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Anabela Mota Ribeiro

Carmen Miranda

14.02.21

Foi a pequena notável. A sereia da América do Sul. A mulher do tutti-frutti hat. Um ícone do século XX. Uma cantora brasileira que acabou entertainer. Uma entertainer de Hollywood que eventualmente cantava. Nasceu em 9 de Fevereiro de 1909. Há cem anos. Morreu com um espelho na mão, sozinha no seu quarto. Morreu num pequeno hall de um quarto que era maior do que um apartamento. Uma espécie de montra de perfumaria, onde se alinhavam centenas de frascos de perfume. Havia um cigarro quase intacto no cinzeiro. A maquilhagem retirada. O roupão vestido. Tinha dito boa noite à macacada lá em baixo, na sala. (Entrava no palco e dizia: “Oi, macacada”). E tinha deixado, em baixo, os amigos e a família. Subido para o quarto. “Dirigiu-se à escada jogando beijos gerais e desapareceu”. Enfim, sós. Morreu. “Uma oclusão das coronárias fizera explodir uma vasta área de seu coração – um infarto maciço”. Ela tinha um “quequequé-catrai” – um quê qualquer que atrai. Carmen Miranda, Maria do Carmo, morena como a Carmen de Bizet, “olhos verdes e muito vivos, boca rasgada, dentes brancos e perfeitos, farto cabelo castanho-claro. Pequenina, é verdade – 1,52 metro e nunca passaria disso –, mas um pitéu”. Ruy Castro descreve-a assim na biografia, “Carmen”. É ele também que desencanta o quequequé-catrai do humorista Barbosa Junior. Há outras maneiras de dizer que Carmen Miranda tinha carisma. Por exemplo: era uma it girl. Tinha esse je ne sais quoi que fazia com que só se olhasse para ela quando aparecia numa fotografia ou num plateau. Foi a inventora de sandálias com plataformas de 13 centímetros, ou 12,5, ou 15. Usava turbantes onde cabia tudo – “Olhei para um candelabro em minha casa e tive uma ideia para um turbante”. Cantora e entertainer. Nasceu há cem anos numa terra de nome impronunciável para um americano: Várzea de Ovelha. (Concelho de Marco de Canavezes). Nunca lá voltou, americanizado ou não. Seria, desde o berço, carioquíssima. Durante muito tempo foi a filha do barbeiro e da lavadeira. Muito antes de ser a pequena notável, foi uma pequena que foi aprendiz no atelier da Madame Anaïs; catava grampos no chão e varria retalhos. E cantava. Ganhou o primeiro salário numa casa de chapéus, La Femme Chic, numa rua do Rio onde paravam as francesas – a rua do Ouvidor. Caruso, o dono, contratou-a por ser “alegre, bonita e comunicativa”. E porque era capaz de vender qualquer peça. Ela mesma usava chapéus “da sua invenção” e aos fins de semana “encontrava tempo para costurar seus próprios vestidos”. E cantava. Vendeu gravatas e camisas na Principal. Era por essa altura uma jovem mulher, ciumenta e possessiva, que chamava a um remador do Flamengo “o seu pedaço”. Dedicou-lhe fotografias assim: “Para o meu bestalhão, para que, olhando para essa linda boquinha, me troque menos pelas outras vacas. Bituca”. Acede, com ele, a camarotes de honra, circula com “soberana naturalidade” em meios privilegiados. “Para todos os efeitos, ela era a namorada de Mario Cunha, não a caixeira da loja de gravatas. Na verdade, Carmen conquistava qualquer meio com seu temperamento radiante, cómico, espontâneo e franco”. Perdeu com ele a virgindade; sentira “algo parecido com uma dorzinha de dente; culpa, nenhuma”. Era o tipo de rapariga que fica radiante quando a menstruação aparece, aos 12 anos. Poderia ter sido, apenas, a “Vênus de Milo” do seu pedaço. Uma moça que acaba casando e tendo filhos. O pedaço devia ter determinadas características: ser bonito, alto, forte, e burro – Ruy Castro dixit, o biógrafo e o apaixonado. (O escritor conta à Pública, em entrevista na sua cobertura, no Rio de Janeiro, que sentiu ciúme deste remador, quando imergiu na vida de Carmen Miranda…). Mário tinha cerca de 30 centímetros mais do que Carmen, Carlos Alberto também, Carlinhos Niemeyer também, John Wayne, como é sabido, também. Acabou por casar com um homem feio, baixo, coxo. “Pois é. Namorei tantos homens bonitos e fui me casar com um manquinho!”. Porquê? Porque foi o único que a pediu em casamento. E porque queria ser mãe e estava prestes a completar 39 anos. Quando casou, disse “vou” em vez de “sim”. Na véspera tinha dito em família: “É com esse que eu vou”. Casou-se com um “cabelo cor de laranja sob um véu de flores e lantejoulas, um conjunto de lã branco e plataformas em azul e rosa com tachinhas brilhantes”. Mas adiantamo-nos. Uma pergunta essencial: Quando é que Carmen passou a ser Carmen Miranda? “Essa foi a primeira pergunta que eu me fiz quando decidi escrever sobre ela. Descobri que ela morou dos seis aos 16 anos na Lapa, exactamente na época em que a Lapa estava se formando como bairro que seria lendário na primeira metade do Séc.XX. A Lapa tinha essa coisa dúbia, de ser um bairro muito católico, conservador durante o dia, e de ser um bairro boémio durante a noite. Tinha um convento, um colégio de freiras, uma igreja, um seminário, e os cabarets, as boites, os hotéis, os restaurantes”. Na Lapa, escreve na biografia, “Carmen testemunha, ao se construir como pessoa, os esplendores e as misérias, as euforias e as solidões, os vícios e as virtudes de seus habitantes”. Para perceber Carmen Miranda, a sua alegria esfuziante, a malícia do olhar, o requebrado das cadeiras [ancas], é preciso voltar atrás no tempo e andar nas ruas da Lapa. Vamo lá. A Lapa de 1920 era, segundo Castro, uma Montmartre. “Surgiram hotéis com portas de bronze, mensageiros de luvas. Marcavam-se encontros para as três da manhã, em restaurantes que serviam lagosta ou canja de galinha. Discutia-se Mallarmé ao som de valsas francesas. A cocaína era vendida às claras”. As prostitutas cruzavam a rua, os bordéis ficavam lado a lado com moradas de família. Os navalhistas e os proxenetas (cafetão, era o termo) andavam por ali. “Uma deliciosa atmosfera canalha”. Uma deliciosa forma de ser canalha que está também em Carmen, a desabrida, a desbocada. Aquela que encarna o estereótipo da latina tempestuosa que atira com o sapato (e a plataforma) ao namorado, do outro lado do quarto. A que diz “meu bem”, “filhote” e “meu nego” para começar a conversa. Montmartre a resvalar para Pigalle, conclui Castro. A mãe era uma católica fervorosa que cogitou a possibilidade de a fazer freira. Carmen frequentou um colégio de freiras e saiu de lá com a língua afiada. “Disparava palavrões como se fossem vírgulas”. Dizia caralho e puta que o pariu como quem diz oi, queria um copo de água gelada. Uma pândega. Punha uma enfermaria a rebolar a rir, e os médicos com medo que os doentes rebentassem os pontos. E seduzia as mulheres dos homens que a cobiçavam. Era generosa. Irradiava. Quando é que tudo começou e ela passou a ser Carmen Miranda? Quando gravou Taí. E o verso continua, já com instrumentos de sopro e bateria de Carnaval: eu fiz tudo pra você gostar de mim. Explodiu imediatamente antes do Carnaval, em 1930. Era uma moça, (não era uma rapariga, que isso não é maneira de chamar quem tem boa reputação) quando a ouviram cantar na pensão que a mãe tinha em casa. Serviam refeições, preparavam marmitas. Depois deu-se um encontro casual com o autor da música, um encontro fortuito, numa casa de discos. Por fim, a gravadora era do outro lado da rua. Joubert, o autor, falou da “sensação inédita de estar vendo a cantora, como se ela estivesse dentro da vitrola”. E quando a viram ao vivo, havia também esse “despropósito de dengues” (palavras do escritor Marques Rebelo). Na adolescência alimentou o sonho de ser uma starlette. Mandou fotografias para concursos, engrossou filas intermináveis, foi recusada em castings que prometiam Hollywood. Apresentou-se em salas para amadores, foi apresentada nas estações de rádio. “No dia 13 de Setembro de 1930, Carmen estava na coxia do Teatro João Caetano pronta para cantar na nova revista musical da cidade. Até ali, os cantores tinham de se tornar estrelas do teatro de revista para serem convidados a gravar um disco. Carmen começara por cima, pelos discos”. Inaugurava-se o reinado das Rainhas do Rádio. Salvé, salvé. Era a sua primeira plateia “de verdade”, nove meses depois de o disco ter sido lançado e ela, da noite para o dia, se ter transformado numa sensação. Ruy Castro considera que Carmen era “tecnicamente uma cantora extraordinária. Mas no Brasil a música popular estava apenas começando a ser vista como uma coisa importante. Ela pegou o rádio quando o rádio estava começando, a indústria do disco quando o disco estava começando, o cinema musical brasileiro quando o cinema estava começando. Os cassinos: foi a primeira artista brasileira a se apresentar e a estabelecer um parâmetro de salário e de qualidade de apresentação. Sem falar no Samba, que a gente acha que sempre existiu, mas não; e decididamente não tinha as marchinhas de carnaval como passou a ter. Grande parte da fixação desses géneros musicais foi feita por ela. Pelo jeito de ela cantar. Foi muito influente. Precursora”. Mas com 21 anos e a vida toda, literalmente, à sua frente, podia ainda ser tudo. Podia, inclusive, ficar por ali e ser, apenas, uma cantora de marchinhas de carnaval. Ainda não tinha inventado a famosa baiana com um cacho de bananas na cabeça, nem tinha como sonhar com o technicolor de Hollywood. E nessa altura, Carmen disse isto numa entrevista: “Se eu não fosse artista de rádio, é porque me teria casado aos 15 anos e já teria uns cinco filhos. Seria uma boa dona de casa, bem burguesa, dessas que lêem os jornais e as revistas de moda e, quando saem, vão à manicure. Mas o que você quer saber é o que eu desejaria ser – e não o que eu não fui. Pois olhe, se não fosse artista de rádio, onde ganho bem, aceitaria qualquer outra profissão que me divertisse”. Ter uma carreira ou ter uma família foram sempre alternativos na vida de Carmen Miranda. (Perguntem à Madonna, no início do século XXI, como é que ela faz, e imaginem o quadro de Carmen, quase cem anos antes. Ruy Castro equipara o estatuto de celebridade de uma e de outra). “O problema era trocar a segurança profissional por alguém, como Carlos Alberto, que mal conseguia sustentar-se a si próprio. E havia também a questão da sua própria família. Embora todos os irmãos trabalhassem, Carmen se sentia responsável por eles e por sua mãe. Para completar, sua carreira não parava de crescer” (no livro “Carmen”). Mas antes dessa opção final, um casamento desastroso que os amigos consideraram ser “o princípio do fim de Carmen Miranda”, muita diversão (e muita música) iriam passar debaixo da ponte. Muitos banhos de sol na praia da Urca (quando ficou famosa deixou de ter sossego para aí fazer o seu crochet!) ou os banhos de sol na “piscinona” (como lhe chamou Susana de Moraes, filha de Vinicius, que aí aprendeu a nadar) da casa americana. Muitos anos antes do derradeiro close up, com a mítica Sunset Boulevard a dois passos, Carmen posava com uma alegria que enfeitiçava. Um íman. Os mecanismos da atracção? Que é uma maneira de perguntar: O que é que a baiana tem? A canção foi escrita pelo jovem Dorival Caymmi que lha apresentou em casa, quando ela já era uma estrela. Recebeu-o como recebia todo mundo: “de plataformas, short cavadinho nas virilhas, camisa amarrada na cintura e um lenço colorido na cabeça”. Se só se pensa em Carmen Miranda de penduricalhos ao pescoço e uma salada de frutas presa ao cabelo, eis como ela andava por casa. Pelo menos antes de a baiana passar a ser uma segunda pele. A baiana de Caymmi: “Tem saia engomada, tem/sandália enfeitiçada, tem/ Tem graça como ninguém/Como ela requebra bem”. Era uma baiana inspirada nas negras e mulatas da Baía. Antiquíssimas. “A primeira baiana estilizada de que se tem notícia no teatro de revista é em 1892”. A baiana de Carmen seguia o figurino da letra de Caymmi e tinha os toques pessoais que fazem a diferença. “A bata, muito sensual, deixava entrever os ombros e o estômago (mas não o umbigo). A gargantilha dourada com colares de contas graúdas e a torrente de balangandãs (rosários, correntes). O turbante ainda era modesto para os padrões futuros, mas já levava apliques de pérolas e pedras”. Um bruá. Um sucesso. “É só abrir a boca e pedir. Quanto, Carmen?”. Não foi exactamente isso que lhe disse Lee Schubert. A proposta que lhe fez foi razoavelzinha. Mas não foi por causa da grana que Carmen o seguiu até aos Estados Unidos e mudou de vida. Ele, Schubert, tinha viajado até ao Rio num daqueles transatlânticos perante os quais se estanca. Ruy Castro descreve-o como “a França flutuante”: o mais bonito, o mais rico e o mais chique que Carmen já vira. “Já se habituara ao dinheiro, mas era a primeira vez que se defrontava com a opulência”. Shubert, monsieur le proprietaire de meia-Broadway, e há três gerações, empresário dos Irmãos Marx, Fred Astaire, May West ou Noël Coward, viu-a no cassino da Urca e contratou-a no dia seguinte. “Como não entendia o que Carmen estava dizendo, foi o geral que o interessou: a gesticulação da cantora, seus olhos, seu magnetismo, seu ritmo e aquela roupa maluca, com o turbante, os colares e os sapatos”. Schubert não se enganou. A proposta era para uma produção a estrear daí a semanas na Broadway, uma excursão por cidades americanas, apresentações em rádios e nightclubs. Ela já ganhava dois mil dólares fixos por mês. Mas aquele era outro lance. E as hipóteses, depois de dez anos de carreira, eram prossegui-la no Brasil ou desistir dela e ter um casamento com cinco filhos. Foi. America, here I go. A imprensa local, o Brasil inteiro despediu-se da sua estrela e empregou palavras como missão e embaixada. “Carmen vai dar ao Samba um cartaz mundial”. Fez-se um forrobodó a bordo do navio, “Vão entrando, nada de cerimónias”, a cabine apinhada de gente, música e requebrado dias a fio. Uma espécie de cabine dos Irmãos Marx mais espaçosa e com mais gente. Os Garotos da Lua, os seus músicos, seguiram com ela. “Todo o navio vibrou, e mais de metade dos passageiros era de americanos. Ali, Carmen convenceu-se de que não havia nada a temer”. Ela tinha “uma garganta de ouro, uma fachada bem jeitosinha e um corpinho de se tirar o chapéu” (Fernando Sabino), mas não era uma vamp misteriosa, que avança de cigarro na boquilha, como as divas a que a América estava habituada. Era uma garota bacana. E uma comediante. Quando à chegada lhe perguntaram que palavras sabia dizer em inglês, sentada em cima do baú, de pernas cruzadas, respondeu: “I say money, money, money, I say hot dog, I say yes, I say no, I say mens, mens, mens”. Gargalhada geral. Com um sotaque que a fazia dizer mónei em vez de money, e que manteve, mesmo quando o inglês já era perfeito. Ensaiava a sua personagem americana. Distribuía sorrisos, malícia, sensualidade. Dizia souse [bêbedo] em vez de south em South American Way. Anos mais tarde, as graças incidiam sobre ela mesma, explorando as suas imperfeições. “Dizem que sou careca, mas vejam só o meu cabelo… É tingido!”. Ou: “Esta é a minha cicatriz preferida”. Seis minutos foi de quanto precisou para conquistar o público americano no primeiro espectáculo em que se apresentou. Um espectáculo teste em Boston, com a dupla Abbott &Costello, doze dias depois de ter chegado. O porquê do sucesso? O de sempre. “Cantava com as mãos, os olhos, os quadris, os pés. “Um repertório de meneios, dengos e chamegos que dispensavam tradução”. Outras maneiras de o dizer: “A sereia da América do Sul”. “A labareda latina”. “Lança-Chamas”. “The brazilian bombshell – a granada brasileira”. (Títulos de jornais). Ela resumia assim a aventura americana: “It’s a maravilha!”. Enquanto isso, para se ter uma noção do sucesso, Josephine Baker estava no casino da Urca, a fazer uma imitação de Carmen Miranda – “perfeitamente horrível”, comentavam. Ruy Castro escreve na biografia: “As coisas estavam acontecendo muito depressa para Carmen. (…) Nas três primeiras semanas, tivera matérias de arromba em revistas como a Life, Look, Vogue, Esquire, Pic, Harper’s Bazaar e fora capa do Sunday Mirror. Hollywood bateu à porta”. Armazéns como o Macy’s e o Saks passaram a vender sapatos com plataforma e turbantes. Tudo nela era “exótico, vivaz, diferente”. “Subira ao palco pelo menos 416 vezes em pouco mais de meio ano nos Estados Unidos – uma média de 2, 27 shows por dia, todos os dias”. Está a soar bem demais? Benzedrine é a palavra dissonante. Não era considerado uma droga, tomava-se nas calmas, sem alarido. “O caso é o seguinte: preciso dar uma entrevista de manhã, depois tenho que tirar uma foto, são onze horas, depois tenho um programa de rádio ao meio dia, depois tenho não sei o quê, depois tenho uma matiné às quatro, depois tenho que filmar às sete… Estou aqui quase morrendo de sono, e toma isso que você vai aguentar. Não era nenhuma angústia psicológica, apenas uma questão mecânica, técnica: como ficar acordada e responder a todas as solicitações. Acho que Carmen foi muito feliz até à dependência se instaurar definitivamente, o que calculo que tinha sido por volta de 1947/48. Em 1949, na excursão a Londres, já foi obrigada a tomar anestesia para conseguir dormir! Numa segunda etapa, instalou-se a dependência do álcool” (Castro em entrevista à Pública, no sofá da sala; memorabilia de Carmen espalhada pela casa). Voltou ao Rio. Disseram que voltou americanizada. Receberam-na com reservas. Ela parecia uma caricatura de si própria. “Pouco autêntica”. Encarnava o personagem de que estava refém nos Estados Unidos. Cantou mais tarde: “Posso lá ficar americanizada?/ Nas rodas de malandro, minhas preferidas/Eu digo é mesmo “Eu te amo”, e nunca “I love you”. Voltou aos Estados Unidos, com a mãe, dona Maria. A família à volta. “São centenas de parentes, todos sustentados por ela” – escandalizava-se Groucho Marx, o sovina, quando foram colegas de plateau. Voltou do Rio para os estúdios da Fox. Foi durante anos a sua star. Abriu o filme Down Argentine Way, com quatro quilos de bijuteria e tamancos de meio metro. “”Ela frustrou os publicistas da Fox, que esperavam vê-la desembarcar envolta em peles, com um staff de pelo menos meia dúzia. Em vez disso, chegou com a mãe, o irmão e uma cozinheira. Depararam-se com o que consideraram um quindim, um merengue, um doce-de-coco humano”. Com os pés em Hollywood e o cocuruto nas nuvens, Carmen Miranda ainda era o tipo de pessoa que acende uma vela e reza com a mãe antes da primeira filmagem. O seu estilo? “Era uma comediante, uma grande clown, coisa raríssima entre mulheres atraentes. Capaz de vestir uma fantasia absurda, à base de bananas e abacaxis, e fazer rir – e, ao mesmo tempo, fazer com que os homens quisessem descascá-la e comê-la”. Tinha um peito grande. “Que é que vou fazer com esses mamões?”. Mas o principal problema, era o nariz. “Não gostava do nariz, quase destruiu o nariz numa operação plástica. Sei disso porque sou muito amigo da sobrinha dela, filha da Cecília (irmã). Mas eu tenho impressão que ela se sentia bem. Ela usava aquele corpo, né? “ Passou a ser vista como uma comediante de cinema que eventualmente cantava, e menos como uma cantora de discos e do rádio. O Brasil, e quem ela era no Brasil, tinha ficado para trás. Carmen alimentava-se de uma vontade infantil de agradar. E de cápsulas mágicas, claro. Para dormir e para acordar. Acordava a horas, era a primeira a chegar à maquilhagem, gravava à primeira. Resistia aos avanços do produtor quando este tentou induzi-la a fazer-lhe sexo oral: “Mas senhor Zanuck, eu não estou apaixonada pelo senhor”. E debitava pérolas deste calibre quando lhe apresentaram o filho de Aga Khan: “Se aquilo é príncipe, meu cu é pêssego da Califórnia”. O noivo brasileiro a que sempre aludia nas entrevistas, um moço fino, perdeu-se pelo caminho. Tinha um caso não assumido e mal resolvido com o líder dos Garotos da Lua, Aloysio de Oliveira. Engravidou dele, fez um aborto. “Observava essa azáfama de casamentos, gravidezes e partos das suas colegas. Todas eram mais novas do que ela. Aos 34 anos, a sua vida não tinha nenhuma perspectiva nesse front. Ela também trocaria o cinema, a carreira e o sucesso por um casamento e filhos – se tivesse tal escolha”. E não teve. Aloysio não era o homem, aquele não era o momento. Os homens da vida de Carmen nunca coincidiram com ela nem com o momento. Convenhamos que não era uma mulher madura emocionalmente… “Querido, fazem já uns bons sete anos que não pego numa pena para escrever uma cartinha de amor. (…) Ela se sente uma garota muito safadinha que topa todas as loucuras que ele qué. Mas também brigaria com ele “pra caralho”. (…) E ovinhos quentes pela manhã. Três minutos e meio. E os dez dias na minha casinha, que dias, meu amor, como maridinho e mulherzinha. (…) Meu corpinho todo cheirosinho, minha bundinha bem gordinha, meus peitinhos bem fofinhos para ele deitá a cabecinha dele e minha boquinha toda cheia de beijinhos. Da sua Rolinha”. Também não ficou com este, um Niemeyer. Casou com um manquinho, assistente de produção, que lhe mandava flores e comprava jóias – com o dinheiro dela. David Sebastian. A guerra das rosas começou cedo. “”Já no primeiro mês, Carmen inaugurou a prática de, no meio de um bate-boca, tirar a aliança do dedo, jogá-la na privada [sanita] e dar descarga. Sebastian sempre lhe comprava uma aliança nova – com o dinheiro dela”. A juntar à farmácia particular que transportava nas viagens, começou a entrar na copofonia. Vinicius de Moraes, colocado pelo Itamaraty em Los Angeles, “deu-lhe aos boas vindas ao clube”. Dave também era “alcoólatra”. Mas verdadeiramente, o problema era, segundo Castro, “os red devils, como os íntimos se referiam ao Seconal; e os bennies, abreviatura carinhosa de Benzedrine”. Em resumo, vivia dopada. E no ecrã começou a aparecer ausente, desgastada, envelhecida. E inchada. Engravidou. Finalmente, aquele casamento servia-lha para alguma coisa. Aborto espontâneo. O próprio marido fez o relato: “Carmen perdeu o bebê em Nova York. Assim é a vida”. O biógrafo acha que Dave errou na simplificação. Além do cansaço, havia os 39 anos de Carmen, os soníferos e estimulantes, e o álcool. Sebastian foi expulso do quarto de Carmen mas não da sua vida – “Não há divórcio para católicos”. Mas acordava e dizia: “Good morning, stupid”. E continuou a correria extenuante em que vivia há nove anos. Era uma “mulher-maratona”. “Não parava porque não era possível parar – havia um contrato a cumprir e um avião a tomar, e uma plateia pronta a ouvir “Mamãe eu quero” e a rir com a história do cabelo, e talvez porque fosse melhor estar na estrada do que em casa”. Mas parou. Houve um dia em que o corpo disse stop. Foi internada, desintoxicada, foram-lhe aplicados electro-choques (indicados “para os casos agudos de depressão, que já não respondiam a sedativos como o Demerol”). Fez uma viagem ao Brasil, recuperou um pouco. Voltou aos Estados Unidos, recomeçou. Teve falhas de memórias. Esqueceu a letra das canções. A sua última batucada, que é também o título de uma das suas canções, resume-se nisto: estava no Jimmy Durante Show. O corpo tinha-lhe dado “pequenos avisos de que havia um grande vulcão preparando-se para a erupção final”. Mas foi ignorado. Show must go on. E houve um momento, na gravação, em que ela cai na vertical, e o bailarino a ampara. Falta de ar, continuemos. “Mais um corte, mais uma pausa. Carmen, cansada, mas contente, aparece saindo de costas por uma porta, dançando com o Bando da Lua, jogando beijos e despedindo-se de Jimmy, do público e da vida”. As imagens estão hoje disponíveis no youtube. Exauriu-se. O corpo implodiu. O grand final foi em casa, a sós, horas depois desta despedida. Um “infarto maciço”. Com o espelho na mão, os frascos de perfume, o hall. Tinha 46 anos. Foi enterrada no Brasil, como quis. Regressou a casa com a bandeira brasileira a envolver o caixão. “Alguns se chocaram com o fato de Carmen estar vestida de vermelho, penteada e maquiada. Até a morte era em technicolor” – escreve Ruy Castro. Mas seria possível que esta pequena aparecesse descomposta? Publicado originalmente no Público em 2009

Like Someone in Love: o prof. Takashi viveu amando

13.02.21

O prof. Takashi viveu amando – like someone in love.

Todos conhecemos a famosa frase de Camilo relativa a Simão: “Amou, perdeu-se e morreu amando” que me ocorreu assim que pensei no prof. Takashi. Talvez porque este personagem do filme de Abbas Kiarostami, ao contrário do herói trágico de Amor de Perdição, viveu – e vivificou – amando. Talvez se tenha perdido, pelo meio. Mas, se se perdeu, perdeu-se aos olhos de quem?

Vamos por partes.

Like Someone in Love é um filme de um realizador iraniano rodado no Japão, com actores japoneses, em japonês. Que faz um iraniano no Japão?, porquê no Japão?, o que muda por ser no Japão? Não temos tempo, nem é o espaço, para responder às questões da cinefilia. Mas vale a pena, e é preciso, situar o filme para que se perceba o que vim cá dizer.

Os protagonistas, aqueles que ficarão estranhamente in love, são um velho professor de sociologia, reformado, e uma jovem ninfeta, estudante universitária, prostituta.

(Quase fere usar a palavra prostituta para falar de Akiko, de tal maneira o seu perfil, a sua cara não coincidem com o que visualizamos quando se fala de prostitutas. Mas ela é uma dessas meninas, tão tenras que podem ser chamadas de meninas ou ninfetas, que chegam a uma selva como Tóquio e vendem o corpo para assegurar uma certa normalidade no quotidiano; e desse quotidiano faz parte um curso universitário onde estuda, entre outras coisas, a evolução da espécie.)

Uma noite, muito contrariada, ensonada, a mando do patrão, Akiko chega a casa do prof. Takashi para fazer o que se imagina que fazem as meninas que vão a casa de professores reformados depois das dez da noite. Mas neste filme, prodigioso na arte da elipse, nem isso se sabe. Quer dizer, não se sabe o que fazem depois das dez da noite. Numa linha: não se sabe se o sexo é perpetrado. (Estranha palavra me saiu para falar de sexo: perpetrado. Normalmente a palavra é usada para falar de crime. “Um crime perpetrado”. Não é que o sexo, ali, naquele apartamento, seja um crime. Mas talvez, aos meus olhos, fosse um acto deslocado, uma nota fora de tom. Uma estridência.)

O realizador, Kiarostami, deixa à imaginação de cada um se há ou não uma relação sexual entre o prof. Takashi e Akiko.

Eu tendo a dizer que não, não há. Que o sexo não entra na explosão de vida e de desejo que acontece nele, sobretudo nele. Desejo de quê, se não é um desejo de corpo, prazer, se não se manifesta como habitualmente o desejo se manifesta? Desejo de vida. A vida que ela irradia, como um imã.

Também é verdade que o facto de não haver uma relação sexual explícita torna, aos meus olhos, o romance menos incestuoso. Menos ou nada. Não penso na pedofilia ou no incesto ou em palavras graves quando os vejo, aos dois. A apresentação é esquemática, mas é como se o amor ficasse púdico, naquela des-sexualização. Púdico e concentrado na sua essência amorosa. Naquele encontro, eventualmente o sexo introduziria um desencontro. A parte dele que se quer encontrar com ela não é a da pulsão libidinosa. No caso de Akiko, se é o encontro sexual que a leva até Takashi, ela escuda-se nesse ofício. Não se entrega. O sexo seria uma espécie de encontro-desencontro.

Retomo a normalidade das partes.

Ele tinha-lhe feito um caldo de camarão que era especialidade da terra natal dela. Um lugar onde Dezembro era mês de clementinas. Mas ela não gostava dessa sopa. Ele tinha comprado um vinho rosé, que serviu em flutes elegantes. Ela seguiu directa para o quarto e despiu-se peça a peça. Ele quis, sugeriu, precisou dos caminhos do romance, ela quis, sugeriu, precisou de resolver os caminhos do sexo que a tinham levado até ali.

A cena seguinte é na manhã seguinte. Ele leva-a à escola, uma escola onde Takashi tinha sido mestre. Vamos tendo noção de que os caminhos são coincidentes e circulares. Outro capítulo começa então.

Se disser só isto, parece que digo o essencial, e contudo deixo de fora o essencial. Ficam de fora outros protagonistas que ajudam a compreender a singularidade de Takashi e Akiko e a deflagração do seu encontro.

Do lado de Akiko, uma avó que vem da terra para a visitar e que ignora a vida que ela leva (só uma interrupção: pode uma avó imaginar que à mesma hora que telefona à neta esta se prepara para um encontro com um homem que tem idade para ser seu avô?). E do lado do Akiko há também um namorado ultra-ciumento que pretende casar e tê-la como propriedade; evidentemente também este ignora o que Akiko faz depois das aulas.

Do lado de Takashi, há uma fotografia da mulher falecida, um quadro na parede de uma mulher que fala com um papagaio (um lindíssimo quadro de Yazaki em que não se sabe quem ensina quem: se é a mulher que ensina o papagaio a falar, se é o papagaio que ensina a mulher a falar). Uma alusão belíssima daquilo que é o amor: quem ensina quem? A resposta não importa. O que é decisivo é aquele feitiço em que ambos se encontram, o da mulher e o do papagaio, a falar um com o outro, com os olhos – uma fala muda, um olhar magnético.

Quer a falecida mulher de Takashi quer a mulher que olha o papagaio, no quadro, têm parecenças físicas com Akiko. É ela que o nota. Ele concorda. Ela vai mais longe: diz que é parecida com toda a gente. Que várias pessoas lho têm dito. Como se não tivesse identidade própria. Como é a cara de Akiko? Pergunto de outra maneira: que transparece na cara dela?

Isto já me leva ao coração do que quero dizer: Akiko irrompe pela vida de Takashi como uma assombração do lado da vida. Vou ser mais explícita. Se as assombrações vêm do lugar dos mortos, esta vem do mundo dos vivos, e arranca-o, prof. Takashi, a esse sítio triste, desistente do mundo, onde ele parece instalado. E por isso comecei por dizer que ele vive, vivifica, amando. Amando o pretexto exterior que Akiko representa.

Há dois triângulos que consigo gizar olhando para este filme. O primeiro: Akiko, a avó e Takashi. Sublinho isto: a rapariga vai ao encontro de Takashi o que impossibilita o encontro com a avó. Se me perguntar o que representa este homem para esta ninfeta, penso na avó perdida, num amor deslocado de um para outro, e numa sensação de protecção que instantaneamente Akiko transfere da avó para Takashi. Mesmo que no começo ele seja apenas mais um cliente, um homem importante.

O outro triângulo: Akiko, o namorado enciumado e Takashi. O namorado pergunta a Takashi directamente: “Qual é a sua relação com Akiko?”

É uma boa pergunta. Qual é a relação entre os dois? Estão ligados por que vínculo? Numa primeira análise – já vimos que falsa, pelo menos para mim –, por uma relação sexual. Num segundo tempo, podemos pensar numa relação filial – mais plausível, sobretudo se pensarmos num dos triângulos e na transferência que Akiko faz da avó para aquele professor com idade para ser seu avô.

Convém sublinhar esta dimensão: esta não é a clássica ilustração do complexo de Édipo, com um homem com idade de pai e uma menina com idade de filha. Não. Takashi está no ocaso da vida, na idade dos avós que cuidam das feridas dos netos (como ele, de resto, faz, quando Akiko é batida pelo namorado). E ao estar nesse lugar perto do fim está simultaneamente mais próximo do começo, fechando um círculo. Está capaz de se deslumbrar com uma pureza infantil, disponível para o espanto, para se reencontrar com o seu espanto há muito esquecido.

Takashi está disponível para amar. Não com a condescendência e a calma dos amores de uma vida, há muito adormecidos no conforto. O prof. quer a fúria intempestiva, a deflagração, o sarilho, a vida perigosa a espreitar por todos os poros, aquela urgência dos que se encontram na primeira noite. Uma vida viva. Um último clarão antes do fim. Comummente chamamos-lhe paixão. Mas eu, ainda que erradamente, não consigo chamar-lhe isso. Chamo-lhe amor. Uma forma de amor que permite recuperar os versos de Chico Buarque:

“Vou, uma vez mais correr atrás de todo o meu tempo perdido... (...) E mais à frente, na mesma canção que Chico escreveu para o Sérgio Godinho:

“Um pedaço de vida, vida

A vida que eu não gozei

Eu não respirei

Eu não existia

Mas eu estava vivo

Vivo, vivo

O tempo escorreu

O tempo era meu

E apenas queria

Haver de volta

Cada minuto que passou sem mim…"

Cada minuto que passou sem mim. É isso, o tempo passou sem ele. Talvez desde a morte da mulher. Não o sabemos. Em qualquer caso, um tempo que era seu e que não viveu.

Volto a perguntar: que relação há entre eles? Eu vejo em Akiko a volta dessa vida em que se respira e existe e se está vivo. Não importa, parece-me, ser correspondido nesse amor. Como já disse, ela é o pretexto exterior do que ele sente. O problema no amor de todos os dias é que precisamos da palavra, do gesto, da concretização, do que torna o amor mais real e por isso mais finito. Precisamos da noção de que o outro nos acompanha minimamente, e que se encaixa razoavelmente na ideia de amor que temos na cabeça.

Estou a medir bem as minhas palavras: estou a dizer “a ideia de amor que temos na cabeça” e não “a ideia de amor que temos no coração”. O que sentimos não tem a ver com o pensamos – isso toda a gente sabe. O coração é um músculo involuntário, que trepa por caminhos ínvios, desconhecidos de nós mesmos, fogo que arde sem se ver... tudo o que faz parte da mitologia.

Vou para o fim do filme. O namorado, enlouquecido, atira uma pedra para a janela de Takashi (nessa altura ele já deduz, com alguma certeza, a natureza da relação entre a namorada e o velho professor; pobre rapaz que não sabe que o âmago lhe escapa, e se alicerça nas aparências).

Foi com muita surpresa que revi o filme e que percebi que ele atirava uma pedra. Na minha imaginação, desde sempre, acontecia algo muito mais terrível e maravilhoso. O namorado fazia deflagrar uma bomba, à entrada da casa do professor, e os estilhaços chegavam ao andar de cima, ao apartamento onde estavam refugiados os dois amantes (vou chamar-lhes assim pela primeira vez: amantes como aqueles que se amam, e não amantes que trocam de corpo e de respiração).

Na primeira vez que vi o filme eu cheguei a achar que eles poderiam morrer depois dessa deflagração. Kiarostami, mais uma vez, não deixa perceber, não revela tudo. Entrega ao espectador a possibilidade de sonhar, de se projectar, de pôr dentro da caixa o que quiser.

Portanto, eles até poderiam morrer na sequência da deflagração. Porém, o que me ocorreu é que eles ficariam vivos, entrincheirados, ele a amá-la.

Ela?, não sei bem. Tenho a presunção de compreender melhor a cabeça de um homem e de um homem com idade para ser meu avô. Ela é a chama. Faço um retrato limitado, redutor e passivo de Akiko, bem sei. Mas neste contexto penso nela como a chama. Isso basta-me. Um dia, apagar-se-á. Mas até lá... Até lá, in love, o prof. Takashi vive amando. E canta

que sera, sera...

O que for, será, diz a canção. Que importa o futuro? Que importa a mortalidade? O amor, essa chama, finta o medo da morte. Essa chama é o contrário da morte, é a própria vida. Não há tempo para sentir a angústia da morte. Há um amor para viver.

 

 

 Texto apresentado no ISPA, em Lisboa, no congresso "Amor(es), desamor(es)... e talvez sexo!", em Maio de 2014

 

 

 

 

 

Dinis Machado

04.02.21

Dinis Machado nasceu e viveu a vida toda em Lisboa. Para a história das letras portuguesa ficará como o homem que escreveu «O que diz Molero». Foi jornalista desportivo, dirigiu uma revista mítica chamada Tintim, e em 68, porque precisava de dinheiro, escreveu três policiais no espaço de um ano sob o pseudónimo Dennis McShade. Teve um grupo de amigos com quem se deu no Bairro Alto, um grupo de amigos escritores com quem se deu quando escreveu o livro que queria escrever. Assume uma paixão desvairada e sem ordem possível pelo futebol, pelos livros, pelas mulheres, pelo cinema.

Numa destas tardes de sol, a luz espreitava pelas frinchas da persiana e nós começámos por falar de cinema. Só porque me tinham dito que ele gostava de Buñuel tanto como eu e eu quis dizer-lhe que gostava quase tanto de Fellini como ele. E quando dei por ela, estávamos enredados numa teia filosófica que ia bem com o cinema e os livros e as mulheres e o futebol e a vida toda.   

  

Eu gosto, quando estou a escrever, de ser capaz de me surpreender. A frase seguinte, não sabia nada que ela vinha e surpreende-me. Um minuto antes não sabia que ia fazer correr aquela ideia. Vivo um bocado nesse plano inventivo, embora com uma contradição: uma obsessão tremenda pelo real. A imposição do real aparece-me numa altura em que há uma certa desilusão, ou afastamento, do que se pode chamar ficção, e em que começo a aproximar-me das pessoas que procuram interpretar os sinais da sociedade, (porque é que fazemos isto?, como é que fazemos?), num questionamento de ordem existencialista (de onde vimos?, para onde vamos?).

 

Afastou-se da ficção para se lançar na explicação do mundo?

A tentativa da explicação do mundo é terrível, labiríntica. Vamos inventando sobre invenções. A luta com o real é tremenda; é o quotidiano, o corpo a já não responder, a cabeça a fazer recusas permanentes. Vou-me limitando um pouco ao meu mundo. Por exemplo, este momento, depois do almoço, a fumar uma cigarrilha e a beber café, é privilegiado. Se pudesse escolher a hora da morte, gostava de morrer assim, à tarde, de cigarrilha e café, sossegado. Se pudesse escolher.

 

Pensa muito nisso, como chegará a morte?

Não gostaria que isto demorasse muito tempo. Não quero viver o tempo superior à minha vontade de viver, que vai desaparecendo a pouco e pouco, embora permaneçam resíduos de vontade de viver; a própria respiração pode ser vontade de viver. Com o tempo e com as dificuldades de adaptação do corpo a uma energia que vai desaparecendo, gostaria de não viver para além do que me é lícito viver.

 

Não consegue desligar-se da energia do corpo e concentrar-se nos prazeres?

É o que tento fazer. Há outra preocupação, que não sei se posso considerar adjacente ou consequência disso; desenvolvi em mim, com o tempo, uma grande estima por todos os que não são beneficiados. O benefício, a distribuição daquilo a que se chama justiça, é ocasional. Estimo muito o ser humano que não é beneficiado, ou que é prejudicado. Fico do lado dos que não têm bandeira.

 

Do povo.

Pode chamar-se povo. Gosto muito das pessoas simples. Compliquei-me com a passagem do tempo. Não sei se era o Chaplin que dizia que primeiro somos inocentes, depois vamos degradando, vamos aprendendo, e depois quando perdemos a inocência completamente fazemos um esforço notável para voltar a ser inocentes. Acho que se passa um pouco isso.

 

Na sua vida, esses momentos são demarcáveis? Consegue situar a perda da inocência?

Perdi a inocência a pouco e pouco. Já na idade adulta comecei a entender-me com mensagens literárias e cinematográficas onde ia recolhendo informação, percebendo melhor as coisas, mas onde ia morrendo a inocência. Quando dei por mim, já estava com uma carga de referências tão grande, de coisas tão complexas... A partir dessa altura, só há um caminho a seguir: ir continuando. Quando uma pessoa já sabe, não pode fingir que não sabe, ou então engana-se. Mas ao saber que sabe, e cada vez sabe menos, (o problema é sempre o mesmo), a tal nostalgia da inocência aparece. É difícil atirar com a carga toda ao mar. Como é que se vive com aquilo que se sabe? Pode-se tentar uma saída pelo lado existencial. Eu amo a minha mulher, a minha filha, gosto muito dos meus amigos, e isso são suportes para mim. A ideia das pessoas que não são beneficiadas, desperta-me também um certo companheirismo.

 

Quando se refere à pessoas não beneficiadas, a sua concepção é sobretudo política? Posiciona-se à Esquerda?

Costumo catalogar-me, por causa das minhas decepções contínuas, como anarquista pacífico e solitário. O anarquista pacífico é um gajo que não atira bombas, que gosta de discutir ideias, que não bate em ninguém. E solitário. Estou na situação de conviver, mas sei que sou profundamente solitário, não consigo integrar-me em qualquer grupo. É um individualismo tão exigente... A questão da relação política é a seguinte: se vou cingir-me às regras disto, tenho de dizer sempre que sim. Talvez não tenha humildade para me sujeitar. Há este lado solto que sei que tenho. Solto e quase afrontoso.

 

É possível transpor o seu posicionamento político para o campo literário? Foi sempre tido como um desalinhado. Mesmo com os amigos escritores com quem se dava, não falava de literatura.

Era mais sobre futebol e mulheres. O lado sério da literatura é deixá-la estar a arrefecer, e perceber, com o tempo, que os amigos literatos têm caminhos que não têm nada que ver com o nosso. Isto repete-se ao longo de séculos. Se for ao Voltaire e ao Rousseau, estavam no mesmo lado da barricada, mas afastaram-se; se vai ao Camus e ao Sartre, estavam, mas afastaram-se. Na literatura, percebi cedo que não estávamos no mesmo lado num certo número de coisas. Então falávamos de coisas muito mais simples, mais agradáveis, mais saudáveis.

 

Havia também uma espécie de pudor em relação à literatura, um pudor que a sacralizava?

Falávamos. Como cada um já tinha referências muito próprias, cada um aprendeu na sua cartilha... Conheci-os muito tarde. A minha aprendizagem foi com os meus amigos não intelectuais, que eram turistas da cultura e que gostavam muito do lado lúdico dessa cultura. Quando comecei a procurar um sentido mais sério, fui ainda sozinho. O meu grupo descolou de mim, ou descolei eu deles. Sabe como é isto das gerações; do nosso grupo, seis ou sete muito permanentes, a certa altura começou tudo a casar. Casou o primeiro, casou o segundo, em três anos acabou tudo. Já tinha mais de 30 anos, mas foi o sedimento de tudo o que aprendi. Quando contactei com os meus amigos escritores, já era refractário a ideias novas. Não havia um espírito de grupo, como havia nos dadaístas. Havia a noção que cada um tinha daquilo que lhe interessava. E o futebol é muito mais interessante, não mete filosofia.

 

Numa entrevista recente, o seu amigo Lobo Antunes confessava que, com Cardoso Pires, falava de futebol e de mulheres, mas nunca de literatura. E que, com alguns amigos, mantinha conversas mais íntimas do que alguma vez tivera com os irmãos.

Ele teve uma relação muito próxima com o Cardoso Pires, e daí talvez esse lado confidencial. Temos sempre o que chamo de catarse obrigatória: alguém do outro lado, ou um gravador, ou um papel para escrever. Ter encontrado um amigo ou amigos com os quais criamos intimidades profundas...

 

Os conceitos sobre os quais eu indagava eram, justamente, o da amizade e o da intimidade.

Pode ter um lado cego, e necessitado: abrir-se com outra pessoa para se encontrar melhor consigo na solidão. A solidão de cada ser é mesmo radical, lá no fundo é radical. Somos bastante infelizes de um modo geral. Pode-se encontrar na mulher, num amigo, num estranho. Você está a mexer numa zona que é complicadíssima!, vai meter tudo ao mesmo tempo!

 

É possível puxar de coisas essenciais e deixar outras de fora?

Era isso que estava a querer dizer. Não posso falar muito dos outros. Posso é falar das perdas que tive de amigos, por causa desses caminhos diferentes. Quando encontrei a Dulce, a minha vida mudou. Recuperei a vida familiar, depois da passagem por um grupo de amigos. A primeira fase da minha vida, até aos 30 anos, foi libertina. Chamar-lhe libertina! Libertina significa bastante livre. Por uma série de razões de ordem filosófica, não queria amarras na minha vida. Casei a primeira vez por acaso, nunca estive com as mulheres para casar.

 

Como é que aparece a Marília?

A minha Marília, que antecedeu a minha querida Dulce, apareceu-me com um namoro simples numa sessão de cinema.

 

Qual era o filme?

Um filme notável, que contribuiu para o namoro: «A vida é um jogo». Eu ia fazer para o Diário Ilustrado a crónica do filme. Ela ficou ao meu lado e relembrou-me que nos conhecíamos de miúdos. «Amanhã venho ver o filme outra vez, há aqui umas pontas que ficaram por ligar», e ela disse «Venho consigo». A certa altura vi-me casado.

 

Quanto tempo depois?

Não sei, ela começou logo a tratar de tudo. Um empreendimento notável! Tínhamos 30 e poucos anos. Era uma mulher muito livre, formada, com vida própria; ia ao cinema sozinha. Pertencia a um estatuto social um pouco superior ao meu. A tia dela, que nunca gostou muito de mim, (e eu percebo, representava o outro lado da sociedade), era secretária directa de Salazar, despachou com ele durante 40 anos. Já posso falar nisto porque morreram quase todos.

 

Tinham discussões políticas, o Dinis e a Marília?

A Marília tinha um lado esquerdista que tinha que ver com o noelismo, porque era profundamente católica, e não com a adoração dos santinhos. Aí é que nos encontrávamos. Eu era um combatente de Esquerda, de uma tribuna dissimulada e pouco importante. A Marília era um escudo numa família que não gostava muito de mim, ou do que eu representava: vinha do Bairro Alto, de uma tradição liberal, boémia, enfim, outras coisas mais.

 

Que outras coisas?

Essas famílias são educadas num certo estatuto de comportamento social. Tinham uma seriedade de comportamento até no plano das relações afectivas. Eu vinha de um sítio onde a relação com as mulheres era directa e absoluta e permanente. Com mulheres de passagem. E eu queria isso. [voltando-se para a mulher] Posso falar disso Dulce? Nunca quis ter filhos. Dou aqui um beijo à minha Rita, porque foi um erro de pensamento. Não queria responsabilidades para além de mim próprio. Queria estar suficientemente livre para não trazer ninguém refém de mim próprio. Liga-se ao livre arbítrio nos existencialistas, que li já depois dos 30 anos: sou dono da minha vida, tenho o direito de me escolher, e não quero amarrar ninguém à minha possível infelicidade, ou à minha possível escolha definitiva da vida.

 

Escolha definitiva da vida parece implicar, de forma subjacente, o suicídio.

Sempre implicou isso, o suicídio como escolha, como escolha filosófica. Não era o suicídio da desorientação.

 

Consegue dissociar uma e outra?

Integrei na minha vida o absurdo que a vida a certa altura me pareceu que era. Pensei, «Quando estiver a envelhecer, tiver doenças, quando a vida se tornar insuportável, quando me chatearem muito, antecipo-me ao meu inimigo». Implica, de facto, uma hipótese de suicídio, nunca a recusei. Mas entretanto criei umas amarras, criei amarras de afecto muito fortes, (para mim são mais importantes as pessoas que amo que eu próprio), e encontro um certo sentido da vida. Pelo menos redimo-me desse absurdo quase permanente, do vazio que defronto com frequência. O que me salva é também uma grande jovialidade, que é muito natural. Tenho um grande optimismo que não coincide nada com isto.

 

Alguém que tem tanto medo de se sentir refém ou de fazer reféns, tem evidentemente uma enorme capacidade de amar.

Acha que é isso? Ou será transferir um pouco da sua infelicidade para uma barricada chamada Outros? Sei é que não faz sentido para mim pensar a vida sem eles, sem estarem a todo o momento.

 

Daí a inevitabilidade de amar.

Está tudo ligado como você há bocado disse. A minha vida é feita de perdas sucessivas: do pai, da mãe, dos amigos, (morreram quase todos), da mulher, perdas de afecto com pessoas com quem não me entendi, e na maior parte dos casos não percebi porquê. Talvez seja a consequência dos meus erros, da minha distracção permanente em relação a tudo. Há ainda a minha vontade de tornar brincável qualquer situação, que, às vezes, faz ferir os outros; uma piada boa, mas pode ferir, pode ser mal colocada.

 

A cumplicidade do riso?

Pois, com os meus amigos do café tive tanto isso... Foi isso que tornou suportável aguentarmo-nos uns aos outros mais de 20 anos. Tínhamos até uma espécie de código: inventávamos alegria! Inventar comicidade para situações trágicas, que é um grande processo de nos defendermos na vida.

 

Essa não é a essência do seu Molero? Poderia ser facilmente catalogado como uma comédia, quando, na verdade, condensa a vida toda.

A tentativa foi essa. Se calhar falhada, mas foi essa.

 

Imagino que esteja farto de falar do Molero.

É verdade que sim.

 

Tudo o que tem dito na nossa conversa, encaixa e está presente no Molero.

É um projecto de vida, uma filosofia de comportamento.

 

Há um capítulo no «Reduto Quase Final» que se chama «Qual é o lado mais cómico disto?».

Sempre me aguentei um bocado nessa área, do lado cómico de qualquer situação: o Mário Soares a discursar, a eleição americana, a filosofia budista.

 

Inventar a comicidade é também uma tentativa desesperada de nos mantermos à superfície.

É sempre. Os ritos, que incluem o riso e a dor, podem não aparecer numa situação social, mas são a nossa condição humana. Quando as pessoas não riem,  ficam muito tristes; quando riem, é acompanhado da tristeza que está a ser coberta pelo riso. Como não há total transparência, há uma questão do comportamento de ordem social. Vivemos a solidão e vivemos com os outros, que são o tal inferno de que falava o Sartre.

 

Há pouco falávamos da Marília e, atalhando por outras coisas, não soube como apareceu a sua filha Rita.

Aí está outra surpresa. Porque a Marília não podia ter filhos, segundo informação médica. Quando casámos, ela disse-me «Olha, não posso ter filhos», e eu «Ainda bem, porque só fico refém de ti e tu de mim». [pausa] Não sei se isto é curial..., mas no dia em que nasceu a Rita, tanto podia nascer a Rita como morrer a Marília. Ficou a Marília bem e nasceu a Rita. Aceitei o nascimento da Rita com enorme alegria, é sempre uma enorme alegria o nascimento de um filho, mesmo para gente como eu que tem medo ou respeito pela situação. A partir desse momento, fiquei ligado à minha mulher e à minha filha e a minha vida foi condicionada em função de tudo isso, até hoje é, não é Dulce?

 

Depois de encontrar a pessoa, a Marília, a Rita, a Dulce, entrega-se absolutamente. Precisa de ter uma pessoa em quem se deposita?

Não sei o que seria se fosse sozinho. Era muito mais desorganizado, era muito mais difícil viver, porque tenho grande dificuldade de enquadramento social. Talvez conseguisse uma solidão aceitável. Não tenho medo da solidão, não tenho é sentido prático para a vida. Dou muito pouca importância ao dinheiro, já o tenho dito; não consigo acertar com esse lado necessário. Você pergunta-me? «E não ganha dinheiro?» Sempre ganhei dinheiro a fazer aquilo que queria! A minha vida foi ganha toda a escrever.

 

Acredita nos anjos da guarda?

A que é que chama anjos da guarda?

 

À Dulce. A alguém que o salva.

Em certa medida são. A vida da Dulce é vivida em grande parte em função de mim. Num plano metafórico, podemos chamar-lhes anjos da guarda. Aí pode incluir-se o que referi há pouco; tenho uma grande estima pelos não beneficiados. Se não tivesse pessoas que me ajudassem directamente, seria um não beneficiado. 

 

Não foi propriamente um menino sozinho. Era um rapaz de rua, que fugia do pai severo.

Pois! Ia ao cinema e não ia à escola, era um faltoso. Tinha dificuldade em concentrar-me nas aulas, se bem que houvesse uma ou outra disciplina onde era brilhante.

 

Que eram?

Português, sempre fui muito inventivo nas redacções. Não sei se escrevia bem ou mal, mas os professores achavam que devia ir para Letras, e eu nunca fui. Também Geografia, liguei sempre a Geografia a um certo sentido de diáspora. Sempre gostei muito dos lugares imaginários do cinema e dos livros. Nunca senti necessidades que fossem reais. 

 

Porque é que foi para a Escola Comercial e não para as Letras?

Andei na Escola Industrial, onde perdi por faltas por causa do cinema. Na Escola Comercial perdi também por faltas por causa do futebol à porta da escola. Enquanto houvesse luz!, e quando não houvesse luz havia a luz dos candeeiros! Fiz até ao terceiro ano.

 

Mas porque não as Letras?

A obrigação oficial transtornava-me os planos pessoais. Preferia ir buscar os livros que queria e que por fora me indicavam; digamos que era uma escola paralela. Achava a instituição pesada, chata, cheia de obrigatoriedades, de enganos. Não obstante, estou a falar há uma hora consigo e a minha ignorância é enorme! Não descobri nenhum tesouro de informação, tenho imensas falhas de ordem académica. Nem sequer há, nesta minha apropriação das coisas, uma linha de organização interna. 

 

As suas paixões foram desde sempre três ou quatro: o futebol, o cinema, os livros, e as mulheres.

A ordem é que é complicada! Não sei pôr ordem nisso! O carácter lúdico do futebol; enquanto tive pernas para jogar à bola, andei a jogar à bola. Nunca fui jogador, como se calhar não sou escritor, significativo. Mas sempre cumpri o desejo das pernas jogarem à bola.

 

Jogava descalço ou de sapatilhas?

Jogava na rua com uns sapatos velhos que a minha mãe me dava. Os polícias corriam atrás de mim, eu corria muito bem, fugia muito. Estafava-me a jogar à bola, chegava a casa e a minha mãe batia-me, dava-me palmadas porque eu não almoçava, passava a vida no futebol ou no cinema. A minha vida foi muito isso. Já nos jornais, tinha uma grupo noctívago, íamos para a Brasileira. No «Gráfico de Vendas com Orquídeas» há uma nota fúnebre sobre o Roussado Pinto, que foi meu companheiro, e que define bem esse espírito de grupo dos jornais. No fundo, sabíamos todos que estávamos contra; havia um inimigo localizado, agora o inimigo é um bocado invisível, está disseminado.

 

Fixemo-nos, ainda, no futebol e na infância. O seu pai era um antigo árbitro de futebol.

Não gostava que fosse árbitro, mas do lado heróico dele gostava muito. Enganava-se a marcar faltas, insultavam-no nos campos; em casa dizia-lhe «Ó pai, os gajos não percebem nada daquilo», e sabia que ele às vezes se enganava. Era um personagem curiosíssimo: árbitro de futebol, escrevia artigos para o «Record», escrevia letras que os fadistas da época cantavam, e tinha sempre um olho em mim para ver o que ia fazendo. Então comecei a fazer versos de circunstância. Eu, e um grupo de gente, decorávamos os poetas e dizíamos poemas uns aos outros. Os de fora ficavam a olhar para a gente, «Mas quem são estes maluquinhos que estão a dizer poemas uns aos outros?»

 

É verdade que escreveu uma letra para o Tristão da Silva?

O meu pai pediu-me uma letra para o Tristão da Silva, a ganhar 50 paus. Fui ao Salvaterra ver a estreia e ele pagou-me os 50 escudos nessa noite. Era uma coisa inclassificável!, relacionada com «a bandeira, nobre dano, esfarrapada»! Não tinha classificação! Ele cantou aquilo bem; mas depois nunca mais ouvi e suponho que nem foi recolhido para nenhum disco. Nunca mais vi o Tristão, nem voltei a escrever versos para o fado.

 

Em casa cantava-se o fado?

A minha mãe cantava muito bem fado, o meu pai escrevia versos. Eu fazia versos, não eram para fado, seriam para um possível livro, mais tarde. Um amigo meu do Diário Ilustrado acabou por caçar os meus poemas que estavam espalhados pelos suplementos literários, mandou-os para um concurso da Ática. Foi feito à minha revelia, «Já estão lá os poemas!» Eram uns poemas, pá..., enfim, cheios de ressonâncias do Cesário e do Eugénio de Andrade.

 

Qual foi o resultado do concurso?

Fiquei em segundo lugar, com menção honrosa, para ser publicado oportunamente! Nunca mais soube disso. A minha vida é feita de grandes buracos.

 

Como foi a sua relação com o Eugénio de Andrade?

Foi muito importante para mim. Leituras que fiz, que ele se calhar não fez mas que me mandou a mim ler... A história, que já tenho contado e recontado, é a seguinte. Fui para as Caixas de Previdência, emprego arranjado pela minha tia Edite que tinha uma certa relação com os poderes instituídos. Conheci lá o Eugénio de Andrade e o Jaime Cortesão Casimiro, que perceberam que eu tinha algum jeito para as palavras e andaram três anos a leccionar-me literatura. Não foram só as conversas, e verem os meus poemas e emendarem-nos; cada um procurava dar-me linhas de orientação que lhes eram adstritas. O Eugénio depois de ler um poema meu disse assim: «Ó Machado, você sem o Pessoa não vai lá, ninguém vai lá». Com 18 anos, fui ler o Pessoa todo para a Biblioteca Municipal. Trouxe-o para a mesa do café, foi uma festa com o Pessoa, descobrimos imensa coisa com o Pessoa.

 

Era nessa altura que ia à Barateira alugar livros?

Aí está. Misturava os policiais com as aventuras e com os filósofos.

 

O Eugénio sugeria-lhe policiais?

Não, não. O Eugénio era de literatura mais refinada. Eu e os do meu grupo íamos buscar livros policiais porque gostávamos de comparar os textos policiais com os textos mais sofisticados, ver como isso funcionava.

 

As pessoas da minha geração não conseguem imaginar o que é alugar livros numa livraria.

Pois não sabem. Misturado com isso, éramos espectadores diários de cinema. O filme mudava todos os dias, e eram dois. O filme de fundo era o mais recente, e o filme que completava cartaz era o melhor. Essa triagem no cinema, na literatura, não sei como tínhamos tempo para tanto. Trabalhava já nos jornais, e tinha horários tremendos: entrava às seis da manhã, saía às duas da tarde, conseguia a noite livre para ir ao cinema. Nos intervalos entre o jantar e o cinema, tínhamos os livros e a discussão na mesa do café, «Dá cá este, dá cá aquele», era assim feito o aluguer dos livros. Consoante agora se alugam vídeos. Íamos à Barateira e escolhíamos os livros. Tirei obras primas só pelo título, e depois vi que eram obras primas. Aconteceu-me com o primeiro Camus, os primeiros Boris Vian, com o Céline da «Viagem ao fim da noite». Foram milhares de livros lidos assim, uns deixados na primeira ou segunda página, e noutros fui seduzido. A empatia do leitor com o livro não tem explicação. Andar à procura do livro ideal, não há! Há leitores para livros. No fundo, o leitor faz o livro seu. E ainda tínhamos tempo para ir jogar futebol ao domingo todo o dia, de Inverno ou de Verão.

 

É um mistério insolúvel como o tempo dava para tudo.

Era um tempo mais lento e aproveitável. Aproveitávamos todo o possível excesso e integrávamo-lo na nossa existência. Foi muito rico, aquilo. Muito rico porque muito feliz. Éramos só nós. Fui o único que veio para o plano público. Havia um que fazia poemas todos os dias; nunca lhos vi.

 

Mostrava os seus ao grupo?

Eles queriam ver o que escrevia. Quando fiz o Molero, a Marília foi a primeira que ouviu. Depois chamei os meus amigos lá a casa, os sete, e fiz a leitura do Molero. «Ó pá, esses somos nós, mas como é que tu conseguiste fazer uma coisa tão nossa?» Identificaram-se completamente.

 

O grupo ainda existia? Já tinha 47 anos quando escreveu o Molero.

Já estavam todos casados e com filhos e barrigudos! «Venham ver o que escrevi por causa da nossa juventude e da nossa infância».

 

A reacção do grupo foi sobretudo emotiva?

Foi. A surpresa foi, talvez, ver um texto escrito que procura unir pontas diversas. Já depois do livro impresso, foi para o Eugénio e para outras pessoas. Nunca mais vi o Eugénio.

 

Há uma aparente incongruência: como é que alguém que quer ser escritor desde sempre espera até aos 47 anos, se exceptuarmos os três policiais que foram escritos numa contexto muito específico, para escrever o seu primeiro livro e tem depois a coragem de o dar à publicação?

Fiz uma espécie de tirocínio pessoal até essa altura. Os próprios romances policiais, eram um bocado subvertores; a linguagem procurava ser americana, mas muito cortada por paródias europeias. (Imagine um tipo, no mercado do crime americano, implacável, que tem cultura! A incongruência dos romances policiais, é que o tipo fala aos outros do mundo do crime como se estivesse num plano superior, «Pois o Rimbaud também pensava assim»; o outro gajo sabe lá quem é o Rimbaud, o que é que isso interessa para a conversa!). Este lado gozão dos romances policiais era também um apetrechamento para uma possível escrita minha. Estava a fazer um curso de aprendizagem da minha própria escrita para escrever um dia um livro.

 

Assumidamente sempre quis ser escritor?

Sempre quis escrever um livro. Queria ser jogador de futebol, actor de cinema, um pouco filósofo, e queria ser um novelista, um poeta. A certa altura tive de fechar portas. Ficou a porta do escritor possível. Escritor possível, porque sempre tive um grande respeito pela escrita e pelos grandes escritores.

 

Uma vez disse que procurava uma literatura desencasacada.

Talvez seja isso, e uma liberdade de linguagem que não sei se seria aceitável na estrutura cultural. Se calhar não era. Tenho a sensação de que os poderes culturais me colocaram à margem, e sinto até um certo orgulho disso; não a praça pública, que o livro foi sempre muito bem recebido. Colocaram-me à margem porque aquilo não tem colocação possível no que podemos chamar o desenvolvimento da literatura portuguesa.

 

Não ter catalogação é uma coisa, ser incontornável na produção portuguesa do século XX é outra.

Então o que é que acha?

 

Também pode ser por não frequentar os grupos alinhados.

A Dulce às vezes fala nisso.

 

Imagina-se a frequentar a Feira de Frankfurt ou o Salão de Paris?

Aí é que está. Talvez saibam que não me querem e que não quero ir para lá. Não sou facilmente arrumável, nem no livro nem no meu comportamento no dia a dia. Às vezes vou a colóquios e não sei bem porque lá estou. Não sou convocável de uma forma geral. É um bocado preguiça, também... As minhas razões fundamentais têm que ver com o meu estado de espírito.

 

E a ambição?

Não tenho ambição. Fiz o que queria fazer, que era escrever um livro. Fiz mais do que isso, que foi escrever outros livros, que não pensava escrever.

 

Qual era a sua intenção, queria escrever «O Livro» ou ser um escritor tout-court?

«O Livro» era fundamental. Não me preocupava a carreira de escritor. Os outros livros foram acontecimentos inesperados. Eu saio de um drama enorme, a morte da Marília, e saio para um fado patético que é o «Discurso do Marceneiro». E depois aconteceu-me escrever com a Dulce a meias...

 

[Dulce - Ai a meias...]

 

Chamo-lhe a meias porque escrevia eu à noite e ela de manhã lia e chorava! Depois levava o texto para a minha letra ficar legível e eu nessa mesma noite dizia: «Não Dulce, já não é essa página». Estava sempre a refazer o livro, o «Reduto Quase Final», um livro quase de arrumação final das coisas. Tive quase sempre a tentação de desistir.

 

Não me parece que seja desistir apenas da literatura. O que aí está é o horizonte da morte em permanência.

A intimidade com a morte é saudável. O medo da morte condiciona as pessoas, «Ai a morte, ai a morte». Não. A aceitação da morte obrigatória é útil: torna-nos mais soltos em relação às coisas, menos necessitados de honrarias. Percebe a minha ideia? A minha relação incapaz com o poder talvez se relacione com isso.

 

Vamos, então, à preocupação e ao desejo de escrever «O Livro». Sentiu-se exaurido depois do Molero?

No fundo era isso. Numa entrevista que o Nuno Artur Silva me fez, perguntou-me «Quanto tempo demorou a escrever este livro?». Eu disse «Talvez a vida toda». Estando ali a vida toda, do que queria dizer e que era fundamental, não se justificava que fizesse outro livro por razões de carreira.

 

O começo do Molero remete-nos para «o sótão da infância», matricial da vida toda. Depois do ajuste de contas com a sua infância, acha que está a viver para escrever «O segundo livro»?

Parece que as pessoas me estão a empurrar para isso. Não sei se tenho horizonte para isso. Estou há dois anos a escrever um texto semanal para o Jornal de Notícias e as minhas reflexões já não têm que ver com a invenção da ficção. Estará a mudar o meu sentido das coisas? Acho que está. Recuso fazer ficção neste momento, desliguei um pouco. Daí não ter lido ficção nos últimos anos.

 

O que é que lê?

Leio os investigadores, os gajos que procuram explicar o mundo e o sentido da vida, essa coisa toda, e que também não me explicam grande coisa. Faço parte de uma geração que estava à espera de uma renovação do Homem, no sentimento e no comportamento. Trago uma herança, pequena, dos escritores que chegaram à terra de ninguém: essa gente que se confrontava com a perda de uma harmonia universal, que se defrontava na sua solidão e se interrogava. São muito assim os existencialistas franceses e os realistas americanos. O real americano é muito forte; e a angústia e dificuldade de percepção das coisas dos existencialistas...

 

É também dessa terra de ninguém que fala quando fala no Molero da última fronteira?

Onde tudo é possível? Claro que na vida normal não é possível, esse seria o lugar da utopia. Que não há! Pelo menos nos tempos mais próximos parece que não há lugar para ela. É também uma forma de fraternidade humana, (cá estou eu falando dos não beneficiados!), em relação a tudo o que não resulta, às vidas apagadas e anónimas. O lado virtual rouba-me o espaço do real. No entanto, aquilo que escrevi tem uma componente virtual que é uma espécie de sucedâneo de um real impossível. Será que é o que acontece hoje, o virtual substitui o real que já não é possível?

 

Qual é que prefere? Em qual é que vive? É como se fosse uma dupla existência: o homem que pensa e escreve estas coisas e o homem que tem uma filha, que dirigiu a revista Tintim, que escreveu romances policiais.

Sou como todos, um ser cheio de contradições. Se lhe disser que fiz o Tintim com um enorme prazer, era o meu lado infantil aos 30 e tal anos, não condiz com o que estou a dizer! Assumo a contradição permanente. Assumo a contradição de preferir o Chandler aos escritores americanos famosos. Porque é que prefiro? Talvez a minha atracção pela causa menor, ou aparentemente menor; às vezes não é menor.

 

A atracção pela causa menor faz rememorar a simplicidade dos anos do Bairro Alto.

Talvez seja. Nunca perdi esses códigos. Mas já não vou ao Bairro Alto nem me entendo com o que se passa lá. Entendo-me com o meu imaginário. A procura de um real que me vá permitindo sobreviver.Talvez «O que diz Molero» seja uma fuga, o meu entendimento de que esse real já não tem aplicação. É uma afirmação de linguagem, pronto. Fernando Pessoa diz que a minha pátria é a língua portuguesa, e houve um agora que disse «A minha pátria é a minha linguagem». Tem muito que ver com a linguagem. A vida do Joyce talvez seja a linguagem do Ulisses, a linguagem de um sítio. A minha será um pouco isso. Já não tenho esses instrumentos. A novidade em mim desapareceu.Tenho pena de não me surpreender quando escrevo, já não sou capaz.

 

Ainda no princípio da conversa se espantava de não saber que frase diria e hipoteticamente escreveria no segundo a seguir.

Isso sou eu nos meus melhores momentos, nos meus melhores momentos quando escrevo. Já não sou o rapaz que andou a fazer o Tintim. O lado solitário da escrita é muito verdadeiro. Se calhar não é tão solitário porque tenho o apoio caseiro. Tenho um primeiro leitor, é o princípio de tudo. Estamos sempre à procura de destinatário.

 

A sua âncora à vida são as palavras?

Continuam a ser, mas cada vez mais difíceis, fogem-me. Quero fazer o jogo das palavras e comunicar com o outro. Mas às vezes sinto-me... Qual é a palavra Dulce? Sou sincero quando escrevo, mas é uma sinceridade de passagem. E acho que nunca saiu bem.

 

As crónicas?

Tudo, tudo o que escrevi nunca saiu bem. Tive sorte nalguns momentos em ter conseguido encontrar a linguagem. Há uma grande sensação de perda na minha vida. Os ganhos que tive, são acompanhados da perda da não conclusão. Mas se calhar isto não tem que ter conclusão! Esta nossa conversa, que é uma conversa fraternal, talvez explique o melhor que há na vida: não há soluções que possam ser milagrosas. Porque tudo o que se procurou organizar embateu sempre no exagero do poder. Daí a minha costela anarquista! Quando nós não precisarmos de tantas coisas inúteis, estamos no bom caminho.

 

Não sente o prazer do supérfluo?

Por vezes o supérfluo é uma grande substituição para o real abominável. Falei há pouco da minha juventude; nós inventávamos a vida a cada minuto! O prazer do supérfluo é uma grande compensação. Os valores atribuíveis ao que se chama sucesso particular, a mim não me dizem muito. Procuro outra coisa qualquer que não sei bem o que é. A solidão a arranhar, a arranhar... É natural que o Goethe no leito de morte tenha dito «A luz, a luz», que ele nunca encontrou.

 

Trata-se sempre de uma demanda: a última fronteira, a última palavra.

É isso mesmo. E é quase inesgotável. É ganhar as coisas e perdê-las logo a seguir. Lá está a tal história, faz-se caminho andando. Não há metas. Eu gostaria que houvesse uma meta de harmonia universal, mas não há. As pessoas são diferentes; e nessa diferença encontraram um processo de harmonia.

 

Pode ser ainda a demanda da inocência. E é ainda e sempre de morte que falamos.

É muito nova ainda para pensar nisso! E eu estou a incutir-lhe ideias tenebrosas. Mas isto tem um fim. E que raio de coisa é esta que tem um fim?

 

Defrontou-se com a ideia da morte aquando da morte da Marília?

Já antes, nas leituras, num acto teórico. Olhava para o lado e via um homem de 60 anos, para mim era velho. Pensava, «Mas eu vou chegar a esta idade, com bengala, para quê?, isto faz algum sentido?».

 

Então, abençoados os néscios?

Hum. Não sei. Se for um néscio premeditado, «Eu não quero saber disto para nada», já não é, é uma escolha filosófica. Agora, os simples que vão chegar ao reino dos céus...

 

Os inocentes?

Não é bem a mesma coisa. Ainda preservo alguma inocência organizada através do intelecto. Uma inocência que já perdi e que quero recuperar, não sei como. Recuperando a pouco e pouco, nestas tentativas de ser sincero, de ser outra vez o melhor que fui. Um florescimento permanente, uma primavera que foge todos os dias. É estranho como envelhecendo, perdemos tudo. Ganhamos alguma sabedoria que não serve para nada, e temos necessidade da simplicidade das coisas. É isto, não é?

 

Acho que sim.

Que idade tem?

 

28.

Eh pá, tão pequenina.

 

 

Publicada no DNa, do Diário de Notícias, a 25 de Março de 2000

Dinis Machado morreu em 2008

 

 

 

   

Dennis McShade / Dinis Machado

01.02.21

Escrevi um texto a que poderia chamar “Crónica de um bom rapaz”. Ou “Dinis, um rapaz de Lisboa”. Escrevi um texto para dizer com mais precisão as coisas que eu quero dizer do Dinis e do livro “Blackpot”.

Esta tarde estive a matar saudades do Dinis relendo a entrevista que ele me concedeu há cerca de dez anos, quando nos conhecemos. 

Ele dizia: “Queria ser jogador de futebol, actor de cinema, um pouco filósofo, e queria ser um novelista, um poeta. A certa altura tive de fechar portas. Ficou a porta do escritor possível. Escritor possível, porque sempre tive um grande respeito pela escrita e pelos grandes escritores”.

Este escritor possível, tenho a impressão, sabe intimamente que é um grande escritor. Estas coisas costumam saber-se. Mesmo que paire sempre a dúvida, e sobretudo quando Borges e Camus o fazem encolher-se no seu canto.

No livro, há uma frase tremenda, de Camus, a inquietar os leitores: O parágrafo começa assim: “Victor foi com a mão, maquinalmente, à estante e retirou de lá La Chute, de Camus. Abriu o livro e leu pela milésima vez a frase que mais odiava: “Quando todos formos culpados então será a democracia”.

Uma frase tremenda, enigmática, a que voltarei mais tarde.

Para já, quero dizer que Borges está aparentemente mais distante deste livro, pelo simples facto de aqui não encontrarmos o assassino profissional Peter Maynard. O herói ou anti-herói dos três policiais que Dinis escreveu nos anos 60. Peter Maynard, que, como é sabido, é uma americanização de um personagem de Borges, Pierre Menard, não aparece. Contudo, Dinis sentiu a respiração do seu alter-ego literário e decidiu assumir este texto como sendo um texto de Dennis McShade.

Sobre os policiais, ele disse-me em entrevista:

“Os próprios romances policiais, eram um bocado subvertores; a linguagem procurava ser americana, mas muito cortada por paródias europeias. (Imagine um tipo, no mercado do crime americano, implacável, que tem cultura! A incongruência dos romances policiais, é que o tipo fala aos outros do mundo do crime como se estivesse num plano superior, «Pois o Rimbaud também pensava assim»; o outro gajo sabe lá quem é o Rimbaud, o que é que isso interessa para a conversa!). Este lado gozão dos romances policiais era também um apetrechamento para uma possível escrita minha. Estava a fazer um curso de aprendizagem da minha própria escrita para escrever um dia um livro”.

Esse livro, como sabemos, era “O que diz Molero”. Um clássico da literatura portuguesa da segunda metade do século XX e, de certa maneira, um livro a que Dinis ficou preso.

Eu, que o conheci de perto, e que li as outras coisas, não sabia que Dinis tinha este “Blackpot”. E sobretudo, que ele tinha sido escrito depois dos policiais e depois do “Molero”. Que Dinis tinha voltado a um lugar antigo.

Por outro lado, depois de ler “Blackpot”, é evidente que ele já não era o mesmo que escreveu “A Mão Direita do Diabo”, “Requiem para D.Quixote” E “Mulher e Arma com Guitarra Espanhola”. Era o mesmo sem ser o mesmo – se é que me entendem…

Vou tentar ser mais explícita:

Em “Blackpot” não há frases como:

- “Vive no mundo do crime e não perdeu a inocência”. 

- “Trazia a mesma merda de sorriso”.

- “A miséria tem sempre a mesma cara”.

- “Você continua pestanudo como uma gazela de Walt Disney”.

- “Você não acredita num amor maldito? Acredito nas tempestades dentro das pessoas”.

O que há nos outros e que não há neste, é que Maynard tem conflitos íntimos, hesita. Em “Blackpot” mata-se com precisão. Usa-se a mira, o silenciador, trabalho limpo.

Não há vestígios daquele capítulo hilariante de “Mulher e Arma com Guitarra Espanhola” em que, no submundo do crime, pessoas de reputação duvidosa entram num bar e assumem nomes de escritores. Um regabofe! Dá coisas do estilo:

“Este é o meu amigo Karl Marx, não é mau rapaz, mas muita gente embirra com ele”.

Ou

“Queria pedir-lhe um favor, George Sand. Peça. Queria que me apresentasse o Marques de Sade”.

E há aquela sequência imbatível, quando Maynard entra numa sala completamente vermelha e lhe oferecem uma bebida. Ele responde:

“Não bebo uísque. Gostaria de beber um copo de leite, mas para não destoar, não me importo de beber um copo de sangue!”

Dennis McShade, ou melhor, Dinis, estava em roda livre quando escreveu o terceiro destes policiais.

Assunto arrumado.

Assim sendo, apesar das diferenças, porque é que é McShade a aparecer nos anos 80, com “Blackpot”, e não Dinis Machado?

É simples. Na minha opinião, porque as obsessões eram as mesmas, o universo era o mesmo. Basta ouvir a seguinte frase para perceber do que falo:

“Pode-se vomitar tudo menos o medo e a solidão. Esta frase idiota fora-lhe dita, uma vez, por um médico que morrera atropelado por um camião. Continuou a olhar para o espelho e tentou sorrir da ideia. Mas não sorriu. Observou os dentes. Tinha-os em mísero estado. Pegou no frasco de álcool, lavou as mãos e passou-as pelo cabelo”.

Estão a ver um camone do “Molero” a esfregar-se com álcool? Eu estou. Estão a ver Dinis a vomitar o medo e a solidão? Eu estou. Estão a ver a má sorte, o acaso, o que lhe quiserem chamar, de um tipo ser atropelado e não o merecer? Eu estou.

A vida tem destas coisas arbitrárias.

Dinis concordaria.

Vou agora tentar dizer como é que li “Blackpot”.

É uma novela curta, que se lê em menos de uma hora, e que é preciso reler para entender quelque chose. (Dinis também concordaria com uma tentativa de fazer humor quando as coisas ficam muito sérias e formais).

O que me aconteceu foi que li e fiquei a pensar o que era aquilo. O que é estava contido naquelas 50 páginas. O que é que Dinis queria dizer nelas.

Na primeira página, Armador diz: “Vem a minha casa, jogamos uma partida de xadrez”. Nessa altura, não percebemos ainda que vamos assistir a uma partida de xadrez.

Mas essa não foi a primeira coisa que me ocorreu. A primeira foi que estava perante um tirocínio. Em que todos matavam e era mortos. Em que as personagens não eram personagens, mas sim nomes. E sobretudo, funções. Estava perante um organigrama, complexo, inquietante. Um puzzle a pedir uma decifração permanente.

Dele fazem parte:

Gulliver, Armador, Legos, Lorenzo, Condor, Argos, Travel, Victor, Bruno, Ornatto, Crystal, Laerte, e Cândido, o Frio.

Treze personagens. No livro, se não me escapou alguma, contei 12 mortes. Mortes cirúrgicas, em que não se erra no alvo. Mortes sem sangue. Aliás, o único sangue que há em “Blackpot” é aquele que um personagem cospe para o lenço. E mortes impiedosas. Todos matam e todos sabem que vão ser mortos. Porquê?, o que é que se passa?

A resposta está no livro. Há a gente lá de baixo, há a gente de lá de cima, e há a necessidade de fazer uma reorganização.

Quem são estas pessoas, ou estes nomes? O que é que eles nos dizem?, que pistas nos deixam?

Algumas suposições: Argos, segundo a mitologia, é o gigante armador; foi o construtor e o piloto do navio dos argonautas. Laertes é o pai de Ulisses. Há um personagem que se chama Travel. Há outro que se chama Condor. E há outro, Bruno, quando queria pensar se metia num avião e voava.

Há também Victor: como a palavra indica, etimologicamente, é aquele que vence. É o que acontece em “Blackpot”.

Gulliver, o de Swift, é o das viagens; é gigante quando está numa terra de anões, anão quando está numa terra de gigantes. Também nesta novela ele está entre os que estão lá em cima, e os que estão lá em baixo. Entre os que morrem e os que mandam matar.

É o primeiro a aparecer, é usada para ir matando todos, e é o último a morrer. E quem o mata? Reparem na finesse do Dinis: Cândido, o Frio. Podia ter sido um qualquer, mas quem faz cheque mate a Gulliver é um tipo cândido.

A candura, a inocência, é talvez o mais persistente dos temas de Dinis Machado.

Mas voltemos ao tabuleiro, ao xadrez, à banalidade humana destes personagens. Sentem-se mal, vomitam, falam para o retrato do pai há 30 anos, sentam-se na borda da cama fumando um cigarro. Preocupam-se com o peito flácido, vêem revistas de mulheres nuas. Estão a cegar. Pensam em matar enquanto fritam ovos com bacon. Têm mais cabelos brancos. Morrem quando vão ter com a amante. Ensinam matemática à filha; metem-na num colégio para a poupar à carnificina.

Quase não há adjectivos. Laerte é ambicioso – escreve-se. Fora isto, nada.

Também não há referências constantes a autores de Dinis. Aqui não se fala de filmes de Bergman ou Mizoguchi enquanto a namorada lambe a orelha. Excepções: um deles diz que gosta Samuel Beckett e BD. E outro faz passar no vídeo “My Darling Clementine”.

Ora, aqui está um indício de que esta novela não foi escrita aquando dos outros policiais. Pela simples razão de que não se usavam vídeos nos anos 60.

Voltando à entrevista de Dinis, ele dizia: 

“Éramos espectadores diários de cinema. Trabalhava já nos jornais, e tinha horários tremendos: entrava às seis da manhã, saía às duas da tarde, conseguia a noite livre para ir ao cinema. Nos intervalos entre o jantar e o cinema, tínhamos os livros e a discussão na mesa do café, «Dá cá este, dá cá aquele», era assim feito o aluguer dos livros. Consoante agora se alugam vídeos. Íamos à Barateira e escolhíamos os livros. Tirei obras primas só pelo título, e depois vi que eram obras primas. Aconteceu-me com o primeiro Camus, os primeiros Boris Vian, com o Céline da «Viagem ao fim da noite». E ainda tínhamos tempo para ir jogar futebol ao domingo todo o dia, de Inverno ou de Verão”.

Temos então 58 páginas, de uma narrativa algo apocalíptica, em que, após tantos mortos, tudo fica na mesma. Temos uma luta entre gangues, numa descrição descarnada, e aqui e além, aparecem bocadinhos de personalidade.

Temos um jogo de xadrez. Movimentam-se peças, mas isso não tem relevância. É só o jogo, é só o xadrez, e no fim tudo recomeça.

“Andam a matar-se uns aos outros como doidos”, diz-se a dada altura.

E a questão de fundo é: quem anda a fazer isto?

Estas peças são jogadas por uma mão que joga. É Victor, jogando tudo? São várias pessoas que não sabemos quem são? São peões. Torres?, bispos? Rei e rainha?

É um jogo cheio de brincadeiras, não forçosamente perigosas. No capítulo 13 e no 31, por exemplo, repete-se a mesma frase.

“Blackpot” é quase um poema. É uma never ending story. Revela o que é a escrita, o esqueleto de uma escrita.

O que é que isto tem a ver com os outros três McShade? Os outros são isto, e a carne. Mas nem por isso ficamos pior só com a ossatura. Pelo contrário. Dinis tem a faca afiada, e deixa-nos na inquietude.

Sobretudo quando atira com aquela frase de Camus: Quando todos formos culpados, então será a democracia”.

Talvez ela queira dizer que partilhamos todos de um mesmo sentimento comum. A culpa, o medo, a solidão. Talvez a frase de Camus queira dizer que quando todos formos responsáveis, então será democracia. Quando todos tivermos poder de intervenção, será democracia.

Dinis, como sabemos, tinha um carinho especial pelos desvalidos, pelos que caem para o lado mais negro, pelos injustiçados. Esses, somos todos. Uns mais do que outros, mas todos.

Estamos todos nesse “Blackpot”, esse pote preto, onde a minha avó fazia a sopa.

Uma frase de Dinis para terminar:

“A tentativa da explicação do mundo é terrível, labiríntica. Vamos inventando sobre invenções. A luta com o real é tremenda; é o quotidiano, o corpo a já não responder, a cabeça a fazer recusas permanentes. Vou-me limitando um pouco ao meu mundo. Por exemplo, este momento, depois do almoço, a fumar uma cigarrilha e a beber café, é privilegiado. Se pudesse escolher a hora da morte, gostava de morrer assim, à tarde, de cigarrilha e café, sossegado. Se pudesse escolher”.

 

Texto lido na apresentação do livro "Blackpot", em 2009

Dinis Machado morreu em 2008