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Anabela Mota Ribeiro

Isabel do Carmo

30.01.21

Num sábado, pela manhã. A casa banhada por uma luz sossegada. A mulher, que caminha para os sessenta, enredada em memórias. A voz da mulher, amaciada pelos anos, contraria a angústia inconformada que ainda a consome. As histórias são as de um Portugal contemporâneo, propenso a querelas políticas e minudências do quotidiano.

Um dia esta mulher pensou em fugir-lhe, e deixou-se fascinar pelos solavancos de uma existência revolucionária. Que significa viver pelo que se acredita, morrer pelo que se acredita.

Os últimos 20 anos, solidamente, reputaram-na na Endocrinologia. E aqueles que agora nascem, não descortinam no imediato que vida era aquela que antes levava, que a fez política, que a manteve encarcerada. Que a fez sonhar. Para, como diz ao fim, se deixar infiltrar pelo sofrimento das coisas que ao coração dizem respeito.

Isabel do Carmo nasceu no Barreiro. É a mulher que a seguir se revela.

 

Gostava de começar por esta casa. Como é que a encontrou?

Quando saí da cadeia foi-me oferecida uma casa, e fiquei a morar em Camarate. Era uma casa num bairro social, tinha jardinzinho, foi arranjada por nós. Mas era muito distante, e tinha dificuldade em que os meus amigos me visitassem lá. Então, há três anos procurámos uma casa, e acabámos por encontrar esta. Vivo aqui com os meus dois filhos: a Isabel, que tem 28 anos, e o Sérgio, que tem 23.

 

Separou-se do Carlos Antunes.

Sim. Quando nos separámos, resolvi mudar de casa; foi uma das razões para a mudança.

 

Como deve imaginar, os despiques da conjugalidade não me interessam. O que é interessante é o que a vida faz com as pessoas e com as relações entre as pessoas. No passado, a Isabel do Carmo e o Carlos Antunes eram faces indissociáveis da mesma luta.

Para nós também funcionava assim, pelo menos para mim funcionava. Era uma ligação de grande complementaridade e cumplicidade. Depois, pronto, as pessoas acabam por ter forças que as separam mais do que as unem. Foi uma separação muito dolorosa, ao cabo de 25 anos.

 

Conheceram-se em Paris, não foi?

Sim. Foi um encontro político. A nossa vida foi sempre muito política. Talvez até demasiado. Talvez a parte mais íntima fosse posta de lado e fosse dada uma maior relevância à parte política.

 

Tinha vinte e muitos anos, militava no PC. Ele era responsável por si.

Não tanto assim. Eu era ainda militante, mas estava numa situação de crítica em relação ao PC. Fui fazer um estágio de medicina para França. Estava muito envolvida nas CDE’s, e uma vez lá, falei num comício. O Carlos Antunes estava na assistência e veio ter comigo. E foi assim.

 

Quem era a plateia?

Emigrantes económicos. Falei eu e falou o Urbano Tavares Rodrigues. O Carlos Antunes era funcionário do PC justamente para a população portuguesa em França. Eu fui indicada como representante da CDE durante o curto período em que lá estava, e acabámos por ter alguma ligação política. Depois conjugámos as nossas críticas em relação ao PC, e saímos ao mesmo tempo.

 

O que aconteceu em 70. Justificava a sua saída do PC essencialmente por dois motivos: a leitura dos Processos de Moscovo e a invasão da Checoslováquia. Ao mesmo tempo, considerava que o PC português ficava aquém das suas possibilidades, não contemplando, por exemplo, a luta armada.

O Estalinismo foi uma situação de grande repressão interna, de intolerância em relação a qualquer ideia divergente. Estaline liquidou a quase totalidade do Comité Central do PC russo. E liquidou um projecto.

 

Um sonho?

Um sonho. Mas em relação aos outros países tinha uma política moderada.

 

Não é inevitável a degenerescência dos projectos utópicos?

A grande questão está em saber o que é que o movimento revolucionário de 17 já continha de gérmenes que desembocaram no Estalinismo. A posteriori é fácil fazer análises: era um país muito atrasado, de camponeses,  90 e tal por cento de analfabetos; provavelmente os primeiros actos arbitrários e repressivos foram praticados pelo Lenine e pelo Trotsky...

 

Será possível identificar no momento um excesso intolerável e irreversível e um excesso sem repercussões significativas?

É um ponto essencial nos movimentos revolucionários: saber quando é que as coisas têm de parar, para a defesa do projecto, a qual inclui repressão, e quando isso evolui para uma situação de repressão generalizada. Penso que no futuro, as questões não serão postas assim.

 

Porquê?

Porque as novas revoluções, se é que revoluções se lhes pode chamar, as novas roturas, não vão ser da mesma maneira.

 

É difícil prever quais vão ser as questões pelas quais as pessoas vão fazer revoluções, e que armas vão empenhar.

As coisas são diferentes em países da África ou da América Latina e países da Europa ou dos Estados Unidos. Naturalmente gostaria de ainda as ver, mas passarão alguns anos até haver roturas. Esta sociedade está insuportável, tanto nos países pobres como nos países desenvolvidos. Só quem for louco é que não vê que um mundo que tem 750 milhões de famintos e outros a rebentar de fartura, um dia rebenta.

 

É nessa assimetria Norte-Sul...

Essa assimetria vai ser, provavelmente, um dos pontos da rotura; até quando os famintos vão aguentar esta situação criada pelos países ditos industrializados. Depois, dentro dos países da abundância...

 

Nesses a doença é a solidão?

É o quotidiano, que é insuportável. Que vida é a das pessoas que moram nos bairros periféricos? Não passam fome, até têm aparelhos electrodomésticos, mas a verdade é que as depressões são generalizadas. Por outro lado, há as fracturas dentro da sociedade; os bairros degradados têm bandos de jovens que entram numa revolta que não é uma luta de classes porque não está organizada e politizada, mas é uma revolta contra a sociedade dos ricos.

 

De uma forma ou de outra, o seu lugar foi sempre o do contra.

Ah, temos que resistir com um discurso contra-corrente. Quando olhamos para a história, vemos que o discurso contra-corrente se vai sedimentando, que acaba por conduzir a roturas a determinado momento.

 

É o seu contributo?

Neste momento é. Não me interessam as formas de organização em que estive no passado. Nos partidos geram-se questões de disputa de poder, de competição, que consomem a maior parte da energia. A que me interessa é a de grupos que se geram sem interesses partidários.

 

A partir dos 80, eclipsou-se politicamente. As aparições dos últimos anos têm que ver com a sua área de trabalho, a Endocrinologia. É fácil para si remeter-se ao silêncio depois de uma vida política tão intensa?

Isso não aconteceu de facto. Logo que saí da cadeia fiz uma tentativa séria de me organizar com várias organizações de Esquerda.

 

Quais?

O PSR, a UDP, o que restava da LUAR. Quando o Otelo e os companheiros do Otelo foram presos, imediatamente o Carlos Antunes e eu criámos uma comissão pró-amnistia. Depois formei o Fórum Ecologista e Alternativo. Depois integrei as Feiras Alternativas. E agora estou muito ligada a iniciativas da Livraria Ler Devagar. Ao longo destes anos não houve semana nenhuma em que não tivesse reuniões políticas. Simplesmente as coisas não aparecem publicamente. A visibilidade é dos partidos e das pessoas ligadas aos partidos.

 

Nestes últimos anos, o meio tem sido a palavra, através de encontros com pessoas. Aquando da formação das Brigadas Revolucionárias e da sua primeira acção na Fonte da Telha, justificaram-nas dizendo que os portugueses tinham muita conversa, mas não faziam nada.

Havia muitos grupos com grandes discussões ideológicas, distribuíam muitos escritos, e não faziam acções necessárias ao derrube da ditadura. Foi princípio nosso que não faríamos nenhum papel antes da primeira acção. Mas penso que a comunicação entre as pessoas é muito necessária. Até porque, a história contemporânea tem de ser discutida e digerida, houve acontecimentos que voltaram o mundo do avesso. A esse nível, houve avanços extraordinários, as pessoas estão mais abertas, menos rígidas.

 

A começar por si. As fotografias da altura mostram-na sisuda.

Pois era. Foi um grande erro. Mas estava muito preocupada com a situação, achava que era tudo muito sério; de maneira que apresentava-me com aquele aspecto. Quando olho para trás, acho mesmo que era um ar incrível, que afastava as pessoas. Mas quando leio os escritos, não correspondem a isso: não eram nem sectários nem rígidos.

 

À semelhança da degenerescência do Estalinismo, era também previsível que das Brigadas Revolucionárias pudesse resultar uma organização como as FP- 25? Conseguiu vislumbrar o risco inalienável de morrerem pessoas?

É outra questão importante, sobre a qual gosto bastante de reflectir. Em relação às BR, tivemos como ponto de honra não matar ninguém; pensávamos que ninguém tem o direito de tirar a vida, seja na pena de morte seja em acções armadas.

 

Foi um ponto consensual?

Consensual. Houve alguma discussão entre o Carlos Antunes e o Nuno Bragança, que pensava que se devia tirar a vida aos pides, etc; mas para nós foi ponto assente. As Brigadas nunca foram uma organização militarizada isolada da política. Mas há um sério risco nas organizações armadas de elas se tornarem militarizadas, e ganharem uma estrutura em que a política é cada vez mais posta de lado. É mais fácil discutir coisas técnicas, (funcionamento das armas, funcionamento dos grupos), do que discutir política, que levanta muito mais dúvidas, requer uma maior capacidade de análise. Foi-me dado observar que há uma fortíssima tendência, sob a bandeira da organização, para os grupos se tornarem tecnocráticos das armas.

 

A questão é onde reside efectivamente o poder, na inteligência da análise ou na burocracia das armas.

É um factor real que pode levar à infiltração da polícia – é mais fácil um agente infiltrado discutir armas que discutir política; e estas organizações deixam-se infiltrar que é um disparate... E há a questão da degenerescência das pessoas. É fácil numa organização tecnocrática armada as pessoas afastarem-se dos objectivos políticos.

 

É fácil porquê? É apenas o desejo de poder?

É o desejo de subsistência, que coincide com o desejo de poder. Como se observa em todos os partidos, o objectivo principal é a sobrevivência enquanto organização, o engrandecimento enquanto organização. Os objectivos estratégicos apontados nos programas são esquecidos a maior parte do tempo. Passa-se o mesmo com as organizações armadas. Com o risco de estarem armadas.

 

Acabou por não dar uma resposta taxativa, se é que há, para a questão do perigo em que incorriam quando fundaram as BR ou avançaram para acções como a da Fonte da Telha.

Sempre tivemos consciência disso, nomeadamente o Carlos Antunes que nunca foi militarista e impregnou politicamente as acções. Digamos que as Brigadas nunca degeneraram. A grande cisão que houve com a fundação das FP-25 foi porque, de facto, nós não admitíamos essa orientação. 

 

Quando percebeu que poderia ser acusada daquilo de que veio a ser acusada? Foi no momento da cisão?

Um bocadinho antes. No 25 de Novembro fomos derrotados. Tínhamos um projecto revolucionário, que foi derrotado por um golpe de Direita.

 

Continua a achar isso?

Ah com certeza. Penso até que é evidente.

 

Um golpe de Direita que precisou da conivência de alguma Esquerda.

Houve conivência posterior. Precisou de um álibi, e desencadeou uma provocação com aquela história de Tancos; mas preparavam o golpe desde Agosto. Depois teve a aquiescência do Partido Comunista. Ficámos derrotados. Pensávamos, e penso, que teria havido uma grande reviravolta na Europa se em Portugal tivesse triunfado um poder revolucionário, novo. Não foi. A partir do 25 de Novembro fiquei à espera de ser presa. Tive os primeiros mandados de captura em Dezembro. 

 

Foi presa em 78, três anos depois. Como viveu esses anos?

Organizávamo-nos muito para resistir.

 

Vivia também da política? A medicina estava completamente posta de parte?

Nessa altura sim. Mas fazia consulta no Hospital do Barreiro uma vez por semana, nunca deixei de fazer. Nem mesmo em 74/75. Era muito engraçado!, no meio daquilo tudo, lá ia eu fazer consulta. Fomos presos em 78 e a cisão com as pessoas que formaram as FP- 25 foi só em 80. Mas de facto, os gérmenes já estavam lançados. Quando fomos presos, havia muitas discussões internas que conduziram a essa cisão.

 

A propósito dos 25 anos do 25 de Novembro, o Carlos Antunes dizia numa entrevista, num tom megalómano, que foram derrotados, mas que «isto» estava nas vossas mãos. Houve um momento em que acharam verdadeiramente que isto estava nas vossas mãos?

O Carlos Antunes diz muitos factos que são realidade, mas a entrevista reveste-se de um estilo que não me parece interessante do ponto de vista político. Dá esse aspecto de megalomania. Antes do 25 de Novembro realmente tínhamos muito poder.

 

Que se concretizava em quê?

Tínhamos uma influência séria em muitos quartéis, nos chamados quartéis revolucionários, havia grupos armados em sítios fundamentais.

 

Está a falar do país?

Do país, mas sobretudo Porto, Setúbal e Lisboa. Havia uma ligação a bases do PC que estavam armadas. Houve uma tentativa séria, entre nós e os militares, de ter uma liderança unificada. Mas, por um lado, não estávamos a organizar, ao contrário do que se diz, um golpe de Esquerda. Por outro lado, não nos organizámos eficientemente para resistir ao golpe de Direita.

 

Sabiam do golpe da Direita e não se organizaram. Porquê?

Sobretudo por dificuldade de liderança comum, entre nós e os militares.

 

Os militares são por acaso criaturas voláteis, permeáveis aos intentos ora da Esquerda ora da Direita?

Os militares foram excelentes, sinceramente dispostos a resistir. O grande problema foi o Copcon, que teve uma posição oscilante.

 

A grande dificuldade, para começar, passava pelo entendimento de toda a Esquerda, da mais moderada à mais extremada.

Que não havia. A divisão entre nós e o PC era uma divisão de fundo, marcada pela diferença de objectivos. O PC obedecia à política da União Soviética, que não queria um poder revolucionário em Portugal, sobretudo um poder revolucionário que lhe escapasse ao controle. E escaparia.

 

O objectivo do PRP nos meses que antecederam o 25 de Novembro era constituir um governo revolucionário com o documento Copcon, redigido em Julho, como programa. A manifestação dos SUV, Soldados Unidos Vencerão, foi um mês antes.

Os SUV foi uma coisa extraordinária! Eram conselhos de soldados, soldados mesmo, já não tinha a ver com os oficiais. Ocupou toda a cidade de Lisboa, e acredito que tenha provocado medo, para usar grandes chavões, medo à burguesia, às pessoas instaladas.

 

Como é que assistiu a isso?

Lá dentro!, na manifestação. Os SUV foram libertar dois soldados que estavam presos na Trafaria, e foram mesmo libertados. E isso também é poder. De uma maneira geral, eram pessoas modestas, pobres, que nunca tiveram poder de coisa nenhuma, que foram sempre comandados.

 

Significa que em Junho ainda acreditava no seu sonho?

Comecei francamente a pôr em dúvida a possibilidade quando vi os militares indecisos. Depois fez-se o documento do Copcon, com o MES e os militares, e houve a manifestação do Copcon. Houve ainda a manifestação da FUR, e aí o PC esteve envolvido. Há um momento em que o PC vem ter connosco, tivemos mais que uma reunião na sede do PRP.

 

Foi o PC que foi ter convosco, o que queria dizer alguma coisa.

Queria dizer que tínhamos poder. Naturalmente havia por parte de algumas pessoas do PC a sincera ideia de uma junção. Antes disso tivemos um encontro com o Vasco Gonçalves, no mesmo sentido, e quando foi feita a manifestação da FUR havia uma unidade entre os militares revolucionários, o Vasco Gonçalves, que representava os militares ligados ao PC, e o Costa Gomes que representava... [riso] a tendência de equilíbrio ou compromisso.

 

Na altura era também entendido assim?

Era. A grande ofensa que se gritava da manifestação ao general Costa Gomes era «Social Democrata»! Chamar Social Democrata era um terrível insulto. A dada altura ele gritou de lá de cima, «Eu não sou Social Democrata»! [risos] Eram tempos em que as pessoas acreditavam muito numa transformação, na organização da sociedade em termos de poder descentralizado e distribuído. Até o PPD tinha socialismo no programa. Os discursos de Sá Carneiro, eram inflamados esquerdistas!

 

Qual era o seu sentimento quando estava com «o inimigo»?

Nunca tomei como inimigo as outras facções de Esquerda. Inimigo era a Direita. Mesmo aí havia pessoas a quem dificilmente poderia chamar inimigo: Vasco Lourenço e todos os outros militares que entraram nisso.

 

O que era um inimigo suficientemente poderoso para a tirar de si?

A Direita. Logo a seguir ao 25 de Novembro, foi realmente atrevido..., fui fazer um comício a Viana do Castelo. Poderia ter sofrido qualquer coisa de grave; fizeram-me um cerco ao carro e perseguiram-me até ao Porto. Felizmente viajei com muita segurança.

 

Viajava com segurança?

Tinha escolta armada. E aí corri sérios riscos.

 

Revelava uma coragem física e moral extraordinária. Ainda que fosse extremamente provocadora. Não tinha medo de espécie alguma?

Tenho medos, medos concretos, muito grandes; como seja andar de avião. Depois não tenho medo de confronto, nem físico nem ideológico. Não tenho medo do confronto com a polícia. Há quem diga que o medo de inimigos concretos depende da relação com o pai. Que os pais muito repressivos criam medos. O meu pai era muito doce, muito querido, nunca nos bateu, e não tenho medo nenhum da autoridade.

 

O seu pai foi a sua grande influência. Tanto quanto sei era um homem intelectualmente avançado, muito aberto. Tinham uma existência confortável num universo oprimido como o Barreiro. 

Vivíamos num nível superior ao da maioria das pessoas do Barreiro, tínhamos acesso aos meios culturais: frequentávamos o teatro, íamos a concertos. Mas sempre à tira em termos de dinheiro. O meu pai foi uma influência determinante; era do PC, mas anti-estalinista, embora com os artifícios que as pessoas arranjam para desculpar certas coisas. À volta da minha casa havia muita movimentação de pessoas envolvidas nas lutas – tinham estado na Guerra de Espanha, com todas as suas recordações, tinham estado no Tarrafal.

 

Foi o fascínio por esta gente interessante, que por acaso era revolucionária, que a conduziu aos meandros da política?

Acho que sim. Os contadores de histórias político-pessoais exerciam um grande fascínio sobre mim. Está a ver, as pessoas optarem por uma vida em que tudo é rotina, dá-me uma angústia terrível! E essas pessoas tinham histórias que fugiam ao quotidiano.

 

E a sua mãe?

Acompanhava muito bem estas coisas. Era radicalmente de Esquerda. Tanto que durante o período revolucionário tomou posições mais à Esquerda que o meu pai.

 

Como é que eles acompanharam o seu percurso?

Ah, os meus pais foram extremamente solidários. Com receios, já se sabe. Os pais saberem que os filhos vão ser presos..., que horror, não é? Mas nunca, nunca me disseram para deixar de ter actividade política, fosse antes do 25 de Abril, fosse depois.

 

Mesmo na greve da fome?

O meu pai tinha uma conversa do tipo «Vê lá, o Bobby Sands [guerrilheiro do IRA] acabou por morrer, o Poder é capaz de ser inflexível...». Mas nunca me disse para desistir. Tenho um respeito enorme por isso, imagino o que será ver um filho ao fim de muitos dias de greve da fome. Pelo contrário, o meu pai acabava sempre por dar uma palavra de encorajamento à luta. Falou-me do Bobby Sands, mas depois escreveu-me uma carta a dizer «As lutas são assim, lembra-te dos guerrilheiros de El salvador...». Impecável.

 

Chegou a chorar quando leu essas cartas?

Ah, claro, claro que chorava. É muito bom as pessoas chorarem.

 

A sua imagem era a tal da extrema dureza e inflexibilidade. Era capaz de chorar em público?

Isso talvez fosse mais difícil... Além disso, chorei sempre por emoção ou comoção, nunca por medo ou esmagada pelas circunstâncias.

 

O que constituiu o seu baptismo político aos 15 anos?

Entrei para o MUD juvenil quando o MUD estava quase a terminar. Entre os 10 e os 14 estudei no Liceu de Setúbal, e foi maravilhoso: eram 300 rapazes e raparigas, num regime muito liberal. Olhe, a Odete Santos também andou lá. Aos 15 fui obrigada a vir para Lisboa, estive dois anos no Maria Amália e por um triz não dei em delinquente! Aquilo era uma repressão completa: as raparigas não podiam andar sem meias, os rapazes não podiam passar no passeio em frente.

 

Estávamos no baptismo político aos 15 anos.

Nessa altura fui contactada para o MUD juvenil.

 

Por quem?

Por uma rapariga do Barreiro, mais velha. Distribuí panfletos do MUD, julgo que relativos ao julgamento do Agostinho Neto, de forma tonta e perigosa. Dois anos depois entrei para a faculdade de medicina e normalizei-me completamente – deixei de ter a atitude de revolta primária do Maria Amália. Uns meses mais tarde fui convidada para entrar no PC.

 

Porque é que foi para medicina numa altura em que as pessoas que tinham interesses políticos cursavam Direito e Económicas?

Penso que não está desligado da maneira filosófica como via o mundo e as pessoas. É paixão por conhecer o ser humano na sua globalidade, e essa é também uma forma política de estar no mundo.

 

Havia alguém na sua família em medicina?

Não.

 

Quando entrou na faculdade passou a frequentar o Cineclube Imagem e era uma apaixonada pelo cinema.

A certa altura comecei a viver com o Ernesto de Sousa, ele é que estava ligado ao Cineclube Imagem.

 

Foi o seu primeiro amor?

Não, já tinha tido bastantes namorados! [risos] Enquanto andei no liceu tive sempre namorados.

 

É difícil imaginá-la, rapariga namoradeira com interesses voltados para os rapazes…

Era mesmo muito dada a essas actividades! Não se acreditava que era a mesma pessoa, que estava no quadro de honra e que tinha namorados todos os anos!, desde os dez anos! [risos]

 

Isso é bestial! Como é que funcionava?

Como sempre: olhava-se, mandava-se uns bilhetinhos, e havia os bailes. Organizei uma vez uma greve num baile. Durante muitos anos proibiam os meninos das escolas técnicas de virem aos bailes do liceu, o que era uma distinção de classe insuportável. A greve consistia no seguinte: se os rapazes das escolas técnicas não fossem admitidos, não dançávamos. Perante tal ameaça, rompeu-se a regra e vieram.

 

Aos 21 anos começou a viver com o Ernesto de Sousa. As uniões de facto não eram propriamente convencionais.

Foi quanto houve de mais transgressor! Para os meus pais foi chatíssimo! Não aceitaram de maneira nenhuma... Até que acabaram por aceitar.

 

Nunca teve o ideal romântico do casamento?

Isso não! É como a vida quotidiana: dá-me muita angústia.

 

Entretanto casou com um médico, que é o pai da sua filha.

Em 70/71 fui presa, e a Pide não deixou que ele me visitasse. Quando saí casámos, dava-nos mais garantias para situações futuras.

 

Era também revolucionário?

O Orlando Lindim Ramos esteve preso cinco anos em Peniche, foi funcionário do PC. Era um homem muito firme.

 

Só pergunto para saber se seria possível ter uma relação com uma pessoa que não vivesse os entusiasmos da política.

Não, não. Não concebo para mim a vida em comum ou o erotismo com pessoas em relação às quais não há uma fusão do ponto de vista do pensamento.

 

Uma das imagens mais comuns associadas ao PREC é a de um desbragamento sexual enquanto explosão depois de um período repressivo.

Francamente nunca me foi dado observar situações dessas. Mas é natural. As pessoas eram muito jovens, estavam muito juntas umas com as outras. 

 

Em 73 viveu clandestina durante alguns meses. Como foi esse período?

Foi mau, como todas as clandestinidades, e para as mulheres foi sempre pior. Começámos por estar, eu e a minha filha, então com dois anos, numa casa da Dra. Laura Ayres, em Sesimbra. Tínhamos de ficar todo o dia fechadas em casa, e ela gritava, barafustava, queria ir para a rua ver os cães! Depois foram as sucessivas estadias, e por fim acabei por mandá-la para casa da minha irmã. Uma separação dolorosíssima. Tanto que no dia 25 de Abril a primeira coisa que fiz, eu estava no Porto, foi meter-me num carro e vir por aí a baixo ver a minha filha. Ela olhou para mim com um ar de zanga, como «De onde é que vem esta...».

 

Os seus filhos passaram por coisas terríveis. Como é que se explica a um filho que, de uma certa maneira, há uma causa que se sobrepõe?

Nunca tive problemas a esse respeito. Nunca fiz aquela história do proselitismo, dos discursos ideológicos muito marcados. E também nunca fiz as conversas da martiriologia, o que as pessoas sofrem e não sei quê, para os comover. Foi tudo sempre pela positiva: pelas coisas que queremos, pela sociedade que desejamos, pelo que queremos construir.

 

Mas quando volta a ver a sua filha com ar de zanga, não é imediato que ela perceba tudo isso.

Essas coisas que não são expressas – a primeira separação, quando fui presa, novamente a separação, as idas à cadeia; emocionalmente deixam marcas muito pesadas. Mas, sobretudo com ela, nunca me mostrei oprimida ou subjugada ou a sofrer. No período que antecedeu a minha prisão passeava com ela em frente ao Conselho de Ministros, ali na Estrela.

 

Olhe que era bem provocadora...

Para lhe dizer, «Estás a ver, está aqui o Governo todo, mas sou mais forte que eles, eu é que sou forte». Ela tinha seis anos, julgo que lembra até mais do que eu fazia: ela diz que eu dizia que era mais forte que isto e aquilo e aqueloutro, e que mandávamos nisto e naquilo e não sei quê. Ficou-lhe a imagem de uma mãe poderosa. Mas acho muito importante que as pessoas não se mostrem enfraquecidas e martirizadas, porque os filhos vão beber aos pais a força.

 

Como bebeu do seu a força e a doçura.

Pois.

 

Disse que escolheu ser presa.

Com certeza. Antes do 25 de Abril observei pessoas no exílio, e é um sofrimento terrível: estar afastado da terra, sem se saber quando se pode voltar, perdendo os laços com os amigos, com a família, com tudo. É preferível estar na cadeia!

 

Continua a achar isso hoje?

Continuo, cada vez mais. Estar na cadeia?... Então vão lá as visitas todas... [gargalhada], lê-se os jornais portugueses.

 

Conseguiu sempre relativizar e gracejar?

Sim, mesmo nessa altura. Quando o pai da minha filha, o Orlando, e mais dois amigos saíram de Peniche, que não era brinquedo, contaram imensos episódios, gozavam os guardas, e transformavam aquilo em graça. Quando estive na cadeia, consegui sempre dar a volta.

 

Mesmo na fase de incomunicabilidade total?

Estive um ano ao todo. Primeiro nas celas da Judiciária – as condições da Judiciária do Porto são de masmorra, umas paredes larguíssimas, uma janelinha de grade e um balde para as necessidades. Com uma criança. Depois vim para Caxias, a cela tinha melhores condições, eu é que estava numa incomunicabilidade tal que só tinha dez minutos de visita e um quarto de hora de recreio.

 

Chegou a odiar?

Ódio, ódio... Não, o ódio é uma coisa que nos consome. Posso ter uma grande combatividade, uma grande energia. Mas, se quer que lhe diga, as coisas que me afectam são as coisas afectivas. Quem me provocou bastante raiva foi a Vera Lagoa; acompanhou toda a minha prisão com uma campanha no «Diabo» que levou ao endurecimento das minhas condições na cadeia.

 

Era pelo facto de ser mulher?

Foi com certeza pelo facto de ser mulher que implicou mais. Inclusivamente pôs uma caricatura do meu filho, que tinha oito meses, carregadinho de armas, a dizer «Os camaradas vão lá levar armas»! É preciso uma criatura ser muito reles, muito inferior, para fazer uma coisa destas.

 

As pessoas imaginavam que os seus filhos, sobretudo o Sérgio que estava consigo, poderiam ser um instrumento para a amaciar?

Nunca pensei nesses termos. Tinha direito a ter a criança, e para mim era sempre melhor ter a criança. A Isabel chegou a ficar em Custóias várias vezes, chegou a ficar um mês seguido; em Custóias as pessoas eram muito simpáticas.

 

Como eram esses momentos?

Uma maravilha! Entrava na visita e depois recolhia comigo; a maior parte das vezes com desconhecimento do director, mas com conhecimento da chefe das guardas e das outras guardas. Na cadeia estavam sobretudo prostitutas, muito jovens..., eram crianças. Faziam-lhe brincadeiras, pintavam-na, punham-lhe saltos altos. Ela adorava aqueles teatros.

 

Aproveitou para ler e reflectir. Diz-se que, mesmo nos anos quentes, nunca deixou de estudar medicina.

É verdade. Quando as pessoas se isolam nas coisas políticas e cortam os laços com o mundo é terrível. Ainda há muito poucos meses uma colega minha, com quem durante anos não contactei, e em casa de cujos familiares estive clandestina, apareceu-me com um livro de medicina, daqueles grandões!, com o qual andava atrás de mim na clandestinidade para eu estudar. Ela guardou aquilo religiosamente, está a ver?, 20 e tal anos, e agora veio trazer-mo. É comovente. E na cadeia andei sempre com muitos livros, é um óptimo sítio para ler.

 

Quando avançou para greves da fome, o que é que achava que a sua vida valia?

Valia a pena do sacrifício. Uma pessoa que morre em greve da fome, lutando por um objectivo, marca terrivelmente um país, uma situação política. Ninguém pode duvidar da sinceridade e da justeza daquele objectivo. Como objectivo político, vale e pena o risco, vale a pena o risco.

 

A democracia estava já instalada. Já não era o ideal revolucionário. Tinha que ver com os processos de que eram alvo.

Era uma luta mais reivindicativa. Mas não se pode desligar uma coisa da outra. Se morrêssemos, a morte era pela revolução, apesar de ser apenas pelas condições de prisão, pela amnistia, etc. Ninguém dá a vida por uma coisa de detalhe, uma coisa particular. Dá-se a vida pelos grandes objectivos. Ficava, ficava na consciência das pessoas como a morte dos que se tinham rebelado.

 

O Carlos Antunes dizia que era assim que ficaria para os vossos filhos, que ficaria o exemplo de coragem e dignidade.

E era, acredito sinceramente. Embora tivesse muito medo de morrer. Muito medo de morrer. Mas, a certa altura, as coisas assumem um caminho irreversível. Não há escolha. Por uma questão de coerência.

 

Não sentiu alguma vez um espírito de heroicidade a insuflar o sacrifício?

Não há heróis, há caminhos irreversíveis. E então, o que fica é uma imagem de heroicidade. Mas os caminhos é que são irreversíveis. Se a pessoa voltar para trás, é a sua própria dignidade que fica em jogo. E é pior, é pior que arriscar a vida.

 

A sua filha mandava-lhe desenhos. Nunca fraquejou?, nunca se interrogou sobre o sentido que tudo aquilo fazia?

A questão dos filhos é a mais difícil de suportar, mais para as mulheres que para os homens. Mas devo ter pensado isso várias vezes.

 

Como é que os seus filhos a vêem? A Mãe-Médica, a Mãe- ex-Revolucionária?

Ah, vêem as duas coisas. Mas vêem muito a parte política e intelectual, talvez mais que a médica. O nosso convívio é muito na base das coisas políticas e intelectuais, na discussão dos grandes temas.

 

Sentem orgulho no seu percurso?

Acho que sim, eles dizem que sim.

 

Acreditaram sempre em si? Uma vez, falando com um jornalista, disse «Apesar das acusações, quer acredite quer não, não sou bombista».

É verdade.

 

O que eu gostava de saber é se tem importância para si que as pessoas acreditem na sua inocência, e que pessoas.

É muito importante. Se tenho ideias, está muito na minha natureza explicá-las às pessoas, e querer que acreditem nelas. Vivo muito na comunicação; por isso gosto muito que as pessoas acreditem em mim.

 

Quando saiu da cadeia, a sua vida foi estruturada de uma outra maneira.

Tive de começar tudo do zero. Não tínhamos nada. Não tínhamos casa, não tínhamos lençóis, não tínhamos comida. Depois recomecei a medicina, que foi a forma de ganhar algum dinheiro. Foi lento, foi uma luta de perseverança.

 

Dificuldades entre pares?

Algumas, há sempre, coisas de competição e tal.

 

Eu pensava nos colegas e nos doentes que olhavam para si como a Isabel-Bombista.

Nunca senti isso. Comecei no Barreiro, onde o ambiente é muito bom. Depois de ter começado, houve uma coisa muito aborrecida – voltei a ser presa, em 84, no consultório; estive pouquíssimos dias, mas foi um golpe, porque estava a reinstalar-me com muitas dificuldades, sobretudo de natureza económica. O meu filho assistiu à minha prisão, foi atrás do carro a correr... Uma cena deplorável. Quando voltei, as pessoas receberam-me com ramos de flores. No Barreiro o ambiente foi-me sempre muito favorável. As pessoas queixavam-se das doenças e depois falavam da política! Ainda hoje é assim.

 

Desculpe se insisto na imagem do casal; mas o Carlos Antunes parece incarnar uma volúpia pelo poder. Era também o seu amor por ele...

Não, não. De uma forma mais simples, não era ele que me influenciava nesse sentido. Muitas vezes tivemos posições discordantes dentro do PRP, e, isso que diz, era para mim também claro – que nos distanciávamos nessa forma de estar. Isso sim, isso faz sofrer. Tinha a visão de que, se as coisas caminhassem no sentido do poder, possivelmente divergíamos. Embora o Carlos Antunes seja uma pessoa muitíssimo clarividente.

 

O casamento ficava em risco se divergissem?

Sim.

 

Então a causa maior era a pátria.

A pátria da revolução! Pois claro que sim.

 

Porque é que o seu filho se chama Sérgio?

Chama-se Sérgio porque era o pseudónimo do pai durante a clandestinidade. Quando o conheci ele era Jacques.

 

Qual era o seu?

Elisa. Foi-me arranjado pelo Carlos Antunes. Nós tratávamo-nos assim e tínhamos um rigor que agora até parece impossível. Eu não sabia, por exemplo, onde era a rádio clandestina. Fui levá-lo ao aeroporto e tive de sair para não ver para onde se encaminhava. Portanto, só vim a saber o nome dele muito mais tarde.

 

Foi ele que lho disse?

A certa altura disse: «Já agora, podes saber o meu nome».

 

Foi num momento amoroso?

Foi. [risos] Depois formaram-se as Brigadas e ele passou a ser o Sérgio. Aliás, enquanto vivi com ele, e ainda hoje quando me refiro a ele com pessoas dessa época, digo sempre «O Sérgio». Nunca lhe chamei Carlos. Carlos Antunes é como se fosse uma personalidade estranha.

 

É curioso, parecem tantas vidas numa só.

E são.

 

 

Publicada no DNa do Diário de Notícias em 2001

http://www.isabeldocarmo.pt 

 

 

 

Diário da Flip 2017 (Paraty)

20.01.21

Quando Dona Diva falou em Paraty, era sexta de manhã. Estava um calor suave, é Inverno de mais de 20 graus. A plateia seguia uma conversa sobre racismo com o estratosférico Lázaro Ramos e a jornalista do Público Joana Gorjão Henriques. A plateia transbordava, porque Lázaro é estratosférico (ou seja, é popular de um jeito que não se acredita) e porque o tema do racismo se impôs como discussão urgente no Brasil. O outro tema é feminismo. Além da omnipresente desigualdade, corrupção, violência, além de todos os problemas adjacentes a estes, e de todos os problemas crónicos de um país que vai levando. Pela primeira vez na história da FLIP, uma festa que tem nos livros o motor e um alcance internacional, havia mais mulheres do que homens entre os autores convidados. E negros. Facto nada despiciendo. Sintonia indispensável com as discussões de todos os dias. Chapeau à curadora, a jornalista e biógrafa de Jorge Amado, Josélia Aguiar.

E então emergiu Dona Diva da plateia. Muitos anos, muita sabedoria, muita coragem para partilhar uma história que comoveu aquela plateia e os milhões que entretanto souberam dela e viram os 12 minutos de catarse de uma vida nas redes sociais. Se me lêem neste passo, interrompam tudo e vão ver. Porque naquele pedaço está a história (triste) do mundo. Dona Diva é neta de escravos, é professora. Falou de racismo, falou de educação, falou de ter assistido na véspera à mesa "Em Nome da Mãe" com a brasileira Noemi Jaffe e a ruandesa Scholastique Mukasonga e de as palavras destas a terem inspirado a contar a sua história. “Eu sou uma sobrevivente pela educação, pela luta da minha mãe”. A mãe que sofreu humilhações, que lavava roupa para fora em troca de material escolar. Diva revoltava-se. Diva queria ajudar, trabalhar, ganhar. "Igual à senhora? Nunca vou ser", "Então só tem um jeito, vai estudar", "E eu pegava no meu caderninho e saía correndo para a aula, acreditando”.

Fui eu que moderei esta conversa entre Noemi e Scholastique. Pudesse eu imaginar que na plateia estava Dona Diva. Pudesse eu imaginar que aquelas palavras teriam o efeito de uma bola que deflagra qualquer coisa dentro.

Na verdade, e com muita pena minha, não vi Dona Diva em directo. À mesma hora estava na Casa Amado e Saramago a assistir a uma intervenção comovente da Bruna, menina de 20 e poucos. Antes da Bruna, falaram a escritora portuguesa-angolana Djaimilia Pereira de Almeida e a poeta-interventora-sei lá mas tudo Adelaide Ivánova, sobre mulher, corpo, intervenção. Recortei estas palavras para o meu caderno: "desde que estejamos na luta", "preconceito interiorizado", "onda de coragem de pessoas comuns", "emergência de processos emancipatórios", "a partilha empodera?". Eram tantas, tantas mulheres. Eram tão jovens, tão bonitas, brancas, negras, articuladas, valentes. Ligadas numa certeza que surgiu daquele momento, do que juntas disseram. Bruna partilhou a vez em que foi a uma delegacia apresentar queixa por tentativa de estupro. Tentativa??, responderam zombando, tentativa?? Bruna deduzia que só seria levada a sério se aparece ensanguentada como a vizinha que um dia socorreu e que era espancada pelo marido.

O que é que a banalização da violência sobre a mulher tem que ver com literatura? O que é que a discussão sobre a cor da pele tem que ver com literatura? Tudo. A não ser que se olhe a literatura como uma ilha de marfim onde não entram as tormentas do mundo. A não ser que se considere que literatura e política são incomunicantes.

Não foi esse o entendimento de José Saramago, em cuja casa estive nessa sexta de manhã e nos outros dias da FLIP. A Casa Amado e Saramago tinha o estatuto de casa parceira da programação oficial. Foi a minha casa, com gosto, com orgulho. Saramago era um pensador político; não por acaso, no discurso de recebimento do Nobel da Literatura, e quando passavam 50 anos sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, exortou à elaboração de uma carta dos deveres humanos, incitou-nos, cidadãos, a exigir, a agir, a ser plurais.

Já estive uma vez com Saramago no México, nunca havia estado com Saramago no Brasil. Num caso e noutro, é um estar metafórico. E num caso e noutro, estive com hordas de pessoas que faziam bicha durante horas para assistir a uma conversa, ver fotografia de José e Jorge sentados na Bahia com ar folgazão, ouvir Pilar del Río, sempre veemente (quando Pilar falou na programação oficial, estava na plateia uma camioneta de alunos de Ciência Política, vindos de São Paulo, quatro horas e meia de caminho, para a ver). Soa estranho escrever isto, mas vou escrever: vi no México e no Brasil uma loucura afectiva, táctil por Saramago, além de um conhecimento profundo da obra, que nunca presenciei em Portugal.

A casa era numa rua de pedras largas e irregulares, como todas do centro de Paraty. Era uma casa pequena onde couberam muitas vezes 200 pessoas. Sessões esgotadíssimas, dezenas de pessoas à espera meia hora antes de entrar, programação intensa. Pilar del Río e Paloma Amado eram as anfitriãs. Os cúmplices: Ricardo Viel e Sérgio Letria da Fundação Saramago, Rosarinho Prata-que toma conta de todos com atenção extrema e discreta. Outros cúmplices: Lilia Moritz Schwarcz, Luiz Schwarcz da Companhia das Letras, que lançou o livro com as cartas trocadas pelos dois amigos ao longo de sete anos (ainda não há data para a publicação de "Com o Mar por Meio" em Portugal). Intervieram na casa Andrea Zamorano, Frederico Lourenço, Giovana Xavier (do grupo Intelectuais Negras - Visíveis), José Eduardo Agualusa, José Luís Peixoto, Ondjaki, entre outros. José António Pinto Ribeiro e Luiz Eduardo Soares (o sociólogo que escreveu o livro que esteve na origem de "Tropa de Elite") tocaram na ferida: apontaram a inexistência de um Estado de Direito no Brasil e da necessidade imperiosa de o construir. Lívia Nestrovski, Fred Ferreira e Talita del Collado interpretaram um repertório que nos remeteu para o universo dos dois escritores; ouviu-se "Utopia" de Zeca Afonso e "Gabriela", claro.

Foi a segunda vez que estive em Paraty durante a festa literária internacional. Fui a partir do Rio, maravilhei-me com o caminho serpenteado. Entretanto soube da chegada de 10 mil militares ao estado do Rio de Janeiro. É um país em brasa aquele em que estou. O Rio vai quebrar, já quebrou, há uma vaga de assaltos a camiões de mercadoria, comentam. O Estado não paga a funcionários públicos há três meses, há cantinas e bibliotecas de universidades fechadas desde o começo do semestre. Brasília não sabe se sobrevive ao dia seguinte. E o futuro?

Aprendi, conheci pessoas, fiquei com vontade de fazer coisas. Um dia depois de chegar parecia ter passado uma semana, tal a torrente. Percebi que a palavra mais escutada foi convulsão. Palavra potente: convulsão. Quem imaginaria Dona Diva pedindo a palavra há dez anos, há cinco, há um? Notem que o escritor homenageado foi um negro, Lima Barreto. Há coisas a acontecer. Há coisas que não podem ser estancadas. Que privilégio seguir de perto, estar na rebentação.

 

 

 Publicado no Jornal de Letras em Agosto de 2017

Eduardo Serra

10.01.21

O que faz um director de fotografia? Interpreta um texto com a luz. Produz sentido com imagens. Eduardo Serra está no lote dos melhores do mundo. No começo, ele era um menino triste do bairro da Picheleira.

Ele é aquele com quem Helena Bonham Carter pratica o francês, quando estão a filmar. É o escolhido por Kevin Spacey para o filme em que o actor se estreia na realização, Beyond the Sea. O que ri com as piadas de Robin Williams. O que deixa o telemóvel à entrada da festa de Demi Moore, como todos (“No pictures, please!”). É aquele que tem um relógio em cujo verso se pode ler: “Com admiração e gratidão, M. Night Shyamalan”. O que filma o par romântico Juliette Binoche/ Emir Kusturica no pólo norte.

É o único português duas vezes nomeado para o Óscar. A primeira com The Wings of the Dove, no ano em que tudo foi ganho por Titanic. A segunda com Rapariga de Brinco de Pérola (quando fez uma luz tão mágica quanto a de Vermeer e colou o rosto de Scarlett Johansson ao da rapariga do quadro do mestre holandês). Ele é também o que todos os anos faz um Chabrol e um Leconte com o conforto de quem está em casa – os franceses consideram-no um dos seus. E é aquele que filma em Lisboa, sobretudo, pelo prazer de ver a luz de Lisboa.

O seu primeiro filme, enquanto director de fotografia, foi, justamente, o de um português: Sem Sombra de Pecado, de José Fonseca e Costa. Estava-se em 1982. Gostou tanto do que fez – ainda hoje o considera um dos seus melhores trabalhos – que organizou um visionamento em Paris, para o qual convidou todas as pessoas que conhecia; também apareceram outras que não conhecia. Nunca mais parou.

Quis ser realizador. Mas a escola que o admitiu, a École Nationale de Photographie et Cinématographie, “em princípio é feita para directores de fotografia e engenheiros de som”. Foi director de fotografia.

Eduardo Serra nasceu em Lisboa em 1943. Quando saiu de Portugal, contou-me um dia, a ponte ainda não existia. A ponte era a 25 de Abril, na altura Ponte Salazar. Foi há muito tempo, portanto. Saiu para Paris, e Paris é a base. Mas cada vez mais, a sua casa é o mundo.

Nos próximos dois anos, vive em Londres para trabalhar nos dois últimos filmes da saga Harry Potter.

É casado e tem um filho. Foi pai depois dos 50 anos. Em 2004, Jorge Sampaio atribui-lhe a Ordem do Infante Dom Henrique, por serviços prestados à cultura portuguesa.

 

 

Podemos começar pela sua obsessão com o tema da memória ou pela descrição que fez da Scarlett Johansson.

O que é que eu disse? Não me lembro!

 

Disse que era redondinha, pequenina, com um beiço saído e a pele translúcida! Provavelmente só um artista notaria que a pele é translúcida.

Uma pele translúcida é uma extraordinária matéria-prima. A relação luz-pele é fundamental para o meu trabalho. Entramos já na zona da fotogenia? A fotogenia é uma parte daquela coisa impossível de definir e que se resume nisto: ter 50 pessoas no campo de imagem, e toda a gente ver uma, e não ver as outras 49. Os americanos dizem: “The camera loves her”.

 

Pode ser a intensidade do olhar, a cor da pele, a maneira como se está? A primeira vez que me falou de fotogenia foi a propósito da Isabelle Adjani.

Ficou-me para sempre. Deve ter sido em 1970, em Faustine et le bel été. Era um filme bonito, um look David Hamilton, mas vestido. Havia um coro de meninas, umas seis ou sete, vestidas de branco, com rendas. Visionávamos os rushes e comentávamos entre nós: “Já viste?, aquela está-se sempre a ver”. Num ecrã cheio de gente, era a primeira coisa que se via! Era a Isabelle Adjani. 

 

A Scarlett Johansson é, sobretudo, voluptuosa. Não fez um comentário lúbrico…, que era o que milhões de pessoas fariam.

É raro um director de fotografia ter um filme sobre um rosto, uma imagem – aquele quadro do Vermeer. Se ela não tivesse uma pele tão transparente, o filme podia não ter ficado tão bem. As outras coisas não eram essenciais para mim. A Scarlett era muito nova, tinha 17 ou 18 anos. Só uma vez, num jantar, apareceu como a conhecemos hoje: com um decote, maquilhada. A maior parte das vezes, vi-a já no set ou como se fosse fazer jogging. Entra por uma porta isso e sai por outra uma vedeta!

 

As pessoas têm Rapariga com Brinco de Pérola muito presente. A partir dele, pode explicar o que faz?

É presunçoso dizê-lo, mas o que tento é criar sentido com as imagens. É importante compreender quais são os elementos dramáticos. O que vou iluminar, as imagens que vou criar (sobre o trabalho de outros), devem levar o público a entender o argumento. Não me interessa fazer uma coisa que seja bonita. Posso fazer uma coisa austera, feia, se me parece que é necessário. De um modo subtil, não manifesto.

 

Dando intensidade? Provocando um sentimento, com o efeito da luz?

Sim. E que seja o sentimento certo. O que é que leio no argumento? E como é que eu posso traduzir isso, apoiar isso, explicar isso?

 

Como se interpretasse um texto com a luz?

É uma boa definição.

 

Para fazer o filme, foi ver os quadros do Vermeer, um a um.

Fui. Evidentemente já os conhecia. O que me interessava era ver aquela camada de transparência que há nos quadros do Vermeer. A reprodução, quando é boa, anda lá muito perto; mas há uma parte que é própria da matéria, e isso não vem nos livros. Queria ter um contacto físico com o objecto. Na edição em DVD perdeu-se uma coisa que fiz: um efeito amarelo no epílogo.

 

Um efeito amarelo?

O verniz, nos quadros, vive melhor ou pior, e às vezes amarelece. Na película, dei esse efeito do tempo que passou, do verniz que muda de cor… É uma brincadeira!

 

Só você sabe que está lá.

Mas, quando é possível, é a minha marca. O quadro: uma coisa que eu não sabia e que praticamente ninguém sabe sem ver o original. O brinco não é uma pérola. É um brinco de metal, uma bola metálica. E o brilho, é o reflexo da janela. Não há pérola nenhuma.

 

Isto é importante por convocar a sua relação com a pintura e a sua formação. Depois de estudar cinema, foi para a Sorbonne estudar Arqueologia e História de Arte.

A minha formação foi caótica. Comecei pela matemática. Não era a minha vocação, mas não era uma coisa que odiasse – pelo contrário. Até reunir o que era importante para mim levou um certo tempo.

 

Matriculou-se em Engenharia por causa do interesse pela matemática?

Não. Não foi uma escolha racional… Temos de ir mais atrás. Quem é de Lisboa sabe que na Alameda Afonso Henriques há, de um lado, o Instituto Superior Técnico, e do outro, a Fonte Luminosa. Depois da Fonte Luminosa, há um bairro criado no fim dos anos 30: a Picheleira. Foi aí que nasci, que vivi, de pais muito modestos. Há esta imagem: quando se chega da Picheleira à Alameda, desce-se a Fonte Luminosa, e depois sobe-se para uma coisa imensa, um sangri-lá! O Técnico. Era o símbolo da ascensão social.

 

Nunca me tinha contado isso.

Não? Era simbólico. Era para ali que eu devia ir. E Engenharia era lá.

 

Ver o Técnico ao fundo e querer fazer parte desse mundo: tem memória disso desde quando?

Desde sempre. Quando entrei para o Técnico já tinha as maiores dúvidas que isso fosse a minha vida. Tentei. Andei lá três anos. No primeiro ano, não correu muito bem; só fiz uma cadeira. Já estava mergulhado nos cineclubes. No segundo, foi a crise académica de 62. E no terceiro, não fiz nada, já só estava lá.

 

Estava lá? O que predominava era um desejo de pertença e integração?

Eu era outra pessoa. Era um facto que o que me interessava, já, era o cinema, e não a Engenharia. Mas, a par disso, havia a questão política. Que, para mim, não era um prazer. Era um dever. Muita gente tinha uma certa exaltação nas manifestações, nas discussões. Eu nunca tive. A participação nas lutas académicas e políticas não me excitava. Mas, como se sabe, não havia escolhas quanto a partidos. Era ou tudo ou nada.

 

Era-se de esquerda ou era-se fascista.

Era-se comunista ou era-se fascista.

 

Quem é que o levou para o PC?

Tinha uns conhecimentos, dos cineclubes, do Diário de Lisboa Juvenil, da associação de estudantes. Cada vez se fica mais ligado. Não vimos do nada. Ao fim de meses ou anos de participação, vem uma proposta. Mas nunca fui um bom militante. Só mergulhei na política porque me parecia indispensável.

 

Ensombrava-o o fantasma da Guerra Colonial?

Sim. A minha célula caiu quatro ou cinco meses depois de eu sair. Foram presos, todos os outros. A PIDE não estava interessada em prender gente como eu – de base, o peixe pequeno. Só quando a base da pirâmide os levasse a um líder do Comité Central. Não me admirava nada que estivesse queimado. Evidentemente estávamos queimados. Oficialmente eu só conhecia cinco pessoas que sabia que eram membros. Sempre calculei que muitos outros fossem, mas não era permitido fazer perguntas. O problema era: quando fôssemos presos, o que é que acontecia?

 

Até onde resistimos? Quando é que soçobramos e falamos?

Fico contente por não ter que saber como é que me teria comportado.

 

No seu grupo, sobressaiu? Hoje, sobressai porque é extraordinário no que faz, mas, ao mesmo tempo, é o elemento mais discreto no plateau. Não tenta captar a atenção do Leonardo Di Caprio quando filma com ele.

Há um ditado francês que diz: não se podem mudar as riscas da zebra. Eu sou assim. É vital ter o meu espaço. Todas as pessoas têm a sua zona intransponível. A minha é talvez maior do que a média. Mas não tenho problemas relacionais e não sofro com isto. É de nascença: não sou capaz de ir bater à porta de uma pessoa para falar com ela.

 

Quer dizer que quando você e o Di Caprio falaram na rodagem de Blood Diamond [2006], foi ele que falou consigo?

Estávamos em conjunto, falámos. Já tinham passado uns meses desde o arranque da filmagem. Calhou termos uma conversa. Ele também fala pouco. Entre um plano e outro, ficava sozinho, pedia para ver o que tinha feito. Ele e eu podíamos ficar muito tempo, lado a lado, sem falar.

 

Com a Scarlett Johansson, como foi?

Falámos. Ela falava mais.

 

Falavam do seu trabalho sobre o rosto dela? O ano passado, já consagrada, convidou-o para fazer a fotografia de uma curta-metragem que realizou (ainda que a proposta não se tenha concretizado).

No caso dela, havia a mãe, que é produtora. Como estava sempre por perto, falávamos muito. Estava por perto para proteger a imagem e os interesses da Scarlett. Mas não interferia.

 

Contou-me que a Kate Winslet, com quem filmou, e o Sam Mendes, com quem quase filmou, foram ao estúdio do Harry Potter. Estava contente com o reconhecimento profissional e a afectividade dela.

São casos particulares. Com a Kate, trabalhei num dos filmes mais importantes para mim [Jude, 1996]. Fico contente que ela não tenha apagado esse filme. Ela é muito…, como é que se diz?, não é extemporânea; é expansiva.

 

Faltam-lhe as palavras em português porque está cansado?

Se calhar. É mais difícil saltitar entre as três línguas.

 

Vai fazer 66 anos em Outubro. Sente que está a envelhecer?

Capaz disso. Mas o cinema conserva.

 

Quando o vi, depois da morte da sua mãe, pareceu-me acentuadamente mais velho. Ou então, era tristeza.

Não tenho essa percepção. Não que dizer que não seja pertinente. É sempre difícil, mas nos últimos dois anos de vida dela, estávamos à espera que acontecesse. Para ela, foi uma libertação.

 

A sua mãe foi a pessoa que mais o fez? É certo que o seu pai morreu cedo e que a marca da sua mãe é mais prolongada.

A última vez que vi o meu pai foi quando me fui embora, em 63. A minha mãe vinha a Paris, mas ele não podia. O objectivo da vida deles foi passar-me para uma secção superior. Não faziam despesas, não tinham mais filhos. Tudo para eu fazer estudos superiores. O que me isolava de todos os rapazes do bairro. Os meus pais não me deixavam brincar na rua.

 

Não queriam que fosse um gandulo? – que era a expressão que se usava.

Não queriam que eu me perdesse. Era um bairro de pobres. Os meus pais eram muito pobres de origem, mas quando nasci já viviam melhor. Tanto um como outro, trabalharam muito. É uma coisa linear: como é que se arranja dinheiro para viver decentemente? Trabalhando mais e melhor do que os outros. Tinha também uns padrinhos que ajudavam, não financeiramente mas materialmente. Toda a minha vida, até ir embora para Paris, almocei nos dias de semana em casa dos meus padrinhos, na Praça do Chile.

 

Não tinham filhos?

Não. Fui um filho adoptivo. E aos domingos íamos os cinco passear. O meu padrinho tinha um carro lindíssimo, um Riley. Os dois homens eram malucos pelo futebol, as mulheres seguiam, e eu também me interessava. Até Coimbra, íamos ver jogos de futebol. Era ir, almoçar, ver o jogo e voltar.

 

Conversavam? Perguntavam-lhe coisas? Ou as crianças eram “a canalha” – como há pouco recordava?

Eu era o reizinho. Filho único, com dois pais e dois padrinhos, não passava despercebido!

 

Como é que era tratado?

Eduardo. Os meus padrinhos chamavam-me Eduardito.

 

Ainda que tudo fosse em função do Eduardo, não lhe eram permitidas coisas de que gostava muito. Iam ao futebol até Coimbra, mas não o deixavam jogar futebol na rua.

Um dia consegui ir um bocadinho. Ainda me lembro desse dia! Já não me lembro porque tive direito a isso. Os “rapazes da rua” era uma imagem terrível, a evitar a todo o preço.

 

Foi a única vez que jogou futebol?

Acho que sim. Ia sempre à ginástica na sede do Sporting.

 

Porque era mais fino? Era por isso que o deixavam ir?

Levavam-me! Quase de rastos. Mas, como se dizia, o menino não tem quereres. Aos três anos, dado o meu volume, acharam que eu precisava de fazer ginástica. Até ao terceiro ano do liceu, o meu pai levava-me, três vezes por semana. E ficava a ver.

 

Porque é que menciona o facto de o seu pai ficar a ver?

Porque era o único! Coisa que me embaraçava bastante. Depois dizia-me que não tinha feito bem, que não tinha vontade nenhuma de fazer aquilo… Tinham medo que eu chegasse atrasado, tinham medo que eu fosse sozinho…  

 

Uma flor de estufa.

Completamente. Essas cenas, essas cenas do Sporting…

 

Teve uma infância triste?

Francamente triste. Completamente fechado. 

 

Dê-me uma recordação boa da sua infância.

[pausa] Procuro, procuro… [nova pausa] Há-de haver. Ah, quando era muito pequeno: no Natal levaram-me pela mão para outra sala, abriu-se a luz, e estava lá um comboio a andar. Tinha três, quatro anos. E também havia as idas ao cinema. A minha madrinha levava-me ao S. Luiz.

 

Tinha um combate dentro de si entre o amor pelos seus pais e pelos padrinhos?

Não. Estava bem definido, regulado. Entendiam-se bem. A minha madrinha não podia ter filhos. Conhecia a minha mãe da praça; era cliente. Tudo se passava naquele quarteirão. O meu pai e a minha mãe vendiam no mercado de Arroios e os padrinhos eram comerciantes.

 

Era um furo social acima. Era diferente ter uma loja ou vender carne e peixe no mercado.

Sim. Eles tinham automóvel, a vidraria na esquina. O meu padrinho era um republicano feroz. Numa tentativa de derrubar a República, lá foi, como voluntário, para o combate. Era maçon. Mostrou-me uma vez o aventalzinho. Era anti-clerical e anti-Salazar. Personagem estranho. Tinha piada. Todos os dias tinha em casa o Diário Notícias e semanalmente a Vida Mundial.

 

A sua mania dos jornais vem daí? É capaz de fazer desvios consideráveis para comprar jornais.

Aqui em Londres, todos os dias faço um desvio para comprar o Guardian, o Libération e o Monde. O Público, já não encontro no estrangeiro, mas tenho assinatura online. Em minha casa, o meu pai tinha o Diário de Notícias ao domingo. Eles matavam-se a trabalhar. Levantavam-se às cinco da manhã – a minha mãe, mais tarde.

 

Para o vestir e mandar para a escola?

Sim. Fiz a primária numa escola privada, em frente do cinema Império. Como nasci a dois de Outubro, obrigavam-me a começar um ano mais tarde. O truque foi fazer a primeira classe em casa dos padrinhos. Fi-la sozinho. A professora era a menina Carlota. Depois, entrei para essa escola, directamente para a segunda classe. 

 

Os outros meninos da escola privada tinham mais dinheiro? Estamos sempre a falar de ascensão social, dessa mola.

Sim, tinham mais dinheiro. Mas havia alguma mistura. As duas irmãs, proprietárias, instalavam uma igualdade. E pronto, levavam-me a pé, Alameda para baixo e para cima. No terceiro ano, já andava mais à solta, ia sozinho para o Liceu Camões. Nunca me rebelei. Nunca apanhei bebedeiras. Quando comecei a sair foi para as coisas políticas, e por via do cinema. A Maria Teresa Horta lembrava-me que eu era da direcção, mas que não podia ser porque não tinha idade para isso. Tenho de ver, na minha papelada, quando foi isso. Depois das cartas que trocava com o Adelino Amaro da Costa?

 

Que cartas eram essas?

Estava mergulhado na leitura. Líamos um livro por dia durante as férias e comunicávamos por carta, trocávamos opiniões. Uma carta por dia. Os meus pais não me deixavam ler durante o período escolar. Tinha direito a algumas coisas, ao Cavaleiro Andante, ao sábado… Já era imprensa, de certo modo. O resto, lia nas férias. Devo ter começado aos 12, 13 anos a ler coisas sérias. E li tudo. A primeira foi a famosa colecção do [Emilio] Salgari. O Prado Coelho também era cliente disso.

 

Porque é que fala nisso? 

Falou numa crónica no Sandokan. Pouco depois encontrei-o na [livraria] Barata e falámos; fiquei contente de não ser o único. Antes do quinto ano, li todos os Livros do Brasil. O [Cesare] Pavese, que me marcou, deve ter sido pelo quarto ano. Todos os livros desse tempo estão agora do corredor da minha casa de Lisboa.

 

Cartas de amor, escreveu? Além das cartas em que expunha o que pensava dos livros, era capaz de expressar os seus sentimentos?

Tudo o que expressava era do domínio do racional. É preciso lembrar que nada era misto; só no sexto e sétimo ano uma dezena de raparigas tiveram uma sala especial no primeiro andar. Quando é que comecei a ver raparigas de perto? Muito tarde. Ah, tive uma paixão por uma sobrinha dos meus padrinhos. Ela vinha como explicadora. E era muito mais velha, claro. Comecei a ver raparigas nos cineclubes e nas acções políticas. Teria 13, 14 anos. 

 

Ainda fala como um tímido que leu muito. Para dentro. Como se as palavras ficassem dentro de si.

Diziam-me isso: que eu falava para dentro. Em casa, coisa assim. Foi, se não uma perseguição, uma insistência.

 

Porque é que nunca conseguiu falar para fora? Que é também uma manifestação de confiança em si mesmo.

Se calhar levei muito tempo a… como é que disse? Confiança em mim mesmo? Não tinha. A pouco e pouco, acabei por ter, em certas coisas. Conquistei terreno após terreno.

 

Tem as cartas trocadas com Amaro da Costa. Já nessa altura guardava tudo.

Ah, sim! Tenho uma colecção dos comunicados do dia da crise académica de 62. As folhas dos cineclubes. Cadernos da infância, praticamente não tenho. Os meus pais tiveram a excelente ideia de me obrigar a escrever um diário! Tinha medo que vissem, e limitava-me a fazer um relatório do dia. Nunca exprimi nada de pessoal. Desistiram.

 

Desde pequeno tem um mundo próprio, onde ninguém entra. Era uma maneira de escapar ao controlo?

Sim. Tenho uma grande capacidade de resistência passiva. Aprendi-a aí. Ou por natureza, não sei.

 

Ou seja, faz o que lhe mandam, mas na verdade faz o que quer.

É isso. Guardar? Sempre! Lembro-me da minha mãe a rasgar-me coisas. Do liceu, da escola. Por vontade dela, deitava-se tudo fora. A casa era pequenina, pequeníssima.   

 

Acumular e catalogar são traços fundamentais em si. Como se tivesse que existir uma prova material de tudo. 

Não sinto isso como uma coisa ilógica. É como na arqueologia: não se deita nada fora, fazem-se escavações. É poder ir, reconstituir tudo. Está integrado, faz parte, existiu. Não gosto de apagar as coisas. E a memória apaga.

 

A memória apaga-se?

Ela apaga. A ausência das memórias é um dos mitos da memória. Gosto de saber ao certo. Saber como eram as pessoas, como era a relação, o que fiz, o que não fiz. 

 

Quando está entre filmes, ou em dias de folga, está invariavelmente a arrumar coisas. É uma tarefa ciclópica, e sem fim. 

[risos] Estou sempre atrasado em relação a isso. Tenho sempre fotografias para digitalizar, filmes para passar de um suporte para outro, cartas para catalogar. Faz-me estar ocupado. Não sei se é possível existir de outra maneira. Há sempre tanta coisa para fazer… Tenho dificuldade em não me interessar. Há pouca coisa que não me interesse.

 

Em 1962, passou o Agosto em Paris, antes de se mudar no ano seguinte. Nesse mês viu quantos filmes?

Na minha memória eram 103, mas tenho a lista e não coincide. São 80 e tal.

 

Onde eu queria chegar era ao registo disso.

Tenho a lista dos filmes que vi e o guia semanal com a programação. Não guardei os bilhetes. Não sou capaz de deitar fora um livro. Parece-me uma coisa odienta – odienta?, odiosa? Preciso de tempo para perceber se as coisas me interessam ou não.

 

Essa lista dos filmes vistos em Paris: guarda para, mais tarde, saber o impacto que lhe causaram?, que pessoa era então?

A lista é uma curiosidade. Fui a Paris ver cinema; foi por causa desse mês que mudei a minha vida. Passei pela lista há pouco tempo. É curioso ver o que se podia ver em Paris nessa altura. Como se guardam “traços” de passaportes e viagens.

 

Por traços quer dizer vestígios?

Sim. Tenho um calendário, de há 20, 30 anos, que me diz onde é que eu estava naquele dia. É útil, para não estar perdido nas coisas.

 

Há nisso uma pulsão narcísica? Está à espera que alguém possa reconstituir o seu caminho a partir dos vestígios que deixa?

Não! É-me indiferente. Quando acabar, acabou. A minha tendência seria a contrária: a de apagar tudo. [pausa] Também seria excessivo, apagar tudo. Mas não é por isso. É uma obsessão por saber o que fiz, o que poderia ter feito. Depois há as coisas em relação às quais tenho afecto – é uma segunda categoria. E há as que acumulo porque ainda não tive tempo de as ler – terceira categoria.

 

Quando fotografou e filmou a casa da sua mãe depois da morte dela, era um desejo de cristalizar aquilo? Annie Leibovitz fotografou Susan Sontag no leito da morte.

São apenas auxiliares de memórias. De coisas que viveram comigo, gosto de ter registo. 

 

Esse gesto, fotografar as gavetas, ver o que estava nelas, resulta também de a máquina fotográfica fazer uma intermediação?

Parece-me evidente que tinha de fazer isso. Não o fazer, deixar as coisas desaparecerem? É o momento em que qualquer coisa acabou. O sítio onde nasci. Deixá-lo sem nenhuma confirmação?, sabendo que tudo na memória é apagado e transformado? Não. Não sei se conseguiria fazê-lo antes [da morte da minha mãe].

 

Voltemos ao cinema. Como começou a trabalhar?

Tive a sorte de a minha classe ser excepcional. Como nos vinhos, que têm anos excepcionais. Um tem um Óscar e outra tem uma nomeação. Alguns alunos começaram rapidamente a trabalhar. Comecei substituindo alguns deles, ou recomendado por outros. Comecei como segundo assistente, depois primeiro assistente… O normal. Até trabalhar, vivia da mesada dos meus pais.

 

Como é que foi para Paris?

Tinha a sorte de ter um passaporte – talvez da ida em Agosto no ano anterior – ao contrário de muitos outros, que foram a salto. Fui por Madrid, para não dar nas vistas. Saí com bilhete de avião, ida e volta. De Madrid fui para Paris. Estava documentado, matriculei-me sem dificuldade, e fiquei em Paris, legalmente.

 

No primeiro ano em Paris, perdeu 30 kg. E há o dado poético de os seus olhos terem mudado de cor…

[risos] Ter perdido 30 kg mudou a minha vida. Eu não nadava, não andava de bicicleta, não ia a bailes, não fazia nada que fosse físico. Passei à normalidade – e foi exactamente assim que o senti. Em miúdo, tinha as humilhações de ser “o gordo”. Passei a comer no restaurante universitário. Fui emagrecendo.

 

De que cor eram os seus olhos?

Castanhos. Desde essa altura são entre o verde e o cinzento, o verde e castanho. E têm aquele círculo branco, típico de quem tem colesterol. Ora, eu não tinha, e praticamente não tenho, colesterol. 

 

A sua formação foi muito completa. Mas o que é que fez de si o grande director de fotografia que é hoje?

Trabalhei com operadores clássicos e bons. Fui assistente de um colega de escola, e fora do plateau, quando voltávamos a casa, falávamos muito do que ele tinha feito. Outro, de quem fui assistente muito tempo, era muito original e fazia coisas arriscadas; também falava muito com ele. Foram uns 30 filmes enquanto assistente, ao longo de dez anos. Aprendi muito.

 

Quando passa a director de fotografia, procura criar uma marca que seja sua. Como?

Quando estava a preparar um dos meus primeiros filmes, a Hélène [a mulher] foi muito importante. Os directores de fotografia modernos tinham tendência a desprezar a fotogenia. O importante era o ambiente. Tratar da cara dos actores e das actrizes, pôr tudo bonito, sem pregas nem rugas, era degradante!, era uma coisa americana, insuportável. A Hélène dizia-me que isso era um grande disparate!, que era preciso trabalhar os rostos como os espaços. Algumas pessoas com quem tinha trabalhado faziam de propósito para a imagem não parecer bonita…

 

Uma vez, disse-me que a fotografia do Morte em Veneza do Visconti era horrível, que era tudo “uma grande borra”!

A fotografia é péssima, caras, ambientes, tudo! [risos] A Hélène convenceu-me. Como é lógico comigo, fui a correr à livraria e regressei com cinco livros sobre o assunto. Comecei a analisar como é que se iluminavam os rostos. Com o material que temos actualmente, é fácil fazer uma luz simples. A minha luz, normalmente, é de uma enorme simplicidade. Há 50 anos, fazer isso não era evidente. Ainda hoje, muitos livros sobre “como iluminar”, utilizam uma receita dos anos 30 e 40, e contestada já nessa altura.

 

No Rapariga com Brinco de Pérola, disse nas entrevistas que fez tudo com luz natural.

Era, em estúdio, o equivalente à luz natural. Era a luz indirecta, do norte, que vem pela janela. Não é luz natural, mas é igual à luz natural. Perguntam-me muitas vezes como fiz aquilo. É do mais fácil que fiz até hoje. É evidente que a facilidade e a simplicidade dão muito trabalho. É importante saber o que queremos atingir e conhecer os instrumentos. Os instrumentos evoluíram imenso, entre os anos 70, quando comecei, e o material que se usa agora. Projectores, por exemplo, já não uso.

 

Tem a reputação de ser um clássico. Com arrojo, deixando a sua marca – o seu verniz – mas um clássico. Harry Potter parece uma contradição com o que construiu para trás.

Há também o Blood Diamond e o Defiance [com Daniel Craig, 2008], que não são filmes clássicos. Ou Unbreakable, de Shyamalan [2000].

 

Mesmo quando é Hollywood, não é uma Hollywood qualquer. Harry Potter: porquê?

Porque era irresistível. Porque queria assegurar a reforma. Porque não queria ficar com o epíteto do director de fotografia que só brilha em filmes de época. Todas estas razões e mais algumas. Ter uma máquina à disposição que é diferente daquilo a que estava habituado. Como explicar? Se eu tivesse uma paixão por automóveis e alguém me propusesse um Ferrari por três meses, não ia dizer que não. 

 

O que é que significa ter uma máquina à disposição?

Tudo é possível. Não se esbanja, mas para tudo o que é preciso, não há limites.   

 

Quando fez o Blood Diamond, que era um filme orçamentado em 120 milhões de dólares, foi preciso fazer uma estrada para filmar de determinado ângulo, e fez-se a estrada.

Ah, não tem nada a ver! É muito mais do que isso! É outro nível, outra escala. Da qualidade técnica à loucura artística. É um trabalho em que todos os materiais, todas as competências, estão disponíveis. Tudo se experimenta e tudo se faz. Por exemplo, chego lá de manhã e tenho uma sala de cinema para corrigir imediatamente os rushes que vão ser vistos na hora de almoço.

 

Foi nomeado duas vezes para o Óscar com filmes clássicos. Mais dificilmente será nomeado com um filme como o Harry Potter. Já não é isso que lhe importa?

Importa. A saga Harry Potter não teve muitos prémios, mas o Senhor do Anéis teve. Até me roubou um! [risos].

 

Qual?

O Óscar pela melhor fotografia no Rapariga com Brinco de Pérola.

 

 

Publicada originalmente no Público em 2011

 

 

Dona Bia

06.01.21

Beatriz da Conceição, 74 anos, nem amaciados nem derrubados pela vida. A definição é dela, e nesta frase parece estar tudo. O que é que a vida lhe fez. Não lhe retirou uma aspereza e verdade, não a domou, como acontece frequentemente, mesmo a forças indómitas. Numa entrevista que me concedeu no Verão de 2012, a fadista deixou perceber, no seu relato, o que era o seu tempo (os anos 40), uma geografia (um bairro pobre do Porto), um género (como era ser mulher então e naquele contexto?).  

Neste micro-filme, feito para a disciplina de Documentário (com o prof. José Manuel Costa), no mestrado, em Maio de 2013, quis centrar o filme em Beatriz da Conceição. Tudo nesta fadista fala. Com uma singularidade, autenticidade e iconoclastia raras. 

  

Carlos do Carmo

01.01.21

 

Fale-me desse triângulo, que diz ser fundamental: peito, garganta e cabeça.

Eu diria coração, garganta e cabeça. Para cantar tenho que ter coração, senão seria um mero exercício de exibição. A garganta, como sou crente, [digo que] foi a que Deus nos deu, não escolhemos propriamente a voz que temos. Depois, a cabeça comanda a vida. Temos que perceber o que estamos a cantar, para quem estamos a cantar. Através da cabeça há públicos que nos arrepiam e outros não. A cabeça funciona numa área, o coração noutra e a garganta noutra.


Tenho a impressão de que, durante muito tempo, afirmou-se contra o seu passado, andou à procura de si. Quando é que se reconciliou consigo e uniu os vértices do triângulo?

Tudo isso se resolveu na morte do meu pai, porque fui, à força, obrigado a optar. Andava ali, menino protegido, de mãe e pai. Eu tinha 22 anos e estava convencidíssimo de que ia ser um engenheiro hidráulico de olhos azuis, director de uma unidade hoteleira no estrangeiro…


Foi educado para ser um príncipe.

Sim. E os meus pais trataram-me sempre como tal. Príncipe, mas muito ligado às questões populares. Vivi com muita honra no bairro da Bica. Se há uma frustração que tenho, não são muitas, é não ter podido viver lá o resto da minha vida – mudei quando me casei. Não havia condições, queríamos ter filhos e a casa era muito pequena. A minha raiz de bairro está muito viva ainda. Vivo nesta casa, de que gosto muito, há 35 anos, mas sinto isto como um dormitório, nunca consegui sentir isto como o bairro que amo.

 

O sentimento de pertença é o que tem em relação à Bica. Em que é que isso se traduz?

A Bica foi uma aldeia, onde aprendi valores, a fraternidade entre pessoas. Uma vida de porta aberta, sem chave na porta. Uma vida de comunicação entre as pessoas: faltam os legumes em casa e a vizinha empresta. Retomando a questão da resolução dos problemas: a morte do meu pai foi uma coisa brutal. Tínhamos uma excelente relação. Era criança, nove, dez anos, e ele lia-me o jornal, ao meu lado. E discutia as coisas que lia comigo; isso ajudou-me a construir um edifício mental, a olhar para a sociedade, para os ricos, para os pobres, a ser sensíveis às diferenças.

 

Com a morte dele, súbita, arcou com todas as responsabilidades.

Foi. Demorei anos a solucionar o desgosto da morte do meu pai. Não verti uma lágrima, não fui capaz de chorar. Foi um desgosto profundo, profundo. Depois fui-me reencontrando. O meu pai morreu e eu, 24 horas depois, era patrão de 23 pessoas. A partir daqui há uma responsabilidade assumida, há uma mãe ao nosso lado.

 

A sua mãe era a fadista Lucília do Carmo.

O gestor do trabalho era o meu pai e a minha mãe era a vedeta, a artista, a bilheteira. E pronto, está ali o miúdo. Só que o miúdo tinha um curso técnico de hotelaria, tirado na Suíça. Se estava preparado para gerir um hotel, mais preparado estava para gerir um pequeno restaurante. Foi uma luta. Foi dizer: «Não vou destruir o que os meus pais construíram, vou tornar isto melhor do que recebi em mãos». 

 

O sentimento de gratidão, só o sentiu profundamente nesse momento, ou já o tinha antes, mercê da expectativa que tinham em relação a si?

É muito interessante que pergunte isso, porque um dos meus sonhos, que nunca se concretizou, era dar uma velhice maravilhosa aos meus pais. Não pude fazer isso, magoou-me essa interrupção. Quando estou a falar desta gratidão, é preciso situarmo-nos no tempo. Os meus pais, depois de eu ter feito aqui a escola primária e o liceu, mandaram-me para um colégio de milionários na Suíça.

 

Eram ricos?

Não tinham dinheiro para isso, endividaram-se loucamente. Mas não se lamentavam: era uma meta, o filho era um grande investimento. Para além do mais, magoou-me que o meu pai não conhecesse o artista... Ele seria muito exigente comigo, de certeza absoluta. Foi fundamental na carreira da minha mãe. Toda a gente enaltecia a dicção da minha mãe: o meu pai dava-lhe lições de dicção em casa.

 

E o Carlos ouvia-as e aprendia também…

Claramente. Determinei-me com objectivos muito concretos: esta tem que ser a melhor casa de fados de Lisboa, e foi. Quando comecei a cantar disse: tenho que ter uma carreira sóbria, foi, e é. Tenho que cuidar da mãe, e fi-lo. Se houve coisa que me magoou, foi, algum tempo depois do 25 de Abril, por razões políticas, caluniarem-me dizendo que tratava mal a minha mãe, que a tinha saneado, que a deixava na miséria. Foi uma seta atirada ao meu coração. Quem o fez, fê-lo com muita maldade.

 

O devaneio do menino que está à procura de si acaba na contingência de ter que se fazer à vida. O que é interessante é que, por linhas tortas, se tenha encontrado com o melhor de si, com aquilo que fez de si um homem feliz.

Com um elemento chave que considero um factor de sorte na minha vida: ter encontrado a Maria Judite [a mulher].

 

Que idade tinha quando a conheceu?

Tínhamos os dois 24 anos. Casámo-nos seis meses depois. Ficámos os dois praticamente sem família, a família da Maria Judite quase toda morreu, a minha família quase toda morreu; reconstruímos, fizemos uma nova família com filhos. O modo como ela gere esta situação do marido ausente durante anos... Não lhe passa pela cabeça o que trabalhei! Cheguei a tê-la à minha espera no aeroporto com uma mala com roupa para o frio, porque vinha do Brasil e ia para o Canadá. Dois beijinhos, as crianças, a correr, e lá ia para outro avião. A vida toda, também ela se foi construindo, em simultâneo: o empresário, o marido, e o cantor.

 

Como é que começa a cantar?

Aos 23 anos comecei a cantar por brincadeira, e não me deixaram que fosse brincadeira. Gravei um primeiro fado com um amigo, o Mário Simões, e aquilo passava na rádio de manhã à noite. Nunca mais pude controlar a situação, tive mesmo que começar a aprender fados.

 

Não se sentiu inseguro? Deve ser uma coisa terrível para os filhos de pais famosos: deixar de ser o filho da Lucília do Carmo e passar a ser o Carlos do Carmo.

Nos primeiros anos, muita gente, com muita naturalidade e muita ternura, dizia-me assim: «O menino canta muito bem, mas sua mãe é que era». Não me sentia magoado, mas isto implicava ir buscar um caminho. Conseguimos, depois, naquela casa de fados, ter dois públicos que se iam conhecer um ao outro. Eram os mais velhos que ficavam fascinados a ouvir o miúdo e eram os mais novos que se fascinavam a ouvir a mais velha. E não havia competição.

 

A sua afirmação enquanto cantor, a escolha do repertório, até o modo de cantar, foi feito para vincar essa diferença?

Não. A minha mãe pertence a uma geração de fadistas, com algumas honrosas excepções, com uma exigência de repertório limitada. Eu pertenço a uma geração a quem os pais facultaram tudo. A minha inquietação estética começou cedo. Não era por acaso que me apareciam na casa de fados o Zé Cardoso Pires, o Zeca Afonso, o Adriano Correia de Oliveira... A minha primeira abordagem ao Alexandre O’Neill foi uma coisa sensacional! O Ary dos Santos, quando chega, é a cereja em cima do bolo. Tudo isto foi acontecendo com ligações humanas, partindo dos poetas tradicionais. O autor das «Canoas do Tejo» e do «Por morrer uma andorinha», o Frederico de Brito, era um homem muito antigo.

 

Protagonizou essa mudança. Há um país que emerge e a sua música é expressão disso, dá expressão a isso.

Todas estas pessoas de quem falei tinham muito respeito pelo que estava para trás. Não gostavam esteticamente daquele fado, mas consideravam aqueles intérpretes grandes artistas. A isto tudo não era alheio o facto de ouvirmos outras músicas: Sinatra, Brell, Elis Regina, Ray Charles...

 

Quando é que se olhou ao espelho e disse: «Sou fadista, sou cantor antes de qualquer outra coisa»?

Essa questão não se me pôs assim. Considerei sempre as três frentes fundamentais. Quando a minha mãe começou a apresentar alguns sinais de fadiga, (mal eu sabia que ia culminar numa tragédia que é Alzeihmer), combinei com ela que a minha missão estava cumprida: tinha honrado o trabalho dela, tinha honrado a memória do meu pai, quando ela quisesse parar, eu saía ao mesmo tempo, acabava o empresário. Assim foi. Isto para lhe dizer uma coisa que, talvez por antecipação, seja interessante desabafar consigo: estou preparado para deixar de cantar porque tenho um outro lado de que gosto muito, o da família.

 

Acha que pode ser feliz sem cantar?

Isto [a família] é para durar até ao fim. O palco não pode durar até ao fim. O palco tem uma coisa perigosa, a decadência, e eu não a queria. Quero ver se Deus me dá essa lucidez. Porque a partilha que temos tido, as pessoas e eu, tem sido sempre superior. Gosto muito que as pessoas gostem de mim, gosto muito de gostar das pessoas. Mas não sou muito talhado para ídolo, sou mais talhado para afectos. Tenho cenas incríveis de afectividade. A primeira vez que saí à rua depois de ter vindo das operações de Houston, uma senhora muito bem posta estancou na minha frente e disse-me assim: «Não sonha o quanto rezei por si». Aquilo era genuíno, era do plano dos afectos. Eu jogo mais nisso.

 

Em fazer parte da família.

É. A maioria dos ídolos acaba mal, já reparou? Nos sítios mais variados aparece-me gente de 30 e poucos anos; foram massacrados porque os pais ouviam-me de manhã, à tarde e à noite; depois de os pais morrerem vêm ouvir-me para se reconciliar e contam-me isto cheios de ternura. Ou então os que me seguiram: «Habituei-me a ouvi-lo, desde pequenino, apesar de a minha música ser outra». E levam as crianças. É muito interessante porque passa para a terceira geração.

 

O disco que gravou depois de ter sobrevivido à doença, foi diferente? É evidente que a vida de um homem muda quando passa por uma provação tão grande. Mas, como é que isso se reflecte naquilo que ele faz, no modo como ele canta?

Pois, sabe que não foi a primeira vez, foi a segunda. Eu já tinha tido há 16 anos uma queda de um palco em Bordéus… Há um homem com uma saúde de ferro que aguenta estas coisas todas, as malas que se trocam, a vida mais desregrada de horários, boémio, cigarros, uísques (mas nunca fui bêbedo!). Esse homem, aos 50 anos, cai de um palco e parte o lado esquerdo do tórax, parte sete costelas, fura um pulmão, fica sem baço. Fica um homem diminuído, só que não aceita. O médico teve comigo uma conversa interessantíssima, «Agora, nada é como antes, atenção». Entrou por aqui e saiu por ali.

 

Como é que ignorou avisos tão sérios?

Eu tinha uma ambição do ponto de vista económico, que era dar um tecto a cada filho. Nunca quis ser milionário, mas sabe o que é? Continuei a trabalhar como se nada a fosse. Aos 60, o aneurisma foi tão violento... Mas entretanto, as metas estavam atingidas. O médico diz-me: «Nem pensar em fumar, nem pensar em álcool, vinho à refeição e ponto final. Muita água e uma vida mais higiénica». Tem sido esse o meu projecto de vida e sinto-me como nunca me senti, até a cantar tenho mais força. Depois disto, em que a morte foi muito clara, mais do que da outra vez, disse: «Bom, é giro ficar mais uns tempos».

 

A equação era viver ou deixar-se morrer.

É natural que esse homem tenha sido tocado pela finitude, pela insignificância, pela fragilidade. Esse homem reapareceu a cantar, gravou um disco. Tenho a impressão de que as pessoas não o terão percebido muito bem. Levei anos a dar entrevistas onde a última pergunta era sempre a mesma: «Acha que o fado vai acabar?». E eu respondia: «Enquanto houver quem toque e quem cante, o fado não morre.»

 

Hoje ninguém se lembraria de fazer uma pergunta dessas, tal o vigor do fado.

Foi muito natural querer fazer um disco de inéditos. Foi uma forma de dizer: «O velhinho está de volta, mas desculpem lá: sou inquieto, não estejam à espera que vá cantar outra vez a mesma coisa». Coisa que já não tem a ver com o projecto que tenho agora e que vou talvez executá-lo este ano: é com uma grande orquestra sinfónica, músicas tradicionais de grande peso e trabalhar nisso com poemas novos.

 

 

Publicado originalmente na revista Selecções do Reader’s Digest em 2005