros. Não tinha medo quando os outros começavam a tê-lo». Medo toda a gente tem, mas há alguns que o vencem e outros que se deixam ser vencidos.

 

Se falasse inglês, podia ter sido um Clinton?

Um Clinton não!, porque nasci num pequeno país que se chama Portugal, e nesse país atingi o possível. O país é pequeno e isso condiciona o nosso próprio estatuto. Mas tenho a sensação de que uma das minhas deficiências foi não falar inglês. Tem a ver com a minha geração. O meu pai dizia: «Tens que saber francês porque é a língua da cultura e da diplomacia». Eu não tenho jeito nenhum para as línguas, é sabido, não tenho bom ouvido, não apanho as pronúncias, sou incapaz de fazer certas distinções nos «ens» franceses, por exemplo.

 

Estudou inglês?

Estudei no liceu, não aprendi nada, mas passei. Depois disso, fiz quatro ou cinco tentativas para aprender inglês. Uma vez, um amigo meu, que era um homem notável e que foi Primeiro Ministro e Ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, chamado Callagan deu-me uma bolsa, de uma Fundação, e fui para Inglaterra. Mas logo calhou que naquele mês em que devia estudar intensamente o inglês, o Marcelo Caetano fez a sua última viagem a Londres e resolvi, com outros amigos, organizar uma manifestação enormíssima contra a presença do Marcelo Caetano. Foi uma coisa homérica, foi quando inventaram a história de que pisei a bandeira nacional, uma coisa completamente absurda. A bandeira da República era a última coisa de que eu me lembraria de pisar.

 

Ficou o inglês adiado.

Se tenho sabido inglês, com a capacidade que sempre tive de me relacionar e provocar simpatias nas pessoas, tinha entrado em organizações internacionais e ido muito mais longe do que foi. Disso não tenho a menor dúvida. 


Entre os seus pares: Eanes, Cunhal, Freitas, Cavaco, Guterres, da nova geração, admira uns mais do que outros. Mesmo que tenham tido brigas monumentais, há alguns que são de estimação, que respeita.

Citou o Guterres, que é do meu partido, e portanto, meu companheiro.

 

Mas é de outra facção.

Sim, mas não se esqueça que quem o meteu no Secretariado, quem o pôs na direcção do partido fui eu. O Guterres inscreveu-se no Partido Socialista em 74 e quando percebi que estava ali um tipo muito esperto, muito dinâmico, comecei a puxá-lo para as coisas. Prezo muito a inteligência do Guterres, tem uma extraordinária inteligência política, tem uma grande facilidade para línguas.

 

Vai ser uma vantagem quando se candidatar, se se candidatar, às presidenciais?

No caso das presidenciais, a língua não serve para nada.

 

Não tem que ver com uma teia de relações e uma afirmação no plano internacional?

Sabe que a reputação que se tem internacionalmente, falo por experiência própria, não tem nenhuma influência na interna. Eu tinha sempre muito boa reputação internacional e internamente ninguém ligava às coisas que fazia, só se diziam graças. Não se lembra de uma vez ter dito «Mon ami Miterrand», e toda a gente [ter pensado] «É tão amigo do Miterrand como de nada, está aí a presumir...». E depois veio a verificar-se que realmente era amigo íntimo do Miterrand. Ele fez coisas comigo que não fez com muita gente, incluindo franceses, fui uma das últimas pessoas a vê-lo já no estado final da sua doença.


Consta que essa perda lhe foi particularmente dura
.

Pois foi. Mas para ser Presidente da República, [o inglês] é um pormenor. Toda a gente usa intérpretes, o Gorbachev só fala russo, os chineses só falam chinês. Claro que um tipo de um país pequeno, se falar a língua dos próprios, facilita os contactos. Mas pode haver relacionamentos efectivos mesmo sem se falar a mesma língua.

 

Regressemos então aos pares.

Tenho respeito por eles todos, incluindo o Cunhal. O Cunhal é de uma inteligência superior e de uma grande cultura, não só marxista-leninista. Mas é um tipo com talas, só vê aquilo que quer ver e não sai dali, uma teimosia enorme, não reconhece o erro, está convencido que o mundo todo errou e que ele é que está certo. Vai morrer assim. Talvez seja bom para ele, e até ficávamos desiludidos se ele agora aparecesse a dizer que se tinha enganado. O Freitas do Amaral é um grande jurista, um homem inteligente, um grande político, um homem de bem. O General Eanes é um militar, prestou grandes serviços na altura em que foi preciso normalizar as Forças Armadas, é um homem de uma grande seriedade, não é um homem de uma grande cultura. O Cavaco é um homem extremamente sério, honrado, competente na sua esfera que são as finanças e a economia. Mas não é um homem com uma grande cultura política, nem sequer literária. É muito profissional, no sentido americano do termo: sabe tudo da asa da mosca, mas não sabe mais nada, como dizia o Eça de Queirós.

 

E o senhor? Como é que se descreveria em duas linhas?

Descrever-me-ia como um literato frustrado que caiu na política. 

 

Não, não. Como é que se descreveria, a sério.

É o que lhe estou a dizer. Depois tira lá as suas conclusões. Evidentemente, sei que tenho qualidades políticas, não podia ter chegado onde cheguei se não as tivesse. Fui apreciado como Presidente da República, nos dois mandatos, não fui apreciado como Primeiro-ministro. Acho que fiz um bom papel nos governos, sinceramente lhe digo. Tomei medidas que foram impopulares, mas que foram úteis para o país. Sou um patriota e tive sempre uma ideia para Portugal. Sabia perfeitamente quando aqui cheguei o que é que queria que acontecesse a Portugal: que era preciso acabar com as guerras coloniais, que era preciso fazer a descolonização para ter a democracia, para entrar na União Europeia. Era a favor do socialismo, da luta contra as desigualdades. Fui Primeiro-ministro três vezes e nesses três governos tive grandes dificuldades e grandes antagonismos, fui muito criticado e afrontei grandes confrontações, mas fiz o que entendi que devia fazer. E estava tão convencido [disso] que quando estava no mais baixo do meu percurso político, candidatei-me à Presidência da República. Com as sondagens a dizerem que tinha sete por cento.

 

Acreditou que podia ganhar?

Isso nunca tive dúvidas. Sempre pensei que tinha um relacionamento afectivo com o povo português, que eles estavam zangados comigo, mas que gostavam de mim. Era uma questão de família. Precisava de os convencer que o tinha feito não contra eles, mas para os defender. Era o meu problema.

 

Perante uma plateia em fúria, não recua. Tem sempre a convicção de que os pode seduzir.

A minha maneira de ser é de os afrontar, nunca de recuar. Vou contar-lhe uma cena que se passou com o Champalimaud. Eu vou a Minas Gerais. O Governador vai buscar-me ao hotel e diz que é melhor sairmos pela porta de trás, porque [na porta principal] há uma manifestação contra mim. «Então, saímos pela porta grande»! No outro lado da rua estavam uns 200 gajos com uns grandes cartazes a dizer «Abaixo o vendedor de Angola, o ladrão que roubou Angola e a entregou aos soviéticos», insultos desse género. Avancei para um dos que estava a gritar aquela coisa, brasileiro, «Sabe quem é esse que você diz que roubou Angola», «Não, patrão, não sei», «Sou eu. Pagaram-lhe, não pagaram?», «Pagaram sim», «Quem é que lhe pagou?», «Foi o senhor Champalimaud», «Já fez o seu serviço, enrole lá isso e disperse». O Governador estava espantado. Eu disse «É preciso não encarar estas coisas com dramas». Muitos anos depois, era eu Presidente da República, o senhor Champalimaud tinha um interesse numa coisa, o Dr. Cavaco tinha-me dito que era importante do ponto de vista nacional e que se devia apoiar. Estudei aquilo e achei que o Cavaco tinha razão. Pediu-me uma audiência o filho dele [Champalimaud], e apareceu-me lá com um advogado de quem sou amigo, o Proença de Carvalho. Eu disse: «Antes de falarmos sobre esse assunto, vamos falar de outra coisa. O senhor Champalimaud-Pai, sem me conhecer, no estrangeiro, pagou uma manifestação contra mim». O filho disse: «É verdade, fui até eu que organizei a manifestação». «Se você reconhece que é verdade, não se fala mais nisso. Está aqui a pedir-me uma coisa, não está? Já está resolvido, mesmo que me dissesse que não era verdade, está aqui assinado».

 

O senhor não esquece.

Eu não gosto de esquecer, perdoo, mas não esqueço.

 

Uma última pergunta: qual é a memória mais antiga que tem de si?

Se lhe contasse... Não lhe posso contar, a verdadeiramente mais antiga, não. Mas tenho memórias dos meus três ou quatro anos...

 

A que não me pode contar é anterior a essa?

Não, é desse tempo, mas vou-lhe contar outra. Eu vivia na Rua Gomes Freire, onde nasci. Nas traseiras da minha casa, que tinha um jardim, via-se os malucos_ por isso é que os malucos nunca me fizeram impressão. Eu brincava ali e era muito amigo de uma pessoa que se tornou ilustre na vida portuguesa, o Moniz Pereira, que é talvez o meu mais velho amigo. Eram dois irmãos, eles viviam no primeiro, eu vivia no segundo, tínhamos jardins colados e brincávamos ali.

 

 

Publicado originalmente no Diário de Notícias em 2004

  

 

António Alçada Baptista

01.12.20

Um escritor que afirma que a escrita não é a sua razão de viver, mas o inverso. Que apostou numa aventura editorial e perdeu (dinheiro), que é advogado mas a quem a razão não satisfaz, que foi formado nos valores do trabalho mas que se considera de uma preguiça pura. Um escritor que passa por ser um sedutor inveterado, e percebe-se porquê.

À entrada da casa floresce uma viçosa buganvília. Em frente, um dos filhos, mais uma filha e uma nora e uma neta, reviram as sardinhas que tostam sobre as brasas, ao sol. A casa é branca, com as portas e os caixilhos pintados de um azul forte, que vai bem com o céu. A terra chama-se Vila Nova do Coito. A casa de António Alçada Baptista e da sua tribo fica mesmo ali.

Quando nos sentámos para as sardinhas, já sabíamos que a casa fora encontrada em ruínas e recuperada na persistência e na dedicação dos anos. Numa primeira casa mora um filho, numa segunda mora outra e na terceira, a grande casa, propriamente dita, estabelece-se toda a comandita nas férias de verão e nos demais dias que lhes aprouverem. Ao fim, acompanhando-nos ao portão, António confessava: «Ando a ver se ganho coragem para viver cá todos os dias».

É lá que escreve, no remanso das tardes, num escritório só seu e atulhado de coisas que são só suas e que são a sua vida: livros, livros, fotografias, fotografias. Há uma secretária, um velho processador de texto, um cinzeiro pejado de cigarros inacabados e uma cama transformada em divã, ladeada de almofadas.

Vista a casa, sentámo-nos enfim para as sardinhas. Maria José, com quem casou há tantos anos que parecem não ter conta, está ao seu lado. A restante trupe reborda a mesa grande da cozinha. Ele, à cabeceira, levanta-se para os pimentos, as batatas, o vinho. E depois sentou-se, para conversar.

António Alçada Baptista tem um novo livro chamado «O tecido do Outono». Como será fácil de constatar, não precisaríamos de pretextos para pôr a escrita em dia.

 

Há pouco dizia que os seus livros só ficariam até à geração dos seus netos.

Pois. Eu era muito amigo do Alexandre O’Neill. Uma vez estávamos a conversar sobre a razão porque éramos tão amigos, e ele dizia: «É porque a gente não se leva a sério». Tenho consciência de duas coisas. Primeiro, a escrita não é o mais importante. Muitos escritores dizem: «A escrita é a minha razão de viver». Eu digo: «Viver é a minha razão de escrever». A vida interessa-me muito mais que a escrita. Segundo, em cada geração vão três, quatro escritores para a História da Literatura. No tempo do Eça, havia o Teixeira de Vasconcelos, o João Grave, o Abel Botelho, pessoas de quem ninguém fala. Ora, na minha geração já tive o Vitorino Nemésio, o Jorge de Sena, o Vergílio [Ferreira].

 

Não gostaria de pertencer a esse lote?

Não é a minha preocupação. Não trabalho para o futuro.

 

Então escreve porquê, o que é que motiva a sua escrita?

A escrita é um meio de investigação. A Salette Tavares, um tempo antes de morrer, disse numa entrevista: «A minha mão direita sabe muito mais do que eu».

 

Como se a escrita fosse uma sistematização?

É uma descoberta. A minha escrita é muito comunicante. Isso interessa-me. A gente tem de ter uma razão qualquer.

 

Tem?

Tem de ter um destino. Acho que é pela escrita que posso talvez comunicar alguma coisa daquilo que me interessa.

 

Há aqui dois planos: o da sua escrita na relação com os outros, e o da escrita na relação consigo e no que ela representa para si.

Uma vez estava a conversar no Brasil e alguém citou o Sartre, «O Inferno são os outros»; o Millôr Fernandes, que é muito meu amigo, disse: «Sim, sim, mas o céu também». Por mais que nos custe, não somos nada sem os outros.

 

O psicanalista Carlos Amaral Dias tinha um programa de rádio chamado «O Inferno somos nós».

Isso é outro aspecto. As pessoas, à medida que mais se valorizam, mais se angustiam e se queixam. Fui dando conta de uma sociedade que está cada vez mais queixosa e vive cada vez melhor.

 

A lamúria não é um dos sinais mais evidentes deste fim de século?

Devíamos ter consciência de que somos privilegiados. Já que se fala em globalização; a menina não é mulher no Irão, não vive em Angola no meio da Guerra, não vive na China ou na Coreia do Norte. Tenho bem consciência disto, além das coisas mais próximas: tenho muitos filhos, muitos netos, não tenho uma doença grave. Se me pusesse a lamentar fosse do que fosse, era escandaloso.

 

Estava a pensar no desfasamento entre aquilo que se sabe e se sente. Essas não são as coisas que sabe e independentemente dessas não há outras que sente?

Não lhe vou esconder que tenho as minhas depressões, que são de origem puramente física. Os médicos dizem que as minhas depressões são exógenas. Ou seja, não tenho motivos interiores para estar deprimido; é qualquer coisa química que me falta.

 

Nessas alturas toma substâncias que compensam a ausência?

Tomo, e depois passa. As minhas pequenas depressões foram verdadeiras metamorfoses: passei de lagarta a crisálida através do escuro do túnel. Fui-me libertando através de depressões que fui tendo.

 

A primeira grande depressão foi a dos 40 anos que o atirou para a escrita?

A primeira grande depressão de que tomei consciência – e é possível que tivesse tido algumas antes – foi essa, e daí comecei a escrever.

 

Com esta distância continua a achar que as razões eram todas exógenas?
Continuo. Como dizia o Jorge Amado, «A vida deu-me mais do que pedi e mereci». Dentro do que é ser humano, das suas vicissitudes e circunstâncias, de que é que me posso queixar? Portanto, faz-me muita confusão que as pessoas quanto melhor vivam mais se queixem. Não imagina o que era a pobreza quando era pequeno, os tipos com quem andava na escola, descalços, na Covilhã. Eu era dos poucos calçados. A sociedade nessa época não se queixava tanto como os filhos desses, que têm automóveis e não sei o quê.

 

A inveja não é um dos motores da lamúria? Por se saber e desejar o que o vizinho tem.

Não sei se será o motor. Existe um fundo de ressentimento horrível nas pessoas deste tempo, que nascem muito carenciadas de bens e de afectos. Isso depois tem de se manifestar numa certa inveja, numa necessidade de competir. Felizmente sinto-me fora disso.

 

Nunca competiu?

Não.

 

É espantoso sabendo das pessoas maravilhosas que conheceu e com quem privou. O Borges, por exemplo, não sentiu inveja do Borges?

Nenhuma. O Borges, com quem me dei muito bem, humanamente tinha muita coisa a dizer. Eu não queria a vida, a relação dele com os outros; aquele casamento e o divórcio. Ele casou um bocado de repente.

 

Com a rapariga jovem, no fim da vida?

Não. Quando casou aos 68 anos e esteve um ano e meio casado. Sabe como se separou? De manhã saiu para o trabalho e ela perguntou; «Que queres almoçar?», e ele disse «Cozido». À hora do almoço tocaram à porta e um advogado e dois homens das mudanças vinham buscar-lhe umas coisas com uma ordem de separação. Humanamente, quando fazem uma coisa destas, fico muito impressionado. O Brecht dizia e é verdade, «A grande obra de arte é a nossa vida».

 

Admira menos o Borges por causa desse ou de outros incidentes pessoais? Consegue fazer a destrinça entre o artista e o homem?

Consigo. O Jorge Amado, quando estava bom, valia tanto como a obra dele; humanamente era óptimo.

 

Preferia não ter conhecido o Borges? Não há pessoas que é melhor que permaneçam numa esfera inacessível para que fiquem tal qual as imaginamos e não como realmente são?

Não tenho essa ideia. A complexidade é muito importante no ser humano. Conheci pessoas muito generosas, mas que tinham, enfim, os seus defeitos, as suas fragilidades. Sinto que hoje tenho integradas as minhas fragilidades. O Sousa Tavares perguntou-me porque é que eu não tinha um inimigo. Não tenho porque me dá muito trabalho. Não posso pensar que vou gastar parte da minha energia, que me faz tanta falta, a zangar-me.

 

O que é que faz à raiva e aos maus sentimentos?

Deixo cair, não tenho. A própria discussão não me interessa. Não acredito que da discussão nasça a luz. Nunca aprendi nada a discutir, e sempre aderi ao que as pessoas me dizem com um espírito de afecto e comunhão. O Vitorino Nemésio era um homem com quem só era possível uma relação afectuosa. Essas pessoas é que me marcam.

 

Essa opção é-lhe natural ou e uma construção que escolheu para si?

Fui muito assim. As razões porque fui assim, é que me interrogo muito. Este meu feitio não sei se começou pelo medo que tinha dos outros. Era um menino muito tímido e medroso. Quando não somos capazes de conquistar, seduzimos. Começo a pensar se a minha relação com o mundo não veio de certos defeitos que se transformaram em virtudes.

 

Como essa suposta fraqueza ou vulnerabilidade.

Isso foi uma coisa que integrei, com grande gosto. A razão porque às vezes me exponho muito, e porque fui educado na moral do super-homem. Os grandes heróis que aprendi na escola foram o Afonso de Albuquerque, o Napoleão, o Alexandre. Não me dei conta que paralelamente havia pessoas fabulosas com aquilo que chamo valores culturais femininos. O S. Francisco de Assis, O Gandhi, tanta gente. O meu tempo, como ainda este tempo, foi muito marcado pelo poder.

 

No seu tempo a acepção do poder era diferente. Hoje a conquista é muito mais desenfreada, mas parte também das mulheres.

A coisa mais importante que vivi foi a entrada da mulher na História. Como é que ela entrou? Em grande parte, por uma tentativa de masculinização, isto é, conquista de poder. A Françoise Giroud disse que só haverá igualdade entre homem e mulher quando mulheres medíocres ocuparem cargos de responsabilidade. Por outro lado, este equívoco da mulher e da política; a política é hoje urna coisa tão pobre e redutora que a mulher não se sujeita a ter esse universo. Há um universo muito mais interessante e poderoso, que é o universo feminino.

 

O universo dos afectos?

Pois evidente, esse.

 

Que é também o seu universo.

Hoje tenho consciência disso, Comecei por cair na armadilha da razão, que não consigo pôr de parte. Está sempre presente um bocadinho de razão a estragar-me a vida. E depois comecei a ver que havia coisas muito mais importantes, A relação que tenho com os meus filhos, por exemplo.

 

Foi com certeza um pai diferente dos primeiros e dos últimos filhos.

Aos 30 anos deu-se uma grande modificação na minha vida. Até aí, fazia o que via fazer. Tinha a cultura da minha tribo, percebe?, (que aliás nos introduz na humanidade). Se não pomos em questão a cultura da tribo, o mundo não progride. O que aconteceu comigo foi que quando me comecei a interrogar já tinha seis filhos. Casei aos 23 e aos 30 tinha seis filhos.

 

Como escolheu a sua mulher?

Como acontecia naquele tempo: a gente encontrava-se, conhecia-se. Mas havia sempre uma barreira que era feita pelos costumes e que nos impedia de ir ao fundo de nós, de saber o que somos. Felizmente casei com uma mulher da minha educação, foi muito importante por causa da convivência que íamos ter.

 

Que círculos frequentava? Como é que as pessoas da sua tribo se conheciam e se davam?

Quando tinha a sua idade eram 2000 pessoas em Lisboa que compravam os livros, que iam aos concertos, que apreciavam o cinema. Tudo se passava entre 2000 pessoas condenadas a conhecerem-se. Mesmo a nível mundial, íamos ao Brasil e perguntávamos «Tu conheces o fulano?»: em França também, «Conheces um português?», Uns tempos depois do 25 de Abril, começou a haver turismo político. Uma vez apareceu-me um tipo óptimo, professor na Universidade de Turim, que, mais tarde soube pelos jornais, era nada mais nada menos, que o homem das Brigadas Revolucionárias

 

O mundo era pequeno e você conheceu pessoas extraordinárias.

Conheci o Lanza Del Vasto, por exemplo, que foi discípulo do Gandhi. Sendo uma pessoa extraordinária, já estou tão habituado a mim que não me trocava por ninguém. Não é porque seja melhor ou pior, é porque sou eu, e o mais importante é a minha história. O pavor que tenho da massificação é esse: a massificação destrói a história pessoal, que é uma coisa onde está baseada a filosofia e a religião do Ocidente.

 

Tem uma visão fatalista do virar do milénio?

Não. Tenho a consciência de que o tempo é artificial. Estou muito longe das aspirações da maioria das pessoas. Quando éramos novos tudo começava pela conquista do poder. O poder era o grande instrumento. Isso acabou; foi o grande contributo do Hitler e do Estaline, o descrédito do poder.

 

Porque foi exercido de forma totalitária e execrável.

A gente hoje vê que é muito mais importante a participação que o poder. Aquilo a que chamam democracia é mais uma forma de participação. O que tornou Portugal diferente não foram os deputados (claro que isso era essencial); o que tem sido o motor da alteração do país é a revolução autárquica.

 

Ou seja, o que se passa na nossa terra e na nossa casa para lá do país.

É bom que a gente não viva de abstracções. Foi a coisa mais grave do meu tempo; a direita, a esquerda, tudo, viviam fora da realidade. A realidade era a mesma, as aspirações eram as mesmas. Antes do 25 de Abril vivíamos todos da mesma maneira. Só que os da esquerda assinávamos o Nouvel Observateur, os jornais franceses, líamos o Sartre. E os outros não. Mas cada um de nós, na mesma, procurava ter o seu automóvel e o seu frigorífico. O Freud dizia que o esquizofrénico cada vez mais terá de se contentar com palavras na medida em que está cada vez mais separado das coisas.

 

Vivemos de conceitos.

Pessoas que resolviam problemas através de frases. A seguir ao 25 de Abril, as pessoas, para resolverem o problema dos seus privilégios, diziam: «Eu fiz a minha opção de classe». Quer dizer, a palavra, como símbolo, funcionou muito. O Borges, no prefácio da «Rosa Profunda», diz: «A palavra teria começado por ser aquele símbolo mágico que a usura do tempo iria desgastar. Cabe aos poetas recuperar o valor das palavras». Recuperar o valor da palavra humana.

 

É por relativizar os conceitos de esquerda e de direita que teve amigos tão diferenciados como Marcello Caetano e Mário Soares?

Sim, sim. Também é preciso ver a natureza do diálogo que tinha com eles. Nunca abdiquei de mim próprio quando falava com o Marcello Caetano ou com um tipo do Partido Comunista. Para mim, a liberdade é o valor que nos resta. A liberdade, a tolerância, os afectos.

 

Ora justamente: a palavra liberdade não provocava uma alteração na sua relação com Marcello Caetano?

Quando foi o 25 de Abril, tinha uma posição vincadamente anti-comunista, e algumas pessoas minhas amigas que eram do Partido, quando falavam do Cunhal diziam: «É que tu não o conheces!, se o conhecesses ... », Eu respondia: «Vocês não me digam isso que era o que me diziam do Salazar». Conheci a Marcello Caetano porque foi meu professor de Direito Administrativo, e criei urna boa relação com ele.

Uma boa relação como? De certeza que o Marcello Caetano não criava relações de amizade com todos os seus alunos.

Eu nem era um aluno excepcional. As pessoas podiam dar-se; há pessoas melhores que outras para a gente conversar.

 

Quando foi seu professor ele tinha já responsabilidade política?

Estava já ligado ao Regime. O que achava graça nas conversas com ele, é que ele estava convencido que era um tipo liberal.

 

Mas ele acreditava realmente?

Isso é outra coisa. Eu é que via que ele não acreditava na liberdade. Uma coisa que era muito importante: eles não acreditavam na pessoa humana.

 

No seu livre arbítrio?

Os tipos da direita e da esquerda não acreditavam nas pessoas, no fundo. Há uma desconfiança global. Ainda não conseguimos aceitar o outro; o diferente foi sempre um grande problema no mundo. O diferente ou nos fascina ou nos aterroriza. Uma das coisas a que dou importância na «Peregrinação» do Fernão Mendes Pinto é a capacidade que teve de se deslumbrar com o diferente.

 

A sua relação com Marcello Caetano e com Mário Soares é quase mitificada como a da pessoa que consegue fazer a ponte entre a esquerda e a direita.

Dou-me com o Mário Soares. Primeiro devo-lhe muito como português; a liberdade em Portugal tem uma grande dívida para com ele. Mas não é essa a razão. Conhecemo-nos desde novos, andámos metidos nas políticas. De facto, o tipo tem uma intuição política invulgar. Não imagina o que foi difícil aos católicos entrarem na política. Mas como me disse uma vez um filho meu, «à geração do pai, o que lhes valeu foi o Salazar, porque ao menos tinham razões para lutar por qualquer coisa». A frase do Ortega y Gasset sobre Portugal é extraordinária. Em 43 perguntaram-lhe o que ele achava de Salazar, ele disse: «Bom para governar oito milhões de moribundos». Por mais que custe, é verdade. Isto da Oposição, eram meia dúzia de pessoas.

 

Fazia parte de tertúlias de cafés e de reuniões secretas?

Sim, entrava nesses grupos. Uma vez íamos fazer uma revolução, combinámos uma reunião. Fui com o Jorge de Sena e mais uns políticos, entre os quais o Sousa Tavares. Lembro-me perfeitamente, eu estava ali por dever; sabia que aquilo não ia dar nada, e não deu.

 

Qual era o seu papel no grupo?

A única coisa que fazia e as únicas atitudes que tomei foi para, de manhã, fazer a barba e olhar-me ao espelho sem me envergonhar de mim mesmo. Foi só isso. Sabia e sentia que vivia num estatuto sem liberdade, que as coisas que escrevíamos eram cortadas pela censura, que o Alexandre O'Neill quando quis ir a Paris a Pide não o deixou ir. Para quem tem uma consciência de liberdade, é inaceitável. A minha formação católica, apesar de a Igreja estar muito ligada ao Regime, também teve importância nisso, o Evangelho é um texto de liberdade.

 

Como fazia a gestão doméstica nesses tempos?

Aos meus filhos dei-lhes a maior liberdade. Acho que fui um pai presente, embora com interesses por fora, política e literatura e não sei quê. Tenho a impressão de que não falhei com os meus filhos.

 

Porque é que teve tantos filhos?

Porque a gente naquela altura tinha.

 

Tinha a ver com a ausência dos anticoncepcionais?

Anticoncepcionais havia muito pouco. Por outro lado, não desgosto de ter muitos filhos. Eles foram aparecendo. Faz parte da irresponsabilidade com que vivo. Problemas de dinheiro, não vivo obcecado com isso.

 

Tinha dinheiro para ter sete filhos?

Acabei por ter. Embora tenha perdido todo o meu dinheiro com a experiência da Livraria Moraes. Hoje acho que foi uma boa coisa, que curei as minhas culpabilidades. O despojamento é importante.

 

É mais difícil quando se tem e depois se perde.

Sempre tive um carro barato. O meu único luxo, que é esta casa, veio porque se vendeu um terreno da minha mãe na Covilhã e tive algum dinheiro. De resto, nunca tive assim muito.

 

Que memórias é que ainda tem da Covilhã?

As da infância. Nós estamos sempre a nascer, como os rios, não é? Outro dia numa conferência na Universidade da Covilhã, lembrei que quando estava na Faculdade éramos 13. Hoje a Universidade da Covilhã tem 4000 alunos. Já é uma outra terra. Mas o meu imaginário de infância está todo ligado à Covilhã.

 

Foi um imaginário povoado de mulheres?

Sim, tiveram muita importância na minha vida. Eram as avós, as tias, as criadas velhas. Os pais eram a autoridade; não havia ternura da mãe e do pai.

 

A sua mãe não o encheu de mimos?

Não. O meu pai, que era uma pessoa de grande qualidade humana, tinha essa impossibilidade. Os pais não afagavam um filho.

 

É uma imagem marcadamente masculina. As mães sempre foram mais doces.

A minha mãe era um bocado autoritária. Mas as tias solteiras e as criadas velhas, a única vez que tinham um corpo nu era o de uma criança. Havia ali uma onda de ternura que foi muito importante. Também não sei se isto não serão construções da minha memória. A minha memória acabou por ser muito selectiva.

 

O que quer isso dizer?

Tive castigos, reacções duras (dos meus pais). Esqueci tudo isso.

 

Foi interno para o Colégio de Santo Tirso de castigo?

Íamos todos. Tinha nove anos. No colégio tinha um prefeito que era um sádico.

Não foi talhado para ser padre? Nas famílias da província havia sempre um tio padre.

Nem tanto. Os padres normalmente nunca eram das melhores famílias. A única maneira de promoção era ir para a seminário e fazer-se padre. Depois havia excepções, vocações. Os nossos pais, por mais católicos que fossem, não ficavam muito contentes por ver um filho ir para padre.

 

O que é que os seus pais queriam que fosse?

Tirei Direito. Na altura só se podia tirar Direito ou Medicina. O meu irmão tirou Arquitectura. Ninguém se formava em Económicas, em Letras.

 

As Letras destinavam-se às poucas meninas que tiravam cursos superiores. Teve vontade de as estudar?

Tinha, mas nunca pensei em tirar um curso de Letras. Talvez não tivesse coragem para formular isso. Quer dizer, tinha de ir para Direito ou para Medicina. Como não era capaz de ir para Medicina, porque nunca me entendi com a matemática nem com a química, fui para Direito com o qual não tenho rigorosamente nada que ver. E advoguei e ganhei dinheiro a advogar.

 

Foi o começo da sua vida? Foi assim que sustentou os seus filhos?

Aos 28, 29 fui de um irresponsabilidade total. Com o meu desejo de salvação do mundo, resolvi deixar de advogar e comprei uma editora para editar os livros de que gostava e que julgava que todas as pessoas estavam ansiosas que aparecessem Mas como só havia 200 ou 300 pessoas que compravam, acabei por gastar todo o dinheiro que tinha. Foi uma aventura que ainda durou seis anos, ainda deu para perder muito dinheiro.

 

É assim que olha para a aventura? Foi uma parte importante de si que se realizou ali.

Foi uma boa experiência, e, como digo, resolvi o problema dos meus privilégios. Fiquei curado das grandes culpabilidades que tinha em relação ao mundo.

 

Por ir para a escola calçado?

Sim, as culpabilidades dos filhos da burguesia.

 

Quando lhe perguntei se alguma vez esteve no caminho do sacerdócio, pensava também no seu sentido de dádiva e na relação com a transcendência, que é um tema essencial em si.

A razão não me satisfaz. Sou um ser inacabado e a ausência do mistério é um vazio que não posso preencher.

 

Nem com substâncias químicas. Desculpe, custa-me a acreditar que as suas depressões sejam todas exógenas.

Eles é que dizem.

 

Fez psicanálise? Tem na estante o Jung todo.

Não fiz nem gosto. Uma coisa é ler o Jung, outra é acreditar na psicanálise. O Jung era, sobretudo, um grande pensador. Uma das coisas que tenho contra a psicanálise é o facto de ser um factor de normalização, quando realmente precisamos é de fazer uma opção.

 

Na psicanálise também há um processo de relativização.

O facto de ter escrito e de haver sempre um lado autobiográfico... Como disse um amigo meu quando escrevi a «Peregrinação Interior», além dos direitos de autor, poupei o psicanalista. Acho que naturalmente me analisei e me exponho muito. Exactamente porque não tenho uma imagem de mim próprio que tenha de defender.

 

Todos temos coisas de que temos vergonha e que preferimos que os outros não saibam.

Os casos do amor e tudo isso, às pessoas com quem tenho intimidade, conto. Não os exponho porque acho que é um exibicionismo que não interessa.

 

Pode esclarecer se o que escreve é um retrato fiel de si ou um retrato ficcionado de si?

Há uma coisa em que sou um mau romancista: é na impossibilidade de escrever coisas que não tenha conseguido viver. Por outro lado também descrevo coisas da minha experiência imaginada. Se conheço alguém e imagino ter um romance com esse alguém, descrevo-o e não quer dizer que se tenha passado. No «Tia Susana, (meu amor)» toda a gente me perguntava quem era a Tia Susana. Aí senti, de facto, a frase do Flaubert, «Madame Bovary c'est moi».

 

O livro novo chama-se «O Tecido do Outono», uma fase que está a viver.

Chega-se a certa altura e muda-se. Eu até acho que mudei tarde. Até aos 67, 68 anos sentia-me na minha juventude.

 

Tinha a ver com pujança física?

E com a relação com o mundo. Vê-se no «Riso de Deus», que é uma visão optimista e gloriosa da vida.

 

É feliz?

Sou. Sou sobretudo sereno, que é o que procuro; felicidade, felicidade, não é possível.

 

Como é que deixou de se sentir jovem?

Foi depois de uma depressão. O feminino continua a ser extremamente importante, mas a natureza da minha relação com as mulheres não é a mesma de antigamente. Havia sempre um elemento de desejo; hoje a minha relação é muito mais tranquila.

 

Sente uma nostalgia desse tempo em que predominava o desejo?

Nunca predominou; era uma componente forte, sim. Devo dizer que não tenho nostalgia nenhuma.

 

Há uma passagem deste livro em que os personagens falam da transcendência, nus, depois do desejo saciado, Parece que em si o prazer do corpo é indissociável do prazer da discussão.

Temos que encontrar uma fórmula de as pessoas se amarem em que o corpo não possa ser posto de parte. No penúltimo capítulo, em que ele tem aquela namorada...

 

Jovem.

Sim, Quis dizer que isso não é impossível.

 

Aconteceu-lhe?

Oh, há coisas possíveis. Vivemos numa cultura em que o homem de uma certa idade é posto de fora dos jogos do corpo e do prazer. Realmente o que é importante é que sejamos capazes de olhar para o nosso Outono e de saber que é uma nova etapa. Há problemas chatos: um tipo ter atenção à tensão arterial, um tipo às vezes ter tonturas. A coisa que temo não é a morte, é a senilidade.

 

Diz no livro que o que mais teme é o ridículo e não se dar conta do ridículo.

O meu pai morreu cedo, aos 70, e conservou a sua lucidez; a minha mãe morreu aos 80 também lúcida. Mas tive um tio que a partir dos 80 quando estava em Lisboa julgava que estava na Covilhã, levantava-se às duas da manhã para ir para a quinta. Ainda agora estive com um grande amigo meu na Baía que está a antítese do que foi. Porque é que não o deixaram morrer quando aos 83 anos teve uma coisa no coração? Que é que interessa estar a viver assim?

 

Consegue transpor isso para si?

Não sei. O Kostler, a certa altura, estava com o Parkinson muito adiantado: tinha 74 anos e matou-se. Mas isto são teorias, não sei como vou viver uma coisa dessas.

 

Mesmo para o suicídio é preciso lucidez.

Em Inglaterra há um clube em que as pessoas se amparam e entusiasmam para fazer isso. A coisa que mais me aflige é deixar de ser eu. Tenho uma relação com a minha história pessoal muito forte: é o que fui, o que fiz, o que sou, percebe? Custa-me imaginar que vou viver com uma sombra de mim próprio, com pequenas referências de mim, Não sei, não julgue que é coisa que me preocupe assim...

 

Não pensa muito na morte, nem quando os da sua geração vão desaparecendo?

Tem graça que tenho tido uma conformação muito grande. Morreu o Zé Rabaça, que era um tipo com quem tinha uma relação muito forte; mas morreu lúcido. O David [Mourão Ferreira], o Zé Cardoso Pires. O que noto é que foi um tempo que acabou. Quando estou a falar consigo, que e uma menina muito pequena, sinto que há uma nova sociedade.

 

Eu tenho a idade da sua filha mais nova. Como está com ela, como está com esta nova sociedade?

Lindamente. Às vezes rio-me, outras vezes não me faz assim muita impressão. Ela tem uma relação extraordinariamente afectuosa comigo. De maneira que tenho a impressão de que não é aí que se vê. Onde vejo, por exemplo, é na cultura, A literatura de hoje não me diz muito. Ia a Paris e os pintores eram o Picasso, o Chagall, estavam lá todos. Os escritores o Malraux, o Camus, o Sartre, o Graham Greene, o Huxley.

 

Que coisas lê agora?

Leio esses tipos.

 

Na nova geração de escritores portugueses que coisas tem lido?

Leio os livros das minhas amigas. Li o da Margarida [Rebelo Pinto] e gostei, e gosto muito da prosa da Luís Beltrão. Porque me entretêm, me divertem. A leitura ou me diverte ou não me interessa; e a escrita, ou é um prazer ou não me interessa.

 

É assim que passa o tempo, a ler e a escrever?

Também não. Sou de uma preguiça pura. Fui educado no trabalho como valor. Na minha «Peregrinação Interior» escrevi que o trabalho não é um valor; trata-se de uma relação entre a nossa energia e a nossa subsistência, mas que o Protestantismo tinha criado a ética do trabalho e aquelas coisas. Uma vez fui à televisão com o Agostinho da Silva; o jornalista tinha lido o meu texto, virou-se para o Agostinho da Silva e perguntou: «O senhor está de acordo com isto?». E ele respondeu: «É claro que estou. Fala-se muito da Sida, o trabalho mata muito mais que a Sida».

 

Passou então a vida a trabalhar sem acreditar no trabalho.

Tive a sorte de ter trabalhos de que gostei muito. Adorei ser presidente do Instituto Nacional do Livro. Depois fui para a Fundação Oriente e gostei imenso daquilo. Fui administrador até aos 65 anos, depois reformei-me e tornei-me consultor.

 

Sente-se satisfeito da vida que teve?

Estou satisfeito, de uma maneira geral, da minha relação com o próximo (das pessoas com quem me dei e me dou). Não desgosto dos meus livros, acho que são testemunho de uma mentalidade e de uma época, e parece-me que fui o único que seguiu esse caminho.

 

As suas marcas são a transcendência e a mulher.

O amor e a transcendência. Por mais que faca, não consigo sair daqui. Os meus livros, não me envergonho deles, mas também mão acho que sejam assim uma coisa espectacular. Não tenho ambições literárias. O importante é que as pessoas que estão perto tenham uma boa imagem de mim, que não as magoe, não as fira.

 

Os seus filhos são todos da mesma mulher?

São. Talvez porque não acredite no casamento. Se fosse a casar com todas as mulheres que amei não tinha feito outra coisa. Uma coisa é o amor, outra é o casamento. O Denis de Rougemont diz, e com razão, que a crise do casamento começou quando os casamentos começaram a ser feitos por amor.

 

O seu foi um casamento por amor ou foi o tempo que esculpiu o amor?

Naquele tempo não havia casamentos por amor. Não pude definir bem, quando casei, o amor com a minha mulher. Foi uma coisa que só veio depois. Tive sorte porque somos duas pessoas educadas e civilizadas. O que tento dizer neste livro é que há necessidade de uma nova formulação da relação homem-mulher.

 

Só consegue desejar o que é belo?

Aquilo que é belo interiormente.

 

Está bem. Todas as fotografias afixadas são de mulheres belas.

De quem fui amigo.

 

Desejou feias?

Também. Tenho relações óptimas com mulheres feias. A grande vantagem da mulher sobre o homem é que ela já é capaz de amar um homem feio. Porque o vê por dentro. Tenho a impressão que as mulheres com uma certa maturidade interior, embora achem piada a um tipo bonito, não sei se são capazes de viver ou casar com um tipo só por ele ser bonito.

 

Tem uma fama avassaladora de sedutor.

Não é uma forma de sedução. Reparei que trato bem as mulheres. O meu universo e os meus interesses são femininos. No outro dia, num jantar, estava um administrador de um banco à minha frente e uma escritora portuguesa ao meu lado. Estávamos muito bem, ela a falar do neto e dos livros. E ele, coitadinho, de vez em quando interrompia-nos para contar histórias do Viagra sem piada nenhuma. E vi a grande diferença que há entre um homem e uma mulher. Não quer dizer que não haja homens com aquilo a que chamo valores femininos.

De que é que fala com os homens?

Falo pouco.

 

Há quem deixe carros e contas bancárias aos filhos. Qual acha que é a sua herança?

Deixo esta casa, não deixo conta bancária. Espero deixar-lhes uma boa imagem de mim, que me recordem sempre com saudade e com amor. Não quero que ninguém tenha de mim uma má recordação. Não é para isso que fomos feitos. O projecto humano é qualquer coisa de que temos só ainda uma intuição. Ainda não descobrimos como se amam as pessoas. A grande questão é pensar nas subtilezas do amor; como se ama uma mulher, por exemplo. Quando a gente tem menos desejo é um bom exercício. O desejo é muito bom mas baralha muito as relações. A paixão é uma psicose e ela vem dos interditos ao desejo.

 

É naturalmente polígamo?

Acho que sim. O amor de uma mulher é uma obra de arte, é um quadro único.

 

Nunca tem a noção da posse?

Ai isso não. Não tenho ciúmes. Nunca fui capaz de amar alguém sem respeitar a sua liberdade. Eu não sou de ninguém, ninguém é de mim. Se me perguntar porquê, não sei; está na minha maneira de ser. Uma das coisas que destrói a relação é a propriedade. Mesmo que a gente sofra.

 

Quais são as suas dores? Fala de tudo com tão grande 1eveza.

Procuro a serenidade. Não poderia saber, sei lá, se tivesse a morte de um filho ou de uma pessoa muito próxima, como iria reagir. Perante mim próprio, quero ver se consigo ter urna vida serena. Depende também da noção que se tem da importância e desimportância de nós próprios.

 

Como dizia com o O'Neill, não se leva muito a sério.

Porque talvez seja exactamente a maneira de nos levarmos a sério.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias, em 1999

António Alçada Baptista morreu em 2008