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Anabela Mota Ribeiro

Diário da Flip 2017 (Paraty)

20.01.21

Quando Dona Diva falou em Paraty, era sexta de manhã. Estava um calor suave, é Inverno de mais de 20 graus. A plateia seguia uma conversa sobre racismo com o estratosférico Lázaro Ramos e a jornalista do Público Joana Gorjão Henriques. A plateia transbordava, porque Lázaro é estratosférico (ou seja, é popular de um jeito que não se acredita) e porque o tema do racismo se impôs como discussão urgente no Brasil. O outro tema é feminismo. Além da omnipresente desigualdade, corrupção, violência, além de todos os problemas adjacentes a estes, e de todos os problemas crónicos de um país que vai levando. Pela primeira vez na história da FLIP, uma festa que tem nos livros o motor e um alcance internacional, havia mais mulheres do que homens entre os autores convidados. E negros. Facto nada despiciendo. Sintonia indispensável com as discussões de todos os dias. Chapeau à curadora, a jornalista e biógrafa de Jorge Amado, Josélia Aguiar.

E então emergiu Dona Diva da plateia. Muitos anos, muita sabedoria, muita coragem para partilhar uma história que comoveu aquela plateia e os milhões que entretanto souberam dela e viram os 12 minutos de catarse de uma vida nas redes sociais. Se me lêem neste passo, interrompam tudo e vão ver. Porque naquele pedaço está a história (triste) do mundo. Dona Diva é neta de escravos, é professora. Falou de racismo, falou de educação, falou de ter assistido na véspera à mesa "Em Nome da Mãe" com a brasileira Noemi Jaffe e a ruandesa Scholastique Mukasonga e de as palavras destas a terem inspirado a contar a sua história. “Eu sou uma sobrevivente pela educação, pela luta da minha mãe”. A mãe que sofreu humilhações, que lavava roupa para fora em troca de material escolar. Diva revoltava-se. Diva queria ajudar, trabalhar, ganhar. "Igual à senhora? Nunca vou ser", "Então só tem um jeito, vai estudar", "E eu pegava no meu caderninho e saía correndo para a aula, acreditando”.

Fui eu que moderei esta conversa entre Noemi e Scholastique. Pudesse eu imaginar que na plateia estava Dona Diva. Pudesse eu imaginar que aquelas palavras teriam o efeito de uma bola que deflagra qualquer coisa dentro.

Na verdade, e com muita pena minha, não vi Dona Diva em directo. À mesma hora estava na Casa Amado e Saramago a assistir a uma intervenção comovente da Bruna, menina de 20 e poucos. Antes da Bruna, falaram a escritora portuguesa-angolana Djaimilia Pereira de Almeida e a poeta-interventora-sei lá mas tudo Adelaide Ivánova, sobre mulher, corpo, intervenção. Recortei estas palavras para o meu caderno: "desde que estejamos na luta", "preconceito interiorizado", "onda de coragem de pessoas comuns", "emergência de processos emancipatórios", "a partilha empodera?". Eram tantas, tantas mulheres. Eram tão jovens, tão bonitas, brancas, negras, articuladas, valentes. Ligadas numa certeza que surgiu daquele momento, do que juntas disseram. Bruna partilhou a vez em que foi a uma delegacia apresentar queixa por tentativa de estupro. Tentativa??, responderam zombando, tentativa?? Bruna deduzia que só seria levada a sério se aparece ensanguentada como a vizinha que um dia socorreu e que era espancada pelo marido.

O que é que a banalização da violência sobre a mulher tem que ver com literatura? O que é que a discussão sobre a cor da pele tem que ver com literatura? Tudo. A não ser que se olhe a literatura como uma ilha de marfim onde não entram as tormentas do mundo. A não ser que se considere que literatura e política são incomunicantes.

Não foi esse o entendimento de José Saramago, em cuja casa estive nessa sexta de manhã e nos outros dias da FLIP. A Casa Amado e Saramago tinha o estatuto de casa parceira da programação oficial. Foi a minha casa, com gosto, com orgulho. Saramago era um pensador político; não por acaso, no discurso de recebimento do Nobel da Literatura, e quando passavam 50 anos sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, exortou à elaboração de uma carta dos deveres humanos, incitou-nos, cidadãos, a exigir, a agir, a ser plurais.

Já estive uma vez com Saramago no México, nunca havia estado com Saramago no Brasil. Num caso e noutro, é um estar metafórico. E num caso e noutro, estive com hordas de pessoas que faziam bicha durante horas para assistir a uma conversa, ver fotografia de José e Jorge sentados na Bahia com ar folgazão, ouvir Pilar del Río, sempre veemente (quando Pilar falou na programação oficial, estava na plateia uma camioneta de alunos de Ciência Política, vindos de São Paulo, quatro horas e meia de caminho, para a ver). Soa estranho escrever isto, mas vou escrever: vi no México e no Brasil uma loucura afectiva, táctil por Saramago, além de um conhecimento profundo da obra, que nunca presenciei em Portugal.

A casa era numa rua de pedras largas e irregulares, como todas do centro de Paraty. Era uma casa pequena onde couberam muitas vezes 200 pessoas. Sessões esgotadíssimas, dezenas de pessoas à espera meia hora antes de entrar, programação intensa. Pilar del Río e Paloma Amado eram as anfitriãs. Os cúmplices: Ricardo Viel e Sérgio Letria da Fundação Saramago, Rosarinho Prata-que toma conta de todos com atenção extrema e discreta. Outros cúmplices: Lilia Moritz Schwarcz, Luiz Schwarcz da Companhia das Letras, que lançou o livro com as cartas trocadas pelos dois amigos ao longo de sete anos (ainda não há data para a publicação de "Com o Mar por Meio" em Portugal). Intervieram na casa Andrea Zamorano, Frederico Lourenço, Giovana Xavier (do grupo Intelectuais Negras - Visíveis), José Eduardo Agualusa, José Luís Peixoto, Ondjaki, entre outros. José António Pinto Ribeiro e Luiz Eduardo Soares (o sociólogo que escreveu o livro que esteve na origem de "Tropa de Elite") tocaram na ferida: apontaram a inexistência de um Estado de Direito no Brasil e da necessidade imperiosa de o construir. Lívia Nestrovski, Fred Ferreira e Talita del Collado interpretaram um repertório que nos remeteu para o universo dos dois escritores; ouviu-se "Utopia" de Zeca Afonso e "Gabriela", claro.

Foi a segunda vez que estive em Paraty durante a festa literária internacional. Fui a partir do Rio, maravilhei-me com o caminho serpenteado. Entretanto soube da chegada de 10 mil militares ao estado do Rio de Janeiro. É um país em brasa aquele em que estou. O Rio vai quebrar, já quebrou, há uma vaga de assaltos a camiões de mercadoria, comentam. O Estado não paga a funcionários públicos há três meses, há cantinas e bibliotecas de universidades fechadas desde o começo do semestre. Brasília não sabe se sobrevive ao dia seguinte. E o futuro?

Aprendi, conheci pessoas, fiquei com vontade de fazer coisas. Um dia depois de chegar parecia ter passado uma semana, tal a torrente. Percebi que a palavra mais escutada foi convulsão. Palavra potente: convulsão. Quem imaginaria Dona Diva pedindo a palavra há dez anos, há cinco, há um? Notem que o escritor homenageado foi um negro, Lima Barreto. Há coisas a acontecer. Há coisas que não podem ser estancadas. Que privilégio seguir de perto, estar na rebentação.

 

 

 Publicado no Jornal de Letras em Agosto de 2017