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Anabela Mota Ribeiro

Eduardo Serra

10.01.21

O que faz um director de fotografia? Interpreta um texto com a luz. Produz sentido com imagens. Eduardo Serra está no lote dos melhores do mundo. No começo, ele era um menino triste do bairro da Picheleira.

Ele é aquele com quem Helena Bonham Carter pratica o francês, quando estão a filmar. É o escolhido por Kevin Spacey para o filme em que o actor se estreia na realização, Beyond the Sea. O que ri com as piadas de Robin Williams. O que deixa o telemóvel à entrada da festa de Demi Moore, como todos (“No pictures, please!”). É aquele que tem um relógio em cujo verso se pode ler: “Com admiração e gratidão, M. Night Shyamalan”. O que filma o par romântico Juliette Binoche/ Emir Kusturica no pólo norte.

É o único português duas vezes nomeado para o Óscar. A primeira com The Wings of the Dove, no ano em que tudo foi ganho por Titanic. A segunda com Rapariga de Brinco de Pérola (quando fez uma luz tão mágica quanto a de Vermeer e colou o rosto de Scarlett Johansson ao da rapariga do quadro do mestre holandês). Ele é também o que todos os anos faz um Chabrol e um Leconte com o conforto de quem está em casa – os franceses consideram-no um dos seus. E é aquele que filma em Lisboa, sobretudo, pelo prazer de ver a luz de Lisboa.

O seu primeiro filme, enquanto director de fotografia, foi, justamente, o de um português: Sem Sombra de Pecado, de José Fonseca e Costa. Estava-se em 1982. Gostou tanto do que fez – ainda hoje o considera um dos seus melhores trabalhos – que organizou um visionamento em Paris, para o qual convidou todas as pessoas que conhecia; também apareceram outras que não conhecia. Nunca mais parou.

Quis ser realizador. Mas a escola que o admitiu, a École Nationale de Photographie et Cinématographie, “em princípio é feita para directores de fotografia e engenheiros de som”. Foi director de fotografia.

Eduardo Serra nasceu em Lisboa em 1943. Quando saiu de Portugal, contou-me um dia, a ponte ainda não existia. A ponte era a 25 de Abril, na altura Ponte Salazar. Foi há muito tempo, portanto. Saiu para Paris, e Paris é a base. Mas cada vez mais, a sua casa é o mundo.

Nos próximos dois anos, vive em Londres para trabalhar nos dois últimos filmes da saga Harry Potter.

É casado e tem um filho. Foi pai depois dos 50 anos. Em 2004, Jorge Sampaio atribui-lhe a Ordem do Infante Dom Henrique, por serviços prestados à cultura portuguesa.

 

 

Podemos começar pela sua obsessão com o tema da memória ou pela descrição que fez da Scarlett Johansson.

O que é que eu disse? Não me lembro!

 

Disse que era redondinha, pequenina, com um beiço saído e a pele translúcida! Provavelmente só um artista notaria que a pele é translúcida.

Uma pele translúcida é uma extraordinária matéria-prima. A relação luz-pele é fundamental para o meu trabalho. Entramos já na zona da fotogenia? A fotogenia é uma parte daquela coisa impossível de definir e que se resume nisto: ter 50 pessoas no campo de imagem, e toda a gente ver uma, e não ver as outras 49. Os americanos dizem: “The camera loves her”.

 

Pode ser a intensidade do olhar, a cor da pele, a maneira como se está? A primeira vez que me falou de fotogenia foi a propósito da Isabelle Adjani.

Ficou-me para sempre. Deve ter sido em 1970, em Faustine et le bel été. Era um filme bonito, um look David Hamilton, mas vestido. Havia um coro de meninas, umas seis ou sete, vestidas de branco, com rendas. Visionávamos os rushes e comentávamos entre nós: “Já viste?, aquela está-se sempre a ver”. Num ecrã cheio de gente, era a primeira coisa que se via! Era a Isabelle Adjani. 

 

A Scarlett Johansson é, sobretudo, voluptuosa. Não fez um comentário lúbrico…, que era o que milhões de pessoas fariam.

É raro um director de fotografia ter um filme sobre um rosto, uma imagem – aquele quadro do Vermeer. Se ela não tivesse uma pele tão transparente, o filme podia não ter ficado tão bem. As outras coisas não eram essenciais para mim. A Scarlett era muito nova, tinha 17 ou 18 anos. Só uma vez, num jantar, apareceu como a conhecemos hoje: com um decote, maquilhada. A maior parte das vezes, vi-a já no set ou como se fosse fazer jogging. Entra por uma porta isso e sai por outra uma vedeta!

 

As pessoas têm Rapariga com Brinco de Pérola muito presente. A partir dele, pode explicar o que faz?

É presunçoso dizê-lo, mas o que tento é criar sentido com as imagens. É importante compreender quais são os elementos dramáticos. O que vou iluminar, as imagens que vou criar (sobre o trabalho de outros), devem levar o público a entender o argumento. Não me interessa fazer uma coisa que seja bonita. Posso fazer uma coisa austera, feia, se me parece que é necessário. De um modo subtil, não manifesto.

 

Dando intensidade? Provocando um sentimento, com o efeito da luz?

Sim. E que seja o sentimento certo. O que é que leio no argumento? E como é que eu posso traduzir isso, apoiar isso, explicar isso?

 

Como se interpretasse um texto com a luz?

É uma boa definição.

 

Para fazer o filme, foi ver os quadros do Vermeer, um a um.

Fui. Evidentemente já os conhecia. O que me interessava era ver aquela camada de transparência que há nos quadros do Vermeer. A reprodução, quando é boa, anda lá muito perto; mas há uma parte que é própria da matéria, e isso não vem nos livros. Queria ter um contacto físico com o objecto. Na edição em DVD perdeu-se uma coisa que fiz: um efeito amarelo no epílogo.

 

Um efeito amarelo?

O verniz, nos quadros, vive melhor ou pior, e às vezes amarelece. Na película, dei esse efeito do tempo que passou, do verniz que muda de cor… É uma brincadeira!

 

Só você sabe que está lá.

Mas, quando é possível, é a minha marca. O quadro: uma coisa que eu não sabia e que praticamente ninguém sabe sem ver o original. O brinco não é uma pérola. É um brinco de metal, uma bola metálica. E o brilho, é o reflexo da janela. Não há pérola nenhuma.

 

Isto é importante por convocar a sua relação com a pintura e a sua formação. Depois de estudar cinema, foi para a Sorbonne estudar Arqueologia e História de Arte.

A minha formação foi caótica. Comecei pela matemática. Não era a minha vocação, mas não era uma coisa que odiasse – pelo contrário. Até reunir o que era importante para mim levou um certo tempo.

 

Matriculou-se em Engenharia por causa do interesse pela matemática?

Não. Não foi uma escolha racional… Temos de ir mais atrás. Quem é de Lisboa sabe que na Alameda Afonso Henriques há, de um lado, o Instituto Superior Técnico, e do outro, a Fonte Luminosa. Depois da Fonte Luminosa, há um bairro criado no fim dos anos 30: a Picheleira. Foi aí que nasci, que vivi, de pais muito modestos. Há esta imagem: quando se chega da Picheleira à Alameda, desce-se a Fonte Luminosa, e depois sobe-se para uma coisa imensa, um sangri-lá! O Técnico. Era o símbolo da ascensão social.

 

Nunca me tinha contado isso.

Não? Era simbólico. Era para ali que eu devia ir. E Engenharia era lá.

 

Ver o Técnico ao fundo e querer fazer parte desse mundo: tem memória disso desde quando?

Desde sempre. Quando entrei para o Técnico já tinha as maiores dúvidas que isso fosse a minha vida. Tentei. Andei lá três anos. No primeiro ano, não correu muito bem; só fiz uma cadeira. Já estava mergulhado nos cineclubes. No segundo, foi a crise académica de 62. E no terceiro, não fiz nada, já só estava lá.

 

Estava lá? O que predominava era um desejo de pertença e integração?

Eu era outra pessoa. Era um facto que o que me interessava, já, era o cinema, e não a Engenharia. Mas, a par disso, havia a questão política. Que, para mim, não era um prazer. Era um dever. Muita gente tinha uma certa exaltação nas manifestações, nas discussões. Eu nunca tive. A participação nas lutas académicas e políticas não me excitava. Mas, como se sabe, não havia escolhas quanto a partidos. Era ou tudo ou nada.

 

Era-se de esquerda ou era-se fascista.

Era-se comunista ou era-se fascista.

 

Quem é que o levou para o PC?

Tinha uns conhecimentos, dos cineclubes, do Diário de Lisboa Juvenil, da associação de estudantes. Cada vez se fica mais ligado. Não vimos do nada. Ao fim de meses ou anos de participação, vem uma proposta. Mas nunca fui um bom militante. Só mergulhei na política porque me parecia indispensável.

 

Ensombrava-o o fantasma da Guerra Colonial?

Sim. A minha célula caiu quatro ou cinco meses depois de eu sair. Foram presos, todos os outros. A PIDE não estava interessada em prender gente como eu – de base, o peixe pequeno. Só quando a base da pirâmide os levasse a um líder do Comité Central. Não me admirava nada que estivesse queimado. Evidentemente estávamos queimados. Oficialmente eu só conhecia cinco pessoas que sabia que eram membros. Sempre calculei que muitos outros fossem, mas não era permitido fazer perguntas. O problema era: quando fôssemos presos, o que é que acontecia?

 

Até onde resistimos? Quando é que soçobramos e falamos?

Fico contente por não ter que saber como é que me teria comportado.

 

No seu grupo, sobressaiu? Hoje, sobressai porque é extraordinário no que faz, mas, ao mesmo tempo, é o elemento mais discreto no plateau. Não tenta captar a atenção do Leonardo Di Caprio quando filma com ele.

Há um ditado francês que diz: não se podem mudar as riscas da zebra. Eu sou assim. É vital ter o meu espaço. Todas as pessoas têm a sua zona intransponível. A minha é talvez maior do que a média. Mas não tenho problemas relacionais e não sofro com isto. É de nascença: não sou capaz de ir bater à porta de uma pessoa para falar com ela.

 

Quer dizer que quando você e o Di Caprio falaram na rodagem de Blood Diamond [2006], foi ele que falou consigo?

Estávamos em conjunto, falámos. Já tinham passado uns meses desde o arranque da filmagem. Calhou termos uma conversa. Ele também fala pouco. Entre um plano e outro, ficava sozinho, pedia para ver o que tinha feito. Ele e eu podíamos ficar muito tempo, lado a lado, sem falar.

 

Com a Scarlett Johansson, como foi?

Falámos. Ela falava mais.

 

Falavam do seu trabalho sobre o rosto dela? O ano passado, já consagrada, convidou-o para fazer a fotografia de uma curta-metragem que realizou (ainda que a proposta não se tenha concretizado).

No caso dela, havia a mãe, que é produtora. Como estava sempre por perto, falávamos muito. Estava por perto para proteger a imagem e os interesses da Scarlett. Mas não interferia.

 

Contou-me que a Kate Winslet, com quem filmou, e o Sam Mendes, com quem quase filmou, foram ao estúdio do Harry Potter. Estava contente com o reconhecimento profissional e a afectividade dela.

São casos particulares. Com a Kate, trabalhei num dos filmes mais importantes para mim [Jude, 1996]. Fico contente que ela não tenha apagado esse filme. Ela é muito…, como é que se diz?, não é extemporânea; é expansiva.

 

Faltam-lhe as palavras em português porque está cansado?

Se calhar. É mais difícil saltitar entre as três línguas.

 

Vai fazer 66 anos em Outubro. Sente que está a envelhecer?

Capaz disso. Mas o cinema conserva.

 

Quando o vi, depois da morte da sua mãe, pareceu-me acentuadamente mais velho. Ou então, era tristeza.

Não tenho essa percepção. Não que dizer que não seja pertinente. É sempre difícil, mas nos últimos dois anos de vida dela, estávamos à espera que acontecesse. Para ela, foi uma libertação.

 

A sua mãe foi a pessoa que mais o fez? É certo que o seu pai morreu cedo e que a marca da sua mãe é mais prolongada.

A última vez que vi o meu pai foi quando me fui embora, em 63. A minha mãe vinha a Paris, mas ele não podia. O objectivo da vida deles foi passar-me para uma secção superior. Não faziam despesas, não tinham mais filhos. Tudo para eu fazer estudos superiores. O que me isolava de todos os rapazes do bairro. Os meus pais não me deixavam brincar na rua.

 

Não queriam que fosse um gandulo? – que era a expressão que se usava.

Não queriam que eu me perdesse. Era um bairro de pobres. Os meus pais eram muito pobres de origem, mas quando nasci já viviam melhor. Tanto um como outro, trabalharam muito. É uma coisa linear: como é que se arranja dinheiro para viver decentemente? Trabalhando mais e melhor do que os outros. Tinha também uns padrinhos que ajudavam, não financeiramente mas materialmente. Toda a minha vida, até ir embora para Paris, almocei nos dias de semana em casa dos meus padrinhos, na Praça do Chile.

 

Não tinham filhos?

Não. Fui um filho adoptivo. E aos domingos íamos os cinco passear. O meu padrinho tinha um carro lindíssimo, um Riley. Os dois homens eram malucos pelo futebol, as mulheres seguiam, e eu também me interessava. Até Coimbra, íamos ver jogos de futebol. Era ir, almoçar, ver o jogo e voltar.

 

Conversavam? Perguntavam-lhe coisas? Ou as crianças eram “a canalha” – como há pouco recordava?

Eu era o reizinho. Filho único, com dois pais e dois padrinhos, não passava despercebido!

 

Como é que era tratado?

Eduardo. Os meus padrinhos chamavam-me Eduardito.

 

Ainda que tudo fosse em função do Eduardo, não lhe eram permitidas coisas de que gostava muito. Iam ao futebol até Coimbra, mas não o deixavam jogar futebol na rua.

Um dia consegui ir um bocadinho. Ainda me lembro desse dia! Já não me lembro porque tive direito a isso. Os “rapazes da rua” era uma imagem terrível, a evitar a todo o preço.

 

Foi a única vez que jogou futebol?

Acho que sim. Ia sempre à ginástica na sede do Sporting.

 

Porque era mais fino? Era por isso que o deixavam ir?

Levavam-me! Quase de rastos. Mas, como se dizia, o menino não tem quereres. Aos três anos, dado o meu volume, acharam que eu precisava de fazer ginástica. Até ao terceiro ano do liceu, o meu pai levava-me, três vezes por semana. E ficava a ver.

 

Porque é que menciona o facto de o seu pai ficar a ver?

Porque era o único! Coisa que me embaraçava bastante. Depois dizia-me que não tinha feito bem, que não tinha vontade nenhuma de fazer aquilo… Tinham medo que eu chegasse atrasado, tinham medo que eu fosse sozinho…  

 

Uma flor de estufa.

Completamente. Essas cenas, essas cenas do Sporting…

 

Teve uma infância triste?

Francamente triste. Completamente fechado. 

 

Dê-me uma recordação boa da sua infância.

[pausa] Procuro, procuro… [nova pausa] Há-de haver. Ah, quando era muito pequeno: no Natal levaram-me pela mão para outra sala, abriu-se a luz, e estava lá um comboio a andar. Tinha três, quatro anos. E também havia as idas ao cinema. A minha madrinha levava-me ao S. Luiz.

 

Tinha um combate dentro de si entre o amor pelos seus pais e pelos padrinhos?

Não. Estava bem definido, regulado. Entendiam-se bem. A minha madrinha não podia ter filhos. Conhecia a minha mãe da praça; era cliente. Tudo se passava naquele quarteirão. O meu pai e a minha mãe vendiam no mercado de Arroios e os padrinhos eram comerciantes.

 

Era um furo social acima. Era diferente ter uma loja ou vender carne e peixe no mercado.

Sim. Eles tinham automóvel, a vidraria na esquina. O meu padrinho era um republicano feroz. Numa tentativa de derrubar a República, lá foi, como voluntário, para o combate. Era maçon. Mostrou-me uma vez o aventalzinho. Era anti-clerical e anti-Salazar. Personagem estranho. Tinha piada. Todos os dias tinha em casa o Diário Notícias e semanalmente a Vida Mundial.

 

A sua mania dos jornais vem daí? É capaz de fazer desvios consideráveis para comprar jornais.

Aqui em Londres, todos os dias faço um desvio para comprar o Guardian, o Libération e o Monde. O Público, já não encontro no estrangeiro, mas tenho assinatura online. Em minha casa, o meu pai tinha o Diário de Notícias ao domingo. Eles matavam-se a trabalhar. Levantavam-se às cinco da manhã – a minha mãe, mais tarde.

 

Para o vestir e mandar para a escola?

Sim. Fiz a primária numa escola privada, em frente do cinema Império. Como nasci a dois de Outubro, obrigavam-me a começar um ano mais tarde. O truque foi fazer a primeira classe em casa dos padrinhos. Fi-la sozinho. A professora era a menina Carlota. Depois, entrei para essa escola, directamente para a segunda classe. 

 

Os outros meninos da escola privada tinham mais dinheiro? Estamos sempre a falar de ascensão social, dessa mola.

Sim, tinham mais dinheiro. Mas havia alguma mistura. As duas irmãs, proprietárias, instalavam uma igualdade. E pronto, levavam-me a pé, Alameda para baixo e para cima. No terceiro ano, já andava mais à solta, ia sozinho para o Liceu Camões. Nunca me rebelei. Nunca apanhei bebedeiras. Quando comecei a sair foi para as coisas políticas, e por via do cinema. A Maria Teresa Horta lembrava-me que eu era da direcção, mas que não podia ser porque não tinha idade para isso. Tenho de ver, na minha papelada, quando foi isso. Depois das cartas que trocava com o Adelino Amaro da Costa?

 

Que cartas eram essas?

Estava mergulhado na leitura. Líamos um livro por dia durante as férias e comunicávamos por carta, trocávamos opiniões. Uma carta por dia. Os meus pais não me deixavam ler durante o período escolar. Tinha direito a algumas coisas, ao Cavaleiro Andante, ao sábado… Já era imprensa, de certo modo. O resto, lia nas férias. Devo ter começado aos 12, 13 anos a ler coisas sérias. E li tudo. A primeira foi a famosa colecção do [Emilio] Salgari. O Prado Coelho também era cliente disso.

 

Porque é que fala nisso? 

Falou numa crónica no Sandokan. Pouco depois encontrei-o na [livraria] Barata e falámos; fiquei contente de não ser o único. Antes do quinto ano, li todos os Livros do Brasil. O [Cesare] Pavese, que me marcou, deve ter sido pelo quarto ano. Todos os livros desse tempo estão agora do corredor da minha casa de Lisboa.

 

Cartas de amor, escreveu? Além das cartas em que expunha o que pensava dos livros, era capaz de expressar os seus sentimentos?

Tudo o que expressava era do domínio do racional. É preciso lembrar que nada era misto; só no sexto e sétimo ano uma dezena de raparigas tiveram uma sala especial no primeiro andar. Quando é que comecei a ver raparigas de perto? Muito tarde. Ah, tive uma paixão por uma sobrinha dos meus padrinhos. Ela vinha como explicadora. E era muito mais velha, claro. Comecei a ver raparigas nos cineclubes e nas acções políticas. Teria 13, 14 anos. 

 

Ainda fala como um tímido que leu muito. Para dentro. Como se as palavras ficassem dentro de si.

Diziam-me isso: que eu falava para dentro. Em casa, coisa assim. Foi, se não uma perseguição, uma insistência.

 

Porque é que nunca conseguiu falar para fora? Que é também uma manifestação de confiança em si mesmo.

Se calhar levei muito tempo a… como é que disse? Confiança em mim mesmo? Não tinha. A pouco e pouco, acabei por ter, em certas coisas. Conquistei terreno após terreno.

 

Tem as cartas trocadas com Amaro da Costa. Já nessa altura guardava tudo.

Ah, sim! Tenho uma colecção dos comunicados do dia da crise académica de 62. As folhas dos cineclubes. Cadernos da infância, praticamente não tenho. Os meus pais tiveram a excelente ideia de me obrigar a escrever um diário! Tinha medo que vissem, e limitava-me a fazer um relatório do dia. Nunca exprimi nada de pessoal. Desistiram.

 

Desde pequeno tem um mundo próprio, onde ninguém entra. Era uma maneira de escapar ao controlo?

Sim. Tenho uma grande capacidade de resistência passiva. Aprendi-a aí. Ou por natureza, não sei.

 

Ou seja, faz o que lhe mandam, mas na verdade faz o que quer.

É isso. Guardar? Sempre! Lembro-me da minha mãe a rasgar-me coisas. Do liceu, da escola. Por vontade dela, deitava-se tudo fora. A casa era pequenina, pequeníssima.   

 

Acumular e catalogar são traços fundamentais em si. Como se tivesse que existir uma prova material de tudo. 

Não sinto isso como uma coisa ilógica. É como na arqueologia: não se deita nada fora, fazem-se escavações. É poder ir, reconstituir tudo. Está integrado, faz parte, existiu. Não gosto de apagar as coisas. E a memória apaga.

 

A memória apaga-se?

Ela apaga. A ausência das memórias é um dos mitos da memória. Gosto de saber ao certo. Saber como eram as pessoas, como era a relação, o que fiz, o que não fiz. 

 

Quando está entre filmes, ou em dias de folga, está invariavelmente a arrumar coisas. É uma tarefa ciclópica, e sem fim. 

[risos] Estou sempre atrasado em relação a isso. Tenho sempre fotografias para digitalizar, filmes para passar de um suporte para outro, cartas para catalogar. Faz-me estar ocupado. Não sei se é possível existir de outra maneira. Há sempre tanta coisa para fazer… Tenho dificuldade em não me interessar. Há pouca coisa que não me interesse.

 

Em 1962, passou o Agosto em Paris, antes de se mudar no ano seguinte. Nesse mês viu quantos filmes?

Na minha memória eram 103, mas tenho a lista e não coincide. São 80 e tal.

 

Onde eu queria chegar era ao registo disso.

Tenho a lista dos filmes que vi e o guia semanal com a programação. Não guardei os bilhetes. Não sou capaz de deitar fora um livro. Parece-me uma coisa odienta – odienta?, odiosa? Preciso de tempo para perceber se as coisas me interessam ou não.

 

Essa lista dos filmes vistos em Paris: guarda para, mais tarde, saber o impacto que lhe causaram?, que pessoa era então?

A lista é uma curiosidade. Fui a Paris ver cinema; foi por causa desse mês que mudei a minha vida. Passei pela lista há pouco tempo. É curioso ver o que se podia ver em Paris nessa altura. Como se guardam “traços” de passaportes e viagens.

 

Por traços quer dizer vestígios?

Sim. Tenho um calendário, de há 20, 30 anos, que me diz onde é que eu estava naquele dia. É útil, para não estar perdido nas coisas.

 

Há nisso uma pulsão narcísica? Está à espera que alguém possa reconstituir o seu caminho a partir dos vestígios que deixa?

Não! É-me indiferente. Quando acabar, acabou. A minha tendência seria a contrária: a de apagar tudo. [pausa] Também seria excessivo, apagar tudo. Mas não é por isso. É uma obsessão por saber o que fiz, o que poderia ter feito. Depois há as coisas em relação às quais tenho afecto – é uma segunda categoria. E há as que acumulo porque ainda não tive tempo de as ler – terceira categoria.

 

Quando fotografou e filmou a casa da sua mãe depois da morte dela, era um desejo de cristalizar aquilo? Annie Leibovitz fotografou Susan Sontag no leito da morte.

São apenas auxiliares de memórias. De coisas que viveram comigo, gosto de ter registo. 

 

Esse gesto, fotografar as gavetas, ver o que estava nelas, resulta também de a máquina fotográfica fazer uma intermediação?

Parece-me evidente que tinha de fazer isso. Não o fazer, deixar as coisas desaparecerem? É o momento em que qualquer coisa acabou. O sítio onde nasci. Deixá-lo sem nenhuma confirmação?, sabendo que tudo na memória é apagado e transformado? Não. Não sei se conseguiria fazê-lo antes [da morte da minha mãe].

 

Voltemos ao cinema. Como começou a trabalhar?

Tive a sorte de a minha classe ser excepcional. Como nos vinhos, que têm anos excepcionais. Um tem um Óscar e outra tem uma nomeação. Alguns alunos começaram rapidamente a trabalhar. Comecei substituindo alguns deles, ou recomendado por outros. Comecei como segundo assistente, depois primeiro assistente… O normal. Até trabalhar, vivia da mesada dos meus pais.

 

Como é que foi para Paris?

Tinha a sorte de ter um passaporte – talvez da ida em Agosto no ano anterior – ao contrário de muitos outros, que foram a salto. Fui por Madrid, para não dar nas vistas. Saí com bilhete de avião, ida e volta. De Madrid fui para Paris. Estava documentado, matriculei-me sem dificuldade, e fiquei em Paris, legalmente.

 

No primeiro ano em Paris, perdeu 30 kg. E há o dado poético de os seus olhos terem mudado de cor…

[risos] Ter perdido 30 kg mudou a minha vida. Eu não nadava, não andava de bicicleta, não ia a bailes, não fazia nada que fosse físico. Passei à normalidade – e foi exactamente assim que o senti. Em miúdo, tinha as humilhações de ser “o gordo”. Passei a comer no restaurante universitário. Fui emagrecendo.

 

De que cor eram os seus olhos?

Castanhos. Desde essa altura são entre o verde e o cinzento, o verde e castanho. E têm aquele círculo branco, típico de quem tem colesterol. Ora, eu não tinha, e praticamente não tenho, colesterol. 

 

A sua formação foi muito completa. Mas o que é que fez de si o grande director de fotografia que é hoje?

Trabalhei com operadores clássicos e bons. Fui assistente de um colega de escola, e fora do plateau, quando voltávamos a casa, falávamos muito do que ele tinha feito. Outro, de quem fui assistente muito tempo, era muito original e fazia coisas arriscadas; também falava muito com ele. Foram uns 30 filmes enquanto assistente, ao longo de dez anos. Aprendi muito.

 

Quando passa a director de fotografia, procura criar uma marca que seja sua. Como?

Quando estava a preparar um dos meus primeiros filmes, a Hélène [a mulher] foi muito importante. Os directores de fotografia modernos tinham tendência a desprezar a fotogenia. O importante era o ambiente. Tratar da cara dos actores e das actrizes, pôr tudo bonito, sem pregas nem rugas, era degradante!, era uma coisa americana, insuportável. A Hélène dizia-me que isso era um grande disparate!, que era preciso trabalhar os rostos como os espaços. Algumas pessoas com quem tinha trabalhado faziam de propósito para a imagem não parecer bonita…

 

Uma vez, disse-me que a fotografia do Morte em Veneza do Visconti era horrível, que era tudo “uma grande borra”!

A fotografia é péssima, caras, ambientes, tudo! [risos] A Hélène convenceu-me. Como é lógico comigo, fui a correr à livraria e regressei com cinco livros sobre o assunto. Comecei a analisar como é que se iluminavam os rostos. Com o material que temos actualmente, é fácil fazer uma luz simples. A minha luz, normalmente, é de uma enorme simplicidade. Há 50 anos, fazer isso não era evidente. Ainda hoje, muitos livros sobre “como iluminar”, utilizam uma receita dos anos 30 e 40, e contestada já nessa altura.

 

No Rapariga com Brinco de Pérola, disse nas entrevistas que fez tudo com luz natural.

Era, em estúdio, o equivalente à luz natural. Era a luz indirecta, do norte, que vem pela janela. Não é luz natural, mas é igual à luz natural. Perguntam-me muitas vezes como fiz aquilo. É do mais fácil que fiz até hoje. É evidente que a facilidade e a simplicidade dão muito trabalho. É importante saber o que queremos atingir e conhecer os instrumentos. Os instrumentos evoluíram imenso, entre os anos 70, quando comecei, e o material que se usa agora. Projectores, por exemplo, já não uso.

 

Tem a reputação de ser um clássico. Com arrojo, deixando a sua marca – o seu verniz – mas um clássico. Harry Potter parece uma contradição com o que construiu para trás.

Há também o Blood Diamond e o Defiance [com Daniel Craig, 2008], que não são filmes clássicos. Ou Unbreakable, de Shyamalan [2000].

 

Mesmo quando é Hollywood, não é uma Hollywood qualquer. Harry Potter: porquê?

Porque era irresistível. Porque queria assegurar a reforma. Porque não queria ficar com o epíteto do director de fotografia que só brilha em filmes de época. Todas estas razões e mais algumas. Ter uma máquina à disposição que é diferente daquilo a que estava habituado. Como explicar? Se eu tivesse uma paixão por automóveis e alguém me propusesse um Ferrari por três meses, não ia dizer que não. 

 

O que é que significa ter uma máquina à disposição?

Tudo é possível. Não se esbanja, mas para tudo o que é preciso, não há limites.   

 

Quando fez o Blood Diamond, que era um filme orçamentado em 120 milhões de dólares, foi preciso fazer uma estrada para filmar de determinado ângulo, e fez-se a estrada.

Ah, não tem nada a ver! É muito mais do que isso! É outro nível, outra escala. Da qualidade técnica à loucura artística. É um trabalho em que todos os materiais, todas as competências, estão disponíveis. Tudo se experimenta e tudo se faz. Por exemplo, chego lá de manhã e tenho uma sala de cinema para corrigir imediatamente os rushes que vão ser vistos na hora de almoço.

 

Foi nomeado duas vezes para o Óscar com filmes clássicos. Mais dificilmente será nomeado com um filme como o Harry Potter. Já não é isso que lhe importa?

Importa. A saga Harry Potter não teve muitos prémios, mas o Senhor do Anéis teve. Até me roubou um! [risos].

 

Qual?

O Óscar pela melhor fotografia no Rapariga com Brinco de Pérola.

 

 

Publicada originalmente no Público em 2011